Santificação pela penitência: análise comparativa das representações
de sofrimento a partir de perspectivas de gênero nas hagiografias de
Venâncio Fortunato e Baudonivia (sécs. VI e VII)
Sanctified by penance: a comparative analysis of the representations of
suffering from a gendered perspective in the hagiographies of Venantius
Fortunatus and Baudonivia (sixth and seventh centuries)
RAMOS, Júlia Rovida de Oliveira*
https://orcid.org/0009-0005-4439-8270
RESUMO: O presente artigo discutirá alguns
resultados da pesquisa de Iniciação Científica
intitulada A vida de Santa Radegunda de
Poitiers sob a perspectiva de gênero: uma
análise comparativa das hagiografias de
Venâncio Fortunato e Baudonivia (sécs. VI e
VII), que tem como fontes duas hagiografias
alto-medievais, ambas sobre Santa Radegunda
de Poitiers: uma elaborada pelo poeta e bispo
Venâncio Fortunato e a outra pela monja,
também de Poitiers, Baudonivia. O problema
central da pesquisa é investigar e discutir se há
presença de marcações de gênero nos textos,
considerando a diferença de gênero dos
autores, fazendo uso da metodologia
comparativa. Assim, neste artigo, após uma
breve apresentação da fundamentação teórica
e metodológica da pesquisa e das duas
hagiografias, analisamos trechos da obra que se
relacionam com a ideia de sofrimento, a fim de
percebermos as diferenças de gênero. Embora
com isso a hipótese inicial de pesquisa tenha
sido corroborada, ela foi ampliada para abarcar
também outras questões que influenciam nas
diferentes marcações de gênero. Tais questões
incluem as posições sociais de cada um dos
autores e suas diferentes relações com o ideal
e a vida monásticos.
PALAVRAS-CHAVE: hagiografias; gênero;
Venâncio Fortunato; Baudonivia.
ABSTRACT: This paper will discuss the results
of the undergraduate research project entitled
The life of Saint Radegund of Poitiers on a
gender studies perspective: a comparative
analysis of the hagiographies by Venantius
Fortunatus and Baudonivia (sixth and seventh
centuries), that has as primary documents two
early medieval hagiographies, both centered on
Saint Radegund of Poitiers: one written by the
poet and bishop Venantius Fortunatus, and the
other by the nun Baudonivia, also from Poitiers.
The main research question is to investigate
and discuss whether gender markings can be
identified in the texts, considering the gender of
each author, using a comparative methodology
to examine this issue. Following a brief
presentation of the theoretical and
methodological framework of the research, as
well as an introduction of both hagiographies,
we analyze passages from the texts related to
the theme of suffering to highlight potential
gender differences. While the findings support
the initial hypothesis, the study expands the
discussion to include other factors that
contribute to gender markings. These include
the distinct social positions of the authors and
their differing relationships with the ideals and
lived realities of monastic life.
KEYWORDS: hagiographies; gender; Venantius
Fortunatus; Baudonivia.
* Graduanda em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo São Paulo, SP. Bolsista PIBIC CNPQ durante o desenvolvimento da pesquisa que originou o
presente artigo, realizada no Departamento de História da FFLCH - USP, sob orientação da Profa. Dra. Maria
Cristina Correia Leandro Pereira. Agradeço aos colegas do Laboratório de Teoria e História das Mídias
Medievais (LATHIMM USP) pelos comentários valiosos ao longo do desenvolvimento do projeto e da
pesquisa. Email: julia.ramos02@usp.br.
Este é um artigo de acesso livre distribuído sob licença dos termos da Creative Commons Attribution License.
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Faces da História, Assis/SP, v. 12, n. 1, p. 275-288, jan./jun., 2025
Recebido em: 27/09/2024
Aprovado em: 12/04/2025
Considerações Iniciais
A hagiografia é um dos mais importantes gêneros literários da Idade Média, sendo
aquele que trata das narrativas de vidas de santos. Tais textos podem trazer informações
acerca da sociedade, das práticas devocionais, das relações eclesiásticas e de diversos
outros aspectos, tornando-se documentos privilegiados no estudo desse período histórico.
Este trabalho se debruça sobre dois exemplares desse gênero: duas vidas de Santa
Radegunda, escritas por Venâncio Fortunato e pela monja Baudonivia, entre os séculos VI
e VII.
Uma vez que ambas as hagiografias tratam da mesma santa e foram escritas por
um homem e uma mulher, a análise comparativa entre os textos pelo viés de gênero foi o
ponto central de interesse de nossa pesquisa de Iniciação Científica. A partir dos
procedimentos comparativos entre as duas fontes, pôde-se partir para dois níveis de
análise: O primeiro deles, mais amplo, considerava as características presentes em
passagens selecionadas por sua proximidade temática, e levava em conta as
características nas passagens que diferem em maior escala, e apontava tanto o que parece
ter origem na diferença de gênero, passando pelo que difere pelas questões estilísticas,
biográficas e sociais dos autores, quanto os elementos que misturam todos esses
parâmetros. O segundo nível aproximava-se de um aspecto específico que delimitou muito
claramente as diferenças de gênero e as imbricações entre elas e outras questões sociais:
a maneira como ambos os autores tratam o sofrimento e o flagelo aos quais Santa
Radegunda se submete.
A partir de Halsall (2020), Diem (2020) e Kreiner (2020) pode-se discutir alguns
elementos importantes para uma análise adequada das fontes. Halsall (2020), utilizando
as teorias de gênero de Joan Scott e Judith Butler, aponta que as marcações de expectativas
e papéis relacionados ao gênero se dão ao longo da vida de uma pessoa, sendo mais fluidos
na infância e adquirindo mais força na adolescência e início da idade adulta. Tais papéis
também diferem em relação à posição social e entre homens e mulheres, o que demonstra
o caráter relacional e social do gênero, e abre certas possibilidades de transgressão e
desconformidade. Aqui, o autor parte dos conceitos de gênero enquanto categoria de
análise histórica, atribuindo a historicidade pensada por Joan Scott (2019) ao definir o
gênero dessa maneira, de maneira que as construções de gênero não sejam monolíticas
nem dadas a priori, mesmo no período medieval. Também parte de Butler (2019), utilizando
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especialmente as questões da performatividade enquanto geradora da constituição dos
gêneros, essencialmente interpretados e reinterpretados diariamente, de maneira a
tornarem-se uma ilusão a qual atribui-se um estado nato e imemorial
1
. Diem (2020) e
Kreiner (2020), analisando dois objetos diferentes, formam uma imagem do que é o
cristianismo da Gália merovíngia
2
, especialmente de sua multiplicidade. Diem (2020)
propõe a impossibilidade de se discutir um monasticismo singular no período merovíngio,
com características bem demarcadas, e sublinha a existência de diversos tipos de
monasticismo, unidos por vocabulários e práticas que tinham algo em comum, mas
marcados por muitas diferenças nas regras, maneiras de expressar o ascetismo, formas
de organização, entre outras diferenças. Também Kreiner (2020) argumenta o caráter
múltiplo e complexo da hagiografia do período, na qual o hagiógrafo, ao privilegiar certas
características e práticas de um santo, molda como a comunidade que existe ao redor
daquele santo relaciona-se com os próprios valores mais gerais da religião cristã, ainda
muito fluidos e em delimitação.
A metodologia comparativa, caracterizada pela visão paralela dos dois textos,
colocados lado a lado para facilitar a percepção de similaridades e diferenças, foi a
selecionada para trabalhar com as duas hagiografias de Santa Radegunda
3
. Nesse artigo,
isso foi feito com os trechos que abordavam o sofrimento, após um exame comparativo
geral das duas obras.
Aspectos gerais das hagiografias
As duas hagiografias de Santa Radegunda, escritas por Venâncio Fortunato e
Baudonivia, foram muito raramente estudadas de maneira comparada. Quando da edição
moderna dos textos merovíngios, feita por Bruno Krusch, o próprio editor desconsiderou
o texto da monja, tratando-o como uma compilação posterior que não adicionaria novos
elementos (Wemple, 1981, p. 181). Porém, tal afirmação não se sustenta a partir da análise
das fontes lado a lado.
1
Não nos cabe aqui adentrar em muitos detalhes as complexas discussões de teorias de gênero. Para mais,
especialmente das duas autoras mencionadas e essenciais no campo, ver: Butler, 2019, e Scott, 2019.
2
A Gália é uma região histórica que compreende os territórios das atuais França, Bélgica, Alemanha e Países
Baixos, enquanto a dinastia merovíngia durou do século IV ao VIII.
3
A perspectiva geral da História Comparada enquanto metodologia do estudo histórico aqui utilizada passa,
essencialmente, pelas elaborações de Jurgen Kocka. Ela apresenta, tanto na teoria quanto na prática, formas
de pensar documentos e fontes históricas a partir de perguntas somente possíveis quando contraposições
e aproximações entre diferentes objetos. Para mais informações, ver Kocka, 2003.
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Inicialmente, é possível notar passagens nas quais Baudonivia faz referência à
primeira hagiografia, dizendo que não se estenderá em determinado tema por ser
tratado no primeiro livro: “Dedicando-se inteiramente a essas tarefas contínuas, como
foi relatado no primeiro livro, ela mereceu consagrar-se sem demora ao único Deus”
4
(Baudonivia; Santorelli, 1999, p. 77, tradução nossa, grifo próprio). Porém, passagens
muito divergentes entre os dois textos, seja no tratamento de um mesmo tema, seja na
adição de temas não mencionados por Fortunato no primeiro texto nem de forma
superficial.
Os trechos relativos à separação de Radegunda do rei Clotário permitem levantar
diversos pontos interessantes. De maneira geral, os dois textos tratam o evento de
maneira semelhante, enfatizando a intervenção divina para que Radegunda realizasse seu
propósito verdadeiro, que seria a dedicação à vida religiosa e meditativa em Deus, como
pode ser visto nos seguintes trechos: “E, como muitas vezes acontece por intercessão
divina para a salvação da alma, alguém enfrenta uma adversidade [...]”
5
(Fortunato;
Palermo, 1989, p. 106, tradução nossa) e Depois que, com o auxílio do poder divino, ela
se separou do rei terreno [...]”
6
(Baudonivia, Santorelli, 1999, p. 73, tradução nossa). Porém,
os detalhes relativos a como se tal separação, os motivos para ela e a reação do rei e
dos eclesiásticos ao redor do casal, trazem diferenças significativas, que vão além de
supressão de elementos abordados ou compilação. Na versão de Fortunato, a menção
ao assassinato do irmão de Radegunda, o que a impele a buscar ser consagrada diaconisa,
o que levaria a uma separação do rei. O bispo para quem ela pede tal consagração,
Medardo de Noyon, se recusa a fazê-lo por sua posição de esposa do rei, e todos os outros
bispos e eclesiásticos no local concordam com ele, com medo de uma possível reação do
monarca. No entanto, na descrição de Fortunato, Radegunda entra na sacristia, veste o
hábito monacal e diz aos presentes que se eles temem mais um homem do que a Deus, a
culpa pela perda de uma alma do Senhor será deles, o que faz com que o bispo a consagre
e oficialize a separação do rei, essa última fala sendo vista na passagem a seguir:
A rainha, ao saber disso, entrou na sacristia, vestiu o hábito monacal, caminhou
até o altar e dirigiu-se ao beatíssimo Medardo com estas palavras: ‘Se você adiou
minha consagração e temeu mais um homem do que a Deus, você será
4
No original: “Impegnata in ogni modo in queste occupazioni assidue, come è stato reso noto nel primo
livro, meritò di dedicarsi senza indugio all’unico Dio” (Baudonivia; Santorelli, 1999, p. 77).
5
No original: E poiché frequentemente in qualche caso con il favore della divinità si va incontro per la
salvezza dell’anima ad una disgrazia [...]” (Fortunato; Palermo, 1989, p. 106).
6
No original: “Dopo che, con l’aiuto della potenza divina, si separò dal re terreno [...]” (Baudonivia;
Santorelli, 1999, p. 73).
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responsabilizado, ó pastor, por seu esforço pela alma de uma de suas ovelhas’
7
(Fortunato; Palermo, 1989, p. 107, tradução nossa).
Enquanto isso, a versão de Baudonivia coloca ênfases consideravelmente
diferentes. No texto, a autora menciona que Radegunda se separou de seu marido pelo
auxílio da potência divina, e não diz mais nada sobre as circunstâncias nas quais isso se
deu. Em seguida, várias passagens que tratam das tentativas do rei de recuperar a
esposa, as quais se encerram com uma punição divina a Clotário e um pedido de perdão,
intercedido pelo bispo Germano, como se vê na passagem a seguir:
Então o rei, tremendo diante do juízo de Deus, pois sua rainha havia feito mais a
vontade de Deus do que a dele enquanto esteve com ele, implorou ao bispo que
fosse rapidamente até lá. Assim, o senhor Germano, homem apostólico, veio a
Poitiers e, entrando no mosteiro, no oratório dedicado a Maria Senhora,
prostrou-se aos pés da santa rainha, pedindo perdão em nome do rei
8
(Baudonivia; Santorelli, 1999, p. 77, tradução nossa).
Na hagiografia de Fortunato pode-se perceber um foco maior na atitude de
Radegunda, que toma as rédeas da sua consagração e invoca a autoridade divina em seu
próprio nome. no texto de Baudonivia nota-se o foco na própria intervenção de Deus,
que a punição e o perdão ao rei sem que Radegunda peça explicitamente por isso,
apenas em proteção à vida monástica adotada por ela. Além disso, no texto de Baudonivia
uma maior ênfase na comunidade monástica formada por Radegunda, com passagens
que misturam os eventos relativos à separação do rei com os detalhes de sua dedicação,
cuidado e bondade em relação as outras monjas que se unem ao seu redor. Com isso pode-
se perceber duas visões diferentes que os autores trazem em relação à santa. Ao frisar os
elementos comunitários da vida de Radegunda, Baudonivia coloca-se como uma
observadora próxima, que se beneficiou e fez parte da comunidade fundada pela santa,
enquanto Fortunato mantém uma posição mais afastada e eleva sua força de vontade em
seguir a vida monástica.
Além dos elementos percebidos nos trechos relativos à separação de Radegunda,
uma das grandes diferenças é relativa à busca por relíquias feita pela santa. Fortunato não
7
No original: La regina venuto a sapere questo fatto, entrata nella sagrestia, indossa l’abito monacale,
s’avanza verso l’altare si rivolge con queste parole al beatissimo Medardo, dicendo: ‘Se tu avrai rimandato
di consacrarmi e avrai temuto piú un uomo che Dio, ti sarà chiesto conto, o pastore, del tuo impegno per
l’anima de una tua pecorella’” (Fortunato; Palermo, 1989, p. 107).
8
No original: “Allora il re, tremendo il giudizio di Dio, perché la sua regina aveva fatto più la volontà di Dio
che la sua, finché era rimasta con lui, prega il vescovo di andare là rapidamente. Così il signore Germano,
uomo apostolico, viene a Poitiers e, entrato nel monastero, nell’oratorio dedicato al nome di Maria Signora,
si getta ai piedi della santa regina, chiedendo perdono per il re” (Baudonivia; Santorelli, 1999, p. 77).
280
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faz nenhuma menção à busca desses objetos, enquanto Baudonivia dedica múltiplos
versos a isso, e um especialmente longo a uma relíquia da Santa Cruz em Constantinopla.
Também as seleções e descrições de milagres relatados por ambos os autores são
diferentes, embora tenham sido selecionados alguns milagres parecidos, em alguns casos
quase idênticos, para compará-los. É perceptível no texto de Baudonivia a utilização de
uma linguagem menos erudita, com expressões repetitivas e frases prontas, como fica
claro no seguinte trecho, que encerra a narrativa de um milagre de cura da cegueira de
uma mulher: “[...] voltou para casa e salva com seus próprios pés, sem que ninguém a
amparasse, e continua até hoje a render graças ao Senhor
9
(Baudonivia; Santorelli, 1999,
p. 85, tradução nossa, grifo próprio).
A seleção dos milagres abordados nos textos de Fortunato e de Baudonivia é muito
semelhante, mas com algumas diferenças importantes que permitem levantar hipóteses.
No texto de Baudonivia uma presença maior de milagres voltados para a comunidade
do mosteiro da Santa Cruz de Poitiers, sejam curas ou exorcismos realizados em monjas,
sejam para viajantes ou pessoas realizando tarefas para a santa. Já no texto de Fortunato
uma priorização de milagres realizados para a comunidade externa, além de muito mais
menções aos hábitos considerados santificadores, como o autoflagelo e abstinência, do
que há no texto da monja. Patricia Blanchette argumenta que:
No começo do século V, entretanto, cada vez menos mulheres ganhavam seus
lugares entre os cristãos canonizados por demonstrarem audácia ou liderança.
Neste período, um novo modelo de santidade feminina surgiu: era um modelo
baseado primariamente em altruísmo e interesses comunitários. Enquanto os
mártires e as mães do deserto dos séculos II, III e IV eram lembradas por seus
atos de desafio e independência, as rainhas santas e mulheres nobres dos séculos
V, VI, VII e VIII, eram mais lembradas por seus trabalhos públicos do que seus
triunfos pessoais (Blanchette, 2005, p. 111, tradução nossa).
10
Desta forma, pode-se perceber que Baudonivia traz mais elementos aderindo a
esse novo modelo, enquanto Fortunato, apesar de frisar em diversas ocasiões a nobreza,
o cuidado e a formação da comunidade de Radegunda, traz com mais força o desejo pelo
martírio, o passado trágico e os comportamentos ascéticos da santa, remetendo aos
9
No original: “[...] ritornò sana e salva a casa con i suoi piedi, senza che alcuno la sorreggesse, e continua
fino a oggi a rendere grazie al Signore” (Baudonivia; Santorelli, 1999, p. 85).
10
No original: By the start of the fifth century, however, fewer and fewer women earned their place among
the Christians canonized on account of audacity or leadership. During this era, a new model of female
sanctity emerged: it was a model based primarily on selflessness and communitarian interest. While the
martyrs and desert mothers of the second, third, and fourth centuries were remembered for their acts of
defiance and independence, the saintly queens and noblewomen of the fifth, sixth, seventh, and eighth
centuries are remembered more for their public works than for personal triumphs(Blanchette, 2005, p.
111).
281
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modelos de santidade mais anteriores. As santas merovíngias, principalmente aquelas de
origens da realeza, traziam consigo diversos dos papéis de intercessoras e apaziguadoras
esperados das rainhas do período. Nas palavras de Jo Ann McNamara:
Radegunda estendeu o papel de Genoveva como uma defensora dos prisioneiros
e pessoas humildes. Repetidamente, ela implorou que Deus ajudasse os doentes
e implorou para que o rei ajudasse os necessitados, estabelecendo um ritual no
qual mulheres poderiam expressar o lado piedoso da realeza sem suavizar a
imagem de guerreiro feroz do rei. Esse se tornou um papel tradicional para
rainhas merovíngias (McNamara, 1992, p. 6, tradução nossa).
11
Um questionamento que pode ser levantado a partir disso é da possibilidade de
imbricação entre a adesão de Fortunato a ideais de santidade e hagiografia provenientes
do período da Antiguidade Tardia com sua formação intelectual, tendo passado por
estudos em gramática, retórica, métrica e direito, privilegiando os conhecimentos
clássicos. Por outro lado, pode-se questionar se a utilização de relatos e adjetivos que se
voltam para a força da comunidade e da bondade de Radegunda por Baudonivia ocorre por
conta de sua participação na comunidade formada. Ambos os elementos, seja a formação
intelectual de Fortunato, seja a participação de Baudonivia no mosteiro fundado por
Radegunda, não são elementos direta e obrigatoriamente ligados ao gênero dos autores,
mas que se relacionam com ele dentro do contexto social da Gália merongia. Vale a pena
aprofundar tal argumento, a partir de uma análise mais específica de um aspecto das
hagiografias.
A questão do sofrimento nas vidas de Santa Radegunda
As hagiografias de Santa Radegunda, para além dos pontos já levantados, chamam a
atenção no que diz respeito a um aspecto mais específico: as descrições feitas de seus
momentos de penitência e autoflagelo. A penitência é um elemento muito importante na
construção da santidade, e pode envolver desde punições por pecados cometidos,
momentos no calendário cristão que já envolvem algum tipo de penitência como a
quaresma, ou um fervor próprio independente da época, no caso de santos que se
submetem a provações constantes. Nas palavras de Vauchez, que menciona a entrada do
ideal de ascetismo na cristandade ocidental:
11
No original: Radegund extended Genovefa's role as an advocate for prisoners and for humble people.
Repeatedly, she begged God to help the sick and begged the king to help the needy, establishing a ritual
whereby women could express the merciful side of royalty without softening the fierce warrior image of
the king. This became a traditional role for Merovingian queens” (McNamara, 1992, p. 6).
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Esta obra [a Vita Martini, de Sulpício Severo], que iria exercer, uma profunda
influência sobre a hagiografia medieval, visa, de facto, apresentar o seu herói
como o Santo António de Ocidente. Assiste-se à vitória do ideal da perfeição do
ascetismo galo-romano concebido, segundo a expressão de Paolino da Nola (Ep.
2, 12), como “um mártir que não deita sangue” (Vauchez, 1989, p. 214).
A análise das passagens relativas às penitências de Radegunda iniciou-se com um
levantamento quantitativo dos dois textos, comparando a quantidade de menções feitas
por Fortunato e Baudonivia ao sofrimento da santa de modo geral, buscando palavras
como “cilício”
12
, “jejum”, “martírio”, “penitência”, entre outras do mesmo campo
semântico. O primeiro autor realizou 29 menções ao longo da obra, enquanto a segunda
realizou 15 menções. Levando em consideração as diferenças de tamanho das obras, com
as traduções tendo, respectivamente, quarenta e dezenove páginas, a diferença em
menções não parece expressiva. Porém, na análise qualitativa das menções, fica
perceptível que cada um dos hagiógrafos trata o sofrimento de uma maneira, com adjetivos
muito diferentes entre eles, principalmente em intensidade.
Um dos trechos mais fortes na vida escrita por Venâncio Fortunato trata de um
momento de autopunição da santa, com um sofrimento físico descrito em termos bastante
gráficos. Segue o trecho:
Além disso, aquela que se autoflagelava, concebeu um tormento ainda maior.
Durante uma Quaresma, além de um jejum rigoroso e da tortura de uma sede
ardente, e apesar do risco de ferir seus delicados membros com o cilício de
cerdas ásperas, ordenou que lhe trouxessem uma bacia de bronze cheia de
brasas. Com todas as outras já tendo se retirado, com membros trêmulos e alma
preparada para o sofrimento, e vivendo em uma época sem perseguições, ela
meditou em se tornar mártir por si mesma. Para aplacar um espírito tão
fervoroso, decidiu inflamar seu corpo: colocou sobre si o bronze incandescente,
seus membros queimados estalavam, sua pele se consumia e onde o calor
atingia, formava-se uma profunda cavidade. Sem falar, escondia as feridas, mas
o que a voz não revelava do sofrimento, era evidenciado pelo sangue que se
apodrecia. Assim, a mulher, por sua doçura para com Cristo, aceitou de bom
grado tantas amarguras. E assim, aconteceu que os milagres não permitiram que
ficasse oculto aquilo que ela mesma havia escondido
13
(Fortunato; Palermo, 1989,
p. 121-122, tradução nossa, grifo próprio).
12
Cordão ou veste feita em tecido áspero ou crina de animais, usado sobre a pele nua com o intuito de
machucá-la, como uma penitência ou punição.
13
No original: “Inoltre, colei che era torturatrice di se stessa escogitava qualcosa di piú grave. Durante una
delle Quaresime, al di di un severo digiuno e del tormento di una sete ardente, oltre il rischio del cilicio
che con le ispide setole rovinava le tenere membra, comanda che le si porti un bacino di bronzo pieno di
carboni ardenti. Essendo tutte le altre andate via di là, con le membra palpitanti, l’animo armato contro la
sofferenza, per il fatto che non erano piú i tempi delle persecuzioni meditava di rendersi martire da se
stessa. Frattanto per raffreddare un animo tanto ardente, delibera di infiammare il corpo: vi pone sopra il
bronzo incandescente, le membra che bruciano stridono, la pelle si consuma e dove arriva il calore si forma
una profonda cavità. Senza parlare nasconde i buchi, ma ciò che la voce non rivela nella sofferenza,
rendeva manifesto il sangue che si putrefaceva. Così la donna per la sua dolcezza verso Cristo accolse
283
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Na vida escrita por Baudonivia não nenhuma menção a um sofrimento tão
severo quanto o descrito por Fortunato, e, para fins comparativos, foi selecionado um dos
trechos que mais se aproximam de um sofrimento físico.
Não permitiu que sua serva a ajudasse, pois a serva devotamente corria para
realizar seus serviços; ela mesma, por outro lado, se submeteu a um rigoroso
jejum, até onde a fraqueza permitiu, com sua mente voltada para Deus, não
buscando mais alimentos terrenos. Depois de vestir o hábito religioso, construiu
para si um leito penitencial; nunca foi sustentada por macias penas nem adornada
com tecidos de linho brilhante, ela domou seus delicados membros com cinzas e
cilícios em vez de qualquer tipo de roupa. O primeiro livro nos ensinou muito
sobre o rigor de sua abstinência e serviço. De fato, ela se tornou tão pobre por
amor a Deus que se tornou um exemplo para os outros
14
(Baudonivia; Santorelli,
1999, p. 77-79, tradução nossa).
A partir dos dois trechos, pode-se depreender certos elementos da escrita dos
autores que continuam a exemplificar a proposta de que as marcas de gênero estão
imbricadas com as posições sociais de cada um e suas relações com a santa.
Primeiramente, é importante notar que o sofrimento de Radegunda é um dos pontos
centrais da hagiografia de Fortunato. No trecho sob análise a menção ao tempo dos
mártires, o qual já estava superado na época em que a santa viveu, no século VI, o que a
faz buscar uma forma de martírio por si própria. Essa também é uma das primeiras
descrições que Fortunato faz de Radegunda no início da obra, relatando seu fervor
religioso desde a infância, quando ela demonstrava o desejo de ter nascido no tempo dos
mártires e de ter sido mártir também: “[...] falando frequentemente com as crianças,
demonstrava seu desejo de se tornar mártir, se as condições da época permitissem"
15
(Fortunato; Palermo, 1989, p. 97-98, tradução nossa).
A referência ao martírio, que era uma das primeiras maneiras de se atingir a
santidade, carrega uma força importante no gênero literário da hagiografia,
principalmente no momento posterior aos mártires, quando se passa a buscar por outras
volentieri tante amarezze. Quindi accadde che i miracoli non fecero passare sotto silenzio ciò che ella
stessa aveva tenuto nascosto” (Fortunato; Palermo, 1989, p. 121-122).
14
No original: “Non permise alla serva di darle aiuto, poiché devota correva a compiere il servizio; si chiuse
invece in così arduo rigore di astinenza, fino a che la debolezza glielo permise, che, la mente rivolta a Dio,
ormai non cercava il cibo terreno. Dopo aver indossato l’abito religioso, construì per un lettino
penitenziale; non una volta la sostennero morbide piume la abbigliò la lucentezza della tela di lino, lei
che domò le tenere membra con la cenere e il cilicio invece di qualsiasi tipo di indumenti. Il primo libro ci
ha insegnato molte cose riguardo al rigore dell’astinenza e del servizio, Infatti si fece tanto povera per Dio
da offrire un esempio agli altri” (Baudonivia; Santorelli, 1999, p. 77-79).
15
No original: “[...] parlando frequentemente con i fanciulli, si mostrava desiderosa di diventare unna
martire, se le condizioni del tempo l’avessero permesso” (Fortunato; Palermo, 1989, p. 97-98).
284
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formas de atingir a posição de santo. A menção a esse modelo de santidade, e ao esforço
feito por Radegunda para atingi-lo, apesar do tempo em que vive, demonstra uma escolha
feita por Fortunato dentro das possibilidades demarcadas da escrita hagiográfica. Também
aqui pode ser trazido o argumento levantado por Caroline Walker Bynum (2013), de que
os comportamentos penitentes, especialmente em relação à comida e ao jejum, que
aparecem com grande força no trecho de Fortunato, são grandes assinaladores de
santidade, e especialmente em mulheres. Nas palavras da autora: “Comportamentos
relacionados à comida eram centrais para as mulheres, socialmente e religiosamente, não
porque a comida era um recurso sob o controle das mulheres, mas também, porque por
meio da comida, as mulheres controlavam a si mesmas e ao mundo” (Bynum, 2013, p. 253,
tradução nossa).
16
Porém, é no contraste com o texto de Baudonivia que é possível
formular outras hipóteses a serem depreendidas dessa escrita.
O trecho da hagiografia escrita pela monja frisa a santidade advinda do sofrimento
de Radegunda, porém não se alonga na temática, e ela não é o ponto principal do verso
completo. Na continuação, a autora menciona como as atitudes da santa eram sempre
voltadas a oferecer um exemplo para sua comunidade, e auxiliar as outras monjas ao seu
redor em suas vidas espirituais. A penitência é um dos exemplos dados, mas Baudonivia
também menciona sua pregação, seu auxílio nas leituras, seu cuidado e sua bondade em
relação às outras monjas, com um comportamento muito severo em relação a si mesma,
mas bondoso em relação aos outros, em um movimento para caracterizar a santidade de
Radegunda de uma maneira diferente daquela feita por Fortunato.
Com isso, vale a pena retomar o argumento desenvolvido por Suzanne Wemple,
que marca a existência de ideais de santidade femininos introduzidos pela escrita
hagiográfica de mulheres, mesmo que em raras ocasiões. Nas palavras da autora:
Autoras escrevendo sobre mulheres introduziram valores e ideais femininos na
hagiografia. Elas trocaram o ideal da santa assexual, a ‘virago’, cujo grande feito
era a imitação das virtudes masculinas, por uma heroína que se apoiava em
atributos femininos para atingir a santidade (Wemple, 1981, p. 183, tradução
nossa).
17
16
No original: “Food related behavior was central to women socially and religiously not only because food
was a resource women controlled but also because, by means of food, women controlled themselves and
their world” (Bynum, 2013, p. 253).
17
No original: Female authors writing about women introduced feminine values and ideals into hagiography.
They replaced the ideal of the asexual female saint, the ‘virago’, whose greatest accomplishment was the
imitation of male virtues, with a heroine who relied on female attributes to achieve sanctity (Wemple, 1981,
p. 183).
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certos elementos frágeis no argumento da autora, principalmente no que diz
respeito ao essencialismo de gênero, dada a dificuldade e a necessidade de cuidado para
definir o que seria um ideal de santidade feminino. Entretanto, ele é corroborado
parcialmente pela análise da fonte, desde que a nuance necessária esteja demarcada. A
diferença entre os motivos pelos quais Fortunato e Baudonivia utilizam o sofrimento como
marca da santidade de Radegunda pode se dar pelas posições que cada um tinha em
relação à santa, e, por consequência, por seu gênero. Fortunato, sendo um observador
obrigatoriamente externo à comunidade monacal, e trazendo uma bagagem intelectual
muito diferente daquela que estava disponível para Baudonivia, utiliza o sofrimento como
um dos ideais mais importantes da santidade, apoiado na tradição dos mártires para
reverenciar a santa com a qual ele tinha uma dependência financeira e uma amizade.
Paralelamente, não se sabe que bagagem intelectual Baudonivia tinha, apenas que
ela era limitada pelas possibilidades que estavam disponíveis para mulheres no período,
além do fato de que ela era uma monja do mosteiro fundado por Radegunda, o que faz dela
uma das herdeiras espirituais da santa. Tal posição coloca uma característica diferente na
reverência que ela apresenta, o que explica o foco na formação da comunidade, no
tratamento dado às monjas e à santidade pelo exemplo, uma vez que sua participação na
comunidade formada por Radegunda se dava em função de seu gênero. Com isso, pode-se
reforçar o argumento em favor da presença de elementos orientados pelo gênero da
autora, que aparecem no tratamento da santa em função do convívio no mosteiro
exclusivamente feminino.
Fica claro a partir daí que as questões de gênero são mais complexas do que o
inicialmente imaginado. As duas hagiografias trazem descrições de Santa Radegunda que
estão relacionadas às visões que ambos tinham de sua santidade, uma, em Fortunato, mais
relacionada a uma santa modelar e distante, e outra, em Baudonivia, relacionada a um
exemplo pessoal, e uma irmã e mãe espiritual, semelhante na vida monástica. As visões
relacionam-se com o gênero, mas também com questões de posição, a de poeta
confrontada com a de monja, e, ao mesmo tempo, as posições relacionam-se novamente
com o gênero, interconectando as marcas presentes e as hipóteses formadas.
Considerações finais
Assim, a partir do quadro teórico-metodológico e dos dois níveis de análise das
fontes propostos, é possível corroborar parcialmente a hipótese inicial da pesquisa.
Sabendo das formas complexas de atribuição de papéis de gênero na Gália merovíngia, e
das relações destes com a hagiografia e o monasticismo, nota-se a imbricação do gênero
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dos autores com suas posições sociais de poeta e bispo, e de monja. Na análise geral é
possível perceber uma diferença marcante entre os textos de Venâncio Fortunato e
Baudonivia, mas que não se explica unicamente pelo gênero dos dois. duas posições
diferentes em relação à santidade de Radegunda, sendo uma mais distanciada e formulaica,
de Fortunato, e uma mais próxima, de Baudonivia. As explicações possíveis a partir daí são
múltiplas, envolvendo a formação intelectual do poeta, o desconhecimento em relação à
trajetória de Baudonivia, a relação da monja de herança espiritual em relação à santa e a
dependência financeira do poeta, e complexificam as razões para as diferenças. Além
disso, a possibilidade da presença de marcas de gênero em qualquer das visões de
Fortunato em relação a Radegunda, uma vez que a discussão de santas mulheres por
hagiógrafos homens pode informar mais sobre a visão que os homens tinham acerca das
santas do que das santas “em si”, como argumentado por Catherine Mooney. Nas palavras
da autora:
Dado o cunho patriarcal e misógino da sociedade medieval, e em particular, da
Igreja medieval, muitos estudiosos têm expressado ceticismo em relação a essas
fontes, notando que as representações de mulheres santas por autores
provavelmente revelam muito mais sobre as noções idealizadas de santidade
feminina e seus desdobramentos nas vidas das mulheres que os homens do que
sobre as santas em si (Mooney, 1999, p. 3, tradução nossa).
18
Ainda assim, alguns itens elencados, como a filiação espiritual de Baudonivia,
trazem um caráter de gênero mais marcado, uma vez que apenas uma monja poderia ter
essa relação no contexto do mosteiro de gênero único fundado por Santa Radegunda. Mas
a formação intelectual ou a dependência financeira de Fortunato não estão intimamente
relacionados ao fato dele ser um homem, ainda que a primeira fosse muito mais possível
para homens do que para mulheres no período.
Em relação ao tratamento do sofrimento, a diferença na ênfase e na força das
menções também complexifica a hipótese das marcas de gênero. Assim como de modo
mais geral em sua hagiografia, Baudonivia prioriza a comunidade formada pela santa, e o
sofrimento é uma das maneiras pelas quais ela atinge o patamar da santidade que lhe
confere autoridade nessa comunidade. Fortunato, por sua vez, frisa a referência ao
martírio e ao desejo da santa de ter sido mártir, o que era impossível na realidade em que
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No original: Given the patriarchal and misogynistic cast of medieval society and, in particular, the
medieval Church, many scholars have increasingly expressed skepticism regarding these sources, noting
that male-authored depictions of holy women, however sincerely intentioned, are likely to reveal far more
about men's idealized notions of female sanctity and its embodiment in women's lives than they reveal
about the female saints themselves” (Mooney, 1999, p. 3).
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vivia e o que foi por ela atingido por meio do sofrimento. Novamente aqui se nota a ligação
próxima de Baudonivia com a santa, uma vez que ela fazia parte do mosteiro da Santa Cruz
de Poitiers, fundado por Radegunda, o que está ligado diretamente ao fato de que ela era
uma mulher. Nesse sentido, é possível notar como interferências também das
intencionalidades de cada autor, uma vez que cada um tem um tipo de relação com o
mosteiro, o que expõe possibilidades diferentes de tratamento da santa fundadora para
construir uma imagem específica dela.
Fica aparente, após as comparações, que a pergunta inicial, relativa à presença ou
não de marcas de gênero nas duas hagiografias de Santa Radegunda, é mais complexa do
que o inicialmente proposto. Sim, marcas de gênero nas passagens dedicadas ao
sofrimento nas hagiografias escritas por Venâncio Fortunato e Baudonivia, mas assim
como se deve levar em conta o gênero dos autores, deve-se levar em conta suas posições
sociais fator que, por sua vez, também é influenciado em grande medida por seus
gêneros e pelos papéis sociais possíveis e esperados para cada um, em uma relação
profundamente interligada e dialética.
Referências
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