Um país de vários rostos, várias culturas
e várias lutas
:
o ano de 1968 no Brasil
A country of many faces, cultures and
struggles:
the year 1968 in Brazil
NUNES, Paulo Giovani Antonio; PETIT, Pere; LOHN, Reinaldo Lindolfo (org.).
Utopia e repressão: 1968 no Brasil. Salvador: Sagga, 2018. 355p.
VENTURINI, Luan Gabriel Silveira
*
Nesta coletânea, os professores Paulo Giovani A. Nunes, do Departamento de
História da Pós-Graduação em História da UFPB, Pere Petit, associado da UFPA, e
Reinaldo L. Lohn, do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da
UDESC, organizam quatorze textos divididos em capítulos sobre o período da
Ditadura militar brasileira em várias localidades do país, dando vida, assim, ao livro
“Utopia e Repressão: 1968 no Brasil”, publicado no ano de 2018. Estes capítulos seguem,
de certa forma, uma ordem de organização de acordo com a temática, nos quais grande
parte dos textos tem como foco o tema entre memória e movimento estudantil
universitário e secundarista, passando pela memória social e pela imprensa da época.
Desse modo, vemos que as ações do Regime o se concentraram apenas nos grandes
centros, pois movimentaram outros segmentos da sociedade na luta pelas liberdades,
como estudantes secundaristas, indígenas, comunidades extrativistas, etc.
Torna-se necessário, portanto, destacar as motivações dos organizadores com a
publicação da coletânea aqui apresentada. O intuito desses autores é mostrar,
particularmente, os acontecimentos do ano de 1968 no Brasil ditatorial; momento de
muitas agitações, manifestações, embates, perseguições e da imposição escancarada da
repressão e censura, por meio do AI-5. Além disso, querem expor a enorme diversidade
de atores sociais e também espacial, ou seja, apresentar que o Regime militar brasileiro e
as suas determinações e consequências motivaram mais do que os principais políticos,
artistas, estudantes, jornalistas e intelectuais das principais cidades brasileiras (Rio de
*
Graduado em História pela UFMS/CPTL, Três Lagoas, estado do Mato Grosso do Sul (MS), Brasil.
Professor substituto da Educação Básica. E-mail: luan_silveira10@hotmail.com.
Recebido em: 11/07/2019
Aprovado em: 21/08/2019
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Janeiro e São Paulo). Os capítulos irão revelar um país mais plural, afirmando a
diversidade durante esse período da História.
No primeiro capítulo, Papagaio que está trocando as penas não fala:
autoritarismo e disputas políticas no Amazonas no contexto do golpe de 1964, César
Augusto B. Queirós analisa as disputas políticas no Estado do Amazonas, no contexto do
golpe de 1964. O autor salienta a cassação do mandato do governador Plínio Ramos
Coelho (PTB) e a consequente posse de Arthur César Ferreira Reis, político indicado à
Assembleia Legislativa do Estado pelas Forças Armadas e pelo presidente Castelo
Branco.
A coletânea segue para o próximo texto, permanecendo ainda na região Norte, só
que agora o foco não são mais os políticos e, sim, os povos indígenas. Em Os
involuntários da pátria: povos indígenas e Segurança Nacional na Amazônia Ocidental
(1964-1985), Maria Ariádina C. Almeida e Teresa A. Cruz destacam a situação dos povos
indígenas no Estado do Acre, durante um momento em que se acentuavam as ações de
controle e violência contra eles por parte de alguns órgãos do Governo Federal. Segundo
elas, isso ocorria graças à doutrina de Segurança Nacional e ao objetivo de incentivar a
integração tanto socioeconômica quanto cultural da Amazônia ao centro-sul do país. Elas
não deixam de salientar a resistência desses povos e também a dos seringueiros na
defesa dos seus territórios.
Já em Memórias de luta: eventos estudantis contra a ditadura na ‘Fortaleza 68’”,
há um deslocamento da região Norte para o Nordeste, além da mudança de objeto. O
autor Edmilson A. Maia Jr. apresenta a memória sobre a organização do movimento
estudantil e conta a trajetória dele em Fortaleza, desde a retomada das instâncias dos
interventores, a partir de 1966, até o ápice deste movimento na capital cearense, que foi
a Passeata dos Vinte Mil. O autor utiliza-se principalmente de fontes orais.
No próximo capítulo, o objeto de análise continua sendo o movimento estudantil,
além do estudo acerca da imprensa na cidade de Florianópolis, ou seja, agora desloca-se
para a região Sul. Em 1968 entre utopias e realidades. Imprensa e protesto estudantil: o
caso de Florianópolis, Reinaldo L. Lohn e Silvia Maria F. Arend analisam a complexidade
entre imprensa e movimento estudantil com as mudanças sociais ocorridas naquele
momento em diferentes cidades brasileiras, principalmente Florianópolis. Eles buscam
demonstrar que a temática da juventude e da inovação social implicava tanto nos
projetos de quem ia às ruas combater a Ditadura quanto também nutriam os empolgados
com o crescimento econômico que estava transformando as cidades de porte médio no
Brasil.
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Novamente ocorre um deslocamento de cenário, agora para a região Sudeste,
porém, o movimento estudantil e a imprensa continuam sendo os objetos de análise em
A UNE na mira da VEJA desde 1968. A autora Maria R. do Valle ressalta as lutas deste
movimento estudantil em São Paulo, a partir de 1968, não só contra a repressão política,
mas também contra a narrativa elaborada pela grande imprensa especialmente a VEJA
que estigmatizava os personagens e as tomadas de decisões do movimento,
produzindo assim uma memória pejorativa em relação aos ativistas.
O movimento estudantil continua como objeto de estudos no trabalho de Paulo
Giovani A. Nunes, que analisa a luta armada na região Nordeste. Assim como no trabalho
de Edmilson A. Maia Jr., em O ano de 1968 no Estado da Paraíba: militância estudantil e
opção pela ‘luta armada’: trajetórias, história e memória, vemos a trajetória e as
memórias de alguns militantes de esquerda, vinculados ao movimento estudantil no
Estado da Paraíba. Além disso, alguns estudantes optaram por participar da luta armada
no Estado e, segundo o autor, faziam parte do PCBR (Partido Comunista Brasileiro
Revolucionário).
A questão da memória estudantil continua como foco no trabalhoO poder jovem:
memória estudantil e resistência política na obra de Arthur Poerner”, no qual Rodrigo
Czajka e Thiago B. Castro observam a influência do livro O poder jovem, que trata da
memória social elaborada acerca dos fenômenos sociais que definiram aquela geração
(década de 1960). Segundo os autores, o livro ainda é considerado uma referência para o
movimento estudantil.
Após alguns trabalhos sobre movimento e memória estudantil, há uma mudança
no objeto de estudo no capítuloAnticomunismo, evangelização e conscientização: igreja
e trabalhadores rurais em Pernambuco (1968-1978)”, no qual Samuel C. de Maupeou
estuda a atuação da Igreja Católica no meio rural do estado nordestino, especialmente na
zona canavieira, mostrando que apesar do viés social, atuava nessa área com um caráter
anticomunista. O autor ainda ressalta que apesar do movimento religioso ter defendido o
Golpe de 1964, ele foi abalado após a tomada do poder pelos militares; e, com isso, houve
a sua reorganização e uma nova articulação.
Seguindo nesse viés de análise da Igreja no contexto do Regime militar, em
Dominicanos, 1968, Américo Freire discorre sobre a atuação dos religiosos da Ordem
dos dominicanos na luta contra a Ditadura militar e como se tornaram alvos dos militares
a partir dos contatos de frades com Carlos Marighella. Segundo o autor, as razões para o
envolvimento deles na luta contra o Regime vão além das questões políticas.
No texto O 68 no Rio Grande do Sul, Enrique S. Padrós analisa a atuação do
movimento estudantil secundarista na cidade de Porto Alegre e como as aproximações e
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os engajamentos com a luta armada estiveram interligados com aspectos da vida cultural,
particularmente o teatro.
E no capítulo 1968, memória e esquecimento: como recordar a Bahia?Lucileide
C. Cardoso analisa, especialmente, as memórias acerca do movimento estudantil
secundarista e universitário, que iniciaram suas lutas em 1966, mas chegaram ao auge
das mobilizações em 1968, além de diferentes interpretações sobre fatos ocorridos no
estado nordestino.
Em Partidos e Eleições no Pará nos tempos da Ditadura Militar, Pere Petit
assim como César Augusto B. Queirós na análise sobre o Estado do Amazonasressalta
o desfecho do Golpe de 1964 no Pará e a consequente perseguição aos opositores
“comunistas”, seguida pela cassação do mandato do atual governador Aurélio do Carmo.
O autor também apresenta os resultados eleitorais de 1965 e a disputa pelo controle do
partido ARENA entre duas principais lideranças golpistas no Estado, Jarbas Passarinho e
Alacid Nunes.
No trabalho Do uso das tecnologias e dos dispositivos de poder: ditadura militar
e empresários na Amazônia”, em que Regina Beatriz G. Neto e Vitale J. Neto apresentam
o processo de colonização e violência imposto no Mato Grosso como padrão de
desenvolvimento econômico. Para isso, analisaram as alianças entre as elites econômicas
e órgãos do governo federal e estadual, que ignoraram a territorialidade dos povos
indígenas e dos extrativistas. Trata-se também de mais um trabalho sobre a região
Amazônica no livro.
No último texto da coletânea, Considerações sobre a ditadura civil-militar no sul
de Mato Grosso (1964-1968), Suzana Arakaki analisa a atuação dos membros da Ademat
(Ação Democrática de Mato Grosso) e também do Comando de Caça aos Comunistas no
combate a esses “subversivos”, além do papel da imprensa da região antes e durante a
Ditadura.
Como vimos, o intuito desta coletânea é apresentar aos leitores as diversas
realidades brasileiras que compuseram o período de Ditadura militar, bem como a luta e
resistência desses “novos” segmentos. Além disso, ela nos mostra possiblidades e
objetos de pesquisa, que ainda são pouco explorados pela historiografia sobre o tema,
como o uso das memórias na reconstituição da história dos movimentos estudantis, o
papel das alianças entre grandes proprietários de terras e os órgãos do governo federal,
a utilização de obras contemporâneas do período como forma de recuperar a memória
social daquela geração etc. Assim sendo, trata-se de uma obra que traz importantíssimas
contribuições e novos problemas de pesquisa.
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Os organizadores cumpriram com o que se propuseram ao apresentar um Brasil
plural durante a Ditadura militar, por meio da exibição de diversos cenários tanto
urbano quanto rural e atores sociais do nosso território nacional. Desse modo,
passaram por todas as regiões do país, isto é, mostrando que o Regime militar fez-se
presente em cada região e não só nos principais centros. No entanto, o modo como
organizaram e distribuíram esses temas no decorrer dos capítulos não valorizou a
coletânea, uma vez que, aparentemente, o livro segue uma ordem de apresentação, mas
em certos momentos é interrompida, ficando, assim, dispersas as regiões e assuntos que
tinham relação um com o outro. Por exemplo, os dois primeiros capítulos tratam de
temáticas da região Norte, sendo que o primeiro discorre sobre as questões políticas no
Estado do Amazonas, antes e após o Golpe de 1964. A região Norte retorna ao livro no
antepenúltimo capítulo, no qual Pere Petit também ressalta as questões políticas no
Estado do Pará durante o processo do Golpe de 1964, ou seja, trata-se da mesma região e
tema, que poderiam estar próximas na organização do livro.
Todavia, observamos ao longo dos capítulos a atenção dada ao tema da memória
e, consequentemente, ao uso da fonte oral como recurso para se chegar a ela. No
trabalho de Edmilson A. Maia Jr., por exemplo, a História Oral é utilizada como
metodologia de pesquisa e constituição de fontes, permitindo “o registro de testemunhos
e o acesso a ‘histórias dentro da história e, dessa forma, amplia as possibilidades de
interpretação do passado” (ALBERTI, 2008, p. 155). Assim, a História Oral permite o
estudo das formas como pessoas ou grupos efetuaram e elaboraram as suas
experiências, como vemos na narrativa de Maia Jr. sobre a trajetória de embates e
resistência do movimento estudantil de Fortaleza. A combinação da história com a
experiência relatada significa entender como pessoas e grupos experimentaram o
passado, tornando possível questionar interpretações generalizantes de certos
acontecimentos (ALBERTI, 2008).
Portanto, a História Oral é muito útil para a História da Memória, pois, segundo
Alberti (2008), apesar das críticas no início afirmando que as fontes orais diziam
respeito às “distorções” da memória –, hoje em dia, os historiadores consideram a
análise dessas “distorções” como a melhor forma de levar a compreensão dos valores
coletivos e das ações de um grupo, como o caso dos movimentos estudantis.
Ela [a memória] é resultado de um trabalho de organização e de seleção do que
é importante para o sentimento de unidade, de continuidade e de coerência
isto é, de identidade. E porque a memória é mutante, é possível falar de uma
história das memórias de pessoas ou grupos, passível de ser estudada por meio
de entrevistas de História oral. As disputas em torno das memórias que
prevalecerão em um grupo, em uma comunidade, ou até em uma nação, o
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importantes para se compreender esse mesmo grupo, ou a sociedade como um
todo (ALBERTI, 2008, p. 167).
Por fim, como nos sustenta René Rémond (2003), não há muitas realidades da
nossa sociedade que o político não está presente, e isso vale para as memórias também.
Admitindo-se, então, essa dimensão política no funcionamento da memória já que seu
caráter instituinte se realiza no campo conflituoso das escolhas, dos valores, dos
significados , os historiadores da memória tratam, segundo Meneses (2009), de
examinar na contemporaneidade aspectos da memória politicamente marcados. Desse
modo, a coletânea aborda constantemente temas relacionados à memória da Ditadura
militar brasileira, especificamente a memória estudantil, que querem trazer um
significado, transformando-se em elemento simbólico (MENESES, 2009), ou seja, a
Ditadura em si é carregada de significados, formando uma memória coletiva a respeito
dela; e as lutas e resistências destes segmentos também carregam significados próprios,
formando também uma memória coletiva. Estas memórias coletivas convergem entre si e
ajudam a formar a história da Ditadura militar brasileira.
Referências
ALBERTI, Verena. Fontes orais Histórias dentro da História. In: PINSKY, Carla
Bassanezi (org.). Fontes históricas. o Paulo: Contexto, 2008. p. 155-202.
MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Cultura política e lugares de memória. In: AZEVEDO,
Cecília et. alli, (org.). Cultura política, memória e historiografia. Rio de Janeiro: FGV,
2009. p. 445-463.
NUNES, Paulo Giovani Antonio; PETIT, Pere; LOHN, Reinaldo Lindolfo (org.). Utopia e
repressão: 1968 no Brasil. Salvador: Sagga, 2018. 355p.
RÉMOND, René. Do político. In: MOND, René (org). Por uma história política. 2. ed.
Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003. p. 441-454.