MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política de
morte. São Paulo: N-1 edições, 2018, 80p.
GARRIDO, Mírian Cristina de Moura
*
Desde a aprovação da Lei 10.639, em 2003, o debate sobre o tema História da
África tem crescido dentro do campo acadêmico, estimulando pesquisas e produções
editoriais. Incontestavelmente, a discussão e aprovação de tal lei foi uma conquista do
movimento negro contemporâneo (PEREIRA, 2016). Ademais, se as primeiras pesquisas
indicavam a ausência de literatura especializada para formação de professores e suporte
didático (PANTOJA; ROCHA, 2004), a realidade em 2020 é outra.
A princípio o cenário começou a se modificar pela iniciativa do próprio Estado
brasileiro em traduzir, publicar e disponibilizar gratuitamente a ímpar coleção História
Geral da África. Dividida em oito volumes e criada por iniciativa da UNESCO, a coleção
reúne pesquisadores do continente (majoritariamente) e africanistas para o debate do
método e da História da África em seus diferentes períodos históricos.
A esse esforço somaram-se pesquisadores brasileiros que já vinham se dedicando
ao tema, a introdução de disciplinas nas Licenciaturas e de linhas de pesquisas na pós-
graduação dedicadas à essa área, ou a ele correlatos, e a produção e divulgação dessas
pesquisas.
Parte das editoras, que até então afirmavam a ausência de um público consumidor
sobre a História da África historiográfica ou literária no país, passaram a produzir e
*Doutora pela Universidade Estadual Paulista, Assis - SP, pós-doutoranda em História, pela Universidade
Federal de São Paulo, Guarulhos SP. E-mail: miriangarrido@hotmail.com
Recebido em: 21/01/2020
Aprovado em: 29/01/2020
publicar livros a respeito da temática. Exemplar desse argumento são os livros do
moçambicano Mia Couto, que entre 2008 e 2018 teve vinte e dois livros publicados no
Brasil pela Companhia das Letras e tem frequentado as feiras literárias no país desde
então.
Outro autor que tem estado em voga é o camaronês Achille Mbembe (1957-).
Doutor em História pela Sorbonne e atualmente professor de História e de Ciências
Políticas do Instituto Witwatersrand, em Joanesburgo, na África do Sul. No Brasil, suas
ideias têm sido divulgadas por meio de três livros: Sair da Grande Noite: ensaios sobre a
África descolonizada (2019); Crítica da Razão Negra (2018); Necropolítica (2018). É sobre
esse último que essa resenha se debruça.
O livro apresenta-se como um ensaio, resultado do diálogo do autor com outros
intelectuais aos quais identifica e agradece no fim da obra. A Necropolítica parte da
definição de soberania e biopoder (a partir da leitura de Foucault
1
), para determinar que a
soberania é exercer o controle sobre a mortalidade, definir quem deve viver e quem não
deve viver, ou nas palavras do autor, a soberania permite definir “quem é ‘descartável’ e
quem não é” (MBEMBE, 2018, p. 41).
Mbembe reconhece no racismo o modelo exemplar do que chama de “tecnologia
destinada ao exercício do biopoder” (2018, p. 18), isto é, o direito soberano de matar.
Refletindo sobre os Estados escravistas e os regimes coloniais contemporâneos (sem,
contudo, pormenorizar a construção da raça e das hierarquias raciais do século XIX e
XX), o autor afirma que ambos são experiências máximas de: ausência da liberdade,
expressões de terror, símbolos da perda do lar, direitos ao corpo e do estatuto político
(em especial no escravismo), manifestação do poder de controle de uns sobre o
corpo/desejo de outros, em ambos os casos.
A ênfase e contribuição maior do ensaio, porém, não está na questão do
escravismo ou do racismo, mas sim nas técnicas e dispositivos da mentalidade dos
governos contemporâneos e suas formas de controle e de guerra. Essa última, levada a
cabo na contemporaneidade, com o objetivo de se instalar a completa submissão do
inimigo, sem mensurar os impactos colaterais para a sociedade civil.
Esse modelo de guerra, descrito como característico da “época da globalização”, é
exemplificado no livro com a Guerra de Kosovo, onde houve a destruição da
infraestrutura tais como ferrovias, rodovias, redes de comunicação, depósitos de
1
“aquele domínio da vida sobre a qual o poder estabeleceu o controle” (FOUCAULT, 1997, p. 213-234 apud
MBEMBE, 2018, p. 5-6).
petróleo, centrais elétricas e tratamento da água, estendendo, assim, os danos à
população local. Contudo, para o autor, uma racionalidade na morte inerente à essas
formas de composição de Estado e concepção de soberania, que reside na mencionada
submissão total do inimigo.
O exemplar da definição do necropolítica está, para o autor, na ocupação
contemporânea da Palestina. “Aqui, o Estado colonial tira sua pretensão fundamental de
soberania e legitimidade da autoridade de seu próprio relato da história e da identidade.
Essa narrativa é reforçada pela ideia de que o Estado tem o direito divino de existir; e
entra em competição com outra narrativa pelo mesmo espaço sagrado” (MBEMBE, 2018,
p. 42). Nesse caso, a violência e a soberania reivindicam um elemento divino, na qual a
identidade do grupo é buscada na divindade e construída em oposição ao “outro” e sua
divindade.
O leitor que iniciou seu conhecimento de Mbembe por meio do Crítica da Razão
Negra frustra-se pela pouca atenção concedida às discussões sobre escravismo,
colonialismo e racismo. Frustra-se, contudo, por algo que não era prometido pela obra e
comete um erro, pois a partir dessas considerações sobre a necropolítica o leitor pode,
por si mesmo, construir diálogos com o racismo estrutural e institucional brasileiro, o
genocídio deliberado contra os negros, o encarceramento em massa da população afro, a
segregação espacial da população no país, e assim por diante... Todos elementos
corroboram com a ideia de que o Estado adota políticas de morte, definindo inimigos e
estabelecendo aqueles que são ou não são descartáveis.
Refe rências
KI-ZERBO, Joseph et al. História geral da África. Metodologia e pré-história da África.
Brasília: Ministério da Educação, 2011. v. 1.
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. São Paulo: N-1 Edições, 2018.
MBEMBE, Achille. Sair da Grande Noite: ensaios sobre a África descolonizada.
Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 2019.
PANTOJA, Selma; ROCHA, Maria José. Rompendo Silêncios: História da África nos
Currículos da Educação Básica. Brasília: DP Comunicações Ltda., 2004.
PEREIRA, Amilcar Araújo. O movimento negro brasileiro e a Lei 10.639: da criação aos
desafios de implementação. Revista Contemporânea da Educação, Rio de Janeiro, v. 11, n.
22, p. 13-30, jan/abr. 2016.