Recebido em: 23/04/2019
Aprovado em: 06/05/2019
Folia de Reis em Florínea: manifestação popular, memória e
patrimônio
Folia de Reis in Florinea:
popular manifestation, memory and
patrimony
GOULART, Rafaela Sales.
Sentidos da Folia de Reis
:
um estudo da
memória e da identidade da celebração popular em Florínea/SP.
São Paulo: Editora Alameda, 2018. 268p.
FABRI, Aline
*
A partir da década de 1970, devido à efervescência da Nova História Cultural e da
Micro-História, surgiram críticas à história das grandes narrações e do tratamento global
à cultura. Os sujeitos presentes em todos os espaços, inclusive os marginalizados,
passam a ser investigados e vistos por estas vertentes de pesquisa como contribuintes
importantes à compreensão acerca da cultura e de diversos aspectos que estão envoltos
a ela.
Dentro deste novo modo operante de se investigar a cultura e a história vem o livro
Sentidos da Folia de Reis: um estudo da memória e da identidade da celebração popular
em Florínea/SP, de autoria de Rafaela Sales Goulart, historiadora formada pela UENP
(Universidade do Norte do Paraná), com especialização em História e Humanidades pela
*
Licenciada em História, Unesp Assis, São Paulo (SP). Mestranda do Programa de Pós-Graduação em
História da UNESP, Assis, SP. Professora do Ensino Médio Etec Centro Paula Souza. E-mail:
alinefabri1@yahoo.com.br.
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.6, nº1, p.483-489, jan.-jun., 2019
FABRI, Aline
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UEM (Universidade Estadual de Maringá), e mestrado em História pela UNESP
(Universidade Estadual Paulista) câmpus de Assis.
O livro em questão é resultado da dissertação de mestrado da autora e foi
publicado em 2018 pela editora Alameda/São Paulo. Possui 268 páginas, contendo
introdução, três capítulos e conclusão. O prefácio foi feito pela orientadora de Goulart, a
historiadora Fabiana Lopes da Cunha, que sucintamente escreve sobre o tema.
Sua estrutura está pautada em referencial teórico e historiográfico, com citações
de pensadores relacionados ao assunto investigado. Alguns deles serão expostos mais
adiante. Também usa fontes orais, colhidas de forma técnica, fotografias, além de
trechos de músicas e declamações religiosas. Foram obtidos 21 relatos orais do grupo de
foliões e 4 entrevistas com demais membros da cidade, como o pároco, por exemplo.
Portanto, os documentos foram diversos: envolveram registros produzidos a partir dos
foliões, documentos públicos da prefeitura e outros. Goulart fez uso de ideias de alguns
autores que tratam de métodos de pesquisa em relação à história oral e à memória,
como, por exemplo: Michael Pollak, Jacques Le Goff, Eduardo Romeiro de Oliveira e
Verena Alberti.
No que diz respeito às narrativas orais e sua relação com a memória, Goulart
apoiou-se em importantes autores. No entanto, ela poderia ter recorrido às indicações de
Portelli (1996) quanto a esses métodos no trato e no cuidado para com os documentos.
Isso teria reforçado ainda mais sua desenvoltura frente às fontes analisadas no presente
trabalho. O autor nos ajuda a pensar que, ao fazer uso da história oral e das memórias, é
preciso saber que elas “não nos oferecem um esquema de experiências comuns, mas sim
um campo de possibilidades compartilhadas, reais ou imaginárias” (PORTELLI, 1996, p.
71). O cuidado para com as fontes orais e com as memórias é sempre imprescindível, e o
aporte em Portelli (1996) seria uma sugestão para o incremento na construção de
pesquisas nesse campo de estudos.
O assunto central da obra gira em torno da Festa de Reis, na cidade de Florínea/SP,
que acontece sessenta anos, e que teve reconfigurações de destaque, em 1993, e nos
vinte anos seguintes, até 2013. O recorte temporal citado se destaca pela transferência
da festa da zona rural para a área urbana. E, também, pela aquisição, com apoio da
prefeitura, de um local fixo para a realização da festa bem como da criação da
Associação Folclórica de Reis Flor do Vale de Florínea. Nos capítulos iniciais, a autora
deixou o leitor a par, de forma descritiva e por meio de memórias, das principais
características que constituem a Folia de Reis na cidade de Florínea. Em seguida, nos
capítulos finais, ela trouxe à tona reflexões gerais acerca da consciência social
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construída sobre a Folia de Reis, da identidade formada pelos membros desse ritual e da
Folia de Reis de Florínea vista como patrimônio imaterial.
No Capítulo 1, “A cidade da Folia de Reis: um giro pelas memórias e histórias de
Florínea (SP)”, o foco é a história da cidade de Florínea construída por meio de relatos
orais de moradores foliões da Companhia de Reis e por documentos da Prefeitura. Nesse
processo, tem-se a identificação de proximidade da história de fundação da cidade com a
história da constituição das duas Companhias de Reis ali formadas ao longo do tempo.
Enquanto no Capítulo 2, A Folia de Reis de Florínea (SP) ritual, símbolos e significados, a
autora retrata as a organização e as características específicas do festejo, trazendo
detalhes sobre as diferentes funções dos membros das Companhias, explicações sobre
os símbolos do festejo, da movimentação das Bandeiras e conteúdo das canções e versos
entoados.
Valendo-se dos estudos de Jacques Le Goff e de Verena Alberti no que diz respeito
a questões metodogicas, Goulart traz para a análise o papel do historiador frente aos
documentos encontrados. Ela exe, pautada nesses autores, que diante de documentos
escritos, fotografias ou relatos orais, é preciso uma conduta de desmonte do que se tem
em mãos para se conseguir analisar as suas condições de produção. Com essa postura,
Goulart analisou as fontes ao longo de sua pesquisa de forma consciente e crítica,
demonstrando sempre a preocupação com o explícito, mas além disso, com o implícito,
no que tange à imagem que a comunidade de Florínea e os foliões têm de si mesmos ao
longo da trajetória histórica das Companhias de Reis, suas vivências e realizações.
As reflexões sobre o assunto prosseguiram no Capítulo 3, Sentidos da Folia de Reis
de Florínea (SP): memória, identidade e patrimônio (1993-2013). Neste capítulo, há uma
análise sobre a possível formação de uma consciência social acerca da ideia de
patrinio em torno das mudanças ocorridas na festa. E, ainda, os sentidos dos rituais,
aprendizagens sociais e estratégias de sustentação da memória coletiva tomadas pelos
sujeitos envolvidos na condução do festejo.
A autora apoia-se nas ideias de Paulo Freire para discorrer uma análise sobre
consciência social, crítica e histórica no tocante ao festejo estudado.
[...] a conscientização é um compromisso histórico. É também consciência
histórica: é inserção crítica na história, implica que os homens assumam o papel
de sujeitos que fazem e refazem o mundo. Exige que os homens criem sua
existência com um material que a vida lhe oferece. (FREIRE apud GOULART,
2018, p. 237).
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Goulart, dando continuidade às suas reflexões, analisa a transferência da festa
para o Parque de Tradições, na cidade. Também discute os sentidos da criação da
Associação Folclórica de Reis Flor do Vale de Florínea por foliões, em 2013, indicando
que se trata de ações da comunidade florinense para com a continuidade da Folia de
Reis. A partir destes dois atos, Goulart constrói sua análise acerca da possibilidade de
existência de uma consciência coletiva dentre esses sujeitos, pois essas mudanças
representam ações que aparentemente parecem ir nessa direção. A autora traz dados
acerca dessa posvel construção de consciência sobre o papel da Folia dentre os
participantes do festejo. Verificamos isso em sua fala, por exemplo, sobre a Associação
Folclórica de Reis Flor do Vale de Florínea quando ela afirma que tal entidade “[...] é
recente e ainda depende de avanços no processo de consciência social dentro e fora do
grupo, o que incide nas limitações das políticas culturais da cidade de Florínea.”
(GOULART, 2018, p. 241).
Ao trabalhar com a questão da identidade do grupo pesquisado, Goulart se apoia
nos estudos de Eric Hobsbawn e de Joseane P. M. Brandão. Ela discorre sobre a
construção da identidade do grupo e usa de ideias desse primeiro autor para se referir à
ideia de coesão social. Para isso reflete sobre o exemplo de figuras como o festeiro e o
mestre que representam peso histórico de tradição forte: as bandeiras chegam a ser
reconhecidas pelo nome de seus festeiros ou de seus mestres, e não pelo nome do
fundador. No entanto ainda há uma reafirmação do nome daquele que seria o primeiro
festeiro e fundador da festa (Sebastião Alves de Oliveira), o que reforça o peso de
tradição da festa. Tais pontos de tradição, segunda ela, podem contribuir para a coesão
social do grupo e de sua identidade.
Fazendo uso da citação de Joseane P. M. Brandão Goulart faz mais apontamentos
sobre a formação da identidade do grupo: [...] as identidades são sociais e os indivíduos
se projetam nelas, ao mesmo tempo em que internalizam seus significados e valores,
contribuindo assim para alinhar sentimentos subjetivos com as posições dos indivíduos
na estrutura social” (BRANDÃO apud GOULART, 2018, p. 221). A Folia de Reis seria parte
da identidade social de Florínea, tendo em vista que exerce representatividade dos
sujeitos da cidade, que se veem como parte constituinte do festejo. Para o grupo, os
rituais dessa festa popular possuem símbolos que lhes são significativos e dotados de
valor e sentidos.
Quanto à ideia de patrimônio, Goulart a desenvolve tendo em vista sua imbricação
com a formação da consciência e da identidade do grupo. Ela afirma que a Folia de Reis
de Florínea é entendida como um patrimônio da cidade, porque representa uma
identidade coletiva e suscita tentativas de conscientização do grupo sobre a
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continuidade do festejo. Cita, inclusive, a decretação da lei municipal de 2010 que coloca
o dia 6 de janeiro (Dia de Santos Reis) como feriado municipal. O que seria mais uma
tentativa de conscientização sobre o caráter de patrimônio da Folia de Reis de Florínea.
A autora discorre também sobre educação patrimonial e aprendizagens sociais.
Para isso, recorre as ideias de Carlos R. Brandão e Sônia R. Florêncio. Ela cita a
formulação da Coordenação de Educação Patrimonial (CEDUC) sobre o termo
“Educação Patrimonial”, fazendo uso das palavras de Sônia R. Florêncio:
[...] todos os processos educativos formais e não formais que tem como foco o
Patrimônio Cultural, apropriado socialmente como recurso para a compreensão
sócio-histórica das referências culturais em todas as suas manifestações, a fim
de colaborar para seu reconhecimento, sua valorização e preservação.
Considera, ainda, que os processos educativos devem primar pela construção
coletiva e democrática do conhecimento, por meio do diálogo permanente entre
os agentes culturais e sociais e pela participação efetiva das comunidades
detentoras e produtoras das refencias culturais, onde convivem diversas
noções de Patrimônio Cultural. (FLORÊNCIO; et al, 2014, p. 19 apud GOULART,
2018, p. 237-238).
O ato de ensinar o outro sujeito a fazer declamações, danças ou demais aspectos
da Folia de Reis faz parte de um processo de aprendizagem em Florínea, demonstra
Goulart. A rigor, ela discorre sobre o assunto pautada em Carlos R. Brandão relatando
que as comunidades detentoras dos patrimônios fazem fluir o saber, o ensinar e o
aprender. E com o tempo transformam-se em representações sociais.
Conhecer o trabalho de Goulart com as fontes orais nos remete à categoria de
“memória coletiva” desenvolvida por Halbwachs (1990). Embora ela não o tenha usado
em sua pesquisa, esse sociólogo, que tem rzes no pensamento de Durkheim, nos traz
conceitos, procedimentos e entendimento quanto ao trabalho com memórias. Ele nos
alerta que o convívio social é determinante sobre a formação da memória. A lembrança
de um indivíduo tem relação com lembranças coletivas dos grupos em que ele esteve ou
está inserido. As memórias dos sujeitos da Folia de Reis de Florínea, transcritas por
Goulart no livro, podem assim ser classificadas como coletivas. Elas têm pontos em
comum, se entrecruzam, pertencem a grupos sociais presentes num mesmo espaço, que
no caso é a cidade de Florínea e a área rural da região. Entretanto, a memória individual
não pode ser ignorada. Ela é uma das lembranças que compõem a memória coletiva. O
indiduo exerce papéis tanto na memória individual, como na memória coletiva.
[...] a memória coletiva tira sua força e sua duração do fato de ter por suporte
um conjunto de homens, não obstante eles são indivíduos que se lembram,
enquanto membros do grupo. Dessa massa de lembranças comuns, e que se
apoiam uma sobre a outra, não são as mesmas que aparecerão com mais
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intensidade para cada um deles. Diríamos voluntariamente que cada memória
individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que este ponto de vista
muda conforme o lugar que ali eu ocupo, e que este lugar mesmo muda segundo
as relações que mantenho com outros meios. (HALBWACHS, 1990, p. 51).
Ainda nessa perspectiva de análise sobre o caráter da memória, sua validade e uso,
Goulart se baseia nas ideias de Bosi (1994) e afirma que “[...] memória é trabalho (BOSI,
1994) e de que lembranças são constructos sociais” (GOULART, 2018, p. 181). Ela nos
leva a perceber que o mundo do trabalho está envolto à memória dos indivíduos e faz
parte da construção de lembranças a serem contadas. Podemos recorrer à obra de Bosi
(1994) para trazer mais alguns pontos sobre essa reflexão realizada por Goulart.
Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir,
repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado. A memória
não é sonho, é trabalho. Se assim é, deve-se duvidar da sobrevivência do
passado, ‘tal como foi’, e que se daria no inconsciente de cada sujeito. A
lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora à nossa
disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual.
(BOSI, 1994, p. 55)
Dessa forma, o historiador, ao trabalhar com fontes orais e memórias, precisa
investigar as condições contextuais do grupo social onde os sujeitos depoentes estão
inseridos e conjecturas atuais de interesse sobre o passado. Em Florínea, a maior parte
dos depoimentos orais colhidos por Goulart são de indivíduos que hoje vivem no meio
urbano. Ao se direcionarem as memórias sobre o passado, as atividades da Bandeira de
Reis exercem um certo saudosismo por outra época: a vida no campo. Esse ponto
merece ser tratado com cuidado, à luz de reflexões de estudiosos sobre os métodos de
estudos sobre a memória.
Em relação aos sentidos da Folia para os envolvidos, Goulart criou reflexões que
alcançam a ideia de identidade, consciência social e patrimônio. O grupo se vê nas
práticas e símbolos do ritual e sente necessidade de dar continuidade ao festejo, o que
contribui para lhe qualificar como patrimônio cultural imaterial.
Na conclusão do livro, a autora delineia um balanço final da pesquisa, com
apontamentos voltados para a importância das construções sociais e da formação de
consciência sobre um patrimônio cultural que, no caso das Companhias de Reis da
cidade de Florínea, estão em formação.
Portanto, nesse estudo sobre a Folia de Reis em Florínea-SP emergem reflexões
sobre identidade e memória, além de ser um trabalho que nos aproxima das análises
referentes a fontes orais. O livro pode ser recomendado para estudantes que se
interessem por assuntos envolvendo a problemática da memória e das identidades, que
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se inscrevem no campo da cultura popular e que se expressam nos festejos que
envolvem religiosidade e fé que podem ser recuperados nos discursos memorialistas e
fontes correlatas.
Referências
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 3. ed. São Paulo: Companhia
das Letras, 1994.
GOULART, Rafaela Sales. Sentidos da Folia de Reis: um estudo da memória e da
identidade da celebração popular em Florínea/SP. São Paulo: Alameda, 2018.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de Laurent Léon Schaffter. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1990.
PORTELLI, Alessandro. A Filosofia e os fatos. Tempo, Rio de Janeiro: Relume-Dumará,
vol. l, n. 2, p. 59-72, 1996.