SOUSA, Marina
*
RESUMO: A partir do enquadre temporal que
marca a construção da BR-210, também
conhecida como Perimetral Norte, na porção sul
do território Yanomami no período da década de
1970, busca-se compreender de que modo esta
rodovia esteve relacionada com deslocamentos
forçados e intenso processo de adoecimento dos
moradores da região do vale do rio Ajarani, limite
leste da Terra Indígena Yanomami, no estado de
Roraima. A abertura de picadas, processo de
retirada da mata para feitura de uma estrada,
acompanhou a chegada de madeireiros,
garimpeiros e fazendeiros. Esta tríplice de
exploradores da terra adentrou o território
yanomami, na época ainda não oficialmente
demarcado, sem que houvesse controle dos
governos locais, ou das autoridades responsáveis.
Assim, o objetivo deste artigo é investigar o
processo de expansão de fronteiras na Amazônia,
algumas das consequências para essas pessoas e
as transformações sócio-históricas desde a
chegada de agentes invasores. Os esforços
criativos e políticos de uso do espaço são o pano
de fundo. Para isso, vale-se do material de laudos
antropológicos e relatórios do período da
construção da Perimetral Norte. Neste sentido,
pretende-se contribuir com o entendimento do
processo de colonização na região do vale do rio
Ajarani.
PALAVRAS-CHAVE: Terra Indígena Yanomami;
regimes ameríndios de territorialidade;
colonização do vale do rio Ajarani.
ABSTRACT: Bases on the time frame that marks
the constructions the construction of BR-210
highway, also known as Perimetral Norte , in the
southern tip of the Yanomami territory in the
1970s, we seek to understand how this highway
was related to forced displacements and an
intense process illness of residents of the Ajarani
river valley region, eastern limit of the Yanomami
Indigenous Land, in the state of Roraima. The
opening of glades, the process of clearing the
forest to build a road, accompanied the arrival of
loggers, goldminers and farmers. This triplet of
exploiters of the land entered the yanomami
territory, at the time not yet officially demarcated,
without the control of local governments or
responsible authorities. Thus, the objective of this
article is to investigate the process of expanding
borders in the Amazon, some of the consequences
for these people and the socio-historical
transformations since the arrival of invading
agents. Creative and political efforts to use space
are the backdrop. For this, it uses the
anthropological material and reports from the
construction period of Perimetral Norte. Based on
the abovesaid, the goal of the study is to
contribute to the understanding of the colonization
process in the Ajarani river valley region.
KEYWORDS: Yanomami Indigenous Land;
Amerindian regimes of territoriality; colonization
of the Ajarani river valley.
Recebido em: 16/03/2020
Aprovado em: 17/06/2020
* Mestra em Antropologia Social pela Unicamp, Campinas-SP, doutoranda no Programa de Pós-Graduação
em Antropologia Social da UNICAMP/Campinas, Campinas, SP. Bolsista capes. E-mail:
marina.antrorr@gmail.com
Introdução
Este artigo tem como objetivo discutir modalidades de gestão tutelar sobre o
território Yanomami durante o período de expansão de fronteiras na Amazônia nos
governos militares, alguns de seus efeitos posteriores para os yanomami diante este
processo de colonização
1
. A proposta é interpretar a história do vale do rio Ajarani
levando em consideração os impactos deste processo. As práticas de gestão tutelar, bem
como a invasão dos territórios yanomami podem ser descritas como uma política
epidemiológica de eliminação dos sujeitos Yanomami como define Alcida Ramos (1993).
As políticas de colonização no vale do rio Ajarani ocorreram por meio de frentes de
expansão de fronteiras. As práticas indigenistas eram caracterizadas pela realização de
expedições de “pacificação” e “frentes de atração”
2
. Este projeto de colonização foi
responsável por: ocupações ilegais de terra na Amazônia, choque epidemiológico na
população yanomami, desestruturação social, mortes, desmatamento das vias de
comunicação na mata e poluição de rios.
Diante disso, faremos uma breve caracterização do povo indígena Yanomami.
Orientada por estudos antropológicos, esta descrição pretende tornar legível os eventos
da história do contato, do mesmo modo que localizar os Yawaripë enquanto subgrupo
deste complexo povo territorialmente contíguo que conforma o conjunto cultural e
linguístico conhecido como Yanomami. A caracterização do subgrupo Yawaripë na
região do vale do rio Ajarani evidencia sua organização social, padrão de uso do espaço e
deslocamento territorial.
Descritos enquanto caçadores-coletores e agricultores de coivara, os Yanomami
ocupam uma área de floresta tropical de cerca de 230 mil quilômetros quadrados
estendidos por porções dos estados de Roraima e do Amazonas e de territórios situados
na Venezuela. Com uma população de aproximadamente 33 mil pessoas, se organizam
em torno de 640 comunidades ao longo destes dois países (ALBERT, 2015). Os yanomami
estão distribuídos num território no qual a organização em grupos socialmente
relevantes não se restringe a diferenças linguísticas, estendendo-se a outros aspectos,
como veremos a seguir.
1
A respeito das modalidades de gestão tutelar sobre territórios e pessoas, João Pacheco de Oliveira (2016)
identifica uma diversidade de políticas impostas por um exercício regulatório do Estado. Nesse sentido, a
gestão autoritária e tutelar articulada a partir de programas governamentais em relação aos povos
indígenas corresponde a ações sem consulta prévia, perpetuando decisões de caráter tutelar.
2
João Pacheco de Oliveira (2016) elabora um histórico do uso da categoria “pacificação”, identificando
uma continuidade histórica desde a ação colonial até o período contemporâneo do Brasil. A subordinação
da região norte diante de interesses econômicos externos e alheios à sua configuração socioespacial
materializou-se por meio da estratégia política oficial de expansão de fronteiras. “Pacificação”, assim
sendo, vem caracterizar um conjunto de ações de controle e gestão sobre territórios e populações
indígenas, mobilizadas por diferentes modalidades do monopólio do uso da violência.
A identificação de novos sítios para a caça, a coleta, a abertura de novas roças, a
manutenção de antigos assentamentos, a morte de xamãs e as acusações de feitiçaria,
acompanham os sentidos e lógicas de deslocamentos e agrupamentos socialmente
relevantes. Assim, é preciso pontuar a impossibilidade da generalização dos Yanomami
enquanto grupo socialmente uniforme. Seus subgrupos e diversos grupos locais
3
se
organizam socialmente de maneiras heterogêneas.
A família linguística yanomami é constituída por seis línguas que congregam ao
menos dezesseis dialetos: Sanöma, aroamë, Yanomamɨ, Yanomae, Ninam, Yãnoma
4
. As
variedades linguísticas já foram objeto de estudo em diversas publicações, destacando-se
as contribuições de Migliazza (1972), Ramirez (1992, 1994) e Mattéi-Müller (2007). A
hipótese de que a língua falada na porção sudeste - anteriormente classificada como
variação do Ninam - fosse classificada enquanto representante de outra variedade
linguística foi elaborada primeiramente por Ramirez (1994). O autor encontrou
especificidades linguísticas que a diferenciava das demais línguas, como o uso dos
pronomes pessoais livres, ou seja, aqueles que podem ser suprimidos uma vez que
carregam no núcleo verbal a pessoa gramatical, e vocabulários específicos.
Nestas pesquisas, diferentes critérios linguísticos e metodologias são utilizadas
para o agrupamento ou diferenciação das variedades, de modo que a publicação do
Projeto de Documentação de Línguas Indígenas contribui com o mapeamento de nuances
internas. A variedade aroamë, falada na Serra do Pacu e do vale do Ajarani, apresenta
dois dialetos que correspondem a estas regiões. O dialeto Opiki é falado na Serra do
Pacu, região da Missão Catrimani, e o dialeto falado na região do Ajarani e Apiaú é o
Yawaripë. Porém, Ferreira et al. (2011) apresentam insuficiência de dados para que
generalizações mais elaboradas sejam feitas a respeito das variedades faladas na Serra
do Pacu e Ajarani. A partir disto, acatamos a sugestão do estudo que classifica a variação
falada nessas regiões enquanto a língua aroamë.
O etnônimo “Yanomami” é uma palavra elaborada por antropólogos desde a
palavra yanõmami que significa “seres humanos” na expressão yanõmami thëpë
5
. Os
habitantes da floresta, yanomae thëpë urihipë, assim se definem e constroem uma noção
3
No caso dos Yawaripë, Verdum (1995) aponta que o grupo local é constituído por duas famílias nucleares
articuladas por laços de afinidade. Enquanto um jovem solteiro, na época de sua pesquisa, era relacionado
por laço sanguíneo a uma das famílias nucleares, um outro jovem estava em serviço pré-matrimonial.
Grupos locais são ligados por intercasamentos e relações cerimoniais.
4
O estudo mais recente acerca da diversidade da família linguística yanomami “A línguas Yanomami no
Brasil: diversidade e vitalidade (FERREIRA et al., 2019) apresenta dados atualizados acerca da vitalidade
das variedades faladas no território brasileiro, como também as ameaças que a que são confrontadas.
5
Para mais informações, consultar a página de referências gerais a respeito do povo yanomami:
https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Yanomami#Nome. Acesso em: 09 jun. 2020.
de humanidade específica, como também de quem são os inimigos e os de fora. Nos
discursos de Davi Kopenawa, xamã e líder yanomami, ao reivindicar os direitos
territoriais de seu povo, parte de um campo semântico inteligível aos napëpë- brancos
ou inimigos. As derivações semânticas do termo urihi, que pode ser traduzido como
terra-floresta, abrangem elementos histórico-políticos, podendo se referir ao local de
residência ou nascimento de uma pessoa (ipa urihi), área de uso ou origem de uma
comunidade (kami yamakɨ urihipë). Estes locais se diferenciam do território napëpë. Para
pensar a organização e a representação do espaço social yanomami, é preciso considerar
estes elementos no horizonte (ALBERT, 2002).
Adentrando no universo do subgrupo Yawaripë, é preciso situá-los
geograficamente. O território destes indígenas está situado na região extremo sudeste
dos limites da Terra Indígena Yanomami (TIY). Uma localidade que compreende os rios
Ajarani, Repartimento e Apiaú (ver anexo). Atualmente, a população dessa região é
estimada em 212 pessoas, como mostra o censo do Distrito de Saúde Indígena
Yanomami/Ye’kwana, distribuídos nos seguintes grupos locais: Serrinha, Cachoeirinha,
Hadianani, Omama e Maloca do Dino.
Ferreira et al. (2019) indicam que existem diferentes graus de inteligibilidade entre
os falantes Yawaripë e as demais línguas da família linguística yanomami, apontando
diferenças fonológicas que dificultam a compreensão. Porém, muitas comunidades
aroamë encontram-se em zonas de bilinguismo.
A historicidade do etnônimo Yawarinão remete a uma autodenominação entre
os habitantes dessa região, ainda que atualmente o uso do termo seja comum entre os
moradores, como aponta Verdum (1995). A tradução do termo Yawari no dicionário da
língua Yanomamɨ elaborado por Mattéi-Müller (2007) indica uma palavra atribuída a
espíritos aquáticos entre os Yanomami que moram na porção ocidental da TIY. Ferreira
et al. (2019) questionam a continuidade do uso do termo Yawari quando da nomeação
dos moradores do vale do Ajarani devido sua carga colonial, como também aponta
processos de identificação e diferenciação destas pessoas que sugerem o uso do
etnônimo aroamë
6
.
Como afirma Verdum (1995), o encontro dos Yawaripë com os não-ingenas pode
ser entendido como colonial, uma vez que o contexto em que se davam estas relações
era marcado por situações de exploração. A Amazônia, neste sentido, era vista como um
6
A partícula é de caráter propositivo e indica plural, grupo ou coletivo. Consequentemente, as palavras
grafas com essa partícula indicarão plural. No texto, trataremos o termo yawaripë enquanto variação
dialetal da língua aroamë, como também em respeito ao uso histórico do termo no material aqui
apresentado, não adentrado na discussão de seu uso contemporâneo.
grande vazio demográfico a ser ocupado, dando lugar a episódios de invasão, exploração,
doenças e mortes dos Yanomami (RAMOS, 1997).
João Pacheco de Oliveira (1993,1999), neste cenário de produções acerca de
territorialidades ameríndias, descreve a noção de territorialização enquanto um processo
de atribuição de uma base territorial fixa a um determinado grupo social e as
consequentes transformações que este movimento acarreta. A territorialização, neste
sentido, estaria implicada em fenômenos políticos, reelaborações culturais e relação com
o passado, unidades socioculturais e seus derivados étnicos e novas formas de
engajamento social diante os recursos ambientais. À vista disso, é central considerar que
os eventos de demarcação da TIY não encerram processos territoriais que tomam forma
em práticas de mobilidade para além dos marcos estatais.
Os elementos que traçam a história do contato com a sociedade nacional e que
serão aqui sumarizados atentam para três eventos principais: a construção da rodovia
Perimetral Norte
7
; a invasão garimpeira no território yanomami; e a demarcação da Terra
Indígena Yanomami seguida de um processo tardio de desintrusão
8
de fazendeiros. Estes
eventos ajudam a explicar a dinâmica do uso do espaço e representação territorial que
nos interessa na investigação. Assim, como pode ser compreendido o esforço criativo de
manutenção e atualização das lógicas territoriais dos Yawaripë frente às zonas de
invasão colonial?
Atos de intervenção do Estado e os Yanomami
Os atos de intervenção do Estado nacional no âmbito das políticas de colonização
na Amazônia ocorreram com o planejamento de algumas frentes de expansão de
fronteiras. Criação de projetos de assentamento, ligação rodoviária e redes de
comunicação, bem como programas agrominerais, foram elaborados a partir do Plano
Nacional de Integração. As ações dos governos militares, na década de 1970, tinham
como plano geopolítico de colonização ocupar o que entendiam como grande vazio
7
Planejada no regime militar, a Rodovia Federal em formato transversal, pretendia atravessar a Amazônia
Brasileira desde o Amapá, alcançando a fronteira do estado do Amazonas. Fazia parte da agenda dos
planos de integração nacional e, por meio de ações não planejadas e de violência, causou a morte de
dezenas de Yawaripë. No estado de Roraima possui 411 quilômetros abertos.
8
Desintrusão é um mecanismo legal que tem como efeito de sua determinação a retirada de pessoas não
indígenas de domínios territoriais indígenas que foram demarcados. No caso da TIY esse processo se
prolongou por décadas, sendo concluído apenas no ano de 2014.
demográfico amazônico. A ocupação e exploração econômica desta porção do território,
garantiria, a uma só vez, riquezas nacionais e soberania sobre o território brasileiro
9
.
A região do vale do Ajarani foi cenário de uma colonização política de terra
implementada na época dos governos ditatoriais que deu lugar para construção da
Perimetral Norte, o evento afetou diretamente os Yawari. Conflitos entre indígenas,
colonos
10
e fazendeiros decorrentes deste processo também estavam presentes.
O cenário de construção da BR-210, a Perimetral Norte, acompanhou a criação de
projetos de assentamento no ainda Território do Rio Branco
11
. Ao longo da BR-174,
rodovia que liga Boa Vista-RR a Manaus-AM, surgiram povoados rurais e pequenos
centros urbanos. Santos (2013) observa que os deslocamentos populacionais oriundos da
região sul e, sobretudo, da região nordeste, conformaram a mão-de-obra para trabalhar e
ocupar estes projetos de assentamento. A construção da Perimetral Norte foi
responsável por cortar as aldeias yanomami e levar doenças. Nas palavras de Davi
Kopenawa:
Quando eu era criança, os brancos subiram os rios e começaram a fazer morrer
nossos antigos em grande número. Depois voltaram, de avião e de helicóptero.
Então suas fumaças de epidemia, mais uma vez, fizeram morrer muitos de nós.
Agora, eles tinham resolvido abrir uma de suas estradas até o meio de nossa
floresta, e suas doenças iriam com certeza devorar os que tinham sobrevivido.
(KOPENAWA; ALBERT, 2015, p.305)
A política de integração nacional da Amazônia foi instituída por meio de abertura
de estradas. Neste contexto, a Perimetral Norte levou consigo pesadas máquinas e
homens despreparados e não informados sobre as gicas territoriais e sociais dos
indígenas presentes na região de sua implementação. A construção da estrada também
facilitou a entrada de garimpeiros e a manutenção de assentamentos nas adjacências e
dentro dos limites territoriais ocupados pelos Yawaripë. Esses indígenas sofreram com a
violência, epidemias, fome e exploração sexual.
A política de atuação da Fundação Nacional do Índio (Funai) diante do cenário de
expansão mineral e agrícola, deu-se a partir da realização das ditas expedições de
9
Calávia Saez (2004) aponta um conjunto de ações oficiais que afetam os territórios indígenas em zonas
de fronteira. Como zonas de conflito por seu caráter fronteiriço e inserida neste plano de colonização
aurífera e agrárias, estas regiões estariam submetidas a formas potencialmente danosas de exploração.
Assim, a promoção e especulação enquanto fonte de riquezas produziu no eldorado roraimense um
cenário de espoliação do humano e contrabando das riquezas auríferas do solo yanomami.
10
Colono é uma categoria local em diversos contextos do universo rural. No cenário roraimense, costuma
se referir a pessoas (sobretudo figuras masculinas) que participam de projetos de colonização na região.
11
Território Federal do Rio Branco foi um território federal brasileiro que teve sua origem geopolítica dada
a partir do desmembramento do Amazonas e que a Constituição de 1988 elevou à condição de estado de
Roraima, sendo a capital Boa Vista.
“pacificação”. Em 1973, a Funai anunciou o plano para realizar estas expedições na
porção noroeste da Bacia Amazônica (DAVIS, 1978). As consequências desta política
repercutiram na criação do Posto Indígena Ajarani, um posto de atração. Localizado no
vale do Rio Ajarani, sua construção tinha como objetivo promover o deslocamento dos
Yawaripë, atraindo-os até o posto. A lógica de atuação da ação indigenista oficial era
orientada pelas frentes de atração. Ou seja, estabelecer a retirada deste grupo das áreas
que tradicionalmente ocupavam, deslocando-os para próximo dos postos.
No que diz respeito aos efeitos da construção da Perimetral Norte sobre o
subgrupo Yawaripë, da região do vale do Ajarani, Farage (1999) elaborou um detalhado
panorama da região e aponta práticas indigenistas que utilizavam táticas denominadas de
“frentes de atração”, que acarretaram o deslocamento forçado dos habitantes desta
região a fim de dar continuidade ao processo de colonização.
Quanto à política indigenista oficial no que se refere a este subgrupo, medidas
foram tomadas apenas após o contato de indígenas com os trabalhadores da construtora
Camargo Corrêa, responsável pela construção da BR-201, a Perimetral Norte. Farage
(1999) aponta que muitos trabalhadores da construtora forneciam açúcar e objetos
industrializados para os indígenas, no intuito de não sofreram ataques enquanto
trabalhavam. No laudo, encontra-se as seguintes informações:
Havia aldeias, portanto, “instalada exatamente na rota da estrada”. Providências
oficiais, entretanto, foram tomadas quando a população Yawaripë estava
em contato intensivo com os trabalhadores da construtora Camargo Corrêa,
encarregada da construção da BR-210, com duas serrarias implantadas no local,
além de alguns pequenos colonos que já chegavam. Epidemias, trazidas pelo
processo descontrolado de contato, faziam número considerável de vítimas:
de 1974, quando N. Cape estimou em 102 indivíduos a população Yawaripë no
vale do rio Ajarani, a meados de 1975, a população Yawaripë sofrera 23 baixas,
reduzindo-se a 79 indivíduos. (TAYLOR apud FARAGE, 1999, p.6)
A intrusão em território yanomami promovida pela construção da Perimetral
Norte teve efeitos sobre os modos yawaripë de circulação e ocupação do território.
Cintia da Silva (2015) indica que a intrusão acarretou processos de confinamento que
corromperam as redes de relação entre as aldeias, as festas, e as atividades de roça e
caça. Esta última, que necessita de grandes áreas não desmatadas, foi afetada
enormemente e implicou no esgotamento de fontes proteicas aos indígenas. Deste modo,
o declínio da produção de alimentos e o desmantelamento das redes parentais levaram
estes indígenas a buscar alimentos fornecidos pelos não-yanomami, gerando relações de
dependência. O que antes poderia ocorrer no âmbito de trocas (Yawaripë e não-
yanomami), passa a ser configurado pelo ordenamento monetário. Silva destaca nesse
processo dois aspectos centrais: “[...] o da sedentarização, pois não conseguem mais
caçar, e tornam-se dependentes dos produtos regionais para sobreviver, e a inserção do
trabalho, já que precisam monetarizar-se para adquirir esses produtos” (2015, p.54).
Neste cenário, ocorre um processo de sobreposição ao território yawaripë. No
ano de 1977, o Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra) criou o Distrito
Agropecuário de Roraima. Perfazendo uma área de 6.000.000 ha, percorria o vale do rio
Mucajaí e parcelas de terras atravessadas pela BR-174 e pela Perimetral Norte.
Concomitantemente, a Funai realizou um levantamento que tinha como objetivo definir
os limites da Terra Indígena Yanomami. No período, foram identificados cinco grupos
locais do subgrupo Yawaripë: Flechal, Humaitá, dois grupos locais com nomes não
identificados no quilômetro 29 da Perimetral Norte, uma aldeia do quilômetro 33 e o
grupo local Castanheira (FARAGE, 1999). Entretanto, a proposta de demarcação
realizada pela Funai não compreendia as regiões nas quais os Yawari habitavam e
realizavam suas atividades produtivas.
Nádia Farage (1999), em seu laudo pericial requisitado pela justiça federal da
seção de Roraima, referente à situação de desintrusão fazendeira, aponta que a presença
dos indígenas ao longo da Perimetral Norte era de conhecimento das autoridades
responsáveis. Porém, medidas oficiais não foram tomadas. A chegada das máquinas e o
intenso trabalho realizado pela construtora Camargo Corrêa trazia consigo epidemias,
violência e trabalho escravo
12
. A constituição de um processo descontrolado de contato
acarretou a morte de cerca de 23 pessoas de um grupo de 102. A estrada dava passagem
para aquilo que provocaria o maior impacto de violência sofrido pelos Yanomami: a
invasão garimpeira
13
.
O alastramento de epidemias como sarampo, malária, tuberculose e doenças
venéreas tem seus efeitos sobre a saúde dos Yanomami. Suas vias de comunicação na
mata foram cortadas por buracos e quinas, as plantações inundadas e transformadas
em montes de cascalho lavado, animais de caça afugentados pelo barulho da intensa
atividade de máquinas, aviões e a poluição de mercúrio (utilizado no garimpo) nos rios.
Ramos (1993) aponta que a transformação na paisagem dada pela presença garimpeira
lugar a uma estratégia política epidemiológica de eliminação dos sujeitos yanomami.
12
João Pacheco de Oliveira (2016) analisa modalidades que inferem sobre gestão de populações e
territórios mobilizadas ao longo da história do Brasil por diversos governantes. A respeito da escravização
de indígenas no Brasil Colônia, identifica o deslocamento forçado, os descimentos, as “guerras justas”
como componentes que justificariam a então proibida escravização indígena. Utilizamos, nesse sentido, o
termo “trabalho escravo” para nos referir à apropriação violenta da força de trabalho e saberes, invasão de
territórios e exploração de recursos no Brasil contemporâneo.
13
Yanomami em tempo de ouro (1985) é um relatório de pesquisa que relata as condições
socioeconômicas e sanitárias desta população no auge do garimpo. Pretendia fornecer subsídio para as
equipes médicas que atuavam nas regiões mais afetadas pelo garimpo.
O eldorado roraimense, que se deu entre as décadas de 1980 e 1990, foi um
período em que o estado assistiu a maior produção aurífera. A atividade, impulsionada
pelo presidente da Funai na época, Romero Jucá, foi apontada, no relatório final da
Comissão Nacional da Verdade
14
, como responsável pelo genocídio indígena. Somando
mais de 40 mil garimpeiros, a extração aurífera em territórios dos Yanomami
impulsionou a construção de inúmeras pistas de pouso clandestinas. A situação perdura
até os dias atuais, tendo em vista que a TIY se encontra invadida por mais de 20 mil
garimpeiros
15
.
A invasão dos garimpeiros também marca a chegada das epidemias que matam os
Yanomami, chamadas Xawara. Sua proliferação, na concepção yanomami sobre os
poderes patogênicos, dá-se por meio da retirada do ouro da terra e seu subsequente
processo de queima
16
. Quando localizado nas profundezas da terra, seus poderes
nefastos são neutralizados. Porém, a retirada do ouro e seu armazenamento são
atividades perigosas que provocam a produção de um certo tipo de fumaça. Uma espécie
de fumaça invisível que se alastra e provoca a morte dos Yanomami.
O poder destrutivo de napë, ou seja, o inimigo, o branco
17
, o estrangeiro, aparece
nas interpretações yanomami das situações de contato. A teoria etiológica yanomami
acerca da interpretação do poder patogênico dos objetos dos brancos pode ser
compreendida como uma modalidade de agressão provocada a partir do uso, da queima e
do contato com esses objetos. Esta ação é tida como pertencente a uma lógica de
alteridade canibal. Ou seja, os brancos, moradores de terras distantes da floresta e
produtores da fumaça letal a partir da queima de seus objetos, causam a xawara,
epidemia devoradora de corpos yanomami. Enquanto seres radicalmente diferentes dos
Yanomami, os napëpë são aqueles que acarretam as agressões potencialmente perigosas
e capazes de aniquilar grande número de pessoas a uma só vez.
14
A Comissão Nacional da Verdade visava levantar e esclarecer situações de graves violações de direitos
humanos ocorridas no período que perpassou a criação das últimas Constituições no Brasil 1946 a 1988. Os
relatórios de pesquisa divulgados estão divididos em grandes temas. Sobre a seção de violação de direitos
humanos dos povos indígenas, conferir:
http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/relatorio/Volume%202%20-%20Texto%205.pdf, Acesso
em: 01 fev. 2020.
15
Lideranças Yanomami e Ye’kwana denunciam a invasão de mais de 20 mil garimpeiros na Terra Indígena
Yanomami, veja: https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/pandemia-da-covid-19-
torna-urgente-expulsao-de-garimpeiros-da-terra-indigena-yanomami. Acesso em 10 jun. 2020.
16
Ramalho (2006) descreve o termo xawara como uma modalidade de letalidade napëpë, ou seja,
epidemias ocorridas pela ação patológica dos não indígenas. Epidemias ou seus agentes causadores
aparecem na forma de agressão a um corpo yanomami que fica adoecido, apresentando a febre como um
dos principais sintomas.
17
Branco, neste contexto, é uma categoria que não se refere à cor da pele ou a qualquer outro aspecto de
traços étnicos, mas à sociedade não-indígena.
Albert (1985, 1992) aponta esta lógica de alteridade canibal enquanto
estruturadora de um espaço político-ontológico, no qual o referencial de humanidade se
a partir do grupo local e orienta não só a interpretação que se faz a respeito das
mortes e dos processos cerimoniais realizados com os cadáveres, como também as
relações políticas com outros grupos locais. Assim, práticas de mobilidade e relações
socioespaciais são articuladas desde o universo interpretativo de comorbidades. A
respeito da política epidemiológica empreendida pelas ações patogênicas dos brancos e
algumas de suas consequências para os Yanomami, trataremos com maior profundidade
no tópico seguinte.
É no campo de intensa agressão napëpë que se deu o processo de demarcação da
Terra Indígena Yanomami
18
. Como vimos anteriormente, na cada de 1970, ocorreu um
esforço por parte do órgão indigenista oficial no sentido de mapear os limites da área
indígena. Porém, este levantamento não reconheceu os domínios territoriais de ocupação
yawaripë. Este processo de levantamento foi arbitrário, uma vez que se promoveu do
deslocamento forçado deste grupo por meio das “frentes de atração”.
O cenário de epidemia e genocídio dos Yanomami ganhou projeção na mídia
nacional e internacional e isso foi decisivo para a ordem de retirada dos invasores
(RAMOS, 1993). Logo, as autoridades se viram pressionadas a tomar decisões frente à
demarcação da terra. De um transcurso demarcatório que teve seu início nos idos de
1970, marcado pela disputa por recursos minerais e terras e por propostas de
demarcação em ilhas que cortariam as vias de comunicação na mata, a Terra Indígena
Yanomami foi demarcada via homologação do Decreto de 25 de maio de 1992 da
Presidência da República
19
.
Farage (1999) aponta que a gênese do impasse fundiário na região do vale do rio
Ajarani se caracterizou pelas tentativas fracassadas das expedições de “pacificação”.
Estas tinham como objetivo dar continuidade ao processo de expansão colonial e
agrícola, promovendo o deslocamento dos Yawaripë dos locais que tradicionalmente
ocupavam. A criação do Distrito Agropecuário de Roraima se sobrepôs territorialmente a
porções de territórios yanomami. Em seu laudo, a autora faz o levantamento de sete
fazendas sobrepostas que, em sua maioria, foram adquiridas por meio de compra nos
anos de 1980 e tituladas pelo Incra.
18
A Comissão pela Criação do Parque Yanomami (CCPY) elaborou o Projeto de Lei número 379/85 com o
objetivo de criar o Parque Yanomami. Este projeto era apoiado por diversas entidades nacionais e
estrangeiras, personalidades, cientistas e pesquisadores. Um dos objetivos era conter o etnocídio e
proteger um vasto ecossistema amazônico. Pom, a demarcação ocorreu em 1992, após o período de
redemocratização no Brasil.
19
Conferir:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/dnn/Anterior%20a%202000/1992/Dnn780.htm. Acesso
em: 01 fev. 2020.
Posteriormente, tendo a atividade garimpeira regulada pelo Governo Federal
20
, o
garimpo tem seu declínio acompanhado pelo aumento das atividades pecuárias, de
agricultura e extração de madeira. Em diagnóstico publicado pelo Ministério do
Desenvolvimento Agrário (2008), percebe-se que o excedente de ocupação causado pelo
declínio da atividade aurífera na região foi direcionado para as terras nos projetos de
assentamento. A demarcação da TIY ocorreu somente na década de 1990, entretanto, a
presença ilegal de fazendeiros na região do Ajarani persistiu até o ano de 2014.
O litígio da situação se configurou em 1992, tendo o deferimento do pedido de
perícia antropológica sete anos depois. O laudo foi realizado pela antropóloga Nádia
Farage que respondeu aos quesitos elaborados tanto pelo autor (fazendeiro que recusava
a desintrusão), como pela Funai e apontou que a situação de conflito e a pressão sobre
os territórios yanomami ocorreram desde a construção da Perimetral Norte, na década
de 1970, e destacou a pecuária como atividade central à época da desintrusão. O impacto
da frente de expansão nos territórios yanomami foi marcado, sobretudo, pela construção
da Perimetral Norte, presença de madeireiros e fazendeiros e pela extração de minérios.
A criação de projetos de assentamento na região do Ajarani, acompanhada da
demarcação da Terra Indígena Yanomami em 1992, teve como consequência a retirada
dos garimpeiros que foram para outros locais, não extinguindo as atividades de
exploração aurífera.
A situação vivida pelo conjunto multicomunitário formado pelas três aldeias Pé de
Pato, Ajarani II e Humaitá era de pressão territorial. As áreas historicamente exploradas
pelas atividades comunitárias e individuais extrapolavam os limites com essas fazendas e
a mobilidade espacial das pessoas e suas atividades foram comprometidas. Originada
pela ocupação fundiária, Farage caracteriza tal situação enquanto confinamento. A
demanda de retirada destes invasores era presente desde a data da demarcação.
Entretanto, apenas 22 anos após a demarcação, o processo de desintrusão na região do
vale do rio Ajarani é realizado
21
.
20
O capítulo II da Carta Magna, em seu artigo 20, define os recursos minerais, inclusive os do subsolo,
como bens da União. Adiante, quando das atribuições do Congresso Nacional no artigo 48, compete a
autorização, em terras indígenas, da exploração e do aproveitamento de recursos hídricos e lavra de
riquezas minerais. É também assegurado o direito de consulta às comunidades afetadas. Atualmente, no
ano de 2020, está em tramitação o Projeto de Lei 191/20 do governo federal que pretende viabilizar a
mineração em Terras Indígenas.
21
Calávia Saez (2004, 2015) ao analisar o sistema territorial indígena dos Yaminawa do Acre, aponta a
importância das relações sociais enquanto células criadoras de território e de fronteiras sociais. Assim
como os Yanomami, a não observância de fronteiras espaciais ou sociais, sua territorialidade é definida
enquanto “topológica”. Ou seja, o espaço que possibilita a organização das relações prevê que níveis de
proximidades e distâncias sejam operativos, na medida em que possibilitem situações de esquecimento e
convivência.
No dia 31 de maio de 2014, deu-se a festa na aldeia Xikawë a fim de celebrar a
desintrusão de fazendeiros da região do Ajarani, ocupada por não-indígenas quarenta
anos
22
. A festa mobilizou a participação de lideranças yanomami oriundos de outras
regiões da Terra Indígena. A instalação de placas indicando os limites da Terra Indígena
enquanto área protegida acompanharam cerimônias de fechamento da porteira de
acesso. A reconstituição histórica das lutas pela demarcação da TIY conduziu a fala da
liderança e xamã yanomami Davi Kopenawa, reforçando a resiliência deste povo frente
as pressões externas.
A retomada de 9.000 hectares ilegalmente ocupados por 12 fazendas de gado
localizadas dentro dos limites da T.I.Y foi realizada por meio de uma ação do Ministério
Público Federal. Em documento produzido pela Comissão Pró-Yanomami, Fronteira
agro-pecuária e Terra Indígena Yanomami em Roraima: Documentos Yanomami
23
(2003), os projetos de colonização são apontados como mecanismos oficiais que
favoreceram ocupações ilegais de terra, como também provocaram desmatamento,
choque epidemiológico, perdas demográficas e desestruturação social.
Dissipações febris de potências destrutivas: o adoecimento dos Yanomami
As consequências dos impactos ocasionados pela expansão de fronteiras durante
os governos militares ditatoriais e décadas posteriores, pode ser descrita como violento
confinamento territorial e choque epidemiológico para os Yanomami, sobretudo, no auge
da produção aurífera. O desmatamento das vias de comunicação na mata ocasionado
pelo processo de colonização corrompeu práticas de mobilidade territorial dos
yanomami, promovendo impacto socioespacial de diversas grandezas, como veremos a
seguir. Este processo, responsável por ocupação ilegal de terras na Amazônia dificultou
a desintrusão de fazendeiros no vale do rio Ajarani após a demarcação da Terra Indígena
Yanomami.
Um fato a se pontuar em relação aos procedimentos da Funai quando da
demarcação de Terras Indígenas em Roraima é o uso dos mapas como instrumento
político, pois sua produção está inserida no campo das fronteiras e disputas
24
. Os mapas,
fabricados a partir de uma representação gráfica da superfície terrestre, elaborados
22
Conferir: https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/yanomami-comemoram-
saida-dos-ultimos-fazendeiros-de-suas-terras-22-anos-apos-a-homologacao. Acesso em 19 jan. 2020.
23
Conferir: http://www.proyanomami.org.br/v0904/index.asp?pag=noticia&id=1589#. Acesso em 02 fev.
2020.
24
Verificar anexo para visualizar as fronteiras do limite leste na TIY.
desde elementos fotográficos e dados via satélite, abarcam informações sobre relevo,
solo, hidrografia, vegetação, focos de calor (Latour, 1999).
Como elaborado no tópico anterior, durante o período dos governos militares
ditatoriais na década de 1970, surgiram os programas de assentamentos na Região Norte
do Brasil. O conceito de exploração que norteou a construção de projetos foi marcado
pela preocupação com um território considerado “vazio”. A rede de transportes, pelo
Programa de Integração Nacional (PIN), previa a combinação de vias rodoviárias,
hidroviárias e áreas para consolidar a ocupação do interior e possibilitar o
desenvolvimento da região. A BR-174, rodovia longitudinal que atravessa toda a extensão
do estado de Roraima, passando por Iracema, foi construída neste período.
A intenção era atravessar a Amazônia brasileira desde o Amapá até a fronteira do
Amazonas. Possuindo 411 quilômetros de estrada construídos em Roraima, a rodovia
trouxe asfalto e acarretou a morte de dezenas dos Yanomami da região do Ajarani.
Ribeirinhos e indígenas, pessoas que tradicionalmente ocupavam a rego, não fizeram
parte do cálculo deste modelo de desenvolvimento e sofreram diretamente o impacto das
ações dos militares. O relatório da Comissão Nacional da Verdade (2014), como citado
anteriormente, no volume II, denuncia todas as violações de direitos humanos que os
povos Yanomami e Waimiri-Atroari sofreram durante a construção das rodovias em
Roraima.
O conjunto de Terras Indígenas demarcadas no estado de Roraima corresponde a
cerca de 46% da extensão territorial de todo estado. Algumas áreas ainda se encontram
em processo de demarcação. Neste cenário e nesta dinâmica territorial, de se notar
que o ciclo econômico que marcou usos específicos do território e deslocamentos
populacionais para o estado de Roraima foi a “febre do ouro”.
Febre, em seu sentido etimológico remonta ao latim febris, relacionado a favore,
aquecer, queimar. Estado mórbido caracterizado pela aceleração do pulso e aumento do
calor, pode ser apreendida em todos estes significados. Um estado de perturbação, uma
ânsia de possuir e enriquecer no eldorado roraimense. Um sonho, uma exaltação.
Um sentido de apreensão e sentidos de modalidades febris é dado a partir da
experiência yanomami. A obra A queda do céu (KOPENAWA; ALBERT, 2015) fala da
existência de vários mundos. Para os Yanomami, há vários níveis de alteridade que
definem a relação com o mundo dos brancos. Kopenawa oferece uma compreensão
nativa do sistema macrossocial dos brancos, uma teoria crítica do outro e uma definição
específica para o capitalismo.
O estranho que chega e promove à destruição da terra e da floresta criada por
Omama, demiurgo yanomami, é tido como um animal voraz, “comedor de terra”. Como
“porcos-do-mato”, promovem alterações na paisagem por meio de suas escavações na
terra e pela utilização de mercúrio nos rios. Os cantos dos xapirepë, espíritos e animais
ancestrais, que habitam a floresta desde o “tempo outro”, silenciam. A floresta foi
tomada pelo barulho das escavadeiras e das máquinas que iriam construir a Perimetral
Norte, ou parte dela. A floresta, adoecida pela xawara, epidemia trazida pelos brancos e
de alto poder destrutivo, causa febre naqueles acometidos por ela.
Estas modalidades febris de dissipação de potências destrutivas perpassam as
febres que acompanham os sentidos do garimpo: a febre do desejo pelo ouro, a febre da
malária, a febre da terra que arde destruída. O recado da floresta sobre uma terra que
passa a arder em febre é um exemplo de ciência-reversa em ação na história. E neste
mundo que arde, todos nós compartilhamos um desfecho potencialmente destrutivo.
Invasão territorial e práticas de mobilidade
A Perimetral Norte já aproximava os não-yanomami dos domínios territoriais
indígenas desde a década de 1970. Porém, o que se configura nos idos do “eldorado
roraimense” foi uma verdadeira invasão de seus espaços, suas casas, suas vidas, seus
animais. Uma onda de mortes, doenças, intoxicação por mercúrio, assassinatos,
estupros. A violência para com os Yanomami marcou a riqueza de alguns, a espoliação de
outros e o genocídio dos indígenas, bem como seu confinamento, afetando suas práticas
de mobilidade.
Tais práticas, como aponta Ramos (1990), são consolidadas desde duas
modalidades principais. A primeira, de caráter micro, é articulada pela necessidade de
abertura de novos roçados, uma vez que o intenso uso da mesma parcela de terra
acompanha o esgotamento do solo. A seguinte é marcada por eventos não relacionados
com o uso do solo, configurada por uma diversidade de eventos, como epidemias,
relações de agressão entre comunidades e mortes. Consequentemente, novas
configurações espaciais são conformadas a partir destes eventos que constituem
padrões de segmentação das aldeias, numa extensa rede de relações. No caso dos grupos
que tiveram seus territórios invadidos, toda essa configuração espacial sofreu drásticas
alterações.
Quando se considera a complexa rede de caminhos e lugares nomeados, dois
modelos analíticos a respeito da espacialidade yanomami que são elaborados de
maneiras distintas, a anelar e a reticular. O modelo anelar, elaborado a partir de
contribuições da década de 1980 e de 1990, como Lizot (1996), Colchester (1982) e Good
(1989), pressupunha que as configurações de uso espacial yanomami estariam
relacionadas com uma organização espacial em zonas concêntricas. Esse modelo de
zonas concêntricas, largamente eleito como modelo descritivo para o uso dos espaços e
das atividades dos Yanomami, apresenta limitações.
É o que aponta o texto “Ethnogeography and Resource use among the
Yanomami”, de autoria de Bruce Albert e François-Michel Le Tourneau (2007). Se por
um lado as zonas circulares, delineadas a partir da centralidade das unidades
residenciais, pensam o uso do espaço desde a constituição destes espaços concêntricos,
por outro, o modelo do “espaço reticular”, proposto pelos autores, mostra que a forma
de se deslocar e o uso do espaço estariam dispostos de modo irregular, a depender da
disposição de recursos e caminhos produzidos por atividades individuais e coletivas.
Uma figura de uso espacial que poderia ser descrita como rizomática.
De acordo com estes autores, as zonas reticulares dos espaços comunitários
aglutinam áreas de exploração e manejo de recursos, bem como espaços políticos
intercomunitários. Ou seja, um padrão espacial que diz respeito ao uso da terra e
recursos florestais. No que concerne às identificações destas zonas espaciais, as
atividades de caça, coleta e agricultura são agrupadas em distâncias relativas às unidades
residenciais. No primeiro plano, encontram-se as áreas das atividades da roça, mais
próximas às unidades residenciais e, no plano posterior, são realizadas as atividades de
caça diária, coleta e colheita, por fim, as zonas mais distantes, são designadas para as
grandes expedições de caça coletiva e coleta de frutos selvagens, bem como as “zonas
vazias”. Isto é, locais potentes para encontros indesejados, com espíritos patogênicos
por exemplo, e que carecem de ação humana na forma da constituição de caminhos
nomeados, roças, coleta e caça.
A figura de uso espacial de natureza rizomática apresenta uma maneira refinada
de comunicação, deslocamento e socialidade yanomami. Quando consideramos os
efeitos da colonização do vale do rio Ajarani, percebemos um conjunto de modalidades
de práticas sociais que foram alteradas a partir da invasão de seus territórios. Atividades
de roça, caça e coleta, como também desejo de distância de espíritos patogênicos, foram
colapsados.
A partir disso, compreendemos a TIY enquanto uma área que abarca diversos
grupos com suas específicas lógicas de socialidade que marcam graus desejáveis de
proximidade e distância com o mundo dos brancos. É certo que a demarcação da TIY
vem responder às demandas deste grupo indígena referentes à proteção de seu território
e modo de vida. Porém, a ocupação deste grupo não se restringe a um território
geograficamente limitado, que prossegue com práticas de deslocamento para além das
fronteiras da terra demarcada, tendo em vista os marcos pontuam os limites para os não
indígenas.
Considerações finais
Tentamos, primeiramente, descrever eventos que incidiram sobre modalidades de
gestão tutelar por meio de políticas estatais quando da expansão de fronteiras na
Amazônia. No caso dos Yanomami, a construção da rodovia Perimetral Norte, a invasão
garimpeira e a demarcação da Terra Indígena Yanomami com o posterior processo de
desintrusão de fazendeiros, foram os eventos aqui descritos. A partir disto, analisamos
os efeitos da expansão de fronteiras sobre a TIY e algumas das consequências diante
desta política epidemiológica de eliminação dos sujeitos Yanomami, de acordo com as
considerações de Ramos (1993).
Nesse sentido, mostramos como os processos de colonização impactaram os usos
do território pelo subgrupo Yawaripë, atentando para o fato de que a construção de
fronteiras e limites espaciais num plano administrativo do Estado não encerram modos
de deslocamento indígenas. Para isso, mobilizamos parte do material etnográfico que
trata da colonização a que considerável parte de seu território foi submetida.
As estratégias de tutela indigenista colocaram em prática a política de intervenção
nos territórios amazônicos de maneira unilateral e violento. De tal modo que as lógicas
de uso espacial yawaripë sofreram com deslocamentos forçados e territórios invadidos.
Foram necessários mais de vinte anos de demanda pela demarcação da TIY junto aos
órgãos competentes. Acontecimento este que não encerrou a luta pela garantia de seus
direitos territoriais, continuamente postos em suspenso por invasores.
A ação estatal que seguidamente eliminou povos indígenas e invadiu seus
territórios apresenta continuidade histórica com o contexto contemporâneo. Essa ação
aparece na forma de precariedade de serviços, omissão e não garantia dos direitos
originários. A invasão garimpeira ilegal prossegue atualmente, causando desmatamento,
poluição de rios e propagação de doenças infecciosas. A região do vale do rio Ajarani não
apresenta garimpos ativos, mas o fato de ser uma das áreas mais acessíveis via terrestre
serve de entrada para exploradores ilegais. A partir disso, os protocolos de consulta
realizados pelos povos Yanomami e Ye’kwana, bem como o uso espacial de seus
territórios devem servir como pontos de partida quando da tomada de decisões da
gestão estatal.
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