Faces da História, Assis/SP, v. 12, n. 1, p. 275-288, jan./jun., 2025
Há certos elementos frágeis no argumento da autora, principalmente no que diz
respeito ao essencialismo de gênero, dada a dificuldade e a necessidade de cuidado para
definir o que seria um ideal de santidade feminino. Entretanto, ele é corroborado
parcialmente pela análise da fonte, desde que a nuance necessária esteja demarcada. A
diferença entre os motivos pelos quais Fortunato e Baudonivia utilizam o sofrimento como
marca da santidade de Radegunda pode se dar pelas posições que cada um tinha em
relação à santa, e, por consequência, por seu gênero. Fortunato, sendo um observador
obrigatoriamente externo à comunidade monacal, e trazendo uma bagagem intelectual
muito diferente daquela que estava disponível para Baudonivia, utiliza o sofrimento como
um dos ideais mais importantes da santidade, apoiado na tradição dos mártires para
reverenciar a santa com a qual ele tinha uma dependência financeira e uma amizade.
Paralelamente, não se sabe que bagagem intelectual Baudonivia tinha, apenas que
ela era limitada pelas possibilidades que estavam disponíveis para mulheres no período,
além do fato de que ela era uma monja do mosteiro fundado por Radegunda, o que faz dela
uma das herdeiras espirituais da santa. Tal posição coloca uma característica diferente na
reverência que ela apresenta, o que explica o foco na formação da comunidade, no
tratamento dado às monjas e à santidade pelo exemplo, uma vez que sua participação na
comunidade formada por Radegunda se dava em função de seu gênero. Com isso, pode-se
reforçar o argumento em favor da presença de elementos orientados pelo gênero da
autora, que só aparecem no tratamento da santa em função do convívio no mosteiro
exclusivamente feminino.
Fica claro a partir daí que as questões de gênero são mais complexas do que o
inicialmente imaginado. As duas hagiografias trazem descrições de Santa Radegunda que
estão relacionadas às visões que ambos tinham de sua santidade, uma, em Fortunato, mais
relacionada a uma santa modelar e distante, e outra, em Baudonivia, relacionada a um
exemplo pessoal, e uma irmã e mãe espiritual, semelhante na vida monástica. As visões
relacionam-se com o gênero, mas também com questões de posição, a de poeta
confrontada com a de monja, e, ao mesmo tempo, as posições relacionam-se novamente
com o gênero, interconectando as marcas presentes e as hipóteses formadas.
Considerações finais
Assim, a partir do quadro teórico-metodológico e dos dois níveis de análise das
fontes propostos, é possível corroborar parcialmente a hipótese inicial da pesquisa.
Sabendo das formas complexas de atribuição de papéis de gênero na Gália merovíngia, e
das relações destes com a hagiografia e o monasticismo, nota-se a imbricação do gênero