LOUREIRO, Maria Rosalina Bulcão
*
RESUMO: O artigo pretende contribuir com os
debates sobre a História Indígena partindo da
análise de fontes alusivas à Capitania do
Maranhão no século XVIII. Munindo-se das atas
de reuniões do Tribunal da Junta das Missões,
Leis, correspondências, relatos de missionários e
testamentos foi possível reconstruir parte do
cotidiano da capitania do Maranhão e
desencarcerar a participação do indígena pautada
apenas em momentos pontuais da historiografia
maranhense. Partindo das possibilidades que as
fontes analisadas oferecem apontamos fatos
ainda pouco debatidos, tais como as estratégias
de liberdade da mulher indígena na sociedade
colonial e a defesa de laços familiares pelos
sujeitos aldeados ou cativos através das
negociações que por diversas vezes limitaram o
campo de ação dos demais agentes coloniais.
PALAVRAS-CHAVE: Capitania do Maranhão;
Mulheres Indígenas; Laços familiares; Aldeados e
cativos.
ABSTRACT: Abstract: The article intends to
contribute to the debates on Indigenous History
based on the analysis of sources alluding to the
Captaincy of Maranhão in the eighteenth century.
Armed with the minutes of meetings of the
Tribunal of the Junta das Missões, laws,
correspondence, missionary reports and wills, it
was possible to reconstruct part of the daily life of
the captaincy of Maranhão and to unseat the
participation of the indigenous people based only
on specific moments of historiography in
Maranhão. Based on the possibilities that the
sources analyzed offer, we point out facts that are
still little debated, such as the strategies of
freedom of indigenous women in colonial society,
as well as the defense of family ties by the villagers
or captives through the negotiations that have
repeatedly limited the field of action of other
colonial agents.
KEYWORDS: Captaincy of Maranhão; Indigenous
Women; Family ties; Villagers and captives.
Recebido em: 15/03/2020
Aprovado em: 16/06/2020
* Graduada em História pela Universidade Federal do Maranhão, São Luís - MA, mestranda do Programa
de Pós-Graduação em “História e Conexões Atlânticas: Culturas e poderes” da Universidade Federal do
Maranhão, São Luís MA. Atualmente exerce o cargo de assistente em administração do Instituto Federal
de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão, São Luís - MA. E-mail: robulou@hotmail.com. Ressalta-se
que este artigo é fruto de conclusões oriundas da monografia A Junta das Missões Convoca: Demandas
Indígenas na Capitania do Maranhão no século XVIII (1738-1755) no qual agradeço a orientação da Prof.ª
Dr.ª Soraia Sales Dornelles e os apontamentos para melhoria da pesquisa da Prof.ª Dr.ª Vânia Maria Losada
Moreira e do Prof. Dr. Alírio Carvalho Cardoso bem como as sugestões apresentadas pelos pareceristas da
Revista Faces da História para o presente artigo.
Introdução
Na cidade de São Luís, em oito de novembro de 1738, foi inaugurado o Livro das
atas de reuniões realizadas pela Junta das Missões. O Tribunal da Junta das Missões foi
um órgão instituído com o objetivo de dinamizar a colonização portuguesa por meio da
ação missionária. Posteriormente, funcionou no Estado do Maranhão e Grão-Pará
1
como
principal órgão deliberativo das formas legais - resgates, descimentos e guerras justas -
de arregimentação de mão de obra indígena (FERREIRA, 2017).
Da análise desta fonte, compreende-se que a questão indígena movimentava as
engrenagens da capitania do Maranhão, pois as demandas ajuizadas na Junta das Missões
permitem compreender que a influência e presença dos indígenas na formação da
sociedade colonial vão muito além dos anos iniciais de contato com os europeus. Na
historiografia maranhense os indígenas foram evidenciados especialmente no contexto
da fundação da cidade de São Luís, sempre como personagens secundários na condição
de aliados ou inimigos dos franceses, portugueses e, posteriormente, holandeses para,
logo depois, ocuparem a posição de invisibilidade.
O empenho em divulgar a presença indígena na Capitania do Maranhão, em pleno
século XVIII, levou ao desenvolvimento da narrativa que buscasse recuperar o cotidiano
destes sujeitos no Maranhão setecentista. No entanto, a fonte da Junta das Missões
mostrou-se insuficiente para reconstruir o campo de ação indígena, pois as informações
contidas no documento são incompletas e por vezes os resultados dos requerimentos,
apelações e petições apresentados nas reuniões do Tribunal são desconhecidos. Porém,
apesar dos desafios esta fonte se mostrou fundamental em constatar a presença de laços
familiares indígenas e a sua estruturação e defesa face aos contextos de liberdade e
cativeiro em que os indígenas estavam inseridos.
Utilizou-se também outros documentos de forma complementar como a coletânea
A Amazônia na Era Pombalina que organizou as correspondências trocadas entre o
Governador e Capitão General do Estado do Grão-Pará e Maranhão, Francisco Xavier
Mendonça Furtado e o Marquês de Pombal e permitiu examinar os conflitos e
dificuldades da implantação de políticas indigenistas que vinham do reino frente aos
interesses locais divergentes. Além disso, o Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão
transcreveu e disponibilizou quarenta e seis testamentos de moradores da cidade de São
Luís no volume Testamentos Maranhenses (1752-1756): história e legados, do qual foi
1
A criação do Estado do Maranhão e Grão-Pará em junho de 1621 representou uma estratégia mais efetiva
da Coroa em assegurar a posse dos vastos territórios do norte da América portuguesa. Dividido em
capitanias para melhor administração, o Maranhão e Grão-Pará passou por várias modificações até a
reestruturação organizada pela administração pombalina em 1751, com a transferência da capital de São
Luís para Belém e modificação do nome para Estado do Grão-Pará e Maranhão (FERREIRA, 2017, p. 27).
possível delinear a presença de indígenas submetidos à escravidão e seus descendentes
que passaram a construir novas identidades a partir da inserção nas categorias sociais
como "mamelucos", "cafuzos" e "mestiços" em um processo de reconstrução e
reorganização das redes familiares no espaço colonial. Além destas proposições, o texto
também evidencia o protagonismo das mulheres indígenas compreendendo as
estratégias utilizadas diante do processo da colonização e que contribuem na
desconstrução da imagem das indígenas unicamente como parceiras sexuais do
colonizador.
Desta forma, o cruzamento das fontes foi realizado com o objetivo de fornecer os
maiores elementos possíveis sobre o contexto da Capitania do Maranhão no século XVIII
na ótica dos indígenas, pois a sociedade que foi construída neste período ainda é pouco
conhecida.
Assim, o presente artigo intitulado Criando Laços e Reinventando Famílias:
Adaptações e Estratégias Indígenas na Capitania Do Maranhão no Século XVIII busca, a
partir das demandas julgadas na Junta das Missões e de outras fontes utilizadas,
demonstrar o protagonismo indígena e suas estratégias pela liberdade e defesa dos laços
familiares. Além disso, através dos diversos pedidos de liberdade que chegavam ao
Tribunal da Junta das Missões por ingenas que afirmavam estarem em cativeiro injusto,
buscou-se evidenciar o caráter distinto que estes sujeitos e seus descendentes
apresentavam em relação aos demais grupos sociais da colônia. A análise dos
testamentos também pretende demonstrar como os nativos e seus descendentes eram
vistos sob o olhar do “outro”, especialmente na questão da categorização social que se
fazia diante a uma sociedade cada vez mais diversificada.
Porém, a proposta apresentada não é simplesmente “narrar” os fatos tal qual
aparecem nas fontes, mas buscar entender a leitura de mundo, as estratégias e
negociações dos indígenas nos mais variados contextos, especialmente daqueles que
se encontravam inseridos na sociedade colonial e que por vezes acabaram limitando e
alterando o campo de ação das políticas portuguesas voltadas à questão indígena.
Desta forma, abordar a história dos povos indígenas é sempre uma tarefa
carregada de desafios. No entanto, é preciso evidenciar os indígenas como parte da
história e não apenas como sujeitos passivos ou resistentes destinados ao
desaparecimento. As trajetórias dos indígenas raramente aparecem nos documentos dos
setecentos, pois a percepção é sempre do outro. Contudo, são estes documentos que
servem de ponto de partida para nos aproximarmos destes sujeitos e descortinar suas
trajetórias, buscando desconstruir visões generalizantes e simplistas, de maneira a
repensar a história nacional e regional que foi construída sobre muitos silêncios.
O Indígena na Capitania do Maranhão: para além da narrativa do desaparecimento
O contato entre indígenas e europeus foi resumido, pela historiografia que se
construiu a partir do século XIX, em uma história da extinção. A narrativa inicial,
arquitetada pelo encontro entre nativos e europeus foi marcada pela completa
destruição dos primeiros, como se estes já estivessem fadados ao desaparecimento
(ALMEIDA, 2017; MONTEIRO, 1994; MOREIRA, 2019; OLIVEIRA, 2015).
A invisibilidade dos indígenas na história ainda possui força nos meios escolares e
mesmo na historiografia profissional que tendem a liquidar rapidamente as populações
nativas, dando destaque apenas nos anos iniciais da colonização no qual aparecem
pontualmente em alguns episódios, por exemplo, como valentes auxiliares dos luso
brasileiros na guerra contra os holandeses ou como vítimas dos excessos dos
bandeirantes (MONTEIRO, 1999, p. 237).
Inicialmente, a construção historiográfica que considerou o desaparecimento dos
povos ingenas como um fato natural após o contato como o europeu foi explicada pela
presença de vários elementos, tais como: baixa imunidade frente às doenças e epidemias
que chegavam junto com os colonizadores, guerras, escravizações, chacinas, crises de
fome, perda da capacidade reprodutiva; enfim, tudo contribuiu para considerar os
indígenas fadados à extinção, conceito que a demografia histórica cunhou de “catástrofe
demográfica”, ao ilustrar o fenômeno brutal do extermínio indígena (MOREIRA, 2019, p.
25).
O progressivo apagamento dos indígenas da História nacional foi explicado e
justificado pelo conceito da aculturação, originada da combinação de duas mortes: a
física, já conhecida pela redução da população nativa ainda no primeiro século da
colonização e a cultural (ALMEIDA, 2017; MOREIRA, 2019). Em termos gerais, o conceito
de aculturação é analisado no contexto dos contatos entre culturas a partir da ideia que
uma cultura considerada mais forte exerce maior poder sobre a mais fraca que acabaria
por desaparecer com o tempo (POLASTRINI, 2011, p. 10).
A imagem da dupla morte legada aos indígenas aparece, a título de exemplo, na
obra Casa-grande & senzala, publicada em 1933, por Gilberto Freyre. Ainda que a obra
contenha reflexões importantes ao distinguir os colonizadores como intrusos ou
invasores, ao tecer considerações sobre o encontro entre portugueses e ameríndios na
formação do período colonial, não conseguiu escapar do legado da extinção dos povos
nativos.
No capítulo O indígena na formação da família Brasileira, o autor inferiu que a
consequência do contato de uma raça mais adiantada, de cultura exuberante de
maturidade com outra mais atrasada e adolescente foi a degradação dos povos nativos. A
deterioração da cultura ameríndia seria resultado da incapacidade técnica, política e de
adaptação do indígena frente ao novo regime econômico, moral e social construído nos
trópicos (FREYRE, 1992, p. 89).
No entanto, conforme apontou Russell-Wood (2005, p. 36), houve uma atribuição
de qualidades super-humanas ao povo português na obra de Freyre. Os efeitos desta
construção narrativa provocaram visões equivocadas sobre o impacto do contato e da
expansão europeia, resumido apenas em dizimação e destruição dos indígenas.
De acordo com John Monteiro (2007, p. 28-29), o conceito de aculturação veio da
análise que tratou as sociedades nativas como culturas locais isoladas, as quais só
sobreviveriam ao impacto das conquistas pela migração, reconstruindo a cultura
ameríndia em lugares distantes da presença europeia e preservando, por sua vez, a
pureza étnica e cultural que havia sido contaminada pelo contato. No entanto, o autor
entende que as pesquisas desconsideraram o aspecto dinâmico da cultura, que em seu
contínuo movimento, provocou adaptações e mudanças que, por sua vez, geraram novas
formações sociais e identidades na sociedade colonial em formação.
O conceito da aculturação entrou em desuso no século XXI a partir de estudos
que renovaram as avaliações sobre a colonização e o contato entre nativos e europeus.
Dentre tais estudos, encontra-se o conceito da zona de contato, utilizado por Mary
Louise Pratt para se referir ao espaço do encontro colonial formado por sujeitos
anteriormente separados por elementos geográficos e históricos, os quais passaram a
estabelecer, reciprocamente, relações contínuas, geralmente associadas às situações de
coerção e desigualdade (POLASTRINI, 2011, p.11).
Uma decorrência da zona de contato é o aspecto da transculturação, relacionada
a partir da relação habitual entre duas ou mais culturas. No entanto, diferentemente da
aculturação, não assimilação de uma pela outra, mas sim perdas, seleções,
descobrimentos e adaptações de todos os envolvidos, gerando novas estruturas e
práticas sociais dos indivíduos envolvidos nesta relação (ALMEIDA, 2017; MONTEIRO,
2007; MOREIRA, 2019; POLASTRINI, 2011).
Pode-se apreender este processo a partir de uma carta do governador do Estado
do Grão-Pará e Maranhão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, endereçada ao seu
irmão, o Marquês de Pombal. Datada em 02 de fevereiro de 1752, o teor da
correspondência evidenciava a inconformidade em relação ao governo espiritual dos
índios, cuja competência estava a cargo dos jesuítas. De acordo com a missiva, a
conversão era realizada de modo tão superficial que os indígenas continuavam
exercitando a maior parte dos seus ritos, pois de acordo com o Governador, a ação
missionária nos aldeamentos se dava da seguinte maneira:
Para V. Exª poder compreender bem este absurdo, que na verdade se faz
incrível, é preciso saber que a palavra Tupana na tal gíria é Deus; as duas Açu e
Mirim é o mesmo que grande e pequeno, e são os ditos índios educados para
explicarem Deus dizendo Tupana Açu Deus grande; e os santos, suas imagens e
verônicas Tupana Mirim = Deus pequeno; e isto que eles dizem que é um modo
de explicar, por não haver na tal língua a palavra Santo, sempre dado por
elemento de religião a uma gente silvestre, lhes forma uma ideia de muitos
deuses, o que é totalmente defendido e oposto à verdadeira que nos ensina a
Igreja Católica. [...]barbarizando a palavra santo, assim como m barbarizado
infinitas palavras portuguesas que se acham inseridas nela, [...] e de que poderia
fazer um catálogo se fosse necessário. (MENDONÇA, 2005, p. 113).
Esta parte da correspondência nos mostra outro fenômeno compreendido
juntamente aos conceitos de zonas de contato e transculturação: a tradução.
Diferentemente da construção antropológica e histórica acerca das narrativas dos
missionários do século XVI, a tradução aponta que não houve um processo unilateral de
assimilação cultural e linguística dos indígenas em relação à religião católica. Partindo-se
deste entendimento, Cristina Pompa (2003) considerou que o fenômeno da tradução não
se restringiu apenas ao aspecto linguístico, mas representou uma articulação entre os
universos simbólicos do europeu e do indígena, ou seja, houve a necessidade de tornar
os elementos (sagrada escritura x mitos e rituais nativos) inteligíveis para ambos os lados
a partir de uma linguagem negociada que fizesse sentido para todos os envolvidos.
Desta forma, a autora conclui que os textos missionários, com os devidos
cuidados, devem ser analisados como portadores de traços de uma interação prolongada
entre missionários e indígenas, sendo limitante compreendê-los apenas como detentores
de informações da cultura ocidental que os produziu pois, a simbologia religiosa da
Europa medieval e renascentista passou a ser reelaborada pelas culturas nativas, no
evento histórico da evangelização, através das suas próprias representações, ou seja, a
dinâmica interna dos sistemas culturais indígenas tomaram e transformaram "para si" o
que apresentava como "outro" (POMPA, 2003, p. 25).
De acordo com John Monteiro (2007), o aumento na bibliografia etnohistórica das
Américas cooperou para a revisão historiográfica de que o impacto do contato não se
resumiu apenas em dizimação das populações nativas, mas produziu novos tipos de
sociedades marcadas por novas identidades étnicas em um processo contínuo de
inovação cultural.
As fontes analisadas, das quais inserem-se as atas de reuniões do Tribunal da
Junta das Missões na cidade de São Luís e os Testamentos lavrados na mesma cidade,
permitem um novo diálogo, pois longe da questão do desaparecimento, percebe-se que
os indígenas criaram identidades que permitiram novos espaços de ação e identificação
no mundo colonial, constituindo um grupo social diferenciado dos demais agentes
coloniais (ALMEIDA, 2003; CARVALHO JUNIOR, 2017; MONTEIRO, 2007; RESENDE,
2003).
Ao observar as atas da reunião da Junta das Missões na cidade de São Luís,
deparamo-nos com pedidos de liberdades de indígenas que afirmavam estarem em uma
situação ilegal de cativeiro. O destaque nestes casos é que a grande maioria dos pedidos
não se restringiu apenas ao apelante, mas aos irmãos, filhos e outros parentes revelando
uma rede de sociabilidade gerada pelas mudanças do período colonial.
Desta forma, tais contribuições propõem a reformulação do próprio conceito de
resistência indígena, afastando-se da imagem de uma tradição milenar congelada no
tempo ou pensada apenas em termos de revoltas, mas inserida em um complexo sistema
de negociações, estratégias, adaptações, reformulações de identidades, construção de
novas formações sociais e culturais, que buscou redefinir a maneira indígena de pensar
(e de fazer) a história do contato (ALMEIDA, 2017; CARVALHO JÚNIOR, 2017;
MONTEIRO, 1999; OLIVEIRA, 2015; POMPA, 2003).
Famílias Indígenas Aldeadas
Em Reunião convocada pela Junta das Missões na cidade de São Luís, em 06 de
agosto de 1747, foi analisada uma petição dos índios Aranhiz solicitando a entrega de
suas mulheres e filhos que se achavam na Aldeia dos Araioses. A petição foi atendida,
mas determinava que as mulheres deveriam manifestar interesse em acompanhar seus
maridos (APEM. Termo de Junta das Missões [06/08/1747]. Livro de Registro [...], fl. 16-
16v.).
Um ano depois da petição acima, foi analisado outro requerimento, desta vez do
índio Mauricio Rayol, que se denominava “capitão da aldeia que havia no Marudá”,
solicitando o recolhimento dos indígenas que estavam espalhados pelas “Aldeias do
Pinaré, Maracu e Tapuitapera”. Para comprovar a legitimidade do que dizia, trazia um
Livro, provavelmente o que era destinado à matrícula de todos os índios, entre 13 e 50
anos, capazes de servir como mão de obra no sistema de repartição, conforme definido
no § 12 do Regimento das Missões
2
. Ao final da reunião, a Junta decidiu pela emissão de
ordens para reunirem os referidos índios na aldeia de origem. No entanto, a resolução
não se aplicou aos ingenas que haviam contraído casamento com “pessoas de diversas
nações”, devendo manter-se nestes lugares (APEM. Termo de Junta das Missões
[16/09/1748]. Livro de Registro [...], fl. 17.).
Os casos levados à apreciação do Tribunal da Junta das Missões demonstram que
a continuidade dos Aldeamentos não foi fruto apenas de interesses da Coroa e Colonos
nem dependeu unicamente da ação dos missionários para a sua funcionalidade, os quais,
de acordo com o § 1 do Regimento das Missões, detinham o governo espiritual, político e
temporal das aldeias sobre a sua administração, mas também proporcionou funções e
significados próprios dos indígenas que traziam expectativas ao concordarem em
adentrar nestes espaços (ALMEIDA, 2003).
Maria Regina Celestino de Almeida ao tratar dos índios aldeados no Rio de Janeiro
colonial, inferiu que:
As aldeias indígenas na colônia podem ser vistas, então, como espaço de
interação entre grupos sociais étnicos diversos nos quais os índios aprendiam
novas práticas culturais e políticas que reelaboravam a partir de seus próprios
valores e tradições e de acordo com as necessidades que se lhes apresentavam.
Afinal ser índio da aldeia x ou y era a forma de identificação no mundo colonial
que os vários grupos étnicos passaram a assumir quando aldeados [...] e essa
identificação definia seu lugar social [...] além de lhes impor uma série de
obrigações, lhes garantia também direitos dos quais faziam questão de usufruir.
(ALMEIDA, 2003, p. 303).
Fazer parte dos aldeamentos conferia aos nativos uma nova posição social: índios
aldeados. Considerando o projeto missionário em curso, tornar os índios aldeados era
transformá-los em índios cristãos, ou seja, vassalos do rei, com deveres e direitos
estabelecidos em diversos dispositivos legais.
Desta maneira, deixar-se converter pela católica adquiriu um significado
político e estratégico do ponto de vista indígena que utilizou o próprio sistema repressor
para adquirir mais autonomia, uma vez que a condição de vassalo não era sinônima de
igualdade, pois na sociedade hierarquizada do Antigo Regime, cada súdito apresentava
obrigações e direitos, inclusive escravos, dentro os quais o de pedir e obter mercê e
justiça do rei (ALMEIDA, 2003, p. 115).
2
O Regimento das Missões foi uma das mais importantes leis indigenistas do período colonial e de acordo
com alguns estudos, ela representou a ntese colonial de interesses contraditórios: religiosos
(administração temporal), moradores (mão de obra acessível) e índios (relativa proteção). (MATTOS, 2012,
p. 01)
Desta perspectiva, os aldeamentos eram espaços para os quais convergiam
interesses e expectativas distintas dos agentes inseridos neste contexto. As expectativas
dos missionários, aliada ao aspecto religioso, perpassavam pelo policiamento dos
costumes das populações nativas, interferindo na vida familiar, social e sexual destes
indivíduos. Tal interferência se deu na imposição do casamento enquanto sagrado
sacramento da igreja católica. Todavia, o importante não é estabelecer apenas de que
maneira essa obrigação foi sendo construída na legislação, mas procurar ressaltar de que
forma os índios tomaram para si esta imposição e responderam de volta, alterando por
várias vezes o campo de ação dos demais agentes coloniais.
Não é sem interesse que, dentre as medidas impostas aos indígenas no contexto
dos descimentos e aldeamentos, a aceitação do sacramento do casamento cristão era
uma delas. Contudo, em termos práticos, a mudança de status social abria outras opções
de atuação aos indígenas que puderam modificar a situação em que estavam inseridos,
seja pelo aspecto legal, seja exigindo decisões que extrapolavam a esfera jurídica,
conforme análise dos dois casos apresentados na Junta das Missões.
A exigência do casamento cristão na formação da sociedade colonial brasileira
remonta aos preceitos tomados no Concílio de Trento, organizado para conter o avanço
da Reforma de Martinho Lutero, que passaram a vigorar em Portugal a partir do Alvará
de 12 de setembro de 1564, obrigando todos os súditos a seguirem os princípios
impostos. Transplantando estas medidas de Portugal aos domínios ultramarinos, coube
aos missionários fazerem cumprir o rígido controle sobre o matrimônio para a
preservação e defesa da família. Para isto, seria necessária a defesa de determinados
princípios como a monogamia e a indissolubilidade do casamento (MOREIRA, 2018;
RENDEIRO NETO, 2017).
Para isto, a exigência do casamento cristão no molde tridentino visou liquidar os
costumes dos nativos em relação à poligamia, provocando modificações nas sociedades
indígenas, as quais não foram extintas, mas sim recriadas em sua cultura e identidade
(MOREIRA, 2018; 2019).
Os missionários, ao aportarem nas terras do além-mar para o trabalho da
propagação da fé católica, destacaram em seus relatos os aspectos relacionados à família
e a moral sexual indígena. Como exemplo, têm-se os relatos dos capuchinhos Claude
d’Abbeville e Yves d’Evreux sobre a sociedade tupinambá no início do século XVII (1611-
1615) no Maranhão.
Estas fontes missionárias foram consideradas dados etnográficos fidedignos das
sociedades nativas que já adentravam no processo da extinção e desaparecimento. Desta
forma, conforme preceitua Castelnau-L’Estoile (2013), Monteiro (2003) e Pompa (2003),
as análises superficiais direcionaram a historiografia para dois caminhos perigosos: a
produção de uma narrativa linear do projeto de dominação espiritual, considerando os
indígenas como seres passivos e destinados ao processo de aculturação ou aceitação das
fontes como relatos de uma cultura indígena autêntica e original registrada pelos
missionários.
Entretanto, contrariamente ao que se propagou da leitura das fontes, a poligamia
não era praticada de modo absoluto pelos indígenas. Ao analisar a sociedade Tupinambá,
o capuchinho Claude d’Abbeville (1874) observou que embora a poligamia fosse
consentida, a maioria dos índios possuía apenas uma mulher, sendo este comportamento
destinado, em sua grande maioria, aos principais ou bravos guerreiros.
No entanto, o destaque ao comportamento poligâmico dos indígenas foi
necessário para justificar o exercício da ação missionária e, consequentemente, a
manutenção do poder português nos domínios ultramarinos. Assim, a intencionalidade
do discurso sobre a poligamia era evocada em sua dimensão social e econômica pelos
capuchinhos, conforme o relato de Yves d’Evreux o qual destacou a ganância dos nativos
em possuírem muitas mulheres (CASTELNAU- L’ESTOILE, 2013, p. 77).
O abandono da poligamia promoveu transformações na sociedade ameríndia
como, por exemplo, o aspecto bélico, pois segundo Moreira (2018, p. 40), a finalidade do
matrimônio na sociedade tupinambá esteve relacionada à criação e fortalecimento das
alianças materiais e militares, assim como a parentela estava associado à capacidade dos
chefes e líderes indígenas terem muitas mulheres e vários filhos para conseguirem
muitos genros através do matrimônio. Com isto, houve a desagregação dos principais
elos da sociedade Tupinambá: guerra, vingança, antropofagia e casamento.
Na esteira da poligamia construiu-se a imagem generalista e estereotipada da
mulher indígena, reservando para esta somente um papel possível: a de parceira sexual
do colonizador. Esta construção levou ao que Ronald Raminelli (1997) chamou de Eva
Tupinambá, ou seja, a representação bíblica da mulher como herdeira de Eva, fraca e
propensa às tentações, foi repassada para as indígenas que passaram a ser a fonte do
pecado e dos descaminhos dos homens da colônia.
Os relatos missionários assinalaram que mulheres indígenas eram imprudentes e
dificilmente puras quando chegavam aos quinze anos, cometendo posteriormente toda
sorte de abusos (D’VREUX, 1874, p. 80). Não foi sem razão que sobre o elemento
feminino recaiu uma estranheza, que com certa intencionalidade, fomentou o controle
sobre o corpo feminino na colônia.
O capuchinho Yves D’Vreux, que permaneceu por dois anos entre os Tupinambá
do Maranhão, estabeleceu em sua obra uma classe de idades para homens e mulheres, do
nascimento à morte. As diferenças entre ambas o evidentes: os homens
“acompanhavam os pais”, “entregavam-se ao trabalho” e ao tornarem-se anciãos tinham
uma “vida honrada”, “cercada de respeito e admiração”. Enquanto isso, as mulheres “não
eram prudentes”, “eram muito mal aconselhadas pelo autor de todas as desgraças” e
quando atingiam maior vigor da idade declinavam consideravelmente, sendo
consideradas “porcas” e “feias” (D’VREUX, 1874, p. 74-83).
A herança herdada por esta desvalorização do feminino encontra ressonância na
tradição europeia de considerar o desejo carnal e o erotismo como práticas pervertidas e
demoníacas das herdeiras de Eva, estabelecendo uma rígida separação entre mulher
virtuosa e mundana (JULIO, 2015). Entretanto, fica cada vez mais claro na historiografia
que a imagem do europeu saltando em terra e escorregando em índia nua não
corresponderam à complexidade dos papéis exercidos por estas mulheres (FREYRE,
1992).
A mulher indígena reaparece em outros espaços da sociedade colonial, povoando
o ambiente doméstico, conduzindo os aldeamentos nas ausências dos índios, sendo
mães, estabelecendo negociação quanto a questão do sexo, enfim, diversos olhares ainda
pouco explorados. Ainda que tenham passado pela violência física e simbólica, também
conseguiram se reinventar e recriar novos papéis na sociedade colonial.
Desta forma, a revisão de historiadores e antropólogos tem levado ao
reconhecimento de que aquilo que a moral cristã cunhou de luxúria ou libertinagem era,
da perspectiva indígena, hospitalidade e formação de rede de alianças militares e
materiais através de um processo muito simples e direto: consistia em dar ao europeu
uma moça por esposa. Assim que ele a assumia, iniciavam-se os laços de parentela
(MOREIRA, 2019, p. 237).
O processo de interferência na vida colonial através dos casamentos também
levou os missionários à decisão de tornar as uniões indígenas antes da conversão em
naturais e cristãs. Para isto, deveria ser observado se prevaleceria algum tipo de
matrimônio regido pelas leis naturais, ou seja, baseados no desejo de ter uma vida
comum e filhos. De acordo com Moreira (2019, p. 226-227), na Companhia de Jesus
acabou prevalecendo o entendimento de que os indígenas não possuíam casamento
natural. Tal juízo provocou aplicações práticas na evangelização dos inacianos, pois
estes puderam casar os índios de modo pido e fácil, sem preocupar-se com as uniões
anteriores.
Podemos acompanhar este entendimento na correspondência entre o governador
do Estado do Grão-Pará e Maranhão e o Marquês de Pombal. Nesta parte,
especificamente, Francisco Xavier de Mendonça Furtado criticava o sistema de
repartição dos índios aldeados no qual estavam excluídos os padres da Companhia, pois,
para compensá-los, foram constituídas duas aldeias exclusivas, uma no Maranhão e
outra no Pará. Com relação aos casamentos realizados entre os indígenas destas duas
aldeias destacava que:
Finalmente, porque não tinham liberdade em coisa alguma, até os casamentos
são a arbítrio dos padres, porque devendo casar todos, o está na sua mão o
chegarem à pessoa, mas de ser com aquela que lhes nomear o padre
missionário, ainda que, aliás, seja contra sua vontade; e estejam ajustados com
outra mulher, ou elas com outro marido. (MENDONÇA, 2005, p. 116).
Retomando o pedido realizado pelos índios Aranhiz em Reunião da Junta das
Missões para que suas mulheres e filhos fossem restituídos da aldeia de Araioses
encontramos outros elementos que nos permitem visualizar os espaços de negociação
que a condição do casamento gerava na política dos aldeamentos.
De acordo com o § 4 do Regimento das Missões, os aldeamentos eram espaços
destinados exclusivamente para atender os índios e suas famílias. Tal determinação
visava evitar a sua retirada dos aldeamentos, delegando aos religiosos responsáveis
pelas missões a decisão de estabelecer a saída dos indígenas. O principal motivo da
proibição de brancos ou mamelucos nos aldeamentos, de acordo com o § 6 do Regimento
das Missões seria evitar a persuasão de nativos ao casamento com escravos ou escravas
visando modificar a situação jurídica por imposição do matrimônio e desta maneira,
retirá-los dos aldeamentos (MATTOS, 2012, p. 117-118).
A análise desta fonte nos leva a alguns apontamentos: o primeiro diz respeito ao
tratamento diferenciado dos indígenas considerados aliados, os quais não se resumiam
apenas a questão da mão de obra, pois ao defenderem a manutenção de suas famílias,
limitaram as ações dos europeus que tiveram que negociar e por vezes, abrir mão de
garantias, para manter o apoio dos nativos. Neste caso, acatar o pedido dos índios
Aranhiz revelou ser mais importante estrategicamente do que evitar a perda numérica de
mulheres e crianças no aldeamento em que se encontravam.
A ata de reunião da Junta das Missões não nos esclarece o motivo dos índios
estarem separados de sua família, o que nos leva a estabelecer suposições. A primeira
pode estar relacionada ao sistema de repartição, que englobava indígenas destinados a
servir de mão de obra aos colonos, dos 13 aos 50 anos. O tempo dos indígenas fora dos
aldeamentos, de acordo com o Regimento das Missões, variou inicialmente em quatro
meses para as aldeias do Maranhão e seis meses para as do Pará. Contudo, na Junta
reunida em 1687, foi definido o prazo de um ano para que os índios pudessem ser
restituídos aos seus aldeamentos (MELLO, 2009, p. 86).
As mulheres e crianças, com algumas exceções, estavam fora do sistema de
repartição, permanecendo nos aldeamentos sem a presença dos maridos por todo o
tempo em que estes ficavam servindo como mão de obra para a Coroa e colonos. Assim,
o pedido dos índios Aranhiz aponta para a compreensão da defesa dos laços familiares,
seja evitando a separação prolongada de suas mulheres e filhos, seja por desconfiança
que mantinham contra os missionários e colonos, evitando a quebra dos laços de família
que poderia ocorrer em uma separação prolongada motivada pelo sistema de repartição.
Quanto ao pedido do índio Maurício Rayol, capitão da aldeia de Marudá,
solicitando que fossem baixadas ordens para que os indígenas retornassem à aldeia que
haviam fugido, a decisão da Junta demonstrou que a condição dos índios aldeados
casados proporcionava algumas garantias. Apontamos entre elas a imobilidade, ou seja, o
casamento promovia o sedentarismo dos nativos e limitava, mais uma vez, o campo de
ação dos agentes coloniais nos espaços dos aldeamentos, especialmente dos
missionários, pois estes não poderiam ser retirados ou postos em novos lugares sem
que a condição de casado fosse levada em consideração.
Ao analisar o casamento entre índios aldeados, Almir Diniz Carvalho nior (2017)
destacou o fenômeno da migração contínua que se fazia presente em todo o Estado
entre índios cristãos livre e escravos. Por esta prática, os índios migravam de suas
aldeias de origem para outras que apresentavam maiores possibilidades de atender aos
seus interesses ou livrá-los das diretrizes gidas que caracterizavam os aldeamentos
liderados pelos missionários. O autor considera que esta prática era utilizada
especialmente pelas mulheres indígenas para se verem livres do cativeiro, pois uma vez
casadas, mesmo com “índios estrangeiros”, ou seja, de outras etnias, deveriam seguir
seus maridos. Além destas razões, o casamento também serviu como um meio para que
estes sujeitos abandonassem as aldeias missionárias e se aproximassem do espaço
urbano colonial tornando-o uma confluência de mundos que ao mesmo tempo que
entravam em choque, eram reconstruídos e reinventados.
Desta forma, aqueles que contraíam casamento com “pessoas de outra nação”
não poderiam ser deslocados para sua aldeia de origem, mas passavam a fazer parte do
aldeamento que tinham efetivado o casamento, recriando os laços de família e de
comunidade, sem a ameaça do remanejamento.
Além disto, a fonte nos esclarece que as fugas dos indígenas faziam parte do
cotidiano dos aldeamentos. O próprio sistema de repartição, no qual os índios eram
divididos para trabalhos com os colonos e coroa aumentavam as chances de fugas. Por
isto, os missionários buscavam estabelecer um equilíbrio e certo grau de satisfação dos
indígenas, de maneira que estes pudessem manter-se nestes espaços. Não é sem razão
que os missionários incentivavam ou forçavam os casamentos entre os aldeados com o
claro propósito de evitar as fugas e consequentemente o esvaziamento dos aldeamentos.
Apontamos também que a nova política oficial da coroa portuguesa em relação a
vida familiar dos índios aldeados modificou-se com o advento da Lei de 04 de abril de
1755. A partir desta norma houve o estímulo de casamentos mistos entre brancos e
nativos com uma série de incentivos econômicos, políticos e de valorização social aos
que contraíssem casamento com indígenas. Esta Lei foi o início de uma nova fase da
política indigenista adotada pela Coroa que culminou na implementação do Diretório dos
Índios (1757) no Estado do Grão-Pará e Maranhão, cuja prioridade era inserir os índios na
civilização ocidental até a sua total assimilação com a finalidade de garantir a efetiva
ocupação do território colonial
3
(SOUZA JÚNIOR, 2013, p. 174).
Desta forma, o incentivo aos casamentos mistos se fez presente, apontando uma
nova fase de colonização na região, conforme indica o texto do Diretório:
[...] 88 Entre os meios, mais proporcionados para se conseguir tão virtuoso, útil,
e santo fim, nenhum é mais eficaz, que procurar por via de casamentos esta
importantíssima união. [...] recomendo aos Diretores, que apliquem um
incessante cuidado em facilitar, e promover pela sua parte os matrimônios entre
os Brancos, e os Índios, para que por meio deste sagrado vínculo se acabe de
extinguir totalmente aquela odiosíssima distinção, que as nações mais polidas
do mundo abominaram sempre, como inimigo comum do seu verdadeiro, e
fundamental estabelecimento. (SILVA, 1830, p.507).
No entanto, contrariamente à visão do índio assimilado, a análise das fontes indica
que a aceitação do casamento pelos nativos está longe de ser apenas uma mera questão
de anuência à católica e aos valores culturais europeus, mas perpassa por questões
que estão no cerne do processo de negociação estabelecida nos aldeamentos que
repercutiram no cotidiano da colônia, entre os quais o sedentarismo, monogamia e
trabalho, aparentemente desconexos, mas que estavam interligados entre si (MOREIRA,
2019).
A exigência do casamento nos aldeamentos e suas características de
indissolubilidade e monogamia desagregaram os principais elos da sociedade nativa. No
entanto, os índios, por sua vez, promoveram um processo de adaptação, reinventando
laços de família na nova realidade social e exigindo, dos missionários e demais agentes,
um constante processo de negociação. Contudo, os laços de família não foram
3
Estudos recentes têm combatido a versão clássica de que os casamentos mistos proporcionaram total
assimilação cultural e social dos indígenas, devendo ser analisado com cautela o impacto da miscigenação
como fator determinante na absorção dos indígenas no mundo colonial, pois os grupos étnicos e suas
fronteiras não desaparecem necessariamente pela maior quantidade de mistura biológica ou trocas
culturais (MOREIRA, 2019, p. 216).
reconstruídos apenas entre índios aldeados, chegando também àqueles que se inseriam
na condição de cativos.
Famílias Indígenas Escravas
Em reunião da Junta das Missões na cidade de São Luís, realizada no dia 16 de
setembro de 1748, o índio Caetano solicitava a liberdade da sua mulher, a índia Maria da
“aldeia de Maracanã” que se achava na posse de Domingos de Lemos, garantindo que ela
era “forra de sua natureza”. Neste requerimento o índio asseverava que a mulher havia
chegado ao domínio de Domingos de Lemos por herança do seu pai, Sebastião de Lemos,
a partir de uma troca por outra índia com um morador da Vila de Tapuitapera. A decisão
da Junta, em que se achava presente Domingos de Lemos, foi recompensá-lo
financeiramente deixando a índia Maria em liberdade (APEM. Termo de Junta das
Missões [16/09/1748]. Livro de Registro [...], fl. 17v.).
Em 06 de maio de 1752, foi apresentado um requerimento da índia Tereza e seus
filhos da “nação Guanaré” que afirmavam estar em cativeiro ilegal por Francisco Serejo,
da Vila de Tapuitapera. A decisão da Junta em relação ao caso foi determinar a retirada
dos requerentes da casa de Francisco Serejo para de outra pessoa que pudesse “tomar
conta dela e de seus filhos”. Além disso, a decisão obrigava o denunciado a comparecer
na próxima reunião para que apresentasse os títulos de cativeiro dos requerentes
(APEM. Termo de Junta das Missões [06/05/1752]. Livro de Registro [...], fl. 28.).
Contudo, a execução da decisão esbarrou na lentidão da justiça. Em 20 de maio
do mesmo ano, foi lido no Tribunal da Junta outro requerimento da índia Tereza
solicitando a execução da decisão que havia determinado a sua retirada da casa de
Francisco Serejo. Neste mesmo dia, o próprio Francisco Serejo, compelido pela Junta a
apresentar os títulos de cativeiro, solicitou que a índia e seus filhos se conservassem sob
seu domínio, mesmo não apresentando os títulos exigidos. A posição da Junta, nos dois
requerimentos, foi remetê-los ao Juiz das liberdades para que as partes pudessem agir
conforme seus interesses
4
(APEM. Termo de Junta das Missões [20/05/1752]. Livro de
Registro [...], fl. 28v.).
No dia 17 de junho de 1752, a índia Tereza insistiu mais uma vez em outro
requerimento pela execução da decisão tomada em 06 de maio. Novamente a Junta
decidiu por remeter o pedido ao juízo competente, ficando o caso sem solução conhecida
4
O juízo das liberdades funcionava como um foro de primeira instância por onde corriam as causas das
liberdades dos índios, examinadas e julgadas pelo ouvidor denominado de “juiz das liberdades”. (MELLO,
2005, p. 338).
por não ser mais citado nas reuniões posteriores (APEM. Termo de Junta das Missões
[17/06/1752]. Livro de Registro [...], fl. 31-31v.).
Na Junta do dia 20 de maio de 1752, foi apresentado um requerimento de liberdade
do índio Anacleto e seus irmãos Manuel, Maria e Bárbara o qual afirmavam serem filhos
da índia Silvana, oriunda do sertão do Pará, da nação Manoa contra Antônio Pinheiro, da
Vila de Tapuitapera, por este não possuir os títulos de cativeiro. No mesmo dia a índia
Perpétua, que afirmava ser filha da índia Domingas, oriunda do sertão do Pará, da nação
Manoa e seus filhos Xavier, Frutoso e Desidério requeriam a liberdade em face de
Antônio da Costa que os estaria possuindo como escravos sem os títulos de cativeiro. A
decisão da Junta em ambos os casos foi obrigar os possuidores a apresentarem os títulos
de cativeiro na próxima reunião, que se daria no dia 03 de junho. Todavia, nas reuniões
posteriores da Junta das Missões, os casos não foram retomados ficando sem solução
conhecida (APEM. Termo de Junta das Missões [20/05/1752]. Livro de Registro [...], fl.
29.).
Os episódios apresentados nas Reuniões das Juntas das Missões se contrapõem a
ideia da ausência dos laços de parentesco em razão da escravidão. Além disso,
demonstram um fato pouco debatido na historiografia maranhense: a presença de uma
unidade familiar indígena no Maranhão em relação aos indivíduos que se encontravam
em situação de cativeiro. A importância da constatação da presença indígena integrada
ao cotidiano familiar da Capitania do Maranhão em pleno século XVIII possui
importantes desdobramentos quanto a reformulação de uma historiografia que destacou
a participação indígena apenas nos anos iniciais da colonização, especialmente como
mão de obra que logo viria a ser substituída pela inaptidão ao trabalho da lavoura,
tornando-os menos produtivos do que os escravos vindos da África
5
.
Os estudos sobre a temática das famílias escravas revisitaram as análises
clássicas sobre o tema, como as conclusões de Caio Prado Júnior lançadas na década de
quarenta, para quem a instabilidade familiar, o desregramento e a promiscuidade
associados a escravidão seriam características marcantes de toda a sociedade colonial,
incluindo as famílias de elites. No entanto, os estudos que se desenvolveram,
principalmente a partir da década de oitenta, apontaram na direção contrária ao que
havia sido construído, revelando a existência de organizações familiares escravas
estáveis e complexas (FARIA, 2001; MATTOS, 2015; SLENES, 1998).
5
O destaque aos indígenas nos anos iniciais da colonização, para logo depois serem silenciados, tem suas
origens em uma narrativa histórica que buscava conferir suporte a identidade nacional. Para Vanrhagem,
que publicou, de 1854 a 1857, a obra História Geral do Brasil, o africano havia provado melhor resistência
ao extenuante trabalho da lavoura de açúcar do que o indígena (MATTOS, 2015). Sobre isto, ver
(SCHWARTZ, 1988).
Porém, a abordagem renovada da História Social da escravidão desenvolveu-se
marcadamente sob a organização familiar escrava africana, especialmente pelos avanços
da pesquisa histórica da África pré-colonial que rapidamente foi incorporada pela
historiografia sobre o Brasil, construindo novos sentidos para o período colonial
(MATTOS, 2015, p. 83).
Deste modo, os debates historiográficos recentes passaram a discutir quanto da
cultura africana estaria presente no cotidiano de homens e mulheres da África tornado
escravos na América. Esta nova inversão contribuiu para o questionamento da
interpretação que considerou, por décadas, a aculturação e ocidentalização destes
indivíduos, cuja herança africana teria sobrevivido apenas em alguns resquícios de
costumes, como comida, música e expressões (FARIA, 2001; FARIA, 2007;
LEWKOWICKZ, 1989; MATTOSO, 1982; MATTOS; RIOS, 2005).
No tocante aos estudos sobre organização familiar indígena em indivíduos
submetidos a cativeiro, estes ainda carecem de maior desenvolvimento. Dentre os
trabalhos que analisaram esta temática, destaca-se a tese de doutorado apresentada em
2003, na Universidade de Campinas, sob o título Gentios Brasílicos. Índios coloniais em
Minas Gerais Setecentista de autoria de Maria Leônia Chaves de Resende que abrangeu
a trajetória dos indígenas e seus descendentes nas Vilas e Lugarejos de Minas Gerais no
século XVIII, apontando os arranjos familiares entre estes sujeitos, seja com o
casamento aceito pela Igreja ou concubinato, seja entre indivíduos que partilhavam ou
não da mesma situação jurídica.
O distanciamento apressado entre a organização familiar que se reconstruía na
Colônia e sua herança indígena remete à herança historiográfica do século XIX que ao
lançar o olhar sobre as fontes do período colonial, buscou construir uma identidade
nacional afastada das origens indígenas e africanas e próxima à europeia. Deste modo, a
narrativa que considerou o primitivismo dos sistemas econômicos indígenas, a
fragilidade de sua política e o aspecto bizarro dos seus costumes, destacado
principalmente pelo ritual antropofágico, teriam sido mais do que suficientes para
comprovar a pouca importância dos indígenas para a História do Brasil (OLIVEIRA,
2015).
No entanto, os novos olhares sobre estas fontes ensejam novas interpretações
que perpassam a ideia de dizimação das sociedades nativas, estendendo sua análise para
a capacidade adaptativa dos indígenas na reconstrução das organizações familiares no
período colonial. Assim, retornando aos episódios relatados nas reuniões das Juntas das
Missões, nas quais as organizações familiares formadas por mãe e filhos, irmãos, marido
e mulher buscavam auxílio do próprio aparelho repressor para manter a unidade familiar,
fornecem maiores elementos para a revisão da historiografia que considerou os
indígenas como exteriores e radicalmente opostos a sociedade colonial, fortalecendo a
imagem do índio isolado e puro (MONTEIRO, 1999, p. 241).
Através das fontes documentais é possível identificar e interpretar os processos
que marcaram as experiências indígenas, repensando como os sujeitos nativos, expulsos
de suas terras e escravizados em guerras justas e resgates ou postos em aldeamentos
passaram a viver na Capitania do Maranhão e como se posicionaram em relação a nova
ordem que estava sendo construída.
Nos casos relatados na Junta das Missões, os indígenas buscavam uma
justificativa para assegurar a própria liberdade e a dos seus familiares, especialmente
pela reivindicação de uma herança indígena, especificamente do lado materno,
estabelecendo maiores espaços para contestar o cativeiro ilegal em que se encontravam,
além de garantir a manutenção da rede familiar a partir das petições de liberdade que
englobavam os familiares apresentados perante o tribunal da Junta.
Por isto, não é sem razão, que a identificação de uma herança indígena se fez tão
marcante nos pedidos de liberdade registrados nas atas de reunião da Junta das Missões,
pois a necessidade de ser reconhecido como indígena ou descendente era pressuposto
para uma possível liberdade. Além disso, os requerentes ainda tinham por obstáculos a
lentidão para execução das leis e os numerosos recursos que se faziam presentes. No
caso da índia Tereza e seus filhos, cuja decisão de ser retirada da casa em que se achava
em cativeiro ilegal, não foi efetivamente cumprida, tendo sido delegado para outra
instância, no caso específico, o juiz das liberdades.
No entanto, contrariamente ao caso da índia Tereza, algumas decisões favoráveis
aos indígenas se faziam rapidamente, sem a necessidade de ser revista em outra reunião
da Junta, como no caso do requerimento do índio Caetano pela liberdade da mulher, cujo
deferimento foi concedido sem demora, a partir do acordo entre as partes, no qual
sujeitava-se recompensar o antigo possuidor da indígena pela perda acarretada com a
sua liberdade.
Em outro momento, seja no pedido de liberdade do índio Anacleto e seus irmãos
ou da índia Perpétua e seus filhos, verifica-se a defesa de uma descendência indígena do
lado materno que se apresentava livre do cativeiro. Tal condição era essencial para o
pleito da liberdade, pois o princípio que vigorava no Brasil era o partus sequitur ventrem,
ou seja, a condição da prole derivava da situação jurídica da mãe. Assim, após a Lei de
liberdade de 1755, a única forma legal de reduzir um índio a condição escrava era ser
filho de mãe escrava (MOREIRA, 2018, p. 46).
Desta maneira, em razão da diversidade de decisões relacionadas aos pedidos de
liberdade dos nativos que alegavam estar em cativeiro ilegal, principalmente pela
ausência dos títulos de cativeiro, compreende-se que a garantia de liberdade não
dependia apenas da letra da Lei, mas fundamentava-se em outros elementos, como a
livre interpretação dos componentes do Tribunal da Junta das Missões que possuíam
variados interesses, configurando em um espaço de negociações em que coexistiam
interesses diversos
6
.
O desfecho do pedido de liberdade do índio Caetano pela sua mulher foi
encerrado através de um rápido acordo de restituição financeira. No caso da índia
Tereza e seus filhos, a decisão da Junta foi retirá-la da casa de Francisco Serejo,
juntamente com seus filhos, para outra casa, embora tudo leve a crer que a decisão não
foi cumprida. Quanto a índia Perpétua e seus filhos contra Antônio da Costa, a decisão
da Junta foi apenas o de obrigar o denunciado a apresentar os títulos de cativeiro na
próxima reunião do tribunal.
Assim, a diversificação das decisões pode ser justificada pela composição plural
do Tribunal da Junta das Missões que se assentava nos principais campos de força da
governabilidade metropolitana do Estado do Grão-Pará e Maranhão. Neste sentido, o
foro não dispunha de um conjunto de normas que regulamentasse e especificasse a
função de cada um de seus membros, resultando em uma confusão quanto a atribuição
bem como a prerrogativa do próprio Tribunal, o que pode ser identificado nos
numerosos e diversos recursos e decisões que se faziam nas reuniões da Junta das
Missões (FERREIRA, 2017, p. 91-93).
Ampliando o olhar sobre a família escrava indígena, os testamentos também são
fontes essenciais para compreensão da organização das redes familiares presentes no
cotidiano da Capitania do Maranhão no século XVIII. Em 1751, João Teófilo de Barros
declarava em seu testamento possuir em sua fazenda diversos escravos “pretos”,
“mamelucos”, “mulatos”, “do gentio da terra” e “mestiços”, comprados dos moradores do
Maranhão e Pará (TJMA. Testamentos Maranhenses (1751-1756) [...], 2015, p.183-191.).
Porém, o que se destaca neste testamento é a presença de uma organização familiar
indígena em indivíduos submetidos ao cativeiro e, ao contrário dos casos apresentados
6
No mundo Lusitano, as ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas de 1446, 1521 e 1603 não fizeram
referência a famílias de escravos. A proteção legal destas famílias passou a existir no Brasil em 1869.
(RUSSELL-WOOD, 2005, p. 250-251).
na Junta das Missões, cuja característica era a representação da família matrifocal,
caracterizava-se por estruturas mais complexas
7
.
Assim, João Teófilo de Barros, em testamento, concedeu liberdade à filha de uma
escrava falecida. No entanto, afirmava que se a recém alforriada casasse com “pessoa
livre”, receberia uma “negra do gentio da terra” por nome Izabel, que era casada com um
“cafuzo forro” de nome Inácio, juntamente com sua filha. Além disso, o mesmo declarava
a alforria de uma “mameluca de idade” chamada Severina. No entanto, a condição da
alforria seria de que esta não se casasse com nenhum escravo da sua fazenda nem de
fazenda alguma. João Teófilo de Barros ainda concedeu alforria de “dois mamelucos”,
filhos de suas escravas, porém, estes deveriam permanecer na fazenda por “saberem
escrever” (TJMA. Testamentos Maranhenses (1751-1756) [...], 2015, p.183-191.).
O testamento de João Morais Lobo, de 1742, enumerava em sua fazenda o escravo
Salvador e sua mulher Eugênia, juntamente com seus dois filhos, Ignácio e Mariana, a
qual era casada com Silvestre, um “gentio da terra”. em 1748, o testamento de Paulina
da Silva revelava possuir uma mameluca Roza com três filhos e, como última vontade, a
escrava poderia escolher a pessoa a quem serviria, juntamente com seus filhos (TJMA.
Testamentos Maranhenses (1751-1756) [...], 2015, p. 39-41).
Os testamentos revelam a identificação dos escravizados por categorias sociais:
“mulato”, “cafuzo”, “mameluco”, “preto”, “gentio da terra”, “mestiço”, “negra da terra”,
etc., demonstrando que não havia uma homogeneidade, mesmo entre os escravizados.
Além disto, indicam a formação da família escrava marcada por uma diversidade étnica,
confirmada pelas palavras “mulher de”, “marido de”, “filho de”, “casado com”,
desmitificando, mais uma vez, a ausência de organização familiar em indivíduos
submetidos a escravidão.
Considerações finais
A potencialidade das fontes apresentadas possibilitou construir uma narrativa do
indígena na Capitania do Maranhão do século XVIII a partir dos processos
desagregadores e destrutivos pelos quais passaram, mas destacando a sua capacidade
adaptativa e transformadora em uma sociedade colonial que estava se constituindo.
7
A família matrifocal se apresenta como uma organização familiar constituída pela mãe e seus filhos
naturais. Tal composição se fazia contrariamente as regras matrimoniais ditadas pela igreja através de
relações consensuais que ocorriam sem a obrigatoriedade do casamento ou eram passageiras. Os estudos
também apontaram que a falta de informação do pai nas fontes não significava necessariamente
desconhecimento da paternidade. De acordo com FERREIRA (2018), o Tribunal da Junta das Missões se
destacou pela ação das mães indígenas que atuaram na administração da sua prole garantindo-lhe a
sobrevivência e, principalmente tornando-se mães da sua liberdade.
Desta forma, a análise dos documentos assinalou a formação, coexistência e manutenção
de diversos modelos de organização familiar em indivíduos que se encontravam na
posição de aldeados ou escravizados.
O objetivo em trazer as fontes testamentárias, ainda que de forma breve, foi
estabelecer um novo horizonte sobre a participação dos indígenas e seus descendentes
na formação da sociedade colonial que se formou na Capitania do Maranhão no século
XVIII, os quais ainda são silenciados nos estudos sobre famílias escravas. Pontuamos
alguns elementos de análise que os documentos podem suscitar tais como a relação
entre laços familiares e concessão de alforrias e a possibilidade de negociação implícita
entre cativos e senhores na manutenção das famílias escravas (RUSSELL-WOOD,
2005).
As fontes utilizadas também possibilitaram compreender a inserção dos
“mestiços” na sociedade colonial a partir da sua leitura de mundo e construção de
espaços pautados pela rearticulação de identidades. Desta maneira, consideramos
necessária a inclusão dos indígenas nas discussões das categorias sociais geradas no
período colonial, pois um quadro comum na construção historiográfica, da qual a
mestiçagem sempre ocupou um lugar considerável, foi o distanciamento apressado entre
o mestiço e suas origens indígenas (MONTEIRO, 1999, p. 251).
Os documentos também permitiram destacar o papel e as estratégias que foram
utilizadas pelas mulheres indígenas para além do papel sexual construído na
historiografia e ancorado pela leitura superficial dos relatos missionários. Desta forma,
foi construída uma narrativa de destaque sobre sua participação na proteção e defesa
dos laços familiares através dos pedidos de liberdade instituídos no Tribunal da Junta das
Missões além das estratégias utilizadas para libertar-se do cativeiro, indicando que estas
mulheres também conseguiram se readaptar e reinventar-se na sociedade colonial.
Assim, foi possível propor uma narrativa sobre o protagonismo indígena na
Capitania do Maranhão do século XVIII partindo da reconstrução de identidades e
organizações familiares dos nativos e seus descendentes através das estratégias e
negociações. As possibilidades que as fontes oferecerem demonstram que é possível
avançar na compreensão dos povos indígenas, descortinando suas trajetórias e
desconstruindo visões estereotipadas e simplistas que ainda hoje recaem sobre essas
populações.
Referências
Fontes
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