Entre a ruptura e a permanência:
uma síntese
analítica e histórica do preconceito racial e
social nas músicas: “sou negro”,
“brincar de índio” e “fricote
Between ruptures and permanences
:
an analytical and
historical synthesis of racial and social prejudice in
music: “sou negro”, “brincar de índio” and “fricote
PAES, Elvis Rogerio
*
RESUMO: Se atentamente olharmos a sociedade
brasileira do século XX, encontraremos
elementos teóricos europeus defendidos no
século XIX. Porém, tal constatação não deveria
nos surpreender visto que, para o bem ou para o
mal, somos produtos de uma construção histórica
fundamentada em valores etnocêntricos da
Europa Moderna. Os resultados desta herança
cultural repercutem de forma negativa em classes
sociais com mínima representatividade política
tais como os indígenas e os negros. Diante deste
cenário, este artigo procura analisar as letras de
três canções que alcançaram uma ampla
divulgação no território brasileiro entre os anos
de 1970 e 1980, tendo por objetivo verificar se
suas grafias apontam para uma permanência de
(ou rupturas com) discursos de valores europeus
no Brasil. As letras selecionadas compõem as
músicas “Sou Negro”, “Brincar de Índio” e
“Fricote”, interpretadas respectivamente por
Tony Tornado, Xuxa e Luiz Caldas.
PALAVRAS-CHAVE:Música; Eurocentrismo;
Cultura; Negros; Indígenas.
ABSTRACT: If we look closely at the Brazilian
society of the 20th century, we will find
European theoretical elements defended in the
19th century. However, this observation should
not surprise us since for better or worse we are
products of a historical construction based on
ethnocentric values of Modern Europe. The
results of this cultural heritage have a negative
impact on social classes with less political
representation, such as the indigenous and black
people. Faced with this scenario, in this article
seeks to analyze the lyrics of three songs that
achieved widespread dissemination in the
Brazilian territory between the years 1970 and
1980, with the aim of verifying whether their
spellings point to a permanence of (or ruptures
with) discourses of European values in Brazil.
The selected lyrics compose the songs "Sou
Negro", "Brincar de Índio" and "Fricote",
interpreted respectively by Tony Tornado, Xuxa
and Luiz Caldas.
KEYWORDS:
Music; Eurocentrism; Culture;
Black; Indigenous.
Recebido em: 17/09/2019
Aprovado em: 08/11/2019
*
Graduado em História pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP), Jacarezinho, estado do
Paraná (PR), Brasil. Possui graduação em Pedagogia pela Faculdade Educacional da Lapa (FAEL), Lapa (PR).
Atualmente é mestrando no Programa de Pós-Graduação em História na área de Política: Ações e
Representações na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), campus de Assis,
estado de São Paulo, Brasil. E-mail: e7rp@hotmail.com.
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, Assis/SP, v.6, nº2, p.496-512, jul./dez., 2019
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Introdução
Desde os tempos mais remotos, a música vem sendo utilizada pela humanidade
como uma forma de expressão, por esta razão se configura em um produto histórico “de
longas e incontáveis vivências individuais e sociais” (SCHERER, 2010, p. 247). Esse
vínculo ocorre devido ao fato que, a música, se configura em uma “forma artística que
trabalha com sons e ritmos nos seus diversos modos e gêneros, geralmente permite
realizar as mais variadas atividades” (MORAES, 2000, p. 204). Desta forma, a música é
um instrumento que pode ser utilizado tanto pelos compositores quanto pelos
receptores por perspectivas diferentes, enquanto que para este, a música é percebida
como um agente atenuador de rotinas, para aquele pode ser vista como uma ferramenta
de crítica ou manutenção de um status quo.
Desta maneira, a música insere o indivíduo em um universo estimulante e
catalisador, que desperta os mais díspares sentimentos imbuídos com seus múltiplos
valores. Por meio dela, descobriu-se que é possível realizar dinâmicas que envolvam
confraternização, recreações, engendrar paixões e também ser utilizada para uma
motivação ideológica, como por exemplo, o patriotismo ou outros princípios que
favoreçam um determinado comportamento social, pois, a música é uma fonte que
possibilita novas maneiras de interpretar as transformações sociais. Por isto, vale
destacar que já “vem de longa data o estudo da música como fenômeno histórico”
(BARROS, 2018, p. 26), um tema de grande relevância para o historiador e outros
estudiosos que optam por estudar o assunto. De acordo com Napolitano (2002), a
música tem se tornado,
[...] ao menos em boa parte do século XX, a tradutora dos nossos dilemas
nacionais e veículos de nossas utopias sociais. Para completar, ela conseguiu, ao
menos nos últimos quarenta anos, atingir um grau de reconhecimento cultural
que encontra poucos paralelos no mundo ocidental (NAPOLITANO, 2002, p. 8).
À vista disso, a música se tornou uma espécie de mecanismo avançado que pode
intervir não unicamente como um ato de entretenimento, mas, também, de forma política
e cultural. Consoante a esta perspectiva, o “Brasil, sem dúvida uma das grandes usinas
sonoras do planeta, é um lugar privilegiado, não apenas para ouvir música, mas também
para pensar a música” (NAPOLITANO, 2002, p. 08).
Nesse contexto, nosso artigo se propõe a analisar as permanências de (ou
rupturas com) discursos etnocêntricos europeus contidos em três sucessos musicais
amplamente divulgados no Brasil, pelos meios de comunicação de massa ou outros
eventos. Os discursos que analisaremos estão presentes nas letras das canções
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intituladas por “Sou Negro” (1970) interpretado por Tony Tornado e composta por
Getúlio Cortez e Ed Wilson; “Brincar de Índio” (1988), do álbum Xou da Xuxa 3, tendo
por compositores Michael Sullivan e Paulo Massadas e, por fim, “Fricote” (1985), do
álbum Magia, música interpretada por Luiz Caldas e composta em parceria com Paulinho
Camafeu.
Este artigo está estruturado em três partes. Na primeira parte discutiremos a
canção “Sou Negro” (1970), onde realizaremos uma síntese biográfica de seu intérprete
(Toni Tornado) e o contexto de sua produção, entretanto, uma ênfase maior será dada
em compreender o objetivo de seu discurso utilizar reiteradas vezes a expressão “sou
negro sim”. Na segunda parte, iremos refletir sobre a canção “Brincar de Índio” (1988), e,
sobre esta canção, analisaremos três pontos. O primeiro deles faz referência ao conceito
de índio, no segundo, será analisado o trecho que menciona, “mas sem mocinho pra me
pegar”, e no terceiro ponto será discutido o trecho que diz, “índio não faz mais lutas,
índio não faz mais guerras”. Na terceira parte, será analisado a canção “Fricote” (1985),
onde discutiremos o trecho que diz, “nega do cabelo duro que não gosta de pentear”. Ao
final apresentaremos de forma sintética nossas considerações sobre os resultados desta
pesquisa.
Sou negro
Em nossa primeira reflexão, discutiremos a representação
1
contida na letra de
“Sou Negro” (1970), interpretada pelo “cantor Antônio Viana Gomes, mais conhecido
como Tony Tornado, nasceu no dia 26 de maio de 1931 na cidade de Mirante do
Paranapanema, região oeste do Estado de São Paulo” (ALVES; PELEGRINI, 2014, p. 2).
Seu nome artístico, popularizou-se por Tony Tornado
2
, que se tornou um ícone da
música black no país.
Essa música teve por inspiração os movimentos negros americanos e foi lançada
no Brasil em 1970. Uma produção artística realizada em um período conturbado de nossa
história, visto que, nesse período o país vivenciava a época da Ditadura Militar.
Consequentemente, a interpretação dessa música neste contexto, trouxe consequências
1
Para compreender o que queremos dizer por representação, utilizamos a definição proposta por Roger
Chartier, que o caracteriza a representação como um “[...] instrumento de um conhecimento mediato que
faz ver um objecto ausente através da substituição de uma “imagem” capaz de reconstruir em memória e
de o figurar como ele é [...]” (CHARTIER, 2002, p. 20).
2
Sobre a correta grafia de seu nome artístico somo informado que: “O nome de Tony Tornado é
mencionado com grafias diferentes na literatura especializada, nos discos, matérias jornalísticas e outras
fontes. Detectamos ora a utilização da letra “i”, ora do “y”. Nos dois discos gravados na década de 1970,
“Toni” aparece com “i”, assim como faz, por exemplo, Zuza Homem de Mello em A Era dos Festivais.
Porém, segundo o artista o correto seria “Tony”, por esta razão o leitor encontrará as duas formas ao
longo do texto” (ALVES; PELEGRINI, 2014, p. 1).
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para o cantor que foi perseguido pelo regime militar. Esta perseguição fez com que Toni
Tornado buscasse o exílio entre os anos de 1970 e 1972 (MÚSICA NEGRA BRASILERIA,
2019).
No entanto, isso não impediu o sucesso de sua canção, que se tornou uma das
mais importantes para o movimento negro no país. Um dos motivos para isso se deve ao
fato da recorrente expressão “sou negro sim”, como podemos verificar nas letras que a
compõe:
Dessa vida (dessa vida)/Nada se leva (nada se leva)/Não sei porquê vocês tem
tanto orgulho assim/Você sempre (você sempre)/Me despreza (me
despreza)/Sei que sou negro mas ninguém vai rir de mim/Vê se entende (vê se
entende)/Vê se ajuda (vê se ajuda)/O meu caráter não está na minha cor/O que
eu quero (o que eu quero)/Não se iluda (não se iluda)/O meu futuro é conseguir
o seu amor/Dessa vida(dessa vida)/Nada se leva (nada se leva)/Não sei porquê
vocês tem tanto orgulho assim/Você sempre (você sempre)/Me despreza (me
despreza)/Sei que sou negro mas ninguém vai rir de mim/Sou negro sim, sou
negro sim, sou negro sim/Mas ninguém vai rir de mim/Sou negro sim, sou negro
sim, sou negro sim/Mas ninguém vai rir de mim/Sou negro sim, sou negro sim,
sou negro sim/Mas ninguém vai rir de mim/Sou negro, Sou negro, negro sim, eu
sei que sou negro, mas ninguém vai rir de mim/ Negro sim, eu sei que sou
negro, negro, negro, eu sou negro, negro, mas ninguém vai rir de mim. (SOU
NEGRO, 1970).
Nestas palavras Tony Tornado, um cantor negro, levantou sua voz em uma
mensagem que nos impressiona, especialmente se considerarmos o contexto de sua
produção, veiculação e de seus ouvintes. Da mensagem que esta canção propaga, iremos
refletir sobre o trecho musical que utiliza de forma recorrente a expressão “sou negro
sim”, com o propósito de compreender a necessidade de sua recorrência no decorrer da
música. Entretanto, para alcançarmos a devida compreensão desta imprescindível
reincidência frasal, é importante refletirmos sobre o contexto cultural no qual o Brasil foi
estabelecido, uma vez que, cultura histórica implica na “relação que uma sociedade, na
sua psicologia coletiva mantém com seu passado” (LE GOFF, 1990, p. 47).
Esta dialética histórica que compreende a relação entre passado e presente,
materializa-se no pensamento coletivo as peculiaridades de uma cultura dominante. Por
esta razão, muito embora o Brasil por meio de sua independência tenha se desligado
politicamente de sua Metrópole, as posições ideológicas mantidas por ela não
desapareceram por completo do imaginário brasileiro. Isso porque, “descolonização
política, não é o mesmo que descolonização da mente” (PRATT, 1999, p. 16).
Consequentemente, a herança cultural europeia
3
(fortalecida pelas teorias raciais do
3
A Europa Moderna, construiu sua história em uma perspectiva de “herdeiros” e se apropria da cultura
Grega e Romana e também da religião Cristã. Por meio desta apropriação, passa a considerar os demais
povos (seus colonos) como seres “desprovidos” da capacidade de autonomia. Desta forma, se colocam
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século XIX), ainda ecoa nas mentes “colonizadas” brasileiras que demonstram por meio
de suas atitudes comportamentos racistas, que se expressam de várias formas. Nas
palavras de Munanga,
[...] a raça no imaginário do racista não é exclusivamente um grupo
exclusivamente definido pelos traços físicos. A raça na cabeça dele é um grupo
social com traços culturais, linguísticos, religiosos, etc. que ele considera
naturalmente inferiores ao grupo à qual ele pertence. (MUNANGA, 2003, p. 08).
Neste cenário, a música “Sou Negro” (1970) é uma resposta a essa ideologia
eurocêntrica, que foi responsável pela naturalização de classificações humanas inserindo
o povo negro em uma periferia social de difícil retorno. Neste contexto, a música se
tornou um instrumento de conscientização e estratégia política:
A produção musical reafirma sentimentos de pertencimento e distinção,
colocando em jogo a elaboração de uma identidade multicultural. Destaco aqui o
importante papel da música que, como forma de expressão, conseguiu romper a
barreira das diferenças, viabilizando a universalidade de novas práticas sociais,
capazes de romper com o pensamento tradicional racista. A música é, acima de
tudo, um importante meio, uma arma vital para a negociação dessas diferenças.
(OLIVEIRA, 2014, p. 2-3).
Esta consciência política e cultural, é um dos fatores que nos assinala a
recorrência da expressão “sou negro sim”, tão enfatizado na música. Muito embora,
também podemos articular outros contornos, analisando esse trecho musical evocando o
mito de uma democracia racial. Porém, o fato é que a questão racial ficou marcada no
imaginário coletivo brasileiro devido às efusões das teorias raciais europeias do século
XIX, e, não podemos ignorar que essa conjuntura se constitui em uma das vias de acesso
para compreender a reincidência da expressão.
À vista disso, embora o Brasil seja um país rico em diversidade cultural, ela não é
reconhecida e tão pouco respeitada pela maioria de seu povo, que reproduzem o
discurso racial (muitas vezes inconscientemente) mesmo nos dias atuais, como ficou
demonstrado no cenário das eleições do ano de 2018, e nas constantes discriminações
raciais que são reportados pelos telejornais. Por conseguinte, o sucesso musical “Sou
Negro” (1970), traz reflexões que contribuem para uma resistência a esta mente
como os “tutores” desses povos colonizados. Como salienta Said (1993), os europeus se veem com uma
missão, que é o de civilizar esses povos “bárbaros”. Tal situação se agrava no século XIX, pois, com o
desenvolvimento das teorias raciais, a ciência, vai considerar que os negros não são capazes de serem
civilizados e passarão a sofrer um preconceito muito maior. Desmond e Moore (2009), salientam que o
pensamento europeu sobre o negro a partir do século XIX, era o de desqualifica-lo não apenas
culturalmente, mas incutir o pensamento de que eles não possuem condições alguma de serem
“civilizados”, devido ao fato que “os negros não tinham cérebro pra isso” (DESMOND; MOORE, 2009, p.
70).
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“colonizada” brasileira. A canção ganhou nova regravação (com participação da rapper
Mc Soffia) na voz de Lincon Tornado, que em uma entrevista analisou a expressão “sou
negro sim”:
É um prazer resgatar esse momento de afirmação que meu pai empunhou há 45
anos. Ao mesmo tempo que sinto orgulho de cantar a expressão ‘Sou Negro
Sim’, lamento por ainda ser necessário, nos dias de hoje, a continuação do
refrão ‘E ninguém vai rir de mim’ (BARROS, 2017).
Brincar de índio
A cultura ocidental europeia, como vimos acima, impactou duramente a sociedade
brasileira, forjando desta forma sua maneira de pensar e consequentemente de agir.
Portanto, ao pensarmos sobre a história do Brasil, precisamos contextualizar a
atualidade com a herança cultural herdada de ideologias europeias. Muito embora, não
estejamos mais vivendo diretamente sobre esta autoridade, suas influências são
percebidas em nosso meio, por esta razão concordamos com Stuart Hall (2003, p. 18),
quando menciona que: “o eurocentrismo ainda está vivo nos pressupostos e discursos
da mídia e da cultura de massa, a história colonialista se recicla nos discursos
contemporâneos”. Podemos verificar seus ecos através dos discursos midiáticos,
políticos e também pelo Sistema Educacional que, mesmo em fins da segunda década do
século XXI, insistem na reprodução de um modelo tradicional, o que favorece uma elite
branca europeizada.
Essas idiossincrasias, provocam deficiência ou até mesmo uma ausência de
representação política que favoreçam os grupos minoritários, neste caso, os indígenas,
que sofrem prejuízos culturais e estruturais. Neste contexto desfavorável, a questão das
sociedades indígenas do Brasil, não tem recebido um tratamento satisfatório do poder
público. Outra questão importante, recai sobre a forma que os indígenas vêm sendo
apresentados ao país por meio das mídias de massa, que em fins da década de 1980, lhes
trouxeram uma maior visibilidade “homenageando-os” através da música “Brincar de
Índio” (1988). A canção escrita pelos compositores Michael Sullivan e Paulo Massadas,
foi interpretada por Xuxa
4
(na época cantora e apresentadora do programa “Xou da
Xuxa”), que visava um público infanto-juvenil. Sua gravação ocorreu nos estúdios da
Som Livre, e faz parte do álbum Xou da Xuxa 3, sendo lançado no mercado no ano de
1988. Sobre a influência de Xuxa nas mídias, a pesquisadora americana Símpson (1993),
4
Maria da Graça Meneghel, gaúcha nascida na cidade de Santa Rosa em 27 de março de 1963. O nome
Xuxa foi inserido em seu RG ano de 1988. Ela foi apresentadora de um programa televisivo para público
infantil de 1986 a 1992, exibido no Brasil e também em países de fala espanhola e americana.
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em sua obra intitulada The mega marketing of gender, race and modernity, nos informa
que:
[...] Maria da Graça Meneghel, universalmente conhecida como Xuxa, surgiu em
1980 como uma figura da mídia de massa de dimensão sem precedente no
Brasil. No final da década, ela se tornou a indiscutível (rainha) da cultura de
massa, ‘a mega estrela nacional’ [...] (SIMPSON, 1993, p. 17, tradução nossa)
5
.
Por meio desses comentários, podemos compreender a dimensão de sua
popularidade e nos darmos conta do alcance de seus trabalhos. A música “Brincar de
Índio”, se tornou um clássico, sendo reproduzidas em festas infantis e também pelos
meios de radiodifusão, televisão, dentre outros. Também não podemos esquecer de
muitos professores(as) da Rede de Educação Infantil e Fundamental I e II, que a
utilizaram (ou utilizam) para a celebração do “Dia do Índio” (Instituído pelo Decreto-Lei
nº 5.540, de 2 de junho de 1943), considerando-a como um recurso “educativo”. Mas,
seria as letras desta canção uma reprodução da permanência de (ou ruptura com)
valores etnocêntricos europeus? Transcrevemos a música com objetivo de propor uma
reflexão sob a conjuntura crítica que está sendo apresentada.
Vamos brincar de índio/Mas sem mocinho pra me pegar.../Venha pra minha
tribo/Eu sou cacique, você é meu par.../Índio fazer barulho/Índio ter seu
orgulho/Vem pintar a pele para a dança começar/Pego meu arco e
flecha/Minha canoa e vou pescar/Vamos fazer fogueira/Comer do fruto que a
terra dá/Índio fazer barulho/Índio ter seu orgulho/Índio quer apito/Mas
também sabe gritar/Índio não faz mais lutas/Índio não faz guerra (guerra)/Índio
já foi um dia/O dono dessa terra (terra)/Índio ficou sozinho/Índio querer
carinho/Índio querer de volta a sua paz (sua paz) (BRINCAR DE ÍNDIO, 1988).
Iremos refletir sobre três trechos utilizados nesta música, com o intuito de
verificarmos a questão levantada no parágrafo acima. Em nossa primeira reflexão,
abordaremos o conceito de “índio”, tendo como referência as pesquisas de Luciano
(2006), que nos auxilia na compreensão deste termo frequentemente usado, mas, ainda
pouco conhecido. Na sequência, discutiremos o trecho musical que diz: “mas sem
mocinho pra me pegar”, procurando analisar o que se encontra em suas entrelinhas.
Finalmente, iremos ponderar na frase que menciona: “índio não faz mais lutas, índio não
faz mais guerras”, com o intuito de verificar o impacto de tal frase para a comunidade
indígena.
5
[No Original] “[...] Maria da Graça Meneghel, universally known as Xuxa, emerged in the 1980 as a mass
media figure of unprecedented dimension in Brasil. By the end of the decade, she had become the
undisputed (queen) of mass culture, ‘the national megastar’ [...](SIMPSON, 1993, p. 17).
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No tocante a nossa primeira reflexão, que aborda o conceito do vocábulo “índio”,
o pesquisador Luciano (2006)
6
, compreende o conceito como um:
[...] o nome dado aos primeiros habitantes (habitantes nativos) do continente
americano, os chamados povos indígenas. Mas esta denominação é o resultado
de um mero erro náutico. O navegador italiano Cristóvão Colombo, em nome da
Coroa Espanhola, empreendeu uma viagem em 1492 partindo da Espanha rumo
às Índias, na época uma região da Ásia. Castigada por fortes tempestades, a
frota ficou à deriva por muitos dias até alcançar uma região continental que
Colombo imaginou que fossem as Índias, mas que na verdade era o continente
americano. Foi assim, que os habitantes encontrados nesse novo continente
receberam o apelido genérico de “índios” ou “indígenas”, que até hoje
conservam (LUCIANO, 2006, p. 29-30).
A análise de Luciano (2006) nos remete ao segundo aspecto de nossa primeira
reflexão, ou seja, a maneira de interpretarmos a população indígena no Brasil. Para o
autor, não podemos interpretar a população indígena como um grupo homogêneo de
pessoas, pois, de acordo com o pesquisador, pensar o indígena “significa falar de uma
diversidade de povos, habitantes, originários das terras conhecidas na atualidade como
continente americano” (LUCIANO, 2006, p. 27). E
o autor ainda afirma:
Entre os povos indígenas, são aceitos alguns critérios de auto definição, [...],
embora não sejam únicos e nem excludentes: Continuidade histórica como
sociedades pré-coloniais. Estreita vinculação com o território. Sistemas sociais,
econômicos e políticos bem definidos. Língua, cultura e crenças definidas.
Identificar-se como diferente da sociedade nacional. Vinculação ou articulação
com a rede global de povos indígenas (LUCIANO, 2006, p. 27).
Estas observações que compõem nossa primeira reflexão, nos apresentaram um
aspecto negativo da música, visto que a identificação do indígena é feita no singular, ou
seja, a canção desconsidera sua diversidade de povos. Portanto, não podemos pensar a
sociedade indígena no singular, pois são povos compostos por diversas etnias, como, por
exemplo, os Guaranis, os Caiapós, e demais povos. Assim sendo, o título musical
“Brincar de Índio”, é muito reducionista, o que compromete o entendimento da
abrangência das atividades recreativas que compõem estes povos, convertendo-as em
uma massa de dinâmicas uniforme.
Em relação ao trecho “mas sem mocinho pra me pegar”, a questão problemática
inserida nesta frase está em seu eufemismo para se referir ao europeu, noutras palavras,
há uma suavização do comportamento do europeu ao mencioná-los como “mocinho”
(que no imaginário popular traduz um conceito de herói). Essa maneira condescendente
de os considerar, desconstrói a realidade dos resultados deste “encontro” entre
6
Gersem dos Santos Luciano, é um indígena do povo Baniwa.
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europeus e indígenas. O pesquisador Grusinski (2001, p. 70), nos traz em sua obra “O
pensamento mestiço”, uma reflexão sobre esse “encontro”. Para o autor, esse período
deve ser pensado por uma ótica de “desordem e complexidade”, ou seja, na conquista do
“novo” mundo, às vezes, houve uma espécie de “auxílio” de determinados grupos
indígenas em favor dos europeus.
Entretanto, os prejudicados nesse relacionamento foram os indígenas. Ao refletir
sobre essa etnia, Luciano (2006, p. 27) tece algumas considerações sobre os indígenas
brasileiros:
Estimativas demográficas apontam que por volta de 1500, quando da chegada
de Pedro Alvares Cabral à terra hoje conhecida como Brasil, essa região era
habitada pelo menos por 5 milhões de índios. Hoje, essa população está
reduzida a pouco mais de 700.000 índios em todo o Brasil segundo dados de
2001 do IBGE.
Não desconsideramos a importância das observações realizadas por Gruzinski
(2001), porém, os dados matemáticos vistos nas pesquisas de Luciano (2006), não nos
deixam com dúvidas a respeito de quem foram os verdadeiros bandidos nessa história,
ou seja, os europeus, representados na música como os “mocinhos”, noutras palavras,
“heróis”. Refletir sobre essa questão, nos ajuda a perceber a distorção que essa
suavização de termos causa na mente das pessoas que as ouvem sem um pensamento
crítico. É importante considerarmos também, que mesmo em ambientes considerados
críticos, este trecho musical, foi repetido como um instrumento “educativo” para
“celebrar” a memória dos indígenas, porém, de forma acrítica.
Por fim, refletiremos sobre o trecho que diz: “índio não faz mais lutas, índio não
faz mais guerras”. Qual o significado, contido nas entrelinhas desta frase? Nada menos
que uma passividade dos indígenas, noutras palavras, os poucos indígenas que restaram
no Brasil, sucumbiram, foram domesticados e aculturados em todos os sentidos,
desistiram de ser o que são, passando a aceitar totalmente tudo o que lhes é imposto.
Nada mais enganoso e prejudicial para a causa indígena do que esta mensagem, pois, nos
últimos anos,
[...] ocorreu a consolidação de espaços de representação do movimento
indígena através das suas organizações nas esferas públicas, com a
internalização e a gestão de recursos governamentais e de várias lideranças de
organizações indígenas, que passaram a ocupar funções públicas e políticas na
esfera da Administraçãoblica, trazendo novas conquistas, mas também
novos desafios. Como conquista em função da participação política das
lideranças indígenas, citamos o surgimento de novas políticas públicas
específicas para os povos indígenas, notadamente nas áreas de saúde e
educação, políticas estas orientadas por novos conceitos e diferentes
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metodologias de práticas políticas, na tentativa de superação das históricas
práticas tutelares, paternalistas e clientelistas da velha política indigenista
oficial. O surgimento das políticas públicas específicas para os povos indígenas,
assim como o avanço das conquistas de outros direitos são os principais
responsáveis pelo fenômeno da efervescência étnica, da auto-afirmação da
identidade e do fenômeno da etnogênese (LUCIANO, 2006, p. 79).
Atualmente podemos ver manchetes jornalísticas, onde, os indígenas se dirigem
aos “representantes” do povo, cobrando atitudes para melhoria de suas comunidades,
reivindicando direitos e rejeitando políticas que não os representam. Ações indígenas
que manifestam o seu interesse pelas suas raízes, como podemos ver nas falas pontuais
e precisas da indígena Alessandra Munduruku, que pediu um maior respeito às
populações indígenas, como podemos ver na transcrição que fizemos de um trecho de
sua fala diante do atual Presidente da Câmara, Rodrigo Maia:
Tudo que tá aprovado aqui, ta acontecendo! Os garimpeiros estão invadindo as
terras, os madeireiros tão invadindo as nossas terras! [...], eles tão comprando
terra, tão invadindo terra! E a nossa terra o é demarcada! Por que não é
demarcada nossas terras? Por que as terras indígenas não é demarcada? [...]
(UMA FALA, 2019).
Como podemos comprovar, é um engano imaginar que os indígenas, “não faz mais
lutas, não faz mais guerras”, pois, as diversas mídias informativas com frequência
noticiam atos de resistências consolidados por estes povos, que muitas vezes ainda são
executados
7
.
Por meio dessas reflexões compreendemos que a música “Brincar de Índio”,
reproduziu um discurso ideológico europeu que, ainda afetam as comunidades indígenas
de nosso país, retratando-os através de dois polos que ao mesmo tempo são arbitrários e
opostos. Pois, de acordo com Luciano (2006), de um lado os indígenas são vistos como
um povo dissociado de “civilização”, “selvagens”, “inaptos para o trabalho”, por outro, o
“índio é um ser romântico, protetor das florestas, símbolo da pureza, quase um ser como
o das lendas e dos romances” (LUCIANO, 2006, p. 30), uma expressão análoga a forma
que a canção inicia, que diz: “Baixinhos vamos brincar de índio e ensinar às pessoas a ter
respeito ao índio, que é a natureza viva!” (BRINCAR DE ÍNDIO, 1988).
Este discurso musical, repetido por diversas vezes em vários veículos de
informação sem a devida análise crítica, distorce a visão do indígena perante a
sociedade, esta é uma das razões de ainda ouvirmos (mesmo na escolarização formal) o
convite: “vamos brincar de índio”.
7
No período em que esse artigo estava sendo escrito, as manchetes jornalísticas noticiavam a morte do
líder indígena Paulo Paulino Guajajara, ocorrida no dia 01 de novembro de 2019.
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Fricote
Em 1985, as gravadoras Polygram e Nova República, produziram o álbum Magia,
com um total de dez músicas que foram interpretadas pelo cantor e compositor Luiz
Caldas (2019). O trabalho alcançou muito sucesso, especialmente com a música “Fricote”
(1985). A canção foi composta por Luiz Caldas em parceria com Paulinho Camafeu tendo
como produtor Roberto Sant’Ana. A música em questão ficou conhecida como “Nega do
Cabelo Duro” e sua letra expressa as seguintes palavras:
Nega do cabelo duro/Que não gosta de pentear/Quando passa na baixa do
tubo/O negão começa a gritar:/Olha a nega do cabelo duro/Que não gosta de
pentear/ Quando passa na baixa do tubo/O negão começa a gritar:/Pega ela aí,
pega ela aí Pra quê?/Pra passar batom/De que cor?/De violeta/Na boca e na
bochecha/Pega ela aí, pega ela aí/Pra quê? Pra passar batom/De que cor?/De
cor azul/Na boca e na porta do céu!/Olha a nega do cabelo duro/Que não gosta
de pentear/Quando passa na baixa do tubo/O negão começa a gritar:/Olha a
nega do cabelo duro/Que não gosta de pentear/Quando passa na baixa do
tubo/O negão começa a gritar: Pega ela aí, pega ela aí/Pra quê?/Pra passar
batom/ De que cor?/De violeta/Na boca e na bochecha/Pega ela aí, pega ela
aí/Pra quê?/Pra passar batom/De que cor?/De cor azul/Na boca e na porta do
céu!/Nega do cabelo duro/Que não gosta de pentear/Quando passa na baixa do
tubo/O negão começa a gritar: Olha a nega do cabelo duro/Que não gosta de
pentear/Quando passa na baixa do tubo/O negão começa a gritar: Pega ela aí,
pega ela aí/Pra quê? Pra passar batom/De que cor? De violeta/Na boca e na
bochecha/Pega ela aí, pega ela aí/Pra quê?/Pra passar batom/De que cor?/De
cor azul/Na boca e na porta do céu!. (FRICOTE, 1985).
Há diferentes formas de estudar a música “Fricote” (1985). Podemos compreender
seu grande sucesso considerando seu grande aparato mercantil utilizado para sua
difusão e venda em massa. Uma outra forma de assimilar seu êxito, pode ser pelo seu
ritmo contagiante que buscou uma fusão do “frevo elétrico com o ritmo ijexá” (PEREIRA,
2010, p. 2-3). Entretanto, há um outro prisma que também deve ser considerado, este
engloba o seu aspecto machista, o preconceito e o enfoque pejorativo ao qual a mulher
negra é retratada na canção. É sobre esse ponto de vista que nossa reflexão se pautará
selecionando para nossa análise, o trecho da canção que menciona: “Olha a nega do
cabelo duro, que não gosta de pentear”.
No decorrer de nossas análises sugerimos que as práticas de uma sociedade são
determinadas por relações de poder, a manifestação dessas relações ocorre através de
políticas que são desenvolvidas por governos com uma dada visão de mundo.
Concomitante às formas de pensarem o mundo, muitas políticas governamentais são
produzidas a fim de formar a identidade
8
do povo que estão subordinados ao poder do
Estado. Essa identidade desenvolve as características que os identificam, e através
8
Utilizamos como um conceito de identidade a definição de Manuel Castells que a compreende como “a
fonte de significado e experiencia de um povo” (CASTELLS, 2001, p. 22).
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desses atributos impulsionam comportamentos que promovem uma exclusão daqueles
que não se adequam aos seus paradigmas.
Como temos demonstrado ao longo deste texto, nossa cultura reproduz (mesmo
que indiretamente) ideologias etnocêntricas, que visam intensificar hábitos europeus e
reforçam aspectos que descaracterizam outras identidades culturais. Nessa ideologia, o
negro (e tudo aquilo que ele representa), foram estigmatizados como indivíduos
“divertidos”, “cômicos” e outros adjetivos ultrajantes. Estes estigmas preconceituosos
estão refletidos na música “Fricote” (1985), e, isto, produz consequências para o afro-
brasileiro(a) que, em seu histórico, já possuem a cicatriz do preconceito racial, sendo
vistos por muitos pela perspectiva do deboche.
A canção se utiliza de rótulos, traçando sua mensagem por meio de estereótipos
que visam os traços fenotípicos de uma mulher negra, em uma atitude que irradia termos
utilizados pelas teorias raciais europeias do século XIX. Podemos comprovar isso através
dos escritos do pesquisador Gebara (2010), que analisa a forma que os europeus
designavam as características dos negros como tendo “seu cabelo esturricado”,
“crespo”. Na linguagem do século XX, “pixaim”, “bom bril”, “duro”, são palavras
pejorativas que espelham as atitudes de um etnocentrismo europeu que ainda não nos
desvencilhamos dele.
Essa situação nos remete a outro grave problema, que é o bullying
9
. Sobre esse
assunto a Assistente Social Yvone Costa, mestre em Educação pela Universidade
Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), faz a seguinte observação: “No cotidiano das
instituições de educação infantil, percebemos crianças negras querendo os seus cabelos
ruivos, louros e escorridos. Isto é, buscando a ideia do belo que lhes é transmitida
através de um processo excludente e preconceituoso” (BARROS, 2017).
Observamos também a forma maliciosa que a música “Fricote” se expressa por
meio de seus versos, criando um duplo sentido em termos como “na boca e na
bochecha”; “na boca e na porta do céu”. A música em questão demonstra também o seu
aspecto machista, que se expressam por uma linguagem que evocam “os sentidos de uma
libido que se sacia pela violação da intimidade sexual feminina, com o sujeito discursivo
propondo que a gratificação libidinosa masculina seja efetivada pegando uma “nega do
cabelo duro” à revelia do seu consentimento” (GERONIMO, 2016, p. 1019-1020), um
aspecto que os ouvintes da década de 1980, não se atentaram.
9
Bullying é um termo utilizado para descrever atos de violência física ou psicológica, intencionais e
repetidos, praticados por um indivíduo ou grupo de indivíduos causando dor e angústia, sendo executadas
dentro de uma relação desigual de poder.
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Por fim, queremos destacar que em uma análise histórica devemos considerar o
conceito de anacronismo, que sinteticamente diz respeito a pensar determinados
comportamentos do passado pelos valores do presente, entretanto, a sociedade está em
constante mutação e atualmente não podemos mais aceitar determinados tipos de
comportamentos. Em relação a isso, no ano de 2017, no programa Conversa com Bial, o
cantor Luiz Caldas questionado sobre a música Fricote (1985), disse que: “Geralmente,
eu não canto. É uma coisa terrível o preconceito e eu não estou aqui para ajudar, então,
eu evito cantar” (REDAÇÂO, 2017).
Considerações finais
Diante dos comentários propostos neste estudo, percebemos que a música possui
uma relação com o ser humano, podendo ser utilizada tanto para se distrair diante das
inúmeras rotinas da vida, quanto para expressar ideologias e transformar o pensamento
social. Assim, tivemos o objetivo de analisar os trechos selecionados das três canções de
sucesso, “Sou Negro” (1970), “Brincar de Índio” (1988) e “Fricote” (1985), com a finalidade
de identificar o componente comum entre elas, averiguando se elas estabeleceram um
diálogo de ruptura de (ou permanência com) valores constituidores deste componente. O
componente que nos referimos e traçamos nossa linha de raciocínio, diz respeito ao
etnocentrismo europeu e os seus princípios ideológicos, difundidos no século XIX, e,
incorporado pelo Brasil durante o século XX.
Em relação a música “Sou Negro” (1970), interpretada por Tony Tornado, que teve
sua produção em um contexto de Ditadura Militar, abordamos as suas recorrentes
afirmações que buscam expressar a identidade negra no Brasil. Esta canção, representa
uma resistência dos afro-brasileiros(as) ao discurso etnocêntrico europeu, que os
caracterizavam como cidadãos de “segunda” categoria. Considerando este fato, o
discurso apresentado em suas letras, denotou um rompimento com esta ideologia que
ainda ecoa no imaginário do brasileiro.
Dessa forma, a música “Sou Negro” (1970) reforça uma mensagem atual, visto
que, nas campanhas eleitorais à Presidência da República de 2018, o Brasil pode
acompanhar a maneira que os negros foram e estão sendo representados. Devemos
considerar que o fato de o país ter abolido a escravidão, não significa de forma alguma
que o estigma posto sobre o negro, deixou de existir. Por essa razão, o fato de a canção
ter sido regravada pelo filho de Tony Tornado, manifesta uma consciência desta situação
e aponta para um problema que ainda é recorrente em nosso país, ou seja, a questão do
negro sempre sendo posto à margem da sociedade devido aos paradigmas sociais que
desprezam suas culturas e modos de vida.
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Com respeito a música “Brincar de Índio” (1988), interpretada pela cantora Xuxa,
que na época era também uma apresentadora de programas televisivos infanto-juvenis,
propomos três reflexões que nos ajudam a abordar as mensagens contidas em suas
letras. Verificamos que a canção, corrobora com uma perspectiva que desconsidera a
riqueza contida no conceito de índio, noutras palavras, traduzem o índio como um
conceito homogêneo não os vendo como um povo diversificado com suas respectivas
culturas e formas de se organizarem politicamente.
Um outro ponto observado nesta canção, é a proposta de suavizar o
comportamento do europeu no que tange seu relacionamento com os povos do
denominado “novo” mundo, ao invés de reportá-los como realmente foram, os
consideram como “mocinhos”, noutras palavras, amenizam suas atitudes e os
apresentam como “heróis”. Desta forma, o trecho musical ignora as implicações desta
relação entre europeu e indígena, um vínculo que trouxe prejuízos para os povos
indígenas que repercute até a atualidade, como podemos observar no desabafo da
indígena Alessandra Munduruku
.
Seu desabafo, demonstra claramente o terceiro ponto que analisamos com
referência a esta canção, que é o fato de considerar os indígenas como sujeitos passivos,
noutras palavras, que não buscam mais lutar pelos seus direitos permanecendo de forma
inerte as políticas que lhes são impostas. Através destas observações que propomos
sobre a canção “Brincar de Índio”, percebemos que ainda mantém um discurso que
dialoga com a ideologia europeia, portanto, utilizá-la como um recurso “educativo” ou
uma “homenagem” seria desconsiderar o que os indígenas vivenciam dia a dia devido a
esta política.
A última canção analisada intitula-se “Fricote” (1985) interpretada pelo cantor e
compositor Luiz Caldas, lançada em meados da década de 1980. Observamos que há
várias formas para refletir sobre ela, porém, como temos enfatizado, nossa reflexão se
pauta sobre os seus elementos internos e o que eles representam, desta forma, o trecho
que escolhemos menciona a seguinte fala “Olha a Nega do cabelo duro, que não gosta de
pentear”.
Observamos neste discurso pelo menos três características que dialogam com as
ideologias europeias, são eles o machismo, o preconceito racial e o aspecto pejorativo de
se referir a mulher negra, que devido a seus trações fenotípicos (no caso o cabelo) é
vista como quem está “fora do padrão”, entretanto, desperta a libido do homem e deve
ser pega, mesmo contra sua vontade.
Uma das consequências geradas pela música foi o bullying, pois a frase “nega do
cabelo duro”, infelizmente virou um “clássico” e muitas pessoas especialmente
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crianças e jovens afro-brasileiros ainda são vistos por este viés. Indiscutivelmente,
esta canção expressou de modo claro os valores europeus que eram discutidos no século
XIX, ou seja, que as pessoas negras sãodivertidas” e “exóticas”.
Por fim, nosso objetivo com este estudo foi analisar os discursos destas canções e
verificar se eles mantem uma permanência de (ou ruptura com) valores etnocêntricos
europeus. Consideramos que houve mudanças em relação aos ditames europeus, como
nos mostrou Toni Tornado interpretando a canção “Sou Negro” (1970), mas, também,
podemos observar os ecos desta ideologia tradicional que ainda dissemina uma atitude
(mesmo que indireta) preconceituosa, como nos trechos da canção “Brincar de Índio”
(1988) e “Fricote” (1985).
O estudo é abrangente e o ser humano é um ser totalmente capaz de aprender e
reaprender. Por essa razão, o tema estudado não se esgota nessas reflexões. No entanto,
nossa pesquisa se propôs a elaborar uma crítica instrutiva e construtiva, que venha
colaborar para que nossa sociedade tenha uma perspectiva crítica em relação às canções
que carregam em sua essência o menosprezo as pessoas com baixa representatividade
política, como os negros e os indígenas deste país.
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