Miki, Yuko. Frontiers of Citizenship. A black and Indigenous history of Postcolonial
Brazil. Cambridge: Cambridge University Press, 2018. 314p.
SANTOS, Murilo Souza dos
*
um esforço recente, e cada vez mais imperioso entre os pesquisadores, de
questionar a maneira pela qual história e antropologia estudaram as populações
indígenas e afrodescendentes na América Latina. Fruto de uma política colonial que
tratava índios e negros separadamente, outrossim perpetuada nos regimes de governos
subsequentes, a tradicional análise dessas populações restou seccionada e,
frequentemente, dicotômica (WADE, 2018). Por objetivar explorar as temáticas de raça,
nação e, sobretudo, cidadania por meio das interconexões entre as histórias de negros e
indígenas, Frontiers of Citizenship: a black and Indigenous history of Postcolonial Brazil,
de Yuko Miki, é um livro que se insere nesse esforço novo e promissor. Entre os diversos
prêmios e honrarias que recebeu até o momento, estão o Wesley-Logan Prize em
História da Diáspora Africana, concedida pela American Historical Association, e o
Warren Dean Memorial Prize como o melhor livro sobre História do Brasil publicado em
inglês, dado pela Conference on Latin American History (CLAH), que lhe concedeu,
ainda, menção honrosa no Howard F. Cline Prize, dedicado à Etno-História da América
Latina.
* Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de
Campinas (PPGH-UNICAMP), na linha de História Social da Cultura. Bolsista de mestrado CAPES. E-mail:
murilosouza.ds@gmail.com
Recebido em: 13/02/2020
Aprovado em: 21/02/2020
A pesquisa que resultou nesse livro é também motivada por um segundo
incômodo da autora: a compreensão de que a historiografia brasileira não teria dado a
devida atenção às fronteiras, espaço no qual, segundo ela, a relação entre raça, nação e
cidadania havia sido de fato testada e definida diariamente (MIKI, 2018, p. 8). Com isso
em mente, Yuko Miki elege como espaço de observação o que ela escolheu chamar de
fronteira atlântica: uma região que, embora jamais tenha aparecido nas fontes sob tal
denominação, corresponderia ao contorno da Mata Atlântica original do sul da Bahia e
Espírito Santo. Outrora proibida pela Coroa portuguesa, essa região se tornou objeto de
uma colonização agressiva com o avançar do século XIX.
Os seis capítulos que compõem Frontiers of Citizenship estão estruturados em
torno de um embate de visões. De um lado, as elites brancas, que pretendiam
homogeneizar o povo brasileiro a fim de que fosse encaixado em uma definição pré-
definida de cidadania; do outro, negros e índios, que disputavam a definição de cidadania,
para que o povo, na sua heterogeneidade, nela pudesse ser incluída. Dessa maneira,
enquanto o primeiro capítulo analisa os debates parlamentares acerca da definição
notavelmente inclusiva de cidadania inscrita na Constituição de 1824 para contrastar
com a exclusão implícita que ela pressupunha, o segundo foca nos índios e negros da
fronteira atlântica para examinar como eles reagiam diante das exclusões geradas na
prática. Essa intercalação está presente em todo o livro.
O segundo capítulo faz, ainda, uma análise estimulante acerca da percepção que
muitos negros e indígenas tinham da monarquia como fonte de justiça e proteção, ao
ponto de inúmeras revoltas terem sido desencadeadas pela forte ressonância dos boatos
de emancipação. Todavia, a menos que se considere o crescendo de violência que
caracteriza a expansão do Estado no período como consequência das formas de
resistência adotadas por negros e índios, Yuko Miki fica longe de cumprir com o
principal objetivo assumido para esse capítulo, qual seja o de “demonstrar como a
expansão do Estado foi moldada pelas mesmas pessoas que procurou excluir” (MIKI,
2018, p. 25, tradução nossa).
Os capítulos terceiro e quarto se complementam no objetivo de mostrar que a
adoção da mestiçagem como meio de criar um povo brasileiro homogêneo implicava
tanto na crescente inclusão desigual dos negros escravizados quanto na efetiva extinção
dos índios. Assim, o terceiro capítulo argumenta que as elites urbanas combinaram o
indigenismo romântico e a nova ciência antropológica com a expressão das leis para
criar uma situação legal, na qual “para se tornar cidadãos, os índios precisavam ser
civilizados e, uma vez civilizados, não eram mais índios” (MIKI, 2018, p. 133, tradução
nossa). O quarto, por sua vez, demonstra as consequências práticas desse projeto de
mestiçagem por meio da comparação de dois casos de violência oriundos da fronteira
atlântica: de um lado, a erosão do poder dos proprietários de escravos sobre eles; do
outro, a transformação dos índios no Brasil pós-colonial em corpos matáveis.
O ponto principal do livro está nos capítulos quinto e sexto, cujo sentido é
mostrar que a perspectiva de liberdade negra e autonomia indígena se tornaram
inseparáveis da luta pela terra. No quinto capítulo, Yuko Miki observa que, nos anos
finais da escravidão, muitos quilombolas criaram assentamentos tão próximos da região
na qual estavam legalmente escravizados que se podia ouvir seus batuques à noite. A
partir dessa constatação, e inspirando-se na ideia de geografia rival, elaborada por
Edward Said e usada pelos geógrafos para descrever a resistência à ocupação colonial,
Miki formula o conceito de geografia insurgente para designar a prática política que ela
entende como “fugir para a escravidão” (fleeing into slavery, no original). Seria por meio
da geografia insurgente, do fugir para a escravidão e não para longe dela, que as pessoas
escravizadas deixaram de resistir à sociedade escravista para, finalmente, desafiá-la por
dentro; vivendo como pessoas livres em seu meio e, desse modo, expressando “os
termos pelos quais queriam viver na sociedade brasileira” (MIKI, 2018, p. 214, tradução
nossa).
Por seu turno, no sexto capítulo, a autora observa que, apesar das divergências de
opiniões quanto ao futuro dos indígenas e libertos, tanto missionários quanto
abolicionistas e escravocratas compartilhavam a visão de que eles deveriam ser
disciplinados para uma cidadania limitada e fundamentalmente servil. A iminência da
abolição revigorou o interesse das elites pela possibilidade de transformação dos
indígenas em “cidadãos úteis” por meio da disciplina do trabalho conjuntamente à
negação do acesso à terra (os mesmos termos que posteriormente seriam reproduzidos
nas discussões sobre os libertos). Tal confluência de pontos de vista teria ajudado a
conjugar, do outro lado, as perspectivas de negros e indígenas. Para a autora, a forma
como eles interpretaram liberdade e cidadania não apenas repreendeu radicalmente
essas ideias racializadas, naquele contexto, como teve repercussões duradouras no
período republicano.
Como se pode ver, o conceito de geografia insurgente é central para a tese
defendida em Frontiers of Citizenship. Sua pressuposição é a de que a convivência na
comunidade do quilombo teria transformado a consciência de liberdade numa prática
política coletiva pela qual as pessoas escravizadas reimaginaram suas vidas como
pessoas livres dentro da própria geografia em que estavam destinados a permanecer
escravizado (MIKI, 2018, p. 174). Interessa mostrar, finalmente, que os escravizados não
apenas lutavam para proteger o que lhes eram pessoalmente importantes, mas, muito
além, eles afirmavam uma visão específica da política de cidadania e anti-escravidão
(MIKI, 2018, p. 26). De que maneira? Yuko Miki sabe que a multiplicidade de motivos que
levavam os escravizados a fugir em pouco se confunde com semelhante ideologia. A
engenhosidade do conceito de geografia insurgente está justamente na capacidade de
transformar uma motivação factível, “a luta pela geografia”, em um significante para a
cidadania (MIKI, 2018, p. 251), ainda que para tal inferência não haja indícios capazes de
sustentá-la. no epílogo, a autora nos lembra que, com a Constituição de 1988, o direito
à terra se tornou, legalmente, um meio para reivindicar uma cidadania plena. O problema
que se coloca, em suma, é que se, por um lado, tal conquista é verdadeira, por outro, soa
forçoso dizer que tal associação foi forjada conscientemente pelos afro-brasileiros no
período de escravidão e pré-emancipação (MIKI, 2018, p. 257). Dessa maneira, o que
seria a mais importante contribuição do livro fica reduzida a uma ilação ou, mais
apropriadamente, à amostra de um equívoco metodológico denominado por Frederick
Cooper como ultrapassar legados, isto é, “afirmar que algo no tempo A causou algo no
tempo C sem considerar o tempo B, que fica no meio” (COOPER, 2005, p. 17).
Frontiers of Citizenship é um trabalho vigoroso, que consegue demonstrar com
sucesso a impossibilidade de compreender temas como raça, nação e cidadania sem
envolver tanto as histórias da diáspora africana quanto a das Américas indígenas. Por
outro lado, e essa é a principal crítica, não analisa alguns conceitos que são cruciais para
a sua própria fundamentação mas, pelo contrário, aplica-os nas fontes sem historici-
los. Cooper, mencionado, mostrou, em Citizenship, Inequality and Difference (2018),
que apenas recentemente o conceito de cidadania foi constituído como inerentemente
igualitário, mas por Yuko Miki aplicar esse conceito sem a devida contextualização, a
existência de uma cidadania desigual, tal como defendida pelas elites na conjuntura
analisada, soa como mera injustiça. Similarmente, raça e nação lhe parecem ser
concepções tão unívocas que sequer precisam ser definidas e, dessa forma, a impressão
resultante é de que os sujeitos analisados agem em relação às mesmas identidades
coletivas que pressupomos hoje.
Em The Problem of Slavery as History: a Global Approach, Joseph C. Miller impôs
o desafio intelectual de pensar a escravidão para além da politização contemporânea.
Para ele, estamos tão preocupados em condenar a escravidão, que inibimos o
entendimento acadêmico dessa prática como sujeito de investigação intelectual
(MILLER, 2012, p. 2). Pelo demonstrado, a abordagem dos conceitos em Frontiers of
Citizenship o situa como exemplar dessa conduta que precisa ser evitada. Ainda assim,
esse é um trabalho que merece atenção, não apenas pela importância do tema, mas
sobretudo pela forma original com a qual Yuko Miki, frequentemente, associa os
discursos sobre cidadania, escravidão e extinção com a política deles resultante.
Referências
COOPER, Frederick. Citizenship, Inequality and Difference. Princeton/Oxford: Princeton
University Press, 2018.
COOPER, Frederick. Colonialism in Question. Theory, Knowledge, History. Berkeley:
University of California Press, 2005.
MILLER, Joseph C. The Problem of Slavery as History: a global approach. New Haven
and London: Yale University Press, 2012.
WADE, Peter. Interações, relações e comparações afro-indígenas. In: ANDREWS, George
Reid; FUENTE, Alejandro de la (orgs.). Estudos afro-latino-americanos: uma introdução.
Ciudad Autónoma de Buenos Aires: CLACSO, 2018.