Amefricanidade como forma de superação da colonialidade e
afirmação de identidades afrodescendentes
Amefricanity as a Form of Overcoming Coloniality
and Affirming Afro-descendant Identities
OLIVEIRA, Laura Beatriz Alves de*
https://orcid.org/0000-0002-7005-6398
RESUMO: O presente artigo aborda o conceito de
Amefricanidade como forma de resistência à
colonialidade e como instrumento de afirmação
das identidades afrodescendentes nas Américas,
com foco especial no contexto brasileiro. O
objetivo é analisar como a Amefricanidade,
proposta por Lélia Gonzalez, opera enquanto
categoria político-cultural capaz de desestabilizar
as estruturas eurocêntricas de poder, saber e
subjetividade, articulando práticas históricas,
religiosas, territoriais e educativas como formas
de insurgência. A pesquisa adota o método de
revisão bibliográfica, com base em autores da
perspectiva decolonial, como Aníbal Quijano,
Walter Mignolo e Breny Mendoza, articulando-os
à produção intelectual afro-brasileira e aos a
exemplos práticos vinculados ao movimento
negro, à educação e à religiosidade de matriz
africana. Como resultado, evidencia-se que a
Amefricanidade não apenas questiona a
colonialidade do saber, mas também se
materializa em práticas culturais e pedagógicas
como a luta pela legalização do candomblé, a
implementação da Lei nº 10.639, projetos
escolares e pesquisas universitárias que
promovem a valorização de saberes afro-
brasileiros. Conclui-se que a Amefricanidade
constitui uma plataforma política e epistêmica de
ruptura com o pensamento colonial, afirmando
ABSTRACT: This article addresses the concept of
Amefricanity as a form of resistance to coloniality
and as a tool for affirming Afro-descendant
identities across the Americas, with particular
focus on the Brazilian context. The objective is to
analyze how Amefricanity, as proposed by Lélia
Gonzalez, functions as a political-cultural
category capable of destabilizing Eurocentric
structures of power, knowledge, and subjectivity,
by articulating historical, religious, territorial, and
educational practices as forms of insurgency. The
research adopts a bibliographic review method,
drawing from decolonial authors such as Aníbal
Quijano, Walter Mignolo, and Breny Mendoza,
and connecting them to Afro-Brazilian intellectual
production and practical examples linked to the
Black movement, education, and African-based
religiosity. The findings reveal that Amefricanity
not only challenges the coloniality of knowledge
but also materializes in cultural and pedagogical
practices such as the struggle for the
legalization of Candomblé, the implementation of
Law 10.639, educational projects and
academic research that promote the valorization
of Afro-Brazilian epistemologies. It is concluded
that Amefricanity constitutes a political and
epistemic platform that breaks with colonial
thought, affirming new ways of being, thinking,
* Doutoranda (2023) pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO). Mestra e licenciada em História
pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO) (2022), pós-graduada em História da Arte pela
Universidade Estácio de Sá (UNESA) (2019). Arquiteta Urbanista (2018) pela Universidade Paulista (UNIP). E-mail:
oliveiralaurabeatriz.alves@gmail.com.
Este é um artigo de acesso livre distribuído sob licença dos termos da Creative Commons Attribution License.
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novas formas de ser, pensar e existir, pautadas na
ancestralidade, na diversidade e na dignidade dos
povos afrodescendentes.
PALAVRAS-CHAVE: Amefricanidade;
Colonialidade; Decolonialidade; Identidade
afrodescendente.
and existing, rooted in ancestry, diversity, and the
dignity of Afro-descendant peoples.
KEYWORDS: Amefricanity; Coloniality;
Decoloniality; Afro-descendant identity.
Recebido em: 23/09/2024
Aprovado em: 03/04/2025
Considerações iniciais
Amefricanidade, conceito formulado por Lélia Gonzalez, constitui o eixo central deste
artigo por expressar uma prática político-cultural de resistência e afirmação das identidades
afrodescendentes nas Américas. Com foco especial no contexto brasileiro, partimos da
compreensão de que o colonialismo não se limitou à ocupação territorial, mas instituiu formas
duradouras de dominação simbólica que ainda estruturam o saber, o poder e o ser. A
persistência das desigualdades estruturais nas sociedades latino-americanas, especialmente
no Brasil, revela que as marcas do colonialismo não pertencem apenas ao passado. Essas
desigualdades se manifestam ainda hoje, por meio da exclusão social, do racismo institucional
e dos epistemicídios cotidianos.
Para compreender essa permanência, é necessário distinguir entre colonialismo
como sistema político-econômico de dominação e colonialidade, conceito elaborado por
Aníbal Quijano (2005) para expressar a continuidade das lógicas de opressão racial, epistêmica
e ontológica no mundo pós-colonial. Nesse sentido, a Amefricanidade surge como uma
resposta insurgente à colonialidade, ancorada na ancestralidade, na vivência afro-latino-
americana e nas práticas culturais, religiosas, educativas e territoriais que afirmam outras
formas de existência. Como argumenta Breny Mendoza (2021), compreender essas estruturas
exige também incluir a colonialidade de gênero como dimensão constitutiva da modernidade
colonial, reforçando a urgência de pensar identidades negras e femininas para além dos
enquadramentos eurocêntricos.
Baseando-se no entendimento de que o cotidiano molda comportamentos e
mentalidades, produzindo padrões que se repetem em forma de preconceito, silenciamento
e discriminação, essa realidade contribui para a ocultação das desigualdades e para a opressão
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de comunidades originárias e de indivíduos considerados diferentes perante o padrão
hegemônico. Torna-se, assim, fundamental romper com o pensamento colonial por meio da
Amefricanidade, a qual propõe uma identidade própria aos povos negros do continente, tendo
como referência a ancestralidade africana e a recusa ativa à marginalização imposta pelo
eurocentrismo.
Nesse contexto, o presente artigo parte da seguinte problemática: como a
colonialidade continua a operar nas esferas sociais, culturais e epistemológicas, mesmo após
o fim do colonialismo formal, e de que maneira a Amefricanidade pode atuar como uma
ferramenta crítica para resistir a essas estruturas e afirmar identidades afrodescendentes? A
hipótese aqui sustentada é que a Amefricanidade, ao promover a valorização das raízes
africanas e das experiências afrodescendentes, configura-se como uma estratégia eficaz para
desafiar a colonialidade e suas formas de exclusão. Enquanto resposta teórico-política, ela
permite a reconstrução de subjetividades historicamente subalternizadas, atuando no campo
das identidades, da cultura e do saber como forma de resistência e reexistência frente ao
modelo imposto.
O objetivo geral é analisar como a Amefricanidade, enquanto categoria político-
cultural, pode contribuir para o enfrentamento da colonialidade e para a afirmação das
identidades afrodescendentes nas Américas, especialmente no Brasil. Para isso, busca-se (i)
diferenciar conceitualmente colonialismo e colonialidade, destacando seus efeitos contínuos
sobre a produção de saber e a construção de identidades; (ii) discutir a Amefricanidade como
resposta decolonial a partir das formulações de Lélia Gonzalez; (iii) articular os conceitos de
colonialidade, racismo estrutural e epistemicídio com exemplos práticos, como o racismo
religioso nas escolas, a luta pela legalização do candomblé e produções acadêmicas voltadas
para a temática; (iv) refletir criticamente sobre a importância de reconhecer e valorizar as
epistemologias afrodescendentes como parte de um projeto de sociedade plural, justa e
decolonial.
Metodologicamente, o artigo adota uma abordagem analítica, fundamentada em
revisão bibliográfica crítica de autoras e autores que discutem os conceitos de colonialidade,
decolonialidade e Amefricanidade, com destaque para as contribuições de Aníbal Quijano,
Walter Mignolo, Lélia Gonzalez e Breny Mendoza. A proposta não é apresentar um estudo de
caso empírico, mas refletir sobre a articulação entre teoria e prática por meio de exemplos
que ilustram a persistência da colonialidade em contextos brasileiros. Para tanto, o texto está
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estruturado em duas seções principais: a primeira discute os fundamentos básicos da
decolonialidade e a crítica à hegemonia epistêmica eurocentrada, abordando também a
colonialidade de gênero; a segunda explora a noção de Amefricanidade como prática político-
cultural de resistência e afirmação identitária, trazendo exemplos históricos, educacionais e
religiosos que expressam essa perspectiva na realidade brasileira, com destaque para
experiências locais e regionais. Essa estrutura busca construir uma ponte entre reflexão
teórica e práticas sociais insurgentes.
Desta forma, o artigo propõe uma compreensão crítica sobre as formas de resistência
afrodescendente e os caminhos possíveis para a superação das estruturas coloniais ainda
vigentes. A relevância deste estudo reside na articulação entre teoria decolonial e práticas
concretas de reexistência, evidenciando como a Amefricanidade atua como força política,
cultural e epistêmica na afirmação das identidades negras nas Américas. Ao integrar autores
decoloniais com experiências históricas, educacionais, religiosas e sociais, o trabalho contribui
para o fortalecimento de uma produção intelectual comprometida com a justiça social, a
valorização dos saberes subalternizados e a construção de uma sociedade verdadeiramente
plural. Trata-se, portanto, de uma proposta que ultrapassa o campo acadêmico, convocando
a reflexão ética e política sobre a urgência de se romper com as lógicas coloniais ainda
enraizadas nas instituições, nos discursos e nas subjetividades.
Decolonialidade: desafiando a hegemonia e reconstruindo identidades
Antes de compreender a potência política e epistêmica do conceito de
Amefricanidade, é necessário situá-lo dentro em um campo mais amplo de crítica à
modernidade ocidental: o pensamento decolonial. Refletir sobre a colonialidade como
estrutura de poder persistente permite reconhecer que as hierarquias estabelecidas durante
o colonialismo continuam a moldar as relações sociais, culturais e epistêmicas nas Américas.
A decolonialidade, nesse sentido, não se limita a um gesto teórico, mas constitui uma forma
de enfrentamento às violências históricas e simbólicas ainda em curso. Esta seção propõe uma
análise dos principais fundamentos do pensamento decolonial latino-americano, articulando
os conceitos de colonialidade do poder, do saber, do ser e de gênero como eixos fundamentais
para a leitura crítica das desigualdades produzidas e mantidas pela modernidade
eurocentrada.
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O projeto moderno-colonial estabeleceu uma hierarquia global de poder que se
mantém mesmo após o fim formal das colonizações. Essa permanência manifesta-se na
colonialidade, conceito elaborado por Aníbal Quijano (2005), que designa a continuidade das
estruturas de dominação fundadas na colonialidade do poder, do saber e do ser. Trata-se de
uma matriz que organiza a sociedade a partir da racialização dos sujeitos, da imposição de
epistemologias eurocentradas e da marginalização do existir e do conhecer.
A colonialidade do poder, para Quijano (2005), refere-se à articulação entre
capitalismo, raça e divisão internacional do trabalho. As populações racializadas são situadas
nos pontos mais baixos da pirâmide social, relegadas à informalidade, ao subemprego ou à
marginalização econômica, enquanto as elites brancas, urbanas e ocidentalizadas ocupam
posições de prestígio e comando. Essa lógica de poder é sustentada por uma colonialidade do
saber, que privilegia formas de conhecimento produzidas na Europa e invisibiliza os saberes
locais, indígenas, africanos e afrodescendentes. É também por meio da colonialidade do ser
que se impõe um modelo de subjetividade que nega a humanidade plena de corpos
racializados, considerados outros, inferiores ou atrasados em relação à narrativa moderna.
Walter Mignolo (2017), ao ampliar as reflexões de Quijano (2005), introduz o conceito
de opção decolonial, compreendida como uma escolha consciente por caminhos não
eurocentrados de produção de conhecimento e subjetividade. Essa opção propõe uma
ruptura ativa com os sistemas epistêmicos modernos-coloniais e uma reorientação dos
saberes a partir das experiências e das cosmologias do Sul global. A decolonialidade, portanto,
não é apenas uma crítica ao Ocidente, mas uma prática política, cultural e epistêmica de
reexistência frente à racionalidade hegemônica.
Além disso, Breny Mendoza (2021) realiza uma distinção fundamental entre
colonialismo e colonialidade, apontando que muitos estudos latino-americanos utilizam os
termos de forma intercambiável, o que gera confusões conceituais e empobrece a crítica. Para
a autora, o colonialismo refere-se à dominação territorial, política e econômica imposta pelos
impérios europeus entre os séculos XV e XX. Já a colonialidade diz respeito à persistência das
hierarquias raciais, epistêmicas e de gênero instauradas nesse período, que continuam a
operar mesmo após as independências formais. Desta forma, compreender essa distinção é
essencial para uma leitura mais complexa das dinâmicas de dominação contemporâneas,
evitando reduções anacrônicas ou simplistas dos processos históricos que configuram as
sociedades latino-americanas.
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No entanto, como ressalta Mendoza (2021), a crítica decolonial latino-americana,
embora potente, apresenta lacunas significativas ao negligenciar o papel da colonialidade de
gênero como dimensão constitutiva dessa matriz de poder. A autora retoma a formulação de
María Lugones para enfatizar que o sistema moderno-colonial não apenas racializou os
corpos, mas também os generificou segundo padrões patriarcais e binários ocidentais. A
colonialidade de gênero, nesse sentido, articula-se à colonialidade do poder, do saber e do
ser, promovendo uma desumanização específica das mulheres racializadas e marginalizando
suas experiências do campo epistêmico.
Esse apagamento sistemático dos saberes produzidos por mulheres negras e indígenas
configura o que Boaventura de Sousa Santos (2007) denomina epistemicídio a destruição
ativa de formas de conhecimento não reconhecidas pelo cânone ocidental. A crítica de
Mendoza (2021) se alinha a esse diagnóstico ao denunciar a marginalização epistêmica das
teorias feministas dentro do campo decolonial latino-americano. Logo, a colonialidade de
gênero permite uma leitura mais interseccional e abrangente das formas de dominação,
reconhecendo como raça, gênero e classe se entrelaçam na constituição dos sujeitos
subalternizados.
Ademais, a decolonialidade não pode ser compreendida apenas como uma crítica
teórica às estruturas globais de poder, mas como uma proposta de reconstrução identitária e
epistemológica. Trata-se de valorizar saberes silenciados, experiências ancestrais e formas de
existência que foram sistematicamente deslegitimadas pelo projeto moderno-colonial. É
nesse ponto que se insere o conceito de Amefricanidade, formulado por Lélia Gonzalez (2020),
como resposta político-cultural enraizada na vivência afro-latino-americana e nos
cruzamentos entre raça, cultura, gênero e resistência.
Dessa forma, a decolonialidade exige mais do que uma crítica teórica às estruturas do
poder moderno-colonial ela convoca a construção de novas formas de subjetividade,
pensamento e existência que rompam com a matriz epistêmica eurocentrada. Isso implica
reconhecer e valorizar práticas e saberes historicamente deslegitimados, oriundos das
experiências de resistência dos povos racializados e subalternizados. Nesse horizonte, torna-
se essencial explorar categorias que emergem dessas vivências concretas e que expressam
modos alternativos de pensar, sentir e viver o mundo, abrindo caminho para outras
possibilidades de existência que desafiem as hierarquias impostas pela colonialidade.
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Amefricanidade e a afirmação de identidade
A Amefricanidade emerge como um conceito político-cultural proposto por Lélia
Gonzalez (2020), que articula a experiência histórica das populações negras latino-americanas
como forma de insurgência contra a hegemonia eurocêntrica. Diferente de uma simples
revalorização folclórica ou culturalista, a Amefricanidade é uma categoria crítica que evidencia
a centralidade das contribuições africanas na formação das sociedades americanas e atua
como forma de denúncia das estruturas coloniais que continuam a operar na linguagem, na
subjetividade e na política.
Ao mesmo tempo em que a decolonialidade oferece uma perspectiva teórica para
desmantelar os sistemas globais de opressão, entre eles o racismo, o epistemicídio e a
exclusão cultural, a Amefricanidade representa a encarnação cotidiana dessa ruptura,
expressa na linguagem, na religião, nos gestos, nos corpos e na memória coletiva das
populações afrodescendentes. Trata-se de uma prática viva, não apenas reativa, mas
propositiva, que redesenha as bases da identidade por meio do pertencimento afro-latino-
americano.
Ao reconhecer que a colonialidade persiste como um sistema global de produção de
desigualdades raciais, epistêmicas e culturais, torna-se fundamental identificar formas de
resistência que transcendam a crítica teórica e assumam caráter transformador. É nesse ponto
que a Amefricanidade se destaca como uma resposta política, cultural e epistemológica, que
rompe com o legado eurocentrado e afirma uma nova forma de existência afirmativa,
insurgente e plural. Assim, mais do que uma reação ao colonialismo, a Amefricanidade propõe
a construção de outras formas de ser e conhecer ancoradas nas raízes africanas e em suas
reelaborações no contexto latino-americano.
Lélia Gonzalez (2020) destaca que o Brasil, assim como outras nações do continente
americano, é uma América Africana, na qual a influência africana é significativa, embora em
grande parte silenciada ou recalcada. Ela argumenta que esse apagamento está ligado ao que
chamou de neurose cultural brasileira e, sobretudo, ao racismo, que rejeita a africanidade
presente na identidade nacional ao mesmo tempo em que a reproduz de forma sutil. Para
explicar esse paradoxo, a autora recorre à categoria freudiana de denegação, um processo
psíquico no qual o sujeito recusa reconhecer algo que o perturba. Nesse caso, o racismo
brasileiro exclui a africanidade como elemento constitutivo da identidade nacional, apesar de
sua presença evidente e marcante.
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A autora também destaca a importância da música, dança e sistemas de crenças como
exemplos da influência africana nas culturas das Américas. Propondo então o conceito de
Amefricanidade como uma categoria que transcende fronteiras nacionais, buscando
compreender a influência africana nas culturas de todo o continente, visa reconhecer e
valorizar a contribuição africana para a formação histórica e cultural das Américas, desafiando
narrativas dominantes que minimizam ou ignoram esta influência.
A proposta também pode ser lida em diálogo com as críticas de Mendoza (2021), que
problematiza a ausência da dimensão de gênero na formulação teórica decolonial latino-
americana. Enquanto Mendoza destaca a urgência de incorporar a colonialidade de gênero
como eixo analítico central, Gonzalez, mesmo antes dessa sistematização, introduzia uma
prática intelectual e política marcada pela interseccionalidade. Sua atuação como mulher,
intelectual e militante evidencia uma compreensão profunda de como raça, gênero e cultura
se entrelaçam na construção das subjetividades afrodescendentes nas Américas. Assim, a
Amefricanidade pode ser compreendida não apenas como ruptura epistêmica com o
eurocentrismo, mas também como uma resposta ao apagamento das experiências das
mulheres negras e a necessidade de uma reescrita do mundo a partir de suas vivências.
Gonzalez (2020) também aborda o racismo em diferentes contextos, destacando como
o racismo aberto predominava em sociedades anglo-saxônicas e germânicas, enquanto o
racismo disfarçado era comum em sociedades de colonização ibérica, como as da América
Latina. A autora discute a ideologia do branqueamento, presente no racismo latino-
americano, que perpetua a crença na superioridade branca e promove a internalização da
inferioridade racial entre os grupos discriminados. Também menciona figuras importantes na
luta contra o colonialismo e o racismo, como Marcus Garvey e Walter Rodney, destacando a
resistência dos povos negros em diferentes contextos históricos e sociais, incluindo
movimentos pelos direitos civis, protestos e manifestações.
A proposta da Amefricanidade é vista como uma forma dos negros das Américas
afirmarem sua identidade própria, reconhecendo sua conexão com a África e rejeitando a
visão eurocêntrica que os marginaliza. Essa categoria identitária permite uma compreensão
mais inclusiva da experiência negra no continente americano, destacando a resistência, a
criatividade e a luta contra o racismo ao longo da história. A Amefricanidade reconhece as
presenças e influências africanas no local desde antes da chegada de Colombo, como
evidenciado nas culturas dos olmecas e em outros contextos pré-colombianos. Ao abraçar
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esta visão, reconhecemos nossa história compartilhada e valorizamos a contribuição
significativa dos africanos e seus descendentes para a identidade amefricana ao longo dos
séculos. Assim, nos convida a enfrentar o presente e o futuro com determinação, lutando pela
igualdade, justiça e reconhecimento pleno de nossa humanidade.
Um exemplo do reconhecimento da Amefricanidade no Brasil, para Cirne (2020), foi a
luta pela legalização do candomblé, inicialmente considerado uma prática criminosa,
juntamente com outras religiões de matriz africana e o espiritismo. Embora a
descriminalização tenha ocorrido em um momento específico, a perseguição aos terreiros
persistiu, especialmente em locais como Salvador, na qual a prática religiosa ainda estava
sujeita a regulamentações e licenças policiais. Somente em 1976 a perseguição foi
significativamente reduzida, quando o então governador da Bahia, Roberto Santos, assinou
um decreto liberando os terreiros da obrigatoriedade de licenças policiais. Essa mudança
representou um avanço crucial na garantia da liberdade religiosa para as comunidades afro-
brasileiras.
A criminalização do candomblé no Brasil é um reflexo direto das hierarquias impostas
pela colonialidade, que marginaliza as religiões e as práticas culturais africanas. Conforme
Cirne (2020), durante o período colonial e após a independência, o Estado brasileiro, ainda
imbuído de uma mentalidade eurocêntrica, tratou o candomblé como uma prática criminosa,
reforçando a inferiorização das culturas africanas. Essa tentativa de suprimir a religião pode
ser interpretada como uma forma de epistemicídio, um esforço de destruir saberes e formas
de vida não alinhadas com os valores ocidentais. A luta pela legalização do candomblé,
portanto, insere-se no contexto da resistência decolonial, sendo uma reivindicação do direito
à existência e à prática religiosa, desafiando as estruturas de poder. A conquista dessa
legalização é uma manifestação concreta da superação da colonialidade, ao reconhecer a
legitimidade das práticas religiosas afro-brasileiras e abrir espaço para uma pluralidade de
saberes.
Cirne (2020) também analisa a evolução do movimento negro ao longo da história do
Brasil, desde a proclamação da República até o Estado Novo. Durante esse período, surgiram
as primeiras organizações sociais em defesa da população negra, como o Clube 13 de Maio
dos Homens Pretos e o Centro Literário dos Homens de Cor, principalmente em São Paulo,
mas também em outros estados. A imprensa negra também começou a se desenvolver nesse
período, abordando questões que afetavam a população negra.
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Com o passar das décadas e as mudanças políticas, como o fim da República
Oligárquica e a centralização do poder nas mãos de Getúlio Vargas, o movimento negro
passou a buscar uma organização mais estruturada para combater o racismo e garantir os
direitos da população negra. Esse contexto deu origem à chamada primeira fase do
movimento negro organizado, marcada pela criação de entidades como a Frente Negra
Brasileira, em 1931, que se destacou como uma das principais expressões de mobilização e
ativismo do período.
A segunda fase teve início após o fim da ditadura do Estado Novo e se intensificou
durante o regime militar, quando houve um ressurgimento das iniciativas em defesa da
comunidade negra. Entre os destaques desse novo ciclo está a criação da União dos Homens
de Cor UAGACÊ, estabelecida em 1943, em Porto Alegre. Essas organizações não apenas
promoviam o desenvolvimento econômico e intelectual dos afrodiaspóricos, mas também
atuavam na luta por direitos civis e contra o racismo estrutural profundamente arraigado na
sociedade brasileira (CIRNE, 2020).
Cirne (2020) também destaca outras organizações cruciais no contexto do movimento
negro brasileiro. Nesse ínterim, uma delas é o Teatro Experimental do Negro (TEN), fundado
em 1944, no Rio de Janeiro, por Abdias do Nascimento. O TEN não se restringiu apenas às
atividades teatrais, expandindo-se para oferecer cursos como o de alfabetização e o de
costura, além de lançar jornais e até mesmo inaugurar um museu. Isso ilustra como estes
grupos foram além de seus propósitos iniciais para abraçar causas mais amplas, buscando não
apenas a expressão cultural, mas também a educação e a conscientização.
Segundo o autor, apesar dos esforços e da crescente mobilização do movimento negro
em todo o país, a primeira lei contra a discriminação racial no Brasil só foi aprovada em 1951,
graças ao trabalho do deputado Afonso Arinos. Esse período também foi marcado pelo
surgimento de setores conservadores na política, culminando no golpe civil-militar de 1964,
que inaugurou duas décadas de ditadura. Durante este período, houve um retrocesso político
significativo no Brasil, com a desarticulação e desmobilização dos movimentos sociais,
incluindo as organizações do movimento negro. Somente no final da década de 1970, com o
início do processo de abertura política, é que as organizações do movimento negro
começaram a se restabelecer. Um marco crucial foi a fundação do Movimento Negro
Unificado (MNU), em 1978, inspirado tanto pelos movimentos pelos direitos civis dos negros
nos Estados Unidos quanto pelos movimentos de libertação nos países africanos. Portanto, o
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MNU concentrou seus esforços em desmistificar a noção de democracia racial no Brasil e em
promover a organização política das comunidades afrodiaspóricas.
A partir deste período, o movimento ampliou suas demandas para englobar
intervenções na educação brasileira, promovendo uma pedagogia inter-racial e multicultural,
questionando a representação do negro na história e nos materiais didáticos. Com a
promulgação da Constituição de 1988, avanços significativos foram garantidos, como a
liberdade de culto e a secularização do Estado brasileiro. De acordo com Cirne (2020), apesar
destas conquistas institucionais, a população negra ainda enfrenta desafios consideráveis,
especialmente no que diz respeito à educação inclusiva e ao combate ao racismo religioso.
Apesar da existência de leis e políticas afirmativas, como as cotas raciais, a realidade
demonstra que muito a ser feito para superar as estruturas de discriminação e para garantir
uma sociedade verdadeiramente igualitária e respeitosa com a diversidade racial.
Para o autor, a questão crucial está relacionada à implementação efetiva das políticas
públicas para a população negra no Brasil, especialmente no contexto educacional. É elencado
a dificuldade de abordar conteúdos sobre religiosidade africana nas escolas, devido aos
preconceitos arraigados que associam crenças negras às práticas negativas e demonizadas.
Esse estigma afeta diretamente crianças e jovens que praticam religiões de matriz africana,
levando-os a esconder sua religião na escola para evitar discriminação, humilhação e até
mesmo agressões físicas. Também reforça que o racismo religioso como uma prática que
impacta significativamente a autoestima e o desempenho escolar desses estudantes,
contribuindo para a evasão escolar e o aumento da intolerância religiosa nas escolas públicas.
Esta realidade é corroborada por dados da Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar, que
apontam a religião como um dos motivos de humilhação e provocação entre os estudantes.
Para enfrentar este desafio, Cirne (2020) propõe a aplicação dos princípios do
multiculturalismo na educação nacional como meio de reconhecer e valorizar a diversidade
cultural e étnico-racial. Isso implica em revisões curriculares para integrar uma perspectiva
multicultural nas escolas, capacitando professores e gestores para lidar com questões de
diversidade e combater a discriminação racial e de gênero. Esse processo é um exemplo do
que Quijano (2005) denomina colonialidade do saber, na qual o conhecimento e as práticas
culturais europeias são estabelecidos como normas, enquanto as epistemologias africanas são
marginalizadas.
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Para Aníbal Quijano (2005), a colonialidade do saber é um componente central do
sistema moderno-colonial, no qual o conhecimento europeu foi imposto como universal
enquanto os saberes indígenas, africanos e locais foram deslegitimados. Essa hierarquia
epistêmica, associada à ideia moderna de raça e à lógica da dominação colonial, estruturou
currículos, instituições e formas de pensar que ainda persistem. Superar essa estrutura exige
a descolonização do saber, ou seja, o reconhecimento de outras epistemologias e a
valorização de conhecimentos historicamente marginalizados, movimento que encontra na
Amefricanidade uma de suas expressões mais vivas e propositivas.
Assim como a colonialidade do saber marginaliza conhecimentos não europeus, o
conceito de amefricanidade busca reverter essa exclusão, reconhecendo as contribuições de
africanos e indígenas como centrais para a identidade e a cultura das Américas. Gonzalez
(2020) rejeita a ideia de que as populações negras e indígenas estejam à margem da
modernidade ou do conhecimento, afirmando que elas desempenharam um papel
fundamental na formação das sociedades do continente, apesar do apagamento histórico que
a colonialidade impôs. Assim, a transformação sugerida por Cirne (2020) baseia-se na
construção de uma estratégia política que reconheça e represente as diferentes culturas,
rompendo com a visão eurocêntrica da história e dando destaque histórico também aos
afrodescendentes. Além disso, é elencada a necessidade de uma elite intelectual mais
consciente e engajada na promoção de uma educação inclusiva e respeitosa com as diferenças
raciais, religiosas e culturais.
Em consonância com a proposta da Amefricanidade, diversas práticas educativas têm
sido desenvolvidas no Brasil com o objetivo de combater o racismo estrutural e promover uma
educação anticolonial. A aplicação da Lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que torna
obrigatório o ensino da história e da cultura afro-brasileira e africana nas escolas, tem
possibilitado a inclusão de saberes tradicionalmente silenciados no ambiente escolar. Projetos
pedagógicos baseados em religiosidades de matriz africana, contação de histórias orais, rodas
de capoeira e oficinas de pretuguês
1
são exemplos de ações que integram práticas culturais
1
O termo pretuguês foi cunhado por Lélia Gonzalez, que o (re)batizou como uma forma de nomear a presença
da influência africana na linguagem falada no Brasil, e, ao mesmo tempo, evidenciar a ausência simbólica dessa
contribuição no imaginário nacional. A autora ressalta que essa contradição expressa as relações coloniais ainda
persistentes e seus efeitos, tendo o racismo como sintoma social da neurose cultural brasileira. As oficinas de
pretuguês, portanto, são práticas pedagógicas que valorizam essas expressões linguísticas afro-brasileiras,
desafiando a norma culta imposta pelo colonizador e promovendo o reconhecimento da identidade negra como
forma de resistência e afirmação cultural (Chaves; Cestari; França, 2023).
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afrodescendentes ao currículo, valorizando saberes ancestrais como formas legítimas de
conhecimento. Algumas escolas também têm estabelecido parcerias com comunidades de
terreiro para desenvolver atividades que abordam espiritualidade, pertencimento e
resistência, contribuindo para a desconstrução do racismo religioso e o fortalecimento das
identidades afrodescendentes entre os estudantes.
Nesse contexto, um exemplo vem da Escola Municipal Eugênia Anna dos Santos,
localizada em Salvador, Bahia, instituição pública de ensino fundamental que se destaca por
integrar a cultura afro-brasileira em seu projeto pedagógico. Fundada em 1978 dentro do
terreiro de candomblé Ilê Axé Opô Afonjá, a escola iniciou como a creche Mini Comunidade
Obá Biyi, atendendo crianças de 6 meses a 5 anos. Em 1986, ampliou suas atividades para o
ensino fundamental, adotando o nome atual em homenagem à fundadora do terreiro, Mãe
Aninha. A escola desenvolve atividades que valorizam a identidade afrodescendente e
promovem a integração cidadã dos alunos, utilizando referências culturais da comunidade de
candomblé em seu processo de ensino-aprendizagem.
A Escola Afro-Brasileira Maria Felipa, fundada em 2018 em Salvador, Bahia, é
reconhecida como a primeira instituição de ensino infantil afro-brasileira registrada pelo
Ministério da Educação (MEC). Com uma proposta pedagógica afro-referenciada e decolonial,
a escola integra a história e a cultura africana e afro-brasileira ao currículo tradicional,
promovendo uma educação antirracista, inclusiva e comprometida com a valorização das
identidades negras. O nome da escola homenageia Maria Felipa, mulher negra e marisqueira
que foi uma das heroínas da luta pela independência do Brasil na Bahia, símbolo da resistência
feminina e afrodescendente contra a dominação colonial.
Em 2024, a escola expandiu suas atividades para o Rio de Janeiro, inaugurando uma
unidade em Vila Isabel com capacidade para mais de 300 estudantes, oferecendo ensino
trilíngue em português, inglês e Libras. Idealizada por educadoras como Bárbara Carine e Maju
Passos, e contando com o apoio da atriz Leandra Leal na unidade carioca, a escola desenvolve
projetos como “Afrotech – Feira de Ciência Africana e Afrodiáspórica” e “Mariscada Mostra
artístico-cultural decolonial”. A trajetória da Escola Maria Felipa exemplifica de forma
contundente a materialização da Amefricanidade no ambiente educacional, ao articular
ancestralidade, ciência, arte e espiritualidade desde a infância, promovendo o
reconhecimento das raízes africanas na formação da identidade brasileira.
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Nesse sentido, outro exemplo vem do estado de Goiás, no qual importantes
intelectuais vêm contribuindo para a consolidação de uma perspectiva decolonial e
afrodiaspórica, ampliando os horizontes teóricos e práticos da Amefricanidade. Thais Alves
Marinho, professora da PUC-Goiás e pós-doutora em Ciências Sociais pela Unisinos, é uma das
principais referências goianas nessa. Sua atuação interdisciplinar, com ênfase em relações
étnico-raciais e feminismos de terreiro, oferece uma base teórica sólida para compreender os
processos de resistência e de afirmação das subjetividades negras. Seus projetos com as
comunidades Kalunga e as políticas públicas culturais aprofundam as reflexões sobre
identidade, ancestralidade e reconhecimento.
a professora Mary Anne Vieira Silva (2011), pesquisadora da Geografia Cultural,
destaca-se por seu trabalho com as religiões de matriz africana, especialmente o Candomblé.
Sua obra Dinâmicas espaciais do sagrado de matriz africana na região metropolitana de
Goiânia/GO, analisa as dinâmicas espaciais do Candomblé em Goiânia, focando em como
esses territórios sagrados enfrentam estigmas, invisibilidade política e segregação espacial. A
autora investiga como as casas de Candombse inserem na expansão urbana e na luta por
reconhecimento social e territorial, destacando a resistência cultural das religiões de matriz
africana. O estudo também aborda como essas práticas religiosas ajudam a preservar a
identidade africana e a se adaptar às condições da diáspora.
Mary Anne Vieira Silva (2016), em seu estudo Reconhecimentos identitários do
Candomblé em Goiás: contextos pós-coloniais na contemporaneidade, investiga como os
territórios sagrados do Candomblé atuam como espaços de resistência, reconstrução
identitária e reinscrição do sagrado africano no Brasil e em especial Goiás. Utilizando o
conceito de Sagrado de Matriz Africana como categoria interpretativa, Silva propõe uma
leitura do espaço religioso como esfera existencial e epistêmica, na qual o tempo das
ancestralidades se articula com as práticas diaspóricas de reinvenção e reafirmação cultural.
Por meio da etnogeografia e da escuta das vozes dos praticantes, o estudo evidencia que o
Candomblé não se constitui apenas como prática espiritual, mas como forma de resistência
frente aos processos históricos de apagamento, perseguição e colonialidade.
O território dos terreiros, nesse sentido, torna-se locus de memória, identidade e luta,
reafirmando a cosmovisão africana como força vital na produção de significados e no
enfrentamento às hierarquias coloniais. Ao compreender o Candomblé como fenômeno de
reafricanização e reelaboração cultural no espaço diaspórico, a autora reforça os princípios
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centrais da Amefricanidade, reconhecendo os terreiros como territórios políticos e espirituais
que atualizam a ancestralidade no presente e rompem com as narrativas eurocêntricas sobre
identidade, fé e pertencimento.
Uma das principais obras de Thais Alves Marinho, Feminismos de terreiro e patriarcado
no Brasil, de 2022, também representa um forte exemplo de produção decolonial situada no
estado de Goiás, ao articular teoria crítica, espiritualidade afro-brasileira e ação política
feminina em territórios afrodiaspóricos. A autora demonstra que os terreiros são espaços de
reconstrução simbólica e de rearticulação dos laços sociais, espirituais e afetivos que
sustentam as cosmopercepções afro-brasileiras. Nesse contexto, as mulheres negras, desde o
período colonial, não apenas resistiram à imposição do patriarcado ocidental e cristão, mas
também produziram formas específicas de organização social a partir de uma lógica não-
binária e coletiva, enraizada em valores de matriz africana.
Essa insurgência cotidiana, que Marinho denomina de feminismos de terreiro,
materializa o que Lélia Gonzalez propôs como Amefricanidade: uma vivência que resgata a
ancestralidade como força política e que estabelece vínculos entre espiritualidade, identidade
e território. Os feminismos de terreiro são, assim, uma expressão concreta da Amefricanidade
enquanto movimento social do dia a dia, que promove o empoderamento feminino, o
enfrentamento à violência doméstica, ao racismo religioso e às desigualdades estruturais,
desafiando as narrativas coloniais e reafirmando os saberes e as práticas negras em sua
potência transformadora.
Outro exemplo fundamental de resistência afrodescendente e expressão concreta da
Amefricanidade pode ser encontrado no trabalho da professora Tânia Rezende (2022),
intitulado Tensionamento geo-ontoepistêmico-linguístico entre o patriarcado e a
espiritualidade da mulher negra. A autora analisa a trajetória de Dica dos Anjos, também
conhecida como Madrinha Dica, uma líder espiritual e política negra perseguida no início do
século XX na região rural de Lagolândia, em Goiás. Rezende mostra como o corpo, a e a
autoridade simbólica de Dica foram alvo de racismo religioso, misoginia e demonização por
parte da Igreja e das elites locais, revelando o funcionamento da colonialidade do poder-
saber-ser. Ao resgatar as narrativas sobre Dica, a autora propõe um tensionamento da
narrativa única imposta sobre as mulheres negras, construindo um conflito de percepção
frente às imagens de controle e à lógica da branquitude patriarcal.
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Rezende destaca que os saberes espirituais e a atuação pública de mulheres negras,
especialmente em territórios periféricos, continuam sendo alvos de repressão por desafiarem
os pilares do patriarcado cristão e colonial. A territorialização simbólica operada por Dica,
aliada à sua prática espiritual, configura uma forma de insurgência que articula religiosidade,
ancestralidade, identidade e luta social, em consonância com a formulação de Lélia Gonzalez.
Ao reinscrever Dica dos Anjos na história brasileira e goiana por meio de epistemologias
afrocentradas e narrativas contra-hegemônicas, Rezende contribui para a valorização de uma
memória coletiva negra silenciada, revelando a profundidade política das práticas de
espiritualidade afro-brasileiras enquanto resistência histórica.
Ainda no cenário goiano, é fundamental destacar a figura de Leodegária de Jesus,
considerada uma das primeiras mulheres negras do estado a publicar um livro de poesia. Sua
obra Coroa de Lírios (1906), seguida por Orchídeas (1928), insere-se na tradição de resistência
literária negra e feminina, antecipando discussões sobre identidade, subjetividade e lugar de
fala. Embora por muito tempo silenciada nos espaços formais da historiografia e da crítica
literária, sua escrita vem sendo redescoberta por pesquisadores que reconhecem sua
importância no cenário afrodiaspórico brasileiro. A produção de Leodegária revela uma
sensibilidade que articula espiritualidade, feminilidade e pertencimento racial, compondo um
rico imaginário poético que desafia os limites impostos pela colonialidade do saber e da
cultura. Sua presença na literatura goiana é expressão precoce da Amefricanidade enquanto
força criadora e insurgente.
No entanto, Cirne (2020) reconhece que os avanços institucionais dos últimos anos
ainda não foram suficientes para superar as barreiras do racismo e da intolerância religiosa. A
luta contra estes problemas requer uma transformação cultural profunda na sociedade
brasileira, na qual a educação desempenha um papel fundamental na promoção da igualdade,
do respeito e do reconhecimento das diferenças. Nesse sentido, é de extrema importância
que temas como espiritualidade afrodescendente, territorialidade e racismo religioso sejam
continuamente investigados por pesquisadores comprometidos com uma perspectiva
decolonial e antirracista.
Os estudos desenvolvidos por Thais Alves Marinho, Tânia Rezende e Mary Anne Vieira
Silva demonstram que, por meio da valorização dos saberes afrodiaspóricos, é possível
construir novas formas de compreensão e enfrentamento das estruturas coloniais ainda
vigentes. Essas produções acadêmicas não apenas denunciam as violências históricas e
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contemporâneas, mas também contribuem para o fortalecimento de epistemologias
insurgentes que afirmam identidades negras e rompem com a lógica de silenciamento
imposta pelo eurocentrismo, que as posiciona, ao mesmo tempo, como formas de resistência
ao epistemicídio denunciado por Boaventura de Sousa Santos (2007) e como resposta
concreta à colonialidade de gênero apontada por Breny Mendoza (2021).
Uma postura decolonial também requer, a partir do pensamento de Silveira (2019, p.
57-76), uma série de questões, sendo i) reconhecimento das lutas sociais e das formas de
organização que promovem mudanças no poder e transformações sociais, valorização dos
sujeitos de direitos e dos movimentos coletivos na busca por conquistas de direitos. ii)
Reconhecimento da produção de subjetividades como um processo contínuo de afirmação
das diferenças, singularidades e autonomia dos sujeitos de direitos, revelação das identidades
e formas de pensamento e vida anteriormente ocultas. iii) Defesa da interdependência entre
os direitos de liberdade e os direitos de igualdade, tanto na análise das contradições entre
legislações nacionais e internacionais quanto na identificação de caminhos para a efetivação
dos direitos expressados pelos indivíduos. iv) Reconhecimento da materialidade dos direitos
produzidos socialmente na esfera pública do Estado, com impacto real nas condições de vida
e na reversão dos processos de marginalização, desigualdade e violações; promoção de uma
orientação emancipatória nas práticas sociais, visando à construção de uma sociedade que
garanta liberdades e diversidade, além de relações igualitárias; produção de conhecimento
que contribua para a promoção dos direitos humanos e da diversidade, com relevância social
e conteúdo ético-político emancipatório.
O horizonte e o processo que se delineiam conforme Silveira (2019), especialmente no
contexto atual, incluem o fortalecimento de uma cultura dos direitos, com a participação ativa
de instituições defensoras dos direitos e promotoras de um futuro verdadeiramente
democrático; a promoção de uma convivência pacífica e solidária na sociedade, com a redução
das desigualdades e das violações, e uma disseminação ampla de ações em prol dos direitos
humanos; o reconhecimento das diferenças e a valorização das diversidades, com um
aumento do papel da sociedade civil na condução de projetos democráticos e emancipatórios,
buscando a hegemonia desses projetos na afirmação de novos modelos sociais.
A construção da Amefricanidade não é apenas um ato de resistência, mas uma
afirmação poderosa da identidade afrodescendente nas Américas. Este conceito, que integra
as influências africanas na cultura e na vida cotidiana, propõe um resgate das raízes e uma
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revalorização da contribuição africana à formação da sociedade. Ao desafiar a narrativa
colonial que marginaliza e silencia, a Amefricanidade se posiciona como um instrumento vital
na luta pela equidade, justiça e respeito à diversidade.
Assim, a continuidade das lutas sociais, o reconhecimento das diversas expressões
culturais e a implementação de políticas públicas efetivas são essenciais para garantir que a
voz afrodescendente seja não apenas ouvida, mas celebrada. O caminho para uma sociedade
mais justa e plural passa pelo reconhecimento da riqueza que a diversidade cultural
proporciona, promovendo uma educação inclusiva que valorize as histórias e os saberes
afrodescendentes. Somente por meio dessa transformação cultural e social poderemos
avançar em direção a um futuro no qual a igualdade e o respeito à dignidade humana sejam
verdadeiramente concretizados.
Considerações finais
A realidade brasileira, latino-americana e africana permanece atravessada por
desigualdades estruturais originadas nas matrizes coloniais, que ainda hoje operam por meio
da racialização, do epistemicídio e da exclusão cultural. A colonialidade, como continuidade
do colonialismo, manifesta-se não apenas nas estruturas econômicas e políticas, mas também
nas subjetividades, na produção do conhecimento e nos sistemas de valores. Nesse contexto,
torna-se urgente uma abordagem decolonial que questione essas hierarquias, visibilize os
saberes historicamente marginalizados e proponha novos horizontes de existência para os
povos afrodescendentes, tal como propõem Aníbal Quijano (2005), ao formular a noção de
colonialidade do poder, Walter Mignolo (2017), ao defender a opção decolonial como ruptura
epistêmica, e Breny Mendoza (2021), ao enfatizar a centralidade da colonialidade de gênero
nesse sistema de dominação.
Neste artigo, buscou-se demonstrar como a Amefricanidade, proposta por Lélia
Gonzalez (2020), constitui uma alternativa político-cultural profundamente enraizada nas
experiências afrodiaspóricas do continente latino-ameriano. Longe de ser apenas uma
categoria conceitual, a Amefricanidade atua como força epistemológica e prática de
resistência cotidiana à hegemonia eurocentrada. Sua potência reside justamente na
valorização das raízes africanas nas Américas e na possibilidade de reconstrução identitária
por meio da linguagem, da religiosidade, da estética, da memória e da ancestralidade.
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Exemplos como a luta pela legalização do candomblé, o enfrentamento ao racismo
religioso nas escolas, e projetos educativos como o da Escola Municipal Eugênia Anna dos
Santos e a Escola Afro-Brasileira Maria Felipa ilustram como a Amefricanidade se materializa
em práticas de resistência e de reexistência. Além disso, a atuação de intelectuais no estado
de Goiás, como Thais Alves Marinho, Mary Anne Vieira Silva e Tânia Rezende, bem como o
resgate da trajetória literária de Leodegária de Jesus, evidencia que essa luta também se
expressa nas territorialidades do saber, na cultura e na produção de memória coletiva.
Destaca-se ainda a contribuição de Cirne (2020), ao evidenciar o papel histórico do
movimento negro brasileiro na construção de estratégias de enfrentamento à colonialidade,
desde o Teatro Experimental do Negro até a atuação da Frente Negra Brasileira e do
Movimento Negro Unificado, revelando como a resistência negra articula cultura, política,
religião e educação. Soma-se a isso a reflexão de Silveira (2019), ao defender que a construção
de uma cultura dos direitos, pautada na valorização das diferenças e na afirmação das
subjetividades historicamente marginalizadas, constitui um caminho fundamental para
transformar as estruturas sociais e promover práticas emancipatórias que rompam com a
lógica excludente do pensamento colonial.
A superação da colonialidade passa, portanto, por políticas educativas, culturais e
epistêmicas que reconheçam a centralidade das culturas afrodescendentes na formação das
Américas. Fortalecer a Amefricanidade é promover uma reconfiguração das relações de
poder, uma ruptura com a lógica da homogeneização cultural e uma afirmação do direito à
diferença, à memória e à dignidade. Ao articular teoria e prática, como propõem Quijano,
Mignolo, Mendoza e Gonzalez, a Amefricanidade abre caminhos possíveis para a construção
de sociedades mais justas, plurais e emancipatórias.
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