A construção das paisagens toponímicas na
cartografia luso-brasileira: 1750-1790
Place names and landscape in the luso-brazilian
cartography: 1750-1790
LIMA, Eduarda Fernandes *
https://orcid.org/0000-0002-0412-5957
RESUMO: O século XVIII é marcado por uma
renovação científica pautada pelos princípios da
razão ilustrada e de seus desdobramentos no
âmbito dos impérios ibéricos. Esta pesquisa se
concentra na análise de fontes resultantes das
viagens filosóficas e das expedições militares
promovidas pela Coroa portuguesa no contexto
das demarcações dos tratados luso-hispânicos
na segunda metade do século XVIII. Tais
experiências inauguram novos métodos e
técnicas científicas como parte dos projetos
políticos coloniais que visavam o
aproveitamento de riquezas naturais e controle
direto dos domínios territoriais. A pesquisa tem
como objetivo compreender como a cartografia
setecentista, produzida na ocasião da
demarcação de fronteiras entre os impérios
ibéricos na América do Sul tem influência na
construção de novas identidades baseadas no
espaço geográfico e na paisagem (1750/1790).
PALAVRAS-CHAVE: Cartografia; Fronteiras;
Toponímia;
ABSTRACT: The 18th century is marked by the
enlightenment scientific renovation and its
developments under the iberian empires. This
paper focuses on the analysis of sources
resulting from ‘viagens filosóficas’ [in english:
philosophical voyages] and military expeditions
promoted by the Portuguese Crown in the
context of the demarcations of the luso-hispanic
treaties in the eighteenth century. Such
experiences inaugurate new scientific methods
and techniques as part of the colonial political
projects aimed at harnessing natural wealth and
directly controlling territorial domains. This
paper aims to understand how the 18th century
cartography produced at the time of the
demarcation of borders between the Iberian
Empires in South America has influenced the
construction of new identities based in the
geographic space and in the landscape (1750-
1790).
KEYWORDS: Cartography; Borders; Toponymy;
Recebido em: 20/07/2023
Aprovado em: 30/08/2023
* Graduanda em História pela Universidade de São Paulo (USP), São Paulo-SP. Bolsista PIBIC-CNPq entre 2020-
2021. E-mail: eduardalima222@usp.br
Este é um artigo de acesso livre distribuído sob licença dos termos da Creative Commons Attribution License.
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Introdução
O Tratado de Madri (1750) tem importância fundamental para a formação territorial
do Brasil. Assinado no contexto Ilustrado, o estudo do documento mencionado bem como
toda a produção cartográfica associada a ele nos permite compreender de que formas o
espaço torna-se parte da narrativa colonial imposta pela coroa portuguesa. Assim, a
presente pesquisa centra-se na cartografia produzida no contexto das expedições
demarcadoras pós-1750
1
, conjuntura importante no processo de apropriação do espaço sul-
americano, por intermédio da cartografia. Como principais fontes, foram utilizados os
Tratados de Madri (1750) e Santo Ildefonso (1777), bem como o Diario da viagem do Dr.
Francisco Jose de Lacerda e Almeida pelas capitanias do Para, Rio Negro, Matto-Grosso,
Cuyaba, e S. Paulo, nos annos de 1780 a 1790” e análise de documentação cartográfica,
iniciada com a transcrição e catalogação de topônimos presentes na Carta Reduzida da Parte
Meridional do Oceano Atlantico ou Occidental (1802), do português José Fernandes Portugal,
foi continuada e trabalhou-se da mesma forma com um dos mapas do desenhista e
cartógrafo José Joaquim Freire, resultado da expedição de Alexandre Rodrigues Ferreira
(1783-1792). Dentro desta documentação, deu-se ênfase à busca por permanências e
mudanças na informação toponímica e outras marcas de “ocidentalização” na região Norte
do território brasileiro.
Considerando o processo a necessidade de formalização interestatal da posse dos
domínios na América do Sul, a pesquisa procurou acompanhar a implantação da rede urbana
nas fronteiras entre os impérios, a transformação dos topônimos e o recurso ao conceito
jurídico de uti possidetis. A Coroa portuguesa apropria-se do espaço interior do continente,
sobretudo com interesse nos metais preciosos presentes nas minas na região do Mato
Grosso (fluxo de mercadorias e escravizados). No período anterior à assinatura do Tratado
de Madrid uma série de esforços por parte de Portugal para conhecer, ocupar e tornar
legítima, sobretudo perante o Império espanhol, a posse das terras na região das minas no
interior da América do Sul.
1
O recorte inicial da pesquisa começaria com o Tratado de Madri (1750) e se estenderia até a chegada da
Família Real ao Rio de Janeiro (1808). Por conta da pandemia e da maior dificuldade para acessar arquivos e
solicitar documentos, optou-se pela redução do recorte temporal.
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Nesse sentido, a delimitação de fronteiras não tem caráter puramente geográfico ou
diplomático, mas também é influenciada por uma série de outros fatores. A partir das
viagens filosóficas e expedições demarcadoras, o governo toma conhecimento das regiões a
serem exploradas, suas riquezas, sua fauna e flora, seus habitantes. Com as terras
mapeadas, todo um processo de ocupação e reorganização espacial, com a inserção de
elementos coloniais que até então estavam fixados no litoral. Com isso, torna-se possível
compreender o processo de formação do território brasileiro a partir de relatos de viagem,
da toponímia e da urbanística e através desses elementos apreender a narrativa imposta
pela Coroa lusitana, que buscava incorporar as terras do interior da colônia à lógica
Ocidental, fundando cidades, renomeando os lugares e, assim, territorializando
2
o espaço
sul-americano. Com a análise da documentação cartográfica tem-se acesso a uma série de
representações de um espaço construído com o objetivo de legitimar os interesses
metropolitanos. A partir disso, teve-se como objetivo usar a cartografia como fonte para
entender como a Coroa portuguesa constrói identidades para a colônia a partir da
territorialização. A presente pesquisa visou uma análise conjunta desses elementos,
pensando a Ciência Ilustrada como aliada do processo colonizador português e visando
analisar e compreender os discursos imperiais metropolitanos através do espaço. Sendo a
Cartografia uma representação espacial carregada de ideologia e intenções, a produção
cartográfica setecentista é objeto chave para a compreensão do processo colonial
português.
A Geografia e o Império: breve análise da produção cartográfica no XVIII
Com o início do processo de expansão ultramarina no século XV, a Cartografia
adquire múltiplos papéis, todos essenciais. A produção de mapas na modernidade não serve
apenas para indicar as rotas de navegação para o Oriente e o Novo Mundo, mas para
legitimar a posse das terras conquistadas e por conquistar. Percebemos, com o passar do
tempo, como os mapas portugueses do além-mar mudam de foco. A princípio, entre os
séculos XV e XVI, a cartografia tem como objetivo a documentação de rotas marítimas para o
Oriente e também para a América. Com o processo de conquista e primeiros momentos da
implementação de um aparelho colonial no Novo Mundo, os mapas visam consolidar a posse
2
Aqui pensamos o processo de apropriação do espaço sul-americano a partir de Claude Raffestin (1993), que
coloca o território como produto da ação de um ator (neste caso, Portugal) sobre o espaço.
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de tais territórios. A cartografia acerca das regiões do Oriente é distinta da produção
centrada no território sul-americano, uma vez que os portugueses têm objetivos distintos
em cada parte do mundo. Dessa forma, pode-se pensar em diferentes cartografias
portuguesas com os mais diversos fins, que variam de acordo com o tempo e com espaço.
No Novo Mundo os mapas têm um poder ainda maior. Se estes são instrumentos de
colonização por natureza, quando os ibéricos chegam às Américas, até então desconhecidas
pela Europa, a cartografia tem seu poder de construção de narrativa ampliado e o mito da
chamada “Ilha Brasil” é um exemplo disso. Pela colonização ser inicialmente litorânea, o
interior do território permanece desconhecido até meados do século XVIII (Kantor, 2007, p.
74), o que deixa em aberto a possibilidade de insularidade do território brasileiro. É com a
invasão holandesa no século XVII que “um novo impulso foi dado à cartografia terrestre e ao
mapeamento in loco do interior dos sertões brasílicos” (Kantor, 2007, p. 76). Nesse contexto,
observa-se o caráter de dominação da cartografia, que serve para a defesa e manutenção
dos territórios americanos de Portugal. Segundo Claude Raffestin (1993, p. 143),
O território se forma a partir do espaço, é o resultado de uma ação conduzida por
um ator sintagmático (ator que realiza um programa) em qualquer nível. Ao se
apropriar de um espaço, concreta ou abstratamente (por exemplo, pela
representação), o ator "territorializa" o espaço.
Assim, pode-se dizer que o ato de mapeamento das terras é uma forma de a
metrópole territorializar a América, tornando-a parte do Império. Na obra Cultura e
Imperialismo, Edward Said (2011, p. 39) dirá que
Tudo na história humana tem suas raízes na terra, o que significa que devemos
pensar sobre a habitação, mas significa também que as pessoas pensaram em ter
mais territórios, e portanto, precisaram fazer algo em relação aos habitantes
nativos. Num nível muito básico, o imperialismo significa pensar, colonizar,
controlar terras que não são nossas, que estão distantes, que são possuídas e
habitadas por outros.
A presente pesquisa, tendo como objetivo a compreensão das “ideologias
geográficas” impostas pelo Estado português ao espaço americano, busca evidências dessa
construção de narrativas espaciais através da documentação cartográfica e em outros
aspectos de apropriação do espaço, como urbanização e a sua reorganização. Em um
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primeiro momento, são realizadas expedições, compostas por engenheiros militares,
astrônomos, matemáticos, naturalistas e desenhadores, que visavam o reconhecimento do
território e também a demarcação de fronteiras. As comitivas eram compostas por homens
de ciência das Coroas espanhola e portuguesa, e haviam partidas para várias regiões da
colônia, nem todas com o único objetivo de demarcar limites territoriais.
Indissociáveis do período, as viagens têm forte caráter ilustrado, servindo também
para ter conhecimento dos aspectos naturais da América. Com a valorização do fazer
científico que marca o período da Ilustração, busca-se conhecer os aspectos naturais das
nações, visando matérias-primas úteis para a alimentação, medicina e indústria. Tendo como
precursor o naturalista sueco Linnaeus, as viagens filosóficas tornam-se também um meio
para as metrópoles conhecerem seus domínios coloniais e, com as reformas de caráter
ilustrado empreendidas pelo Marquês de Pombal, Portugal entra no circuito científico
europeu. Domenico Vandelli é um dos nomes centrais da Ilustração portuguesa e em
meados da década de noventa do século XVIII escreve sua Memória sobre a necessidade de
uma viagem filosófica feita no reino e depois nos seus domínios, onde defende a importância
de uma viagem para reconhecimento das potencialidades naturais. Segundo Vandelli (2003),
a prosperidade da nação estaria diretamente ligada ao resultado de suas atividades
produtivas (agricultura, artes e afins). Conhecer as riquezas naturais do império levaria à
sofisticação das técnicas e, consequentemente, à prosperidade. Com a descoberta de metais
preciosos no interior do país, a necessidade de controle sobre a região torna-se ainda mais
presente nas políticas ultramarinas portuguesas.
Após o momento de reconhecimento e mapeamento dos espaços ainda não inseridos
no território colonial, o governo metropolitano se encarrega de designar governadores e
demais funcionários, fundando vilas nas regiões de interesse, pensando na legitimidade da
posse a partir da ocupação, uma vez que “o processo de demarcação das fronteiras entre
portugueses e espanhóis exigiu a expansão das estruturas administrativas (tanto civis como
eclesiásticas) no território”.(Kantor, 2006, p. 29). Dessa forma, não apenas há um controle
mais firme da metrópole sobre as regiões auríferas mas também uma maior ocupação do
território, possibilitando que, caso houvesse contestação por parte da Coroa espanhola, os
portugueses alegassem o uso efetivo da terra como prerrogativa para mantê-la o conceito
jurídico do uti possidetis.
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O Diretório dos Índios (1758), documento marcante do governo de Sebastião José de
Carvalho e Melo, também tem influência na apropriação do espaço americano pela Coroa
portuguesa. Ao transformar os povos nativos em súditos do rei de Portugal, o conceito de uti
possidetis torna-se novamente legítimo, uma vez que as terras pretendidas estão ocupadas
não mais por “gentios selvagens”, mas por nativos subordinados a Portugal. Nesse sentido,
uma ocupação legítima do território por parte de Portugal, mesmo que não por colonos
portugueses.
As expedições de demarcação e a apropriação do interior: uti possidetis e a toponímia
Antes de qualquer acordo entre as Coroas são realizadas várias expedições com os
mais diversos fins e esse interesse de reconhecimento se manifesta primeiramente na coroa
portuguesa, que inicia sua renovação científica bem antes dos espanhóis. nesse período
de renascimento da cartografia portuguesa uma vasta produção de cartas geográficas
terrestres, bem como levantamentos topográficos e observações astronômicas, centrais
para a demarcação e consolidação das fronteiras do Brasil. Nesse sentido, pode-se notar
influência e desdobramentos do contexto científico europeu no ultramar.
As viagens eram longas e complexas. Nem todas contavam com a quantidade de
homens necessária ou sequer eram bem-sucedidas, uma vez que podiam entrar em conflito
com povos nativos, contrair doenças ou perderem notas de campo devido a intempéries. Em
geral, as comitivas eram compostas por portugueses, mas relatos e documentação de
viagens que contavam com indígenas e africanos como guias, uma vez que tinham maior
conhecimento do terreno.
A capacidade de atração dos guias indígenas para servir as expedições foi fator
decisivo no reconhecimento dos cursos dos rios. Igualmente foi crucial o papel de
alguns escravos africanos que fugiram de Belém quando trabalhavam nos armazéns
da Companhia de Comércio do Grão Pará e Maranhão (Bueno; Kantor, 2014, p.
248).
As expedições também poderiam ter mais ou menos recursos de acordo com o
período em que são realizadas e isso influencia o sucesso de uma determinada partida.
relatos de expedições cujos integrantes eram em sua maioria portugueses que favoreceram
a Coroa lusa, bem como partidas com mais espanhóis que levaram em conta os interesses
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castelhanos em detrimento dos portugueses. Percebemos, portanto, a ausência de
neutralidade das expedições e suas influências na escrita dos tratados de fronteiras. Com a
leitura dos relatos de viagem pode-se perceber como as viagens interferem na formação de
fronteiras, seja pela ausência de um estudioso de uma área específica ou por uma
intervenção em favor de um dos lados durante o trajeto. Assim, nota-se a importância de
pensar essas expedições como parte fundamental dos estudos sobre delimitações de
fronteiras. Nos relatos e documentos acerca dessas pode-se encontrar controvérsias que
não estariam nos mapas ou nos tratados. Essa documentação é, portanto, fundamental para
uma compreensão maior de como se o processo de delimitação de fronteiras e
territorialização do espaço geográfico.
O conceito jurídico do uti possidetisfoi de grande importância para o sucesso da
expansão portuguesa para o interior do continente além da linha de Tordesilhas. O princípio
do direito internacional que prevalece no Tratado de Madri respeita a posse do território por
quem o ocupa de fato. Assim, a ocupação dos espaços era essencial para uma dominação
completa de Portugal sobre a América. Mais que garantir o controle de metais preciosos,
essa “marcha para o Oeste” que marca o século XVIII também significa a chegada do aparato
colonial ao centro do continente sul-americano. Na obra Novas Vilas para o Brasil colônia,
Roberta Delson (1998, p. 9) afirma
No final do culo XVII foi descoberto ouro no interior acidentado a oeste da
província do Rio de Janeiro. Esse acontecimento acarretou a avaliação do potencial
da colônia por parte de Portugal e mostrou claramente que o governo precisava
agir com presteza para garantir o controle imediato do rico território interiorano.
As terras do sertão não podiam mais ficar sem supervisão, e os administradores,
cientes disso, logo estabeleceram as primeiras medidas de um programa legislativo
para redefinir os direitos sobre a terra e, ao mesmo tempo, estender a autoridade
real.
Esse planejamento urbano no interior do território, portanto, não se de forma
aleatória. Assim como a Cartografia não está isenta de interesses políticos, o processo de
urbanização da colônia também não está. Delson (1998, p. 4) ainda argumenta contra o mito
das “povoações espontâneas”, que coloca o processo de urbanização do Brasil como isento
de planejamento:
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Seguindo os garimpeiros e caçadores de tesouros, a Coroa portuguesa ia
estabelecendo a sua autoridade por meio de um sistema de comunidades
criteriosamente planejadas construídas em regiões remotas. Influenciados pela
descoberta de ouro na década de 1690 e diretamente ameaçados, os
administradores metropolitanos buscaram ansiosamente os meios de ampliar o seu
sistema racional de distribuição de terras, combinado com a construção
supervisionada de vilas, constituiu o processo pelo qual o interior podia ser
protegido contra um crescimento independente e descontrolado.
Como previamente mencionado, esse processo de urbanização do interior do
território implica na reorganização do espaço, que se torna cada vez mais “ocidentalizado” e
na implantação de estruturas administrativas coloniais em ambientes aentão distantes do
poder régio. Assim, o domínio colonial português se estende cada vez mais em regiões até
então “selvagens”.
A apropriação desses espaços não se unicamente no plano prático, mas também
no âmbito ideológico. Como explicitado na obra do geógrafo britânico John Brian Harley
(2005), a cartografia tem em si elementos culturais, ideológicos que trazem consigo
discursos e narrativas implícitos. Com a análise da produção cartográfica setecentista lusa
sobre o Brasil, temos acesso a uma série de representações do espaço brasileiro que servem
para a construção de uma paisagem favorável aos interesses portugueses. Dentro da
cartografia, a toponímia traz consigo muitas dessas ideologias e narrativas.
Um aspecto interessante da construção da paisagem toponímica no Brasil colonial é
que devido aos múltiplos agentes coloniais (padres jesuítas, fazendeiros, naturalistas) de
diferentes nacionalidades, um lugar pode ter mais de um nome, principalmente
considerando a toponímia nativa. Dentre as passagens do diário de Lacerda e Almeida,
encontram-se trechos em que o viajante menciona que um único local possui dois ou mais
topônimos devido a ocupações hispânicas ou holandesas. A partir desses exemplos,
podemos notar a complexidade da toponímia colonial e como esta não é algo estático, mas
passível de constante transformação, além de conter em si múltiplos significados.
Ainda partindo do relato de Lacerda e Almeida, percebe-se como uma espécie de
divisão entre os topônimos, com um caráter quase que de oposição. Enquanto elementos
naturais da paisagem são, em sua maioria, nomeados em nguas indígenas, o que lhes
atribui um caráter mais nativo, orgânico, as fortificações e cidades fundadas pelos colonos
têm topônimos que remetem à metrópole e à cristandade. A partir dessa reorganização
espacial e nomeação dos lugares percebe-se uma primeira intervenção dos europeus na
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América. Nas traduções mencionadas no diário percebemos que muitos dos nomes
indígenas se referem a elementos da própria natureza ou até mesmo elementos dos
próprios povos. Numa determinada passagem, por exemplo, o viajante menciona o rio
‘Camapuam-guassú’ e a Fazenda Camapuam, e, numa nota, explica que “Camapuam, na
linguagem dos índios quer dizer bico do peito. N’esta paragem estão dous montes um
defronte do outro, que vistos de longe parecem dous peitos de uma mulher” (Almeida,
1841, p. 30). Os topônimos dos colonos, apesar de trazerem, em sua maioria, elementos
cristãos e metropolitanos, também nomeiam os lugares partindo de características das
paisagens e dos povos que ali habitam.
Com a catalogação dos topônimos percebem-se padrões na nomenclatura dos
lugares no Brasil, que mescla palavras de origem indígena e elementos cristãos europeus,
bem como eventualmente referências à geografia do local ou a eventos históricos, além de
homenagens a personagens históricos. A toponímia tem grande importância para a
possessão das colônias, servindo para justificar a presença da metrópole naquela região.
Topônimos lusitanos, por exemplo, tornariam legítimo o direito dos portugueses a
determinados territórios mesmo que estes fossem, em tese, pertencentes à Coroa
espanhola e vice-versa. Esse foi um artifício utilizado durante o processo de confecção dos
tratados entre os impérios ibéricos. Além de legitimar a possessão, a toponímia também é
fundamental para a criação de uma narrativa para o Brasil, preocupação que surge com a
vinda da corte de Dom João VI para a América e a consequente elevação a Reino Unido de
Portugal, Brasil e Algarves (Kantor, 2009).
Uma quantidade considerável dos topônimos do período em que a presente pesquisa
se concentra se mantiveram até a contemporaneidade e, dentre eles, podemos encontrar
referências à Geografia local (Minas Gerais, Cabo Frio); homenagens hagiográficas (São
Vicente, Santa Catarina, este mudando apenas a grafia) ou cristãs em geral (Belém). Há ainda
muitos topônimos em idiomas autóctones, provavelmente datados de momentos anteriores
à chegada dos portugueses à América, sobretudo em regiões mais afastadas do litoral. Nos
relatos da viagem de Francisco Jode Lacerda e Almeida (1841) percebe-se topônimos de
origem portuguesa, sobretudo de homenagem hagiográfica (“Povoado de São José”, por
exemplo), em cidades e fortes, enquanto os nomes de rios, serras e ilhas normalmente têm
origem indígena (“Ilha Perurupany”, “rio Okuimanû”, “Ilha Paya-Picá”, por exemplo). Pode-
se pensar isso como um aspecto da dominação lusitana, que constrói povoados e
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fortificações para controlar as terras e tornar legítimo esse controle, enquanto os elementos
geográficos da paisagem, que não significam tanto para essa dominação, podendo
permanecer com toponímia autóctone.
Segundo Íris Kantor (2009, p. 40), o ato de nomear o espaço tem grande importância
geopolítica:
Desde a antiguidade, os cerimoniais de posse incluíam o estabelecimento de uma
nova toponímia a cada nova conquista. Igualmente no Novo Mundo, os
conquistadores e as coroas outorgavam-se o direito de nomear as terras
descobertas, invocando o princípio romano da res nullius: terras não ocupadas não
constituíam direito de propriedade, assim como novos territórios ou ilhas deviam
pertencer aos seus primeiros ocupantes. Após a Paz de Westfália (1648) - que s
fim a Guerra dos Trinta Anos e garantiu a Independência das Províncias Unidas -, as
reivindicações de posse de novas regiões passaram cada vez mais a exigir a
apresentação de descrições geográficas e documentação cartográfica. Nesse
aspecto, os mais hábeis em fixar topônimos nos mapas impressos teriam sido os
holandeses, com a finalidade de manifestar a posse de um novo domínio.
Nesse sentido, ao renomear as terras americanas o governo português não apenas
impõe uma narrativa imperial aos colonos do Novo Mundo, mas também torna legítimas
suas posses territoriais na América perante as outras nações europeias, cujo interesse no
Brasil é perceptível através da série de invasões empreendidas por franceses e holandeses
ao território brasileiro. Além disso, no ato de demarcação de fronteiras essa toponímia
também impõe à corte castelhana a validade das posses portuguesas no interior da América
do Sul.
Construindo o território brasileiro: apropriações e narrativas
Durante todo o período colonial um esforço por parte da Coroa portuguesa de
“territorializar” o espaço sul-americano. A dominação metropolitana necessita de uma série
de fatores para ser efetiva, que funcionam em conjunto: a metrópole necessita da
cartografia, para representar um território colonizado perante outras potências em
expansão; assim como necessita de representantes na colônia para assegurar a posse, uma
vez que esta depende da ocupação efetiva do território pretendido; um aparato colonial
jurídico-administrativo ainda que fundamental não basta para o controle da colônia. Em
suma, é preciso que haja um amplo conhecimento dos territórios ultramarinos para
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controlá-los não apenas no âmbito prático, mas sobretudo no que diz respeito à ideologia.
Retomando Edward Said (2011, p. 43),
Nem o imperialismo, nem o colonialismo é um simples ato de acumulação e
aquisição. Ambos são sustentados e talvez impelidos por potentes formações
ideológicas que incluem a noção de que certos territórios e povos precisam e
imploram pela dominação, bem como formas de conhecimento ligadas à
dominação: o vocabulário da cultura imperial oitocentista clássica está repleto de
palavras e conceitos como raças servis” ou inferiores”, “povos subordinados”,
“dependência”, “expansão” e “autoridade”.
Assim sendo, é preciso uma narrativa que justifique a colonização, bem como as
medidas para que esta seja bem-sucedida. Na presente pesquisa, teve-se como objetivo
compreender como a territorialização do espaço ultramarino português é feita de forma a
legitimar o domínio metropolitano.
O processo de reconhecer, mapear, renomear e urbanizar o interior da colônia é o
meio como o governo português visa converter esses espaços em território português. A
fundação de vilas e cidades, a implementação de instituições coloniais e a imposição de
topônimos ibéricos não se de forma orgânica. uma visível dedicação por parte de
Portugal para “ocidentalizar” um interior ainda distante do que se considerava moderno e
civilizado. Essa é mais uma evidência do caráter ideológico que permeia a cartografia
portuguesa sobre o Brasil do setecentos: o forte viés científico da demarcação é
comprometido pelos interesses coloniais. Seguindo a conceituação de “espaço” e
“território” proposta por Claude Raffestin (1993)
3
, é no século XVIII que a Coroa portuguesa
se dedica efetivamente para tornar o espaço colonial parte do território imperial.
Com a urbanização do interior, as várias formas de vida dos povos originários são
desestabilizadas para a inserção de uma lógica ocidental na colônia. Além de mecanismo de
controle, o processo de urbanização também é um compromisso da agenda ilustrada do
XVIII: a barbárie deve ser combatida, encerrada, e a razão moderna deve prevalecer.
3
Segundo o geógrafo suíço, “O espaço é, portanto, preexistente a qualquer ação. O espaço é, de certa forma,
“dado” como se fosse uma matéria prima. Preexiste a qualquer ação. “Local” de possibilidades, é a realidade
material preexistente a qualquer conhecimento e a qualquer prática dos quais será o objeto a partir do
momento em que um ator manifeste a intenção de dele se apoderar. Evidentemente, o território se apoia no
espaço, mas não é o espaço. É uma produção, a partir do espaço. Ora, a produção, por causa de todas as
relações que envolve, se inscreve num campo de poder. Produzir uma representação do espaço é uma
apropriação, uma empresa, um controle, portanto.”
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Considerações finais
A Geografia é, inegavelmente, uma das principais armas do processo de expansão e
conquista do Novo Mundo. As inovações nas técnicas de produção cartográfica possibilitam,
no início do século XV, a expansão ultramarina portuguesa e durante todo o período colonial
a cartografia é utilizada como instrumento de dominação por parte dos ibéricos.
Fundamentais para representar um território idealizado, legitimar conquista e posse e
ressignificar toda a geografia sul-americana, os mapas são usados para construir uma
narrativa para o Império Português do Novo Mundo.
Assim sendo, desde atos simbólicos como nomear um local em homenagem a um
governador ou santo católico até atos mais visivelmente associados ao processo colonialista
como a fundação de cidades e instalação de aparatos de dominação e controle fazem parte
dessa territorialização de um espaço que até então possuía geografias distintas deste
conceito ocidental. Nesse sentido, é impossível não pensar as viagens de demarcação, os
mapas e tratados que substituem a divisão de Tordesilhas como fundamentais não apenas
para a definição das fronteiras brasileiras, mas também para a compreensão das dinâmicas
regionais do país, em que as influências do período colonial ressoam de formas distintas até
a atualidade.
Os mapas luso-brasileiros do setecentos são armas coloniais tão essenciais quanto a
fundação de feitorias e a nomeação de governadores gerais. É através dessas
representações do espaço que a metrópole idealiza e inventa um território colonial que é
construído com os tratados de limites do século XVIII, com a urbanização da região centro-
oeste, com os topônimos cristãos e ibéricos que se mesclam aos de origem indígena. A cada
mapa o espaço é mais e mais apropriado pela coroa portuguesa, que o representa seguindo
seus próprios critérios e interesses. Nesse sentido, pode-se afirmar que a cartografia luso-
brasileira do século XVIII é fundamental para a construção de uma história territorial do
Brasil, que ocidentaliza a geografia de forma a inventar um Novo Mundo à moda europeia.
Fontes
ALMEIDA, Francisco Jose de Lacerda e. Diario da viagem do Dr. Francisco Jose de Lacerda e
Almeida pelas capitanias do Para, Rio Negro, Matto-Grosso, Cuyaba, e S. Paulo, nos annos de
1780 a 1790. São Paulo: Typ. de Costa Silveira, 1841.
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Tratado de limites das conquistas entre os muito altos, e poderosos senhores D. Joaõ V rey
de Portugal, D. Fernando VI rey de Espanha, pelo qual abolida a demarcaçaõ da linha
meridiana, ajustada no Tratado de Tordesillas de 7 de Junho de 1494, se determina
individualmente a raya dos dominios de huma e outra corôa na America Meridional. A de
Portugal renuncia o direito, que allegava ter às Ilhas Filippinas, pelo dito Tratado de
Tordesillas, e pela escriptura de Saragoça de 22 de Abril de 1529, e cede a Espanha a colonia
do sacramento, e o territorio da margem septentrional do Rio da Prata, que lhe pertencia
pelo Tratado de Utrecht de 6 de Fevereiro de 1715, como tambem a Aldea de S. Christovaõ,
e terras adjacentes, que tinhaõ occupado os portuguezes entre os Rios Japurá, e Isa, que
desaguaõ no das Amazonas. A de Espanha renuncia todo o direito, que pelo dito Tratado de
Tordesillas allegava ter às terras possuidas pelos portuguezes na America Meridional ao
Occidente da Linha Meridiana, ajustada naquelle tratado, e cede a Portugal todas as terras, e
povoaçoes na margem Oriental do Rio Uruguay, desde o Rio Ibicui para o Norte, e a Aldea de
Santa Rosa, e outra qualquer estabelecida pelos espanhoes na margem Oriental do Rio
Guaporé. Com os plenos poderes, e ratificaçoes dos dous monarchas, assignado em Madrid
a 13 de Janeiro de 1750. Disponível em: http://hdl.handle.net/10316.2/35490 Acesso em:
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OFÍCIO (extrato) sobre a demarcação dos limites dos domínios espanhóis e portugueses na
América, em conformidade com o tratado de 1º de outubro de 1777, designando-se os
acidentes geográficos a servirem de marcos para a 1ª, 2ª e 3ª divisões, mencionando os
respectivos artigos daquele tratado. Projeto Resgate Barão do Rio Branco - Colônia do
Sacramento e Rio da Prata (1618-1826), AHU_ACL_CU_059, Cx. 3, D.207. Disponível em:
http://resgate.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=012_CSRP&pagfis=1812. Acesso em:
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PORTUGAL, José Fernandes. Carta reduzida da parte Meridional do Oceano Atlântico ou
Occidental desde o Equador athe 38º-20' de latitude / Dedicada a S. A. R. O Principe Regente
Nosso Senhor, por Jozé Fernandes Portugal; Theotonio Jozé de Carvalho fez, em Lisboa em
1802. - Escala [ca 1:10000000 entre S_ 13º - S_23º], 180 Legoas Marinas de Dezoito ao Gráo
= [11,15 cm]. - Lisboa: [s.n.], 1802. - 1 mapa: gravura, p&b ; 67,30x84,50 cm em folha de
68,20x88,50 cm
Cota do exemplar digitalizado: cc-915-r
MAPA dos confins do Brazil com as terras da Coroa da Espanha na America Meridional...
1749. 1 mapa ms, col, 60 x 54cm. em f. 70 x 64. Disponível em:
http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_cartografia/cart1004807/cart1004807.
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