ARAÚJO, Lorena Gouvêa de
*
RESUMO: Neste artigo, analisaremos o feminino
na dinâmica da sociedade do Vice-Reino do Peru,
durante o século XVII, a partir dos processos
eclesiásticos disponíveis no Archivo arzobispal de
Lima (AAL), seção Hechicerías e Idolatrías.
Temos o objetivo de entender como o feminino,
que dentro da lógica andina se compreendia
enquanto parte de um todo orgânico e holístico,
se transforma, com a chegada hispânica, em réu
dos processos de visitas de Extirpação de
Idolatrias. Também vamos analisar o que esses
processos podem nos revelar acerca da
existência, ainda que mitigada, de práticas
religiosas andinas no seio da sociedade colonial
do século XVII.
PALAVRAS-CHAVE: Feminino; Idolatrias;
Sociedade colonial.
ABSTRACT: In the present article, we will analyze
the feminine in the dynamics of the society of the
Viceroyalty of Peru, during the 17th century, based
on the ecclesiastical processes available in Archivo
arzobispal de Lima (AAL), section Hechicerías e
Idolatrías. We aim to understand how the
feminine, which within the Andean logic
understood itself as part of an organic and holistic
whole, becomes, with the Hispanic arrival,
defendants in the processes of Visiting the
Extirpation of Idolatry. We will also analyze what
these processes can reveal about the existence,
even if mitigated, of Andean religious practices
within the colonial society of the 17th century.
KEYWORDS: Female; Idolatry; Colonial society.
Recebido em: 07/03/2020
Aprovado em: 15/06/2020
* Graduada e mestre em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) Rio de
Janeiro/RJ; doutoranda em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro/Faculdade de Formação
de Professores (UERJ/FFP), Programa de Pós-Graduação em História Social Rio de Janeiro/RJ. Bolsista
FAPERJ. E-mail: lorena.gouvea@gmail.com. Este artigo é parte da investigação elaborada em minha tese
para obtenção do título de Doutora em História.
Introdução
Desde que os peninsulares chegaram no território do atual Peru, no século XVI, a
população local sofreu transformações nas mais variadas esferas (política, econômica,
cultural, social, etc.), uma vez que os agentes participantes desse projeto reorganizaram
os nativos e os orientaram, enquanto súditos da Coroa hispânica que eram, a um novo
projeto de sociedade.
Dentre as novidades apresentadas pela chegada ocidental, destacamos, para este
artigo, a transformação religiosa que sofreu a população andina. Esta teve, sua
religiosidade, traduzida para o sistema simbólico europeu, que não compreendeu a
organicidade dos valores que possuíam em relação ao mundo. Para os andinos, no
espaço em que vivem e na natureza que observam, o mundo ancestral está plasmado. A
reciprocidade com os seres divinos se mantém viva através dos rituais religiosos, pois é
ela quem garante o equilíbrio do cosmos e exerce influência nos períodos de seca e de
chuva, de fertilidade e de esterilidade da terra, etc.
Os hispânicos carregados, em maior ou menor grau, das concepções religiosas
cristãs, traduziram os ritos andinos em atividade demoníaca e o nativo religioso em
idólatra. Ainda que a legislação não o tenha tratado enquanto herege, e que o Tribunal do
Santo Ofício não o tenha perseguido, as autoridades eclesiásticas se debruçaram na luta
sistemática de extirpação da religiosidade nativa a partir de 1610, castigando-os,
aculturando-os e orientando-os em direção da fé em Cristo.
Analisaremos, assim, o elemento feminino andino na sociedade colonial do século
XVII, levando em consideração as transformações sofridas pela tradição religiosa
autóctone frente à evangelização. Para tal, utilizaremos alguns processos eclesiásticos
do século XVII disponíveis no Archivo arzobispal de Lima (AAL), seção Hechicerías e
Idolatrías, em que será possível perceber as diferentes visões de mundo que compunham
essa sociedade, isto é, as visões andina e a ocidental
1
.
Dessa maneira, enfrentamos o esforço historiográfico, tal como dito por
Ginzburg, de compreender uma sociedade nativa através de fontes oriundas dos grupos
dominantes. Apesar de poder significar um obstáculo para a compreensão das
particularidades locais, utilizaremos as fontes da justiça eclesiástica como ferramentas
que nos apresentam, ainda que por meio de filtros, indícios referentes às tradições
culturais andinas (GINZBURG, 2009, p. 11-26).
1
A eleição desse recorte temporal ocorreu por virtude de, no AAL, contarmos com um maior número de
documentos relacionados à segunda onda de visitas de idolatria, encabeçadas pelo Arcebispo Pedro de
Villagómez (1640-1671), facilitando a análise proposta.
Feminino no mundo andino: reciprocidade e yanantin
O presente trabalho parte da concepção de que o feminino na sociedade colonial
no território do Peru, século XVII, é fruto de um processo histórico que compreende o
que é ser mulher desde o Peru antigo, passando pelo período incaico e chegando à
sociedade pós conquista. Compartilhamos com a ideia apresentada por Maritza
Villavicencio, quando a autora afirma não ser pertinente observar as mulheres andinas
através do ponto de vista dos discursos de gênero contemporâneos, ou seja, separando
sexo biológico de gênero, pois o feminino, nestas antigas sociedades, era reverenciado
justamente por sua biologia, sua função reprodutiva e anatomia dos seus corpos. Dessa
maneira, a ideia de inferioridade feminina, pautada no sexo biológico, era inexistente e,
pelo contrário, o feminino era valorizado e divinizado, a ponto de ser considerado,
comumente, madre de toda uma comunidade como é o caso da Pachamama (Mãe
Terra), Mama Sara (Mãe Milho), Mama Huaco (divindade que, junto a Manco Cápac,
forma o casal de irmãos fundadores do Tawantinsuyo), Mama Quilla (Mãe Lua) e Mama
Cocha (Mãe Mar) (VILLAVICENCIO, 2017, p. 65). As mulheres nativas do vice-reino do
Peru, evangelizadas pelos clérigos cristãos a partir da chegada hispânica, são aqui
compreendidas enquanto herdeiras dessas antigas mulheres míticas que, através dos
rituais sagrados, continuam vivas no pensamento religioso andino
2
.
Ao falarmos em mundo andino, é essencial a compreensão dos conceitos de
reciprocidade e de oposição-complementaridade (yanantin) presentes em sua
cosmovisão. Para eles, os fenômenos e as atividades realizadas entre humanos e
natureza, entre seres animados e inanimados, no mundo terreno e visível são, na
realidade, reflexo dos mesmos fenômenos e atividades que ocorrem no mundo cósmico.
Isso porque a compreensão de mundo que possuem é holística, entendendo-o enquanto
um composto organizado em diversos níveis de pacha (mundo): hanan pacha (mundo de
cima); kay pacha (este mundo) e uku pacha (mundo interior) (YÁNEZ, 2002, p. 38). Se as
comunidades usufruem de alimentos para todos, com chuvas periódicas, com a
fertilidade das terras, etc. é porque a interação e a harmonia entres as pachas está
alcançada. O estabelecimento dessa harmonia perpassa pela ideia de reciprocidade, isto
é, a noção de que todo o esforço em uma direção é recompensado com outro esforço em
direção contrária, por parte do receptor. Por essa razão, nas comunidades andinas é tão
comum (ou era) as oferendas de alimentos aos deuses míticos (que habitam a uku pacha)
2
A respeito do mundo mítico andino ver: RITOS Y TRADICIONES DE HUAROCHIRÍ DEL SIGLO XVII,
1987.
por parte dos seres que habitam este mundo (kay pacha), no objetivo da manutenção do
equilíbrio cósmico.
Nesse jogo de reciprocidade enquanto garantidora de equilíbrio, também se
destaca o elemento oposição-complementaridade. No que diz respeito aos habitantes do
Huarochirí, distrito localizado na serra central de Lima, Yánez menciona que estes
andinos possuíam uma mentalidade orientada em direção à dualidade e que essa
dualidade, especialmente quando fundamentada na ideia de pares inseparáveis
yanantin , era a base de todo o edifício cognitivo e comportamental local (YÁNEZ,
2002, p. 117). Tomamos aqui a população do Huarochirí na certeza de que esse
pensamento ultrapassa as barreiras geográficas, uma vez que encontraremos a mesma
noção de oposição-complementaridade, em povos geograficamente apartados da região
andina. Eduardo Viveiros de Castro nos informa, a respeito dos povos amazônicos do
Brasil, que a relação existente entre os seres que compunham essa sociedade é uma
relação que se estabelece por meio das diferenças. Afirma Viveiros de Castro que, se o
mundo ocidental tende a descartar as desigualdades e focar nas semelhanças, os
autóctones amazônicos acreditam que é justamente a diferença, ou a ideia de oposição,
que dá sentido à dinâmica social (VIVEIROS DE CASTRO, 2005, p. 158). Da mesma forma
que os andinos peruanos, os povos da Amazônia se percebem enquanto pares, enquanto
seres complementares, enquanto yanantin, porque são distintos uns dos outros e
complementares entre si.
Nos Andes peruanos, a existência de elementos opostos e complementares,
podem ser observados em diversos esquemas existentes nos mitos nativos, como o Sol e
a Lua; o Hanan (mundo de cima) e o Hunin (mundo de baixo); o Inca e a Coya, dentre
outros casais presentes nas histórias locais. Como exemplo, mencionamos um dos
relatos existentes no Manuscrito quechua do Huarochirí, em que as huacas
3
Chawpiñamca e Rucanacoto huacas símbolo das sexualidades feminina e masculina,
respectivamente , encontraram a complementaridade que buscavam nas forças opostas
que emanavam, se transformando em yanantin no momento em que estabeleceram uma
relação sexual (RITOS Y TRADICIONES DE HUAROCHIRÍ DEL SIGLO XVII, 1987, p. 197).
Essa complementaridade era responsável pelo equilíbrio que faltava, não apenas às
huacas mencionadas, mas também à toda a comunidade onde estavam inseridas (antigo
pueblo de San Pedro de Mama, atual Ricardo Palma). A partir do estabelecimento de
Chawpiñanca neste local, a reciprocidade foi assegurada pelo culto que os nativos
3
Segundo a crônica de Garcilaso de la Vega, huaca é uma palavra andina de conotação sobrenatural, que
se manifesta através de algum objeto. Também pode ter o significado de adoratório. Ver: GARCILASO DE
LA VEGA, 2005, p. 757.
passaram a prestar à ela, no afã de que garantisse a fertilidade de suas terras (RITOS Y
TRADICIONES DE HUAROCHIRÍ DEL SIGLO XVII, 1987, p. 201). Através desse rito,
observamos o mundo andino enquanto local onde a experiência humana está em
constante relação, e interação, com os demais seres que compunham o cosmos. Estes
seres, de igual maneira que os humanos, também possuem suas vidas vinculadas entre si,
dando sentido à cosmovisão (DEPAZ TOLEDO, 2015, p. 21).
A mentalidade europeia na América e as Campanhas de Extirpação de Idolatrias no
Peru do século XVII
Essa forma holística de observar o mundo, através da reciprocidade, da
manutenção (ou busca) do yanantin, do mundo enquanto local de integração entre os
diversos níveis de pacha, não foi compreendida pela mentalidade hispânica que
desembarcava no território do atual Peru, no século XVI. A crença de haver chegado a
um mundo paradisíaco foi substituída, rapidamente, pela da América enquanto terreno
fértil para o estabelecimento e enraizamento do demônio e de suas forças.
Especialmente quando esse espaço geográfico passou a ser percebido, pelos hispânicos,
enquanto local nunca antes amparado pelas leis de Cristo (CAÑIZARES-ESGUERRA,
2008).
Nesse sentido, precisamos compreender a mentalidade cristã europeia, que
desembarcou na América, como uma extensão da doutrina que circulava no universo
religioso europeu. A respeito desse contexto religioso, Laura de Mello e Souza considera
que desde a crise econômica do final da Idade Média (século XIV), um sentimento
progressivo de incerteza e medo tomou conta da população da Europa, o que gerou uma
exacerbação da religiosidade popular, de característica mágica (MELLO E SOUZA, 1987,
p. 6). A partir desse período, podemos dizer que se deu início uma progressiva
associação entre magia pagã e heresia, ou seja, as antigas personagens femininas da
antiguidade (Diana, Medeia, etc.) passaram a ser consideradas feiticeiras pelo
cristianismo europeu. No entanto, essas mulheres não possuíam pacto com o diabo, pois
eram responsáveis, sozinhas, pela realização das suas poções mágicas, sem que
houvesse intervenção demoníaca. Por convocar as forças malignas, suas ações eram
abomináveis, mas não sua pessoa. Por outro lado, passaram a existir as bruxas, que
possuíam pacto com o diabo, sendo este o responsável por ajudá-las nas atividades
maléficas. Segundo o cristianismo europeu, suas práticas eram coletivas, realizadas no
meio da floresta em uma espécie de assembleia noturna ou Sabbat
4
. (MELLO E SOUZA,
1987, p. 12-13, 20-21). A bruxa, ao contrário da feiticeira, era ela mesma a fonte do
mal porque, através do pacto que realizou, se transformava na sacerdotisa do demônio.
Sobre essa sacerdotisa, Michelet dirá que, a velha era seu título honorífico, ainda que
fosse bem jovem. (MICHELET, 2004, p. 147, grifo do autor).
A ideia da mulher enquanto um ser frágil, débil e mais predisposto às tentações
demoníacas pode ser compreendido através de discursos ocidentais existentes em
tempos ainda mais antigos. Jean Delumeau informa que desde o século XIII, na Europa,
com a entrada das ordens mendicantes na cena do mundo religioso cristão, a
evangelização foi desenvolvida a partir dos sermões e que, estes, ganharam ainda mais
importância com a chegada das reformas religiosas europeias. Infelizmente, esse sistema
de conversão estava impregnado de elementos misóginos ao feminino, descrito como um
ser predestinado ao mal (DELUMEAU, 2009, p. 477). São Bernardino de Siena (século
XV) e Alvarado Pelayo (1330) são alguns dos nomes que vão difundir uma ideia negativa
da mulher antes mesmo da caça às bruxas europeia, apontando como ato legítimo o
homem bater em sua esposa e/ou garantir que ela se mantivesse ocupada em casa,
realizando trabalhos domésticos, para que não pensasse em coisas ruins. Além disso, a
consideravam testemunho menos crível diante do testemunho de um homem, assim
como afirmavam que a mulher era ministra da idolatria e responsável pelo homem
cometer apostasia
5
e se distanciar de Deus (DELUMEAU, 2009, p. 477- 483).
A relação das mulheres com o mundo demoníaco, desta forma, não era uma
novidade no século XV, mas ganhou mais propagação com a publicação da bula Summis
desiderantes affectibus (1484) de Inocêncio VIII. As palavras de Inocêncio foram
reforçadas na obra Malleus Maleficarum (1487), escrita pelos dominicanos Sprenger e
Kramer. Neste trabalho, os autores franciscanos apoiaram a existência do incubus e do
sucubus no pacto demoníaco, além de dizer que uma simples acusação, ou queixa sem
4
Segundo a definição de Sabbat de Ginzburg, destacamos a seguinte passagem: “Bruxas e feiticeiros
reuniam-se à noite, geralmente em lugares solitários, no campo ou na montanha. Às vezes, chegavam
voando, depois de ter untado o corpo com ungüentos, montando bastões ou cabos de vassoura; em outras
ocasiões, apareciam em garupas de animais ou então transformados eles próprios em bichos. Os que
vinham pela primeira vez deviam renunciar à cristã, profanar os sacramentos e render homenagem ao
diabo, presente sob a forma humana ou (mais frequentemente) como animal ou semi-animal. Seguiam-se
banquetes, danças, orgias sexuais. Antes de voltar para casa, bruxas e feiticeiros recebiam ungüentos
maléficos, produzidos com gordura de crianças e outros ingredientes.” (GINZBURG, 2007, p. 9).
5
Afirma Macarena Cordero que, José de Acosta, na obra Procuranda Inodorum Salute, distinguirá entre
duas classes de nativos: a primeiro diz respeito aos não convertidos, aos quais os clérigos deveriam
cristianizar mediante a persuasão e a compreensão; a segundo tipo diz respeito aos apóstatas, isto é,
aqueles que conheciam a palavra de Deus mas se distanciaram da em Cristo. A respeito desses
últimos, ainda segundo Acosta, deveria haver maior rigor em sua repressão e castigo. Entretanto, admite
que os costumes e práticas andinas que não fossem nocivas à moral e à doutrina cristãs, poderiam ser
mantidas (CORDERO FERNÁNDEZ, 2012, p. 368).
provas, era suficiente para a abertura de um processo de bruxaria (KRAMER,
SPRENGER, 1997).
Neste período, não apenas a heresia passava a ser considerada um problema na
Europa, como era necessário encontrar e punir os culpados (ou culpadas) desse desvio.
Os códigos demonológicos personificaram o herege como aquele que cometeu pecado,
contra Deus, com a ajuda do Diabo. Essa ajuda poderia ser alcançada através da
aliança (implícita ou explícita) que este indivíduo contraiu com o demônio, quando este
doou seus poderes malignos à bruxa ou bruxo. Sendo assim, na Europa, os antigos
perfumistas, fabricantes de filtros do amor, conhecedores dos poderes curativos das
ervas e raízes viram suas práticas serem transformadas em crimes de bruxaria,
realizados sob intervenção demoníaca e, por isso, deviam ser levados à forca ou à
fogueira (MELLO E SOUZA, 1987, p. 12-13).
Transladado esse tipo de pensamento, ao chegarem no continente americano, não
tardou para que as autoridades espanholas acreditassem que tinham a tarefa de lutar
contra Satãn nessas terras. No Peru, essa luta iniciou-se de maneira sistemática em 1610,
a partir da nomeação do primeiro juiz visitador das idolatrias, Francisco de Ávila
6
. Pierre
Duviols, em seu livro Procesos y visitas de idolatrias. Cajatambo, siglo XVII, considera a
Extirpação de Idolatrias como uma instituição com características próprias e diferentes
da Inquisição. No Peru a Inquisição perseguiu aqueles que, instaurados na sociedade,
praticavam crime de heresia, ao passo que a Extirpação ficou responsável pelas
comunidades rurais, pouco integradas culturalmente à vida colonial, e tinha o objetivo
levar aos nativos à evangelização. Através da aculturação e do catecismo, pretendia-se
impor, aos andinos, os comportamentos sociais ou individuais cristãos, consagrados no
Concílio de Trento (1545-1563) e ratificados pelo III Concílio Limense (1583). Diferente da
Inquisição, a Extirpação excluiu a pena de morte e não submeteu os réus à justiça civil,
apenas em caso de crime contra a vida humana (DUVIOLS, 2003, p. 49). Embora
carregada de distinções, a Extirpação foi alimentada por práticas consolidadas pela
Inquisição (SILVERBLATT, 1982). Por exemplo, ela não aboliu os tormentos contra os
réus e também promoveu autos de fé, com a queima em praça pública dos mallquis (ou
corpos mumificados dos ancestrais nativos). Tal procedimento era uma possível alusão à
queima de corpos considerados hereges pelo Tribunal Inquisitorial, uma vez que, ao
6
Antes mesmo da primeira Campanha sistemática de Extirpação das Idolatrias (1610-1622) a evangelização
era uma preocupação da Coroa hispânica e dos clérigos católicos em território peruano. em 1569,
durante o vice-reino de Francisco de Toledo (1569-1581), Cristóbal de Arbornoz foi nomeado como
responsável pela evangelização dos nativos em Huamanaga, tendo Guaman Poma de Ayala como fiscal de
suas visitas. Esse período compreendeu o combate ao movimento andino de rebelião e reconquista
chamado Taki Onqoy.
destruir esses cadáveres mumificados, os clérigos pensavam arrancar (extirpar), da
comunidade à qual pertencia o mallqui, as raízes de seus cultos (DUVIOLS, 2003, p. 50-
51).
Diversos já foram os autores e autoras que se debruçaram em pesquisas a
respeito das chamadas Campanhas de Extirpação de Idolatrias
7
e, dentre todos, é
consenso que a primeira onda sistemática de visitas contra a religiosidade nativa,
ocorreu a partir da nomeação do clérigo Francisco de Ávila como primeiro juiz visitador
em 1610, pelo então Arcebispo de Lima Bartolomé Lobo Guerrero (1610-1622).
Francisco de Ávila era ainda cura de San Damián de Huarochirí quando, em 1609,
escreveu uma carta para a Companhia de Jesus declarando que os nativos de sua
doutrina, ainda que apresentassem hábitos aparentemente cristãos, continuavam
realizando suas práticas nativas e idolátricas e, por isso, deviam ser considerados
apóstatas e hereges pela Igreja Católica. Em 1610, com apoio do Arcebispo de Lima
Bartolomé Lobo Guerrero e do Vice-Rei Conde de Montesclaros, Ávila foi nomeado o
primeiro juiz visitador das Campanhas de Extirpação de Idolatrias. Nestas Campanhas
era função do juiz, do fiscal e do notário efetuar os questionamentos, as pesquisas, os
inventários, pronunciar as sentenças e executar os castigos aos condenados. Os padres
que acompanhavam o séquito extirpador, deviam predicar, confessar e administrar os
sacramentos aos naturais (DUVIOLS, 2003, p. 26). Sendo assim, as visitas possuíam
tanto um caráter judicial uma vez que primava pelo julgamento do processo e pela
aplicação do castigo ao acusado quando pastoral com o objetivo de doutrinar e
reconduzir o nativo à fé em Cristo.
Ao chegarem na doutrina de destino, era função do juiz visitador a leitura de um
Edito na Igreja principal
8
e, a partir dessa leitura, era estabelecido o prazo de três dias
para que os nativos denunciassem suas huacas, idólatras, feiticeiros e adeptos
(CORDERO FERNÁNDEZ, 2012, p. 362; DUVIOLS, 2003 p. 25-27). A primeira onda de
Campanha sistematizada contra a idolatria percorreu as zonas rurais próximas à cidade
de Lima e montaram, entre 1610 e 1622, grandes diligências contra a religião andina
9
.
A ordem dos jesuítas foi a principal ordem religiosa envolvida nesses processos
de evangelização durante a Extirpação. Além de estar em crescimento numérico na
7
Pierre Duviols, Macarena Cordero Fernández, Isis Gareis, Antonio Acosta, Irene Silverblatt, Kenneth
Mills, etc.
8
Essa prática foi regulamentada no Sínodo de 1613, através de um programa de visitas de idolatrias
(DUVIOLS, 2003, p. 26).
9
No ano de 1621 morre o jesuíta José de Arriaga (grande incentivador da extirpação e escritor do livro
Extirpación de la idolatría del Pirú). Nesse mesmo ano, o então Vice-Rei do Peru, Príncipe de Esquilache,
regressa a Espanha. Em 1622 ocorre a morte do arcebispo Bartolomé Logo Guerrero, provocando uma
diminuição das atividades da extirpação.
colônia, no século XVII, a ordem havia sido responsável pela organização da
contrareforma católica na Espanha. Também possuía alto nível intelectual e moral entre
seus clérigos, bem como a disciplina e boa capacidade política e econômica
(SILVERBLATT, 1982, p. 31; DUVIOLS, 2003, p. 41-42).
Após essa primeira onda sistematizada de vistas (1610-1622), o Vice-Reino do Peru
seguiu por um intervalo de vinte e sete anos sem que a caça à religiosidade nativa
encontrasse uma confluência de forças oficiais (entre Vice-reis e Arcebispos) engajadas
em sua extirpação. Entretanto, a partir de 1649, já sob o arcebispado de Pedro de
Villagómez, foi conduzida uma segunda onda de Campanha de Extirpação de Idolatrias,
na cidade de Lima. Villagómez acreditava que os nativos, mesmo após anos de
evangelização, ainda eram dotados de uma predisposição natural a idolatrar (CORDERO
FERNÁNDEZ, 2019, p. 361). Uma nova busca pelas práticas religiosas andinas ganhou
fôlego em seu arcebispado e os expedientes aqui analisados datam justamente do
período de seu governo.
No que diz respeito aos processos da justiça eclesiástica, decorrentes das visitas
idolátricas, Macarena Cordero afirma que não havia especificação legal para as penas e
castigos anunciados pelos juízes visitadores, isto é, eles podiam variar suas sentenças
segundo a interpretação e o conhecimento de caso que possuíam, mesmo ao lidarem com
delitos semelhantes. Desta maneira, a autora considera estes juízes uma espécie de
cocriadores do direito clerical, assim como aponta que as penas por eles aplicadas
estavam fundamentadas na ofensa que os acusados teriam cometido contra Deus e no
dano que poderiam causar à comunidade local. Era uma interpretação pessoal, que
objetivava tanto corrigir a atitude nativa com castigos exemplares (autos de fé, açoites,
raspar o cabelo, etc.), quanto reeducar a população no tocante à fé em Cristo. No
entanto, amparados pelo estatuto de proteção ao indígena, as penas condenatórias a
estes nativos resultaram mais brandas do que as aplicadas pelo Tribunal do Santo Ofício
aos dissidentes da doutrina católica (CORDERO FERNÁNDEZ, 2010, p. 353-359).
A respeito da legislação hispânica de proteção ao nativo, esclarecemos que nem
sempre foi consenso a aceitação desta pelas autoridades coloniais. Quando ainda
ocupava o cargo de Vice-rei do Peru (1569-1581), Francisco de Toledo tentou, sem
sucesso, que os processos que fossem considerados atos de feitiçaria, ocorridos entre a
população nativa, estivessem a cargo da jurisdição do Santo Ofício. Posteriormente,
Toledo ainda se empenhou para que o delito fosse julgado, pelo menos, em foro misto,
isto é, tanto pelo tribunal civil quanto pelo eclesiástico. Contudo, através da Cédula de
1575, ficou especificado que os casos de feitiçaria e de idolatria, que não atentassem
contra a vida das pessoas (atos criminais), competiam à jurisdição eclesiástica e não à
civil (GAREIS, 1989, p. 57-58; DUVIOLS, 2003, p. 28-30).
A partir de então, diversos foram os documentos que buscaram assegurar o bem-
estar dos nativos na colônia. As ordens contidas nas Leyes de Indias atenta sobre a
miserabilidade e debilidade natural que acometiam os autóctones que, de tão débeis,
facilmente se encontram chateados e oprimidos. Ressalta ainda, que fossem despachadas
muitas Cédulas que garantissem que os naturais fossem bem tratados, amparados e
favorecidos. (LEYES DE INDIAS, 1889, p. 121-122). Outro documento, em que
encontramos a presença oficial da preocupação a respeito do bem-estar dos súditos do
rei, é as Siete Partidas, nela é considerado que o rei, enquanto cabeça natural de seu
reino, devia ser o mantenedor (ou protetor) dos menores. (SIETE PARTIDAS, 1807, p. 13).
Na Recopilación, no item que trata sobre os nativos, encontramos que: “É nossa vontade
encarregar aos Vice-Reis, presidentes e audiências o cuidado de olhar por eles e dar as
ordens convenientes para que sejam amparados, favorecidos e protegidos [...]”
(RECOPILACIÓN de las leyes de los reinos de las indias, Tomo II, 1841, p. 217, tradução
nossa)
10
. Assim, percebemos que era uma preocupação real a situação do nativo na
colônia, e o rei, enquanto responsável pela vida de seus súditos, devia ser o principal
responsável em zelar pelo bem-estar destes.
A condição jurídica de proteção ao nativo, também se encontrava refletida nos
manuais dos clérigos protetores. São várias as passagens que encontramos José de
Acosta, em Historia Natural y Moral de las Indias, afirmando que o demônio havia
enganado, de muitas maneiras, aos miseráveis nativos. (ACOSTA, 2008, p. 167, 173, 182).
No Estudo Preliminar, existente na edição de 1957 do clássico História de Indias, de Frei
Bartolomé de las Casas, encontramos a informação de que, este clérigo havia submetido
à Audiência de 1545 um requerimento por virtude de sua preocupação em remediar a
tirania contra os autóctones. A orientação era que fosse declarado, por parte das
autoridades, o reconhecimento da responsabilidade que tinham a respeito da “[...]
proteção das causas das pessoas miseráveis, como são estas gentes indianas, ao juiz
eclesiástico.” (LAS CASAS, 1957, CLX, tradução nossa)
11
.
A miserabilidade nativa, observável pelos olhos das autoridades hispânicas,
garantia, a essa população, proteção igual à desfrutada pelos menores de idade na
legislação espanhola. Contudo, se na Espanha o estatuto jurídico da menoridade foi
10
[No original] “Es nuestra voluntad encargar á los vireyes, presidentes y audiencias el cuidado de mirar
por ellos y dar las órdenes convenientes para que sean amparados favorecidos y sobrellevados […]”.
(RECOPILACIÓN de las leyes de los reinos de las indias, Tomo II, 1841, p. 217).
11
[No original] “[…] protección de las causas de las miserables personas, como son estas gentes indianas, al
juicio eclesiástico.” (LAS CASAS, 1957, CLX).
aplicado fundamentalmente em função das condições econômicas do menor (carência
dos meios de vida), nas Índias, esse estatuto ganhou um caráter mais social e étnico, pois
os nativos não foram vistos aqui enquanto categoria econômica, e sim como raça, povo e
comunidade. É a partir desse olhar que foi considerada necessária proteção ao andino,
tal como o assegurou enquanto indivíduo em condição de miserabilidade (SARAVIA
SALAZAR, 2012, p. 98-99).
Possivelmente por virtude desses despachos de proteção aos autóctones, Diana
Ceballos chegou à conclusão, a partir de sua investigação aos expedientes do Tribunal de
Cartagena, que os nativos podiam ser enquadrados no crime de heresia, mas nunca no
de bruxaria. (CEBALLOS, 1994, p. 98-99). A eles, também não cabiam penas sanguinárias
como as aplicadas pelo Tribunal do Santo Ofício (CORDERO FERNÁNDEZ, 2010, p. 353-
359). Os autóctones eram considerados neófitos (novos) na e, por mais que houvesse
questionamento a respeito da proteção ao nativo, a população autóctone permaneceu
isenta da jurisdição inquisitorial. Ainda que anos de evangelização tivessem passado,
eles continuaram não sendo julgados como os cristãos velhos e foram amparados pela
legislação hispânica. (GAREIS, 1989, p. 58-59).
No entanto, ainda que tenhamos visto que, na América, os nativos não foram
submetidos às penas do Santo Ofício, consideramos que a mentalidade dos clérigos,
responsáveis pelas visitas de Extirpação de Idolatria, não se diferiu da mentalidade do
séquito responsável pelo Tribunal da Inquisição. Ambos grupos possuíam uma
concepção, a respeito do demoníaco, que encontrava bases tanto no contexto religioso
europeu, quanto no processo histórico que abarcou a prática do cristianismo na Europa.
Da mesma maneira que serviu como instrumento de evangelização europeia, a
mentalidade misógina dos sermões foi transladada para a América e utilizada como
doutrina de conversão religiosa dos nativos. Foi utilizada não apenas pelas primeiras
ordens mendicantes que chegaram no Vice-Reino do Peru (dominicanos, agostinianos e
franciscanos), mas também pelos jesuítas responsáveis pelo processo de conversão e
estabelecimento sistemático das visitas de idolatrias. Os sermões estavam tão presentes
na vida religiosa colonial que, Francisco de Ávila, por exemplo, primeiro juiz visitador das
idolatrias, foi autor de um sermão que resumiu o processo de evangelização
desenvolvido, por ele, na província de Huarochirí no século XVII. Essa obra foi utilizada,
ao longo das Campanhas de Idolatria, como modelo de evangelização a ser seguido
(DUVIOLS, 2003, p. 43-45).
O feminino andino nos processos de idolatria
Acerca dos arquivos existentes no Archivo arzobispal de Lima (AAL), seção
Hechicerías e Idolatrías, a serem analisados neste trabalho, chamamos atenção,
primeiramente, para o processo número III: 16, do ano de 1660, em que encontramos a
acusação contra uma nativa de nome Juana Tanta Mallao, do pueblo de San Lorenzo de
Quinti, província do Huarochirí. Nesse processo, o visitador Juan Sarmiento de Vivero,
esclarece a Juana que ele está a serviço de Deus naquela diligência e complementa sua
assertiva apontando que, caso a acusada tivesse negado ao Senhor e adorado a ídolos,
deveria arrepender-se pela ofensa que produzira a Deus, pois compreende que o
demônio, como miserável que era, poderia tê-la enganado (QUINTI, 1660, n. III: 16, fólio 4;
4v). Notamos que, quando o visitador aponta que não se espantaria que a nativa tivesse
caído no erro de adorar a ídolos e de acreditar em superstições, ele, automaticamente,
acusa o demônio por enganá-la, retirando a culpa individual da acusada pela prática
idolátrica. Essa ideia se soma à encontrada na Historia Natural y Moral de las Indias,
onde José de Acosta atribui ao demônio a responsabilidade pela idolatria nos Andes,
que, através de sua astúcia, conseguia enganar aos miseráveis nativos (ACOSTA, 2008,
p. 167-169). A miserabilidade e a debilidade são utilizadas, nesse sentido, tanto por Acosta
quanto pelo visitador, como elementos fragilizadores da capacidade autóctone de
discernimento. A desconfiança na aptidão andina de distinguir o que era imaginação do
que era realidade, resultava na necessidade de tutelá-los.
Na sequência do processo, o visitador reafirma a dupla função que possuíam as
visitas de idolatria, pois destaca que seu papel era menos o de castigar a idólatra, e mais
o de reconduzi-la na em Cristo. Fato observado quando Sarmiento de Vivero diz, para
a ré, que ele havia ordenado que a levassem até ele, não porque tinha intenção de
castigá-la mas, sim, de remediar a sua alma. (QUINTI, 1660, n. III:16, fólio 4v). Contudo,
ainda que garantido o viés pastoral das visitas de idolatrias, se a acusada pretendesse se
livrar do pecado que havia cometido, deveria confessar sua culpa. Normalmente lhe era
dada a opção entre abjurar das creas andinas ou cumprir pena e/ou castigo pela
ofensa que cometeu contra o Deus cristão (CORDERO FERNÁNDEZ, 2012, p. 362).
Em outro processo, vamos perceber não apenas traços dos autóctones enquanto
seres miseráveis, mas também a relação elaborada, pela autoridade eclesiástica, entre
feminino e propensão aos enganos demoníacos. Tratamos do processo número III: 14,
que diz respeito às práticas de feitiçaria realizadas pela nativa Francisca Maiguay,
natural do pueblo San Pedro de Pilas, doutrina de Omas, corregimento de Yauyos. Antes
da declaração de Francisca, a respeito do crime que teria praticado, nos deparamos com
a exortação feita pelo visitador Juan Sarmiento de Vivero à nativa, através de intérprete.
Nela, Sarmiento de Vivero afirma que o remédio para todas as ofensas que ela tem
cometido contra Deus é a confissão e que ele não se espantava que ela, como mulher
frágil e incapaz, enganada do demônio, tenha caído em semelhantes culpas (OMAS, 1660,
n. III: 14, fólio 3v). Neste sentido, acreditamos ser possível considerar que, além de
ancorados nas especificidades legais que faziam referência à situação nativa na América
(debilidade e miserabilidade), as autoridades religiosas cristãs também observaram as
nativas do Vice-Reino do Peru a partir das categorias que abarcavam o gênero feminino
nos discursos religiosos europeus, ou seja, a partir das ideias de fragilidade, de
incapacidade e de debilidade enquanto naturalmente atreladas à mulher e, com isso, esse
gênero era mais propenso à astúcia demoníaca.
É certo que, na legislação hispânica, a condição de miserabilidade não estava
relacionada ao gênero. Um exemplo que podemos citar, a partir dos juízos de idolatria,
está no processo número III: 19, que envolve o nativo Pedro Villanga, também natural de
San Pedro de Pilas, doutrina de Omas, corregimento de Yauyos. Na ocasião, ao ser
chamado pelo visitador Juan Sarmiento de Vivero para prestar declarações sobre sua
participação em rituais idolátricos, Pedro Villanga afirma que como cristão, temeroso de
Deus, ele estava disposto a confessar os erros que cometeu a partir da influência do
demônio, como frágil, incapaz e miserável que era. (OMAS, 1660, n. III: 19, fólio 1). Esse
exemplo, nos demonstra que a população nativa no Vice-Reino do Peru não estava alheia
à legislação espanhola, inclusive, a manejava com maior ou menor habilidade
12
. A
condição legal de miserável, parece ter sido utilizada, por Pedro Villanga, de maneira
bastante oportuna, de forma que sua fragilidade, frente aos enganos demoníacos,
pesasse na pena que poderia ser imputada pelo juiz visitador ao pronunciar sua
sentença.
Ainda que a legislação hispânica na América não tenha diferenciado o grau de
miserabilidade dos nativos a partir do seu gênero, consideramos que ela foi manejada,
por autoridades eclesiásticas locais, embebidas na mesma mentalidade ocidental de
maior debilidade atrelada ao feminino. Sendo assim, entendemos que os expedientes de
idolatria que envolviam as nativas andinas estavam pautados em uma tradição ocidental
em que a mulher era considerada um ser naturalmente mais propenso à realização de
práticas demoníacas, da mesma maneira que predicavam os sermões.
Analisando os processos número III: 1 e número III: 2, ambos do pueblo de
Pomacocha, doutrina de Caujo, Corregimento de Canta, datados de 1650, encontramos
12
Sobre a adesão dos nativos acerca da dinâmica ocidental vigente na sociedade colonial ver: GRUZINSKI,
2003.
denúncias de feitiçaria contra as nativas Juana Ycha e Inés Carua, respectivamente. Tais
processos estavam a cargo de Antonio de Cáceres, tenente de cura (“vigário substituto”),
que tinha como responsabilidade apresentar uma solução às denúncias de feitiçaria
contra as nativas. Sobre esses expedientes, selecionamos alguns trechos para esta
análise.
Destacamos, primeiramente, o processo número III: 1 que se desdobra, ao longo
de trinta e um fólios (frente e verso), a partir de uma denúncia contra a nativa Juana
Ycha, realizada pelo nativo Phelipe Curichagua e sua esposa Ysabel Chae. Partindo da
descrição oferecida pelos declarantes, Juana é uma viúva de mais de sessenta anos e
bastante conhecida pela comunidade local. Além disso, possui relações de parentesco
com diversas famílias vizinhas, por exemplo, o filho de Phelipe Curichagua e de Ysabel
Chae, chamado Pablo Caruanchu, havia se casado com a sobrinha de Juana (ainda que
sem a autorização da acusada); Violante, filha de Juana, havia se envolvido
amorosamente com o mestiço do pueblo de Guanico, chamado Francisco Ramírez e, em
outra ocasião, com o mayordomo de Pomabamba, Diego de Bernal. No entanto, no dia
nove de março de mil seiscentos e cinquenta, o casal de denunciantes supracitado
acusou Juana Ycha de ser feiticeira pública e de ter pacto com o demônio (YAULI, 1650,
n. III: 1, fólios 1v-3v).
A declaração de Juana Ycha se inicia a partir do lio seis desse expediente, em
que a nativa discorre acerca de seus mestres na arte da feitiçaria e comenta a respeito
dos crimes pelos quais é acusada. Em um trecho de sua confissão, Juana, ao ser
perguntada pelo juiz visitador sobre duas pedras que havia afirmado possuir doadas
por sua mestra Catalina Suyo e as quais mantinha em sua casa e pela existência de
algum demônio, diz que uma destas pedras é de cor vermelha, enquanto a outra de cor
amarela. A respeito do demônio, afirmou que eles (possivelmente em referência a toda
sua comunidade) tem o dito demônio por yaya ou criador (assim traduz, do quechua, o
notário), e que se chamava Apoparato (YAULI, 1650, n. III: 1, fólio 8v). A nativa prossegue
sua declaração dizendo que, não dando de comer a estas pedras e à terra, à noite
Apoparato chegava sob a figura de um índio com seu manto negro e, enquanto ela não o
alimentava, o mesmo não ia embora. A confessante ainda conta que, para aplacar a fome
de Apoparato, ela oferecia farinha de milho branco e negro, coca e cada uma das ditas
duas pedras moídas (YAULI, 1650, n. III: 1, fólio 9v).
O teor do depoimento muda quando, no fólio dezessete, Juana parece oferecer ao juiz
visitador o que ele necessitava para enquadrá-la no estereótipo da demonologia
europeia, isto é, a nativa confessa que, assim como havia feito com seu marido defunto,
também esteve sexualmente envolvida com Apoparato, configurando pacto expresso
entre Juana e o diabo. (YAULI, 1650, n. III: 1, fólio 17v). A partir dessa confissão, os
clérigos da visita mudam sua perspectiva acerca de Juana, pois se em um primeiro
momento acreditaram que os sonhos que ela tinha com seu marido defunto, tal como as
relações que mantinha com ele nesses sonhos (relatos oferecidos pela acusada em fólios
anteriores), eram inofensivos, a partir da confissão do pacto, a busca por mais elementos
sobre a relação entre Juana e o demônio passa a ser o fio condutor de todo restante do
processo (MILLS, 1997, p. 231). Sem saber discernir entre o real e o fantasioso, a
Extirpação precisava atuar em Juana.
Ainda não dispomos de elementos suficientes que nos expliquem por que Juana mudou
seu discurso e transformou os sonhos sexuais com seu marido defunto em incursões
reais de Apoparato à sua casa. No entanto, ainda que carregados de uma mentalidade
europeia demonológica, os trechos destacados nos oferecem pistas sobre as duas
diferentes concepções de mundo envolvidas nesse processo, isto é, as concepções
andina e cristã.
Ancorada nas mesmas diretrizes da Inquisição, a Extirpação de Idolatrias via em
Juana Ycha mulher pobre, velha e viúva o estereótipo padrão da bruxa europeia. Tal
como a orientação peninsular, a evangelização dos nativos no Vice-Reino do Peru
perpassava pela busca de possíveis pactos travados entre o demônio e a população local,
ainda mais com a possibilidade de a América ter servido como palco para as atrocidades
de Satã, antes da chegada do cristianismo (CAÑIZARES-ESGUERRA, 2008, p. 143-147). O
ápice do trabalho do séquito extirpador, nesse processo, possivelmente ocorreu no
momento em que Juana admitiu seu pacto com Apoparato, pois, segundo a mentalidade
ocidental, era ele quem fornecia poderes de destruição e de malignidade à nativa. O
pacto confesso justificava as denúncias feitas por Phelipe Curichagua em sua declaração.
O nativo havia afirmado que Juana fez sangrar, até a morte, o alcalde Baptista Michy, por
virtude deste ter açoitado sua filha Violante; afirmou ainda que a acusada havia tirado a
vida do nativo Santiago por ter levado sua filha a outro pueblo sem sua autorização; além
de ter destruído as ovelhas e mulas do declarante e atentado contra a vida de seu filho
(YAULI, 1650, n. III: 1, fólio 1v-3v). Para o cristianismo, a sorte de aplicar um castigo à
Juana era também a possibilidade de salvar toda uma comunidade do poder destruidor do
Diabo.
No entanto, o que a cosmovisão andina nos diria acerca desses fatos? O que seria o
pacto expresso que Juana admitia haver realizado com Apoparato? Primeiramente,
destacamos as relações familiares existentes entre Juana Ycha e as demais pessoas das
comunidades. Tendo em vista que o mundo andino é um espaço marcado pelo
simbolismo, onde o nativo tem o mito enquanto reflexo da sua vida cerimonial e que a
vida cerimonial é garantidora do princípio da reciprocidade (YÁNEZ, 2002, p. 37),
ressaltamos o matrimônio como uma importante instituição para esta população. Nesta
sociedade, tradicionalmente agrária, o trabalho comunitário é uma forma de ajuda mútua,
onde cada membro do grupo familiar possui sua função e sua obrigação. No vínculo
entre marido e mulher, pais e filhos, cunhados e cunhadas, padrinhos e afilhados, existe
um lugar a ser ocupado por cada pessoa. O elemento garantidor da coesão desses grupos
é, justamente, a manutenção dos laços de parentesco, alcançado através da realização de
matrimônios (YÁNEZ, 2002, p. 43). Também é por meio do matrimônio que a mulher
andina se compromete, não apenas consigo mesma, mas com toda a comunidade,
atuando na garantia da reciprocidade local, através da maternidade e da fertilidade. Essa
reciprocidade é compreendida como um imperativo moral nas relações de intercâmbio
que sustentam a vida humana, supondo um sentido de mútua dependência entre os seres
(DEPAZ TOLEDO, 2015, p. 132). Nesse sentido, as mulheres ocupavam um importante
papel na dinâmica social andina e Juana Ycha, conhecedora dessa dinâmica, estava de
acordo com as atribuições reservadas, ao sexo feminino, na cosmovisão.
Se Apoparato (ou Apo Parato) é um demônio para os clérigos católicos, não
parece ser para Juana. Primeiramente, apresentamos a tradução do termo “apu,
segundo o dicionário de Diego de Holguín, onde este termo está descrito como grande
senhor ou juiz superior, curaca principal, etc. (HOLGUÍN, 1608, p. 52). Até hoje, nos
Andes peruanos é comum se referir aos seres sagrados (ou huacas) como apus, tal como
é denominado Pariacaca (Apu Pariacaca) e Condorcoto (Apu Condorcoto).
Possivelmente, Apoparato era uma huaca da comunidade à qual pertencia Juana, e essa
assertiva pode ser reforçada quando a nativa informa que ele era yaya de seu pueblo.
Segundo Holguín, yaya é pai, ou senhor amo. (HOLGUÍN, 1608, p. 237). Com essa
descrição, ainda que pensemos nela enquanto uma definição ocidentalizada,
consideramos que este termo remete à ideia de tutela e de cuidado, sendo Apoparato
aquele que cuida da comunidade de Pomacocha.
Além disso, Apoparato aparece, na maior parte das vezes, ao longo do processo,
pedindo comida a Juana, chegando até mesmo a se comportar de maneira violenta se não
fosse atendido. Cabe aqui recordarmos o movimento milenarista das huacas hambientas
(huacas famintas) do Taqui Onkoy (MILLONES, 1990), duramente aplacado pelo
evangelizador Cristóbal de Albornóz na zona de Huamanga, tendo Guaman Poma de
Ayala como seu fiscal, na segunda metade do século XVI. Desde a chegada hispânica em
terras peruanas, as huacas estavam famintas, que os pagos a la tierra (elemento
essencial da reciprocidade andina) não se faziam mais tão presentes na vida religiosa
andina e, os que ocorriam, deviam estar devidamente ocultos. Sobre o ocultamento
desses ritos, conta o Manuscrito quechua que “[...] as pessoas celebravam o culto a
Chaupiñamca no mês de junho, próximo de Corpus Christis [...]” (RITOS Y TRADICIONES
DE HUAROCHIRÍ DEL SIGLO XVII, 1987, p. 199, tradução nossa)
13
, ou seja, a partir da
evangelização cristã e da consequente impossibilidade das festividades às divindades
nativas serem celebradas da mesma maneira que antes a população ressignificou seus
cultos, os adaptando aos rituais do cristianismo. Essa foi, possivelmente, a maneira
encontrada de resistirem à extirpação e garantirem a reciprocidade, a cosmovisão e a
complementaridade, ainda que o equilíbrio entre as pachas estivesse correndo risco de
romper-se. Também sobre Chawpiñamca e seu culto, o Manuscrito menciona que,
depois de assentar-se no pueblo de San Pedro de Mama, esta huaca teria se
transformado em uma pedra de cinco braços, para a qual os nativos realizavam festas
rituais. Contudo “[...] quando apareceram os huiracochas
14
se escondeu a pedra de cinco
braços [...] debaixo da terra.” (RITOS Y TRADICIONES DE HUAROCHIRÍ DEL SIGLO
XVII, 1987, p. 195, tradução nossa)
15
. Com a inibição dessas festividades a partir da
chegada cristã, a reciprocidade andina estava ameaçada e as huacas famintas.
Retornando ao processo de Juana Ycha, destacamos que além da acusada afirmar
que, quando não dava de comer às pedras e à terra, Apoparato aparecia à noite lhe
pedindo comida, também nos informa ao longo do processo que, quando pedia a
Apoparato sua ajuda em alguma atividade, antes, era necessário alimen-lo. Por
exemplo, se Juana lhe pedia para curar, adivinhar ou até para auxiliar no nascimento de
uma criança, antes, deveria oferecer comida ao demônio. Normalmente, a nativa oferecia
chicha, coca, sebo de lhama e milho branco e negro moídos, num característico ritual de
reciprocidade. Compreendemos assim que, enquanto huaca, Apoparato sentia fome e, a
partir de oferendas de Juana, ele garantia a realização dos serviços solicitados,
retribuindo a oferta ritual da autóctone.
Ainda assim, em alguns casos, Apoparato se irritava e se apresentava como um
demônio agressivo (YAULI, 1650, n. III: 1, fólio 9-9v). A ira das huacas poderia ser
desencadeada justamente quando o equilíbrio entre os níveis de pacha não era
alcançado. Ossio, em La idea de la Historia en Felipe Guaman Poma de Ayala, destaca
que os nativos diziam que “[...], porque já não se oferecia sacrifício às huacas elas
estavam famintas e molestas e, se os indígenas não voltassem a ado-las, elas matariam
13
[No original] “[,,.] la gente celebraba el culto de Chaupiñamca en el mes de junio, en las cercanías del
Corpus Christi […].” (RITOS Y TRADICIONES DE HUAROCHIRÍ DEL SIGLO XVII, 1987, p. 199).
14
Huiracochas era a nomenclatura comumente utilizada para referir-se aos espanhóis.
15
[No original] “[...] cuando aparecieron los huiracochas, se escondió la piedra de cinco brazos [...] debajo
de la tierra.” (RITOS Y TRADICIONES DE HUAROCHIRÍ DEL SIGLO XVII, 1987, p. 195).
aos negligentes [...]” (OSSIO, 2008, p. 237)
16
. Mario Polia também comenta, a respeito da
fome das huacas, que dentro de uma relação de reciprocidade, o dom, por parte de quem
oferece o sacrifício e a oferenda, supõem um intercâmbio, por parte da huaca,
materializado em saúde, prosperidade, chuvas, etc. (POLIA, 1996, p. 222, nota 27). Se o
mundo andino estava ao revés a partir da chegada hispânica (tal como menciona Poma
de Ayala em Nueva Crónica y Buen Gobierno), era provável que a cosmovisão nativa se
encontrasse em risco.
No mesmo sentido do aqui exposto, destacamos o processo número III: 2, de
uma nativa chamada Inés Carua, viúva, de cerca de sessenta anos e natural de Los Reyes
(Lima). Assim como Juana Ycha, Inés também afirma que possui pacto expresso com um
demônio chamado Apo Quircay ou Capac Quircay. Em sua confissão, a afirma que
estava desperta quando o demônio a teve como mulher, da mesma maneira que fazia
com seu marido já defunto (YAULI, 1650, n. III: 2, fólio 5v). Mais uma vez, a declaração de
uma nativa é permeada pela presença do pacto explícito e, assim como no expediente
sobre Juana, quando Inés confessa o pacto, as perguntas a ela destinadas passam a ter
este como elemento central.
No que diz respeito ao comportamento dos extirpadores frente a estes processos,
não percebemos, na América, uma preocupação em diferenciar feitiçaria de bruxaria,
mas sim a busca pela existência, ou não, da negação de Deus através da adoração a um
ídolo, a uma huaca ou ao próprio demônio. Apesar de contornos de bruxaria, as nativas
nunca foram acusadas como tal, ratificando o já mencionado por Diana Ceballos, a
respeito de sua investigação dos processos do Tribunal de Cartagena:
Se acusou, alguma vez, aos índios de serem bruxos? Até agora, não
encontramos que um índio ou índia seja acusado de ser bruxo, sim herbolario,
herbalista, feiticeiro, de ter acordo - não um pacto - com o Diabo, mas talvez o
termo bruxo não tenha sido usado. Talvez porque a política oficial do reino
proibia processar por heresia, ou resquícios de heresia [...] aos índios, que os
colocavam na categoria de infiéis, a mesma que dos mouros e judeus [...]
(CEBALLOS, 1994, p. 88)
17
.
Através da exposição dos processos da justiça eclesiástica, percebemos que os
elementos da demonologia europeia se fizeram presentes no imaginário social do Vice-
16
[No original] “[…] porque ya no se les hacía sacrificios a las huacas estas estaban hambrientas y
molestas y, si los indígenas no retornaban a adorarlas, ellas matarían a los negligentes […]”. (OSSIO, 2008,
p. 237).
17
[No original] “¿Se acusó a los indios alguna vez de ser brujos? Hasta el momento no hemos encontrado
que a un indio o india se le acuse de ser brujo, de herbolario, yerbatero, hechicero, de tener trato no
pacto con el Diablo, pero tal vez, el término brujo no se empleó. Quizás en razón de que la política oficial
del reino prohibía procesar por herejía o resabios de herejía […] a los indios, ya que entraban en la
categoría de infieles, la misma de los moros y judíos […]” (CEBALLOS, 1994, p. 88).
Reino do Peru no século XVII. Possivelmente, se fossem habitantes da Europa pré-
industrial, Juana Ycha e Inés Carua teriam sido enquadradas como bruxas, heréticas,
negadoras do Deus cristão e sido levadas à fogueira. Contudo, sob o estatuto de
proteção ao nativo, no Vice-Reino do Peru elas foram consideradas idólatras, por serem
neófitas na fé em Cristo.
A mentalidade cristã encontrou dissonância quando confrontada com a
mentalidade nativa. Nos expedientes, da mesma maneira que Apoparato ajudava a Juana
em algumas atividades, Apo Quircay também realizava favores à Inés mediante alimento.
Aos olhos do pensamento demonológico europeu, a Extirpação de Idolatrias no Vice-
Reino do Peru pode ter encontrado mulheres semelhantes às feiticeiras ocidentais. No
entanto, baseados na cosmovisão, acreditamos que elas estavam mais próximas às
curandeiras e adivinhas locais do que às velhas bruxas europeias. Contudo, se ainda na
atualidade estudos científicos procuram dar respostas, a partir da interpretação de
evidências, ao que teria significado as declarações das acusadas, a desinformação (ou
erros de tradução) cometida pelos cristãos, a respeito dessa sociedade, nos parece
comum à sua época.
Conclusão
Possivelmente, não tenha sido de compreensão, da mentalidade eclesiástica
europeia, que os processos decorrentes das visitas de idolatria no Vice-Reino do Peru
estavam carregados de elementos da cosmovisão nativa. Neste artigo, tentamos
demonstrar que, ainda por meio da leitura de fontes oficiais, é possível perceber indícios
de elementos que dizem respeito à cultura local.
Os autóctones do Vice-Reino do Peru, amparados em uma legislação real que os
protegia, estiveram isentos do jugo da justiça inquisitorial. Foram considerados débeis,
miseráveis e neófitos na fé e, com isso, ganharam proteção das autoridades locais.
Experimentaram uma sistemática perseguição à sua religiosidade a partir de 1610, quando
suas práticas rituais foram eclipsadas em nome de uma nova doutrina religiosa, que
impunha um Deus único e verdadeiro. Segundo a mentalidade europeia, a América
deveria passar por uma limpeza espiritual, pois o demônio, quando expulso da Europa,
encontrou, nessa terra, lugar ideal para a manutenção de suas práticas.
Destacamos, especialmente, a situação feminina nessa dinâmica, pois ancorados
nas prerrogativas morais europeias da mulher enquanto ser inferior e mais débil
quando comparado ao homem , o séquito extirpador das visitas, perseguiu as nativas de
maneira a buscar uma possível relação entre elas e o demônio, assim como aqui exposto
nos processos número III: 1 e número III: 2. Pensar nessas mulheres a partir desses
dogmas, significou eclipsar toda a importância que possuíam na cosmovisão andina,
como seres essenciais na manutenção do yanantin, da reciprocidade e dos laços de
parentesco.
O fato de existirem elementos próximos ao pensamento demonológico europeu
nos processos analisados não garante que esse mesmo pensamento foi o compartilhado
pelas acusadas. Quando, Juana Ycha e Inés Carua, afirmaram possuir pacto com o
demônio, tal pacto pode ser compreendido a partir da prática da reciprocidade e da
cosmovisão. Isso porque, assim como o exposto por Viveiros de Castro, a relação entre
grupos sociais, que pensam diferentes ontologias sobre o mesmo assunto, sempre será
composta por equívocos de tradução. Estes são um fato, e devem ser entendidos e
trabalhados como tal, pois quando traduzimos diferentes ontologias estamos sempre
predispostos a cometer tais equívocos. (VIVEIROS DE CASTRO, 2005, p. 152-153).
As mulheres andinas do século XVII, não se pareciam com as bruxas europeias,
tampouco com as feiticeiras, como deve ter imaginado o corpo clerical do Vice-Reino do
Peru. Elas pareciam exatamente com elas mesmas e com suas ancestrais, com as deusas
míticas dos ritos de reciprocidade, com o feminino garantidor das relações de
parentesco. Continuavam operando os rituais mágicos, garantiam a manutenção do
equilíbrio cósmico e se traduziam em resistência da religiosidade andina, ainda que
durante a evangelização nativa do período colonial.
Referências
Fontes
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