Recebido em: 16/01/2019
Aprovado em: 12/02/2019
Sobre prazeres, percepções e apropriações: um convite
à leitura de 1913, de Florian Illies
On pleasures, perceptions and appropriations:
a call for reading of 1913, by florian illies
ILLIES, Florian.
1913
:
antes da tempestade.
São Paulo: Editora Estação Liberdade, 2016. 368p.
VIEIRA, Vinícius de Castro Lima
*
Ao texto de prazer, Roland Barthes, em 1973, propôs uma caracterização como o
texto que procura ser desejado pelo leitor, que produz o deleite pelas/das palavras, que
contenta pela ironia, pela erudição, pela fineza, pela cultura e pela inovação. Um texto de
prazer, e esse é um detalhe crucial, não é aquele necessariamente dedicado a narrar o
prazer, não é o pornográfico; o texto de prazer é aquele no qual se regozija pela forma de
produção, pelo erotismo das palavras que instigam.
Para mim, não houve possibilidades e aqui já me entrego de imediato de ler o
livro, 1913: antes da tempestade, de Florian Illies, e não lembrar das palavras de Barthes.
Aliás, o prazer do texto no livro de Illies, ao menos nesta edição brasileira, começa em
um oximoro erótico antes mesmo da leitura: já está encaminhado na belíssima capa
estampada pelo quadro Rua à Noite, de Max Beckmann, que envolve o miolo composto
*
Mestre em História Política pela UERJ, Rio de Janeiro-RJ, e doutorando em História Política na mesma
instituição. Pesquisador do Laboratório de Estudos das Diferenças e Desigualdades Sociais (LEDDES). E-
mail: vinicius.vieira@folha.com.br
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.6, nº1, p.472-477, jan.-jun., 2019
Sobre prazeres, percepções e apropriações: um convite à leitura de 1913, de Florian Illies
473
por papel off-white de excelente qualidade e com uma agradável composição tipográfica.
Por isso, não pretendo aqui fazer apenas comentários críticos sobre o trabalho de Illies,
mas também escrever uma resenha que instigue a leitura do livro.
Mas atenção: não é porque o livro de Illies tenha sido um texto de prazer para
este leitor, agora alocado na posição de autor, que o será, automaticamente, para outros.
Pode ser que alguém sinta um completo enfado pelo livro; como também é possível que
eu mesmo, num outro momento, eventualmente não o identifique mais como um texto de
prazer. O prazer é individual, presente, momentâneo e efêmero. Como o sentido de um
texto que só se completa nas co-criações do leitor, o prazer, por mais que o texto o
procure, não está garantido. O prazer existe em função de alguém e é específico de um
leitor em um certo momento; afinal, “se aceito julgar um texto segundo o prazer, não
posso ser levado a dizer este é bom, aquele é mau (...). O texto (o mesmo acontece com a
voz que canta) só me pode arrancar este juízo, nada objetivo: é isso. E mais ainda: é isso
para mim!” (BARTHES, 2009, p. 137).
O livro de Illies cativa pela fina ironia, pelo bom humor, pelo nítido cuidado com as
palavras e pelo vasto trabalho de pesquisa. A estrutura narrativa é descontínua, cada
capítulo se refere a um mês do ano de 1913 e é subdividido em pequenas seções. Isso não
impede, contudo, a percepção e o acompanhamento do transcorrer de determinadas
situações, casos e conflitos ao longo do ano. Dessa forma, o livro pode ser apreciado em
vários regimes de leituras, dentre os quais dois se destacam: o primeiro seria o da leitura
fragmentária, mais interessada nas crônicas envolventes do cotidiano de personagens
admiráveis como Rilke, Picasso, Kafka, Schiele, Freud e Schönberg; o segundo seria o da
visão totalizante, que permite a percepção de uma espécie de zeitgeist do modernismo
europeu no início do século XX. Evidentemente, esses regimes de leituras são mais
complementares do que excludentes.
A nacionalidade alemã, a formação em história da arte e a atuação profissional
como marchand de arte e jornalista cultural, são aspectos biográficos e profissionais de
Illies que ajudam a compreender alguns desses encaminhamentos narrativos, como a
natureza jornalística da prosa curta, direta e objetiva e, também, o decalque no destaque
evidente ao mundo artístico-cultural germanófono.
Em 2000, o nome de Illies já havia reverberado bastante na intelectualidade alemã
com a publicação de seu primeiro livro, Generation Golf, em que fazia uma análise de sua
própria geração, nascida nos anos 1970 e modelada no transcorrer das duas décadas
seguintes. Não foi por acaso, portanto, que 1913 se tornou um sucesso de crítica e de
vendas logo após o seu lançamento, em 2012, na Alemanha; sendo, posteriormente,
traduzido para o inglês, francês, espanhol, italiano e português. O livro chegou ao Brasil,
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.6, nº1, p.472-477, jan.-jun., 2019
VIEIRA, Vinícius de Castro Lima
474
em 2016, numa edição publicada pela editora Estação Liberdade, com tradução de Silvia
Bittencourt e sob auspícios do Ministério das Relações Exteriores alemão.
Ao final da leitura de 1913, fica uma certa impressão de que este ano foi
arrebatador, repleto de eventos inaugurais que seriam emblemáticos durante um longo
período. Para me ater apenas a exemplos integrantes do inventário de Illies, poderia
citar: o início da operação da primeira linha de montagem nas fábricas da Ford; a
inauguração dos 57 andares do edifício Woolworth, em Nova Iorque, assumindo o posto
de mais alta construção do mundo naquele momento; a publicação do primeiro volume
de Em Busca do Tempo Perdido, marco da literatura modernista; as primeiras audições
públicas de Canções de Guerre e de Sagração da Primavera, obras-primas de Schönberg
e de Stravinsky, respectivamente; o retorno de Mona Lisa ao Museu do Louvre, dois
anos depois de ter sido roubada; a realização da exposição Armory Show, que
consolidaria a hegemonia do modernismo nas artes; a circulação do primeiro número da
revista Vanity Fair entre muitas outras coisas. Tudo isso em 1913.
Ora, se for feito um levantamento tão detalhado quanto o de Illies para outros
anos do último século, talvez se chegue a impressões similares de importância, de
efervescência e de singularidade. O diferencial do ano de 1913 é especialmente definido
pelo que se segue, pois o desenvolvimento ecomico-tecnológico, a agitação cultural e,
até mesmo, um certo chacoalhar nos costumes ocorre às vésperas da Primeira Guerra
Mundial. E isso se torna ainda mais peremptório na narrativa de Illies por não haver
indícios no cotidiano das pessoas de apreensão, medo ou desconfiança generalizados
para com o futuro.
Evidentemente, as pessoas, em 1913, não poderiam conhecer a “tempestade” que
lhes aguardavam; sobretudo porque as experiências traumáticas da Primeira Guerra
Mundial estavam tão recheadas de ineditismo que não seria viável nem mesmo
vislumbrá-las no horizonte de expectativas. A clivagem que a grande guerra mundial
operou no espaço de experiências daquela geração permite que nós, hoje,
retrospectivamente, compreendamos como foi possível a formulação de certos
progsticos, como o de David Starr, presidente da Universidade de Stanford em junho
de 1913: “A grande guerra europeia, uma ameaça eterna, jamais chegará. Os banqueiros
não arranjarão o dinheiro para tal guerra, a indústria não a manterá, os estadistas não
terão como levá-la a cabo. Não acontecerá nenhuma grande guerra” (STAR apud ILLIES,
2016, p. 177); ou mesmo o de Lênin, em março desse mesmo ano: “Uma guerra entre a
Áustria e a Rússia seria muito útil para a revolução na Europa Ocidental. Todavia, é
quase impossível imaginar que Francisco José e Nicolau nos façam este favor” (LÊNIN
apud ILLIES, 2016, p. 89).
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.6, nº1, p.472-477, jan.-jun., 2019
Sobre prazeres, percepções e apropriações: um convite à leitura de 1913, de Florian Illies
475
Essa percepção de que a grande guerra mundial não estava inserida no campo das
probabilidades, em 1913, emerge no olhar microscópico lançado por Illies sobre o período.
Um olhar que focaliza o cotidiano de determinados integrantes ou daqueles que viriam
-los, em breve das elites culturais, políticas, intelectuais, acadêmicas e científicas do
continente europeu, em especial, dascapitais do modernismo” Viena, Paris, Berlim e
Munique. Illies pouco ou nada nos diz sobre os pobres e os camponeses europeus, nem
sobre o cotidiano nos trópicos ou nos continentes asiático e africano. Um historiador,
por outro lado, que empregasse um olhar instrumentalizado pelo telescópio
1
, sobre o
mesmo período, talvez pudesse afirmar, pautado em elementos que o próprio Illies
menciona como o aumento dos gastos militares, o incremento no contingente do
exército austro-húngaro ou o aumento das tensões políticas nos Balcãs, que já estaria
sendo tramado um cenário de guerra. E, assim, estaríamos diante de um bom exemplo
das variações interpretativas proporcionadas pelos chamados jogos de escalas (REVEL,
1998).
Porém, Florian Illies não é esse historiador, não é essa sua intenção, nem, muito
menos, é esse o seu olhar. Ele prefere nos deliciar com as intimidades da vida dos outros.
Prefere nos contar a ida de Hitler para a Alemanha, em maio, fugindo do recrutamento
do exército austríaco; a intensa paixão do feioso Oskar Kokoschka com a belíssima Alma
Mahler, que lhe promete casamento se ele pintar uma “grande obra-prima” (ILLIES, 2016,
p. 138); a apreensão de Freud para o encontro com seu ex-colaborador Jung, no IV
Congresso da Associação Psicanalítica; e as indecisões de Kafka, suas “gagueiras por
escrito” (ILLIES, 2016, p. 191), nas cartas trocadas com sua amada Felice Bauer.
Aliás, Kafka é um dos personagens mais proeminentes da narrativa de Illies e
merece aqui um comentário mais detido. Quando finalmente consegue se decidir, um dos
maiores escritores do século XX, pede Felice Bauer em casamento de uma forma no
mínimo sui generis. Escreve Kafka:
[...] pondere Felice, diante desta incerteza é difícil pronunciar as palavras e
também deve ser estranho ouvi-las. Ainda é cedo demais para dizer. Mas depois
será tarde demais, não haverá mais tempo para discutir essas coisas, como vo
menciona na última carta. Mas não há mais tempo para hesitar demais, pelo
menos é o que sinto, e por isso pergunto: dadas as condições acima, difíceis de
eliminar, não quer pensar em se tornar a minha esposa? Você quer isso? [...]
Considere, Felice, as mudanças que se sucedem conosco em um casamento, o
que cada um perderia, o que cada um ganharia. Eu perderia a minha solidão,
assustadora na maioria das vezes e ganharia você, a quem amo acima de todas
as pessoas. Você, porém, perderia a vida que tem agora, com a qual tem estado
quase inteiramente satisfeita. Perderia Berlim, o escritório de que tanto gosta,
as amigas, os pequenos prazeres, a perspectiva de se casar com um homem
saudável, alegre e bom, de ganhar filhos bonitos e com saúde, algo que você,
1
Quando me refiro aos olhares telescópicos e microscópicos faço alusão ao comentário de José Gonçalves
Gondra sobre o trabalho de Jacques Revel. Sobre esse tema, consultar: GONDRA, 2012; REVEL, 1998.
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.6, nº1, p.472-477, jan.-jun., 2019
VIEIRA, Vinícius de Castro Lima
476
pense bem, realmente almeja. No lugar destas perdas incalculáveis, vo
ganharia uma pessoa doente, fraca, insociável, taciturna, triste, inflexível e
quase sem esperança (KAFKA apud ILLIES, 2016, pp. 191-192).
Illies então segue, comentando ironicamente, “Quem não diria sim imediatamente? Um
pedido de casamento em forma de admissão de falência” (ILLIES, 2016, p. 192).
Tudo bobagem, poderiam dizer os estudiosos presos à ortodoxia de uma história
estrutural desencarnada. Mas acho que a essa altura já está bastante evidente que as
miudezas, as de Illies aqui, em particular, podem municiar importantes reflexões. Se
ainda não estiver, vamos a um exemplo ainda mais claro.
Um exemplo de reflexão teórico-conceitual que o livro de Illies encaminha
aparece bem localizado no início do capítulo dedicado ao mês de março e diz respeito à
importância em conferir uma dimensão histórica ao conceito de moderno. Como
sabemos, o que é tomado, proposto e entendido como moderno, em uma determinada
época, é objeto de disputa, envolvendo, em alguns casos, passado e presente, tradição e
ruptura. À cada geração, ao menos desde meados do século XIX, o que é identificado
como moderno é redefinido constantemente, de modo a consolidar o rompimento com
parcelas de um passado e ser associado às experiências presentes. Toda essa reflexão é
belamente ilustrada por Illies a partir do relato das relações do crítico de arte Julius
Meier-Graefe com as vanguardas artísticas:
Sempre assistimos, espantados e admirados, a como os propagandistas mais
impetuosos da vanguarda têm olhos apenas para aquela única revolução
artística. Quando chega a geração seguinte, disposta a fazer a última vanguarda
parecer antiquada, a perícia, o discernimento, o "olho" firme muitas vezes não
funcionam mais. É o caso aqui. Meier-Grafe, que por iniciativa própria abrira os
olhos dos alemães para Delacroix e Corot e Cézane e Manet e Degas e muitos
outros, está sentado na casa de campo em Berlim-Nikolassee e escreve,
impassível, a sentença: "Frente ao nome de Picasso, o historiador do futuro
ficará paralisado e constatará: aqui se chegou ao fim". Ponto. Inimaginável que,
depois da destruição das formas do cubismo, seja possível seguir em frente. O
grande autor, talvez o estilista mais ardente da crítica de arte do século, um
mestre em narrar a "evolução" da arte, agora a enxerga, sobriamente, chegando
ao fim. Lá, no mesmo ponto em que hoje enxergamos seu início (ILLIES, 2016, p.
87).
É preciso, ainda, fazer três comentários sugestivos e críticos sobre aspectos
formais do livro, dois deles de responsabilidade do próprio autor e o outro me parece
que mais específico à edição brasileira. Primeiramente, a ausência de indicações precisas
das referências das fontes, ao meu olhar viciado de historiador, incomoda bastante. A
lista das referências bibliográficas que segue ao final do livro é muito geral e não ajuda
muito outros pesquisadores que eventualmente quiserem desenvolver ou mesmo checar
algumas informações citadas por Illies. Certamente, o autor e os editores optaram por
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.6, nº1, p.472-477, jan.-jun., 2019
Sobre prazeres, percepções e apropriações: um convite à leitura de 1913, de Florian Illies
477
suprimir as notas de rodapé para favorecer a fluidez do texto, mas, ainda sim, poderiam
ter se valido das notas de fim, com as quais obteriam efeito parecido, sem comprometer
o rigor. Outra carência importante é a de um índice remissivo. Como são muitos nomes
citados inúmeras vezes, esse índice, provavelmente, seria gigantesco, porém ajudaria os
pesquisadores, estudantes e mesmo os curiosos com interesses mais específicos, a
identificar os momentos exatos em que cada personagem é mencionado. Não posso
deixar de sinalizar, por fim, os problemas de ortografia e de digitação que a edição
brasileira apresenta. Para me bastar no mais grosseiro, o nome de Virginia Woolf
aparece, ao menos três vezes, erroneamente grafado como “Virgina”. Detalhe que não
anula a qualidade do livro, mas que precisará ser objeto de uma revisão mais cuidadosa
em futuras reedições.
Estamos, portanto, diante de uma obra que tem méritos, defeitos e limitações,
mas que consegue, antes de tudo, despertar o interesse do leitor pelo período e pelo
desenrolar do próprio livro. Illies escolhe tão bem as palavras que nos deixa em dúvida se
lemos num único fôlego para conhecer os desfechos de todas aquelas situações ou se
diminuímos o ritmo para desfrutar pausadamente das imagens produzidas pela narrativa.
E, ainda assim, no final, ficamos curiosos dos destinos das vidas ali narradas, desejosos
de perceber de que modo a grande guerra alterou aqueles cotidianos e produziu outras
sociabilidades, apreensões e “normalidades”. Por isso, seria formidável se Illies nos
presenteasse com um 1915 ou um 1918. Enfim, foi ótimo para mim. Espero que para vocês
também seja.
REFERÊNCIAS
BARTHES, Roland. O prazer do texto. Lisboa: Edições 70, 2009.
ILLIES, Florian. 1913: antes da tempestade. São Paulo: Editora Estação Liberdade, 2016.
GONDRA, José. Telescópios, microscópios e incertezas: Jacques Revel na história e na
história da educação. In.: LOPES, Eliane; FARIA FILHO, Luciano (Org.). Pensadores
sociais e história da educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. v. 2.
REVEL, Jacques. Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 1998.