O feminino no teatro de Plauto: crítica à sociedade e à política
da República Romana na comédia O Mercador
The feminine in Plautus’ theater: criticism of Roman Republican society and
politics in Mercator
LUCON, Lais Felippe *
https://orcid.org/0000-0002-1603-7030
RESUMO: O presente artigo discute as
personagens femininas do teatro de Plauto,
evidenciando sua atuação como forma de criticar
a ordem político-familiar da sociedade da
República Romana. Ao nos dedicarmos à leitura
das obras plautinas, percebemos o modo pelo
qual o discurso teatral, dispondo de sentido em
seu tempo, reverbera a sociedade da sua época.
Nesse sentido, intentamos analisar passagens
selecionadas da peça O Mercador, nas quais a
escrita de Plauto projeta mulheres em posições e
diálogos dissonantes ao arranjo social romano.
Teoricamente, amparamo-nos na perspectiva de
gênero e consideramos o político como área de
estudo de articulação das relações do social
romano. Assim, revelamos uma imagem das
personagens femininas na documentação
plautina e demonstramos como suas ações
aparecem em face os moldes de poder da cena
republicana.
PALAVRAS-CHAVE: Teatro plautino; Atuação
feminina; Relações político-familiares;
República Romana.
ABSTRACT: This article discusses the female
characters in Plautus’ theater, highlighting their
roles as a way to criticize Rome’s political and
familial order. Through our reading of Plautine
corpus, we perceive how theatrical discourse,
imbued with meaning in its time, reflects its
society. In this sense, we aim to analyze selected
passages from Mercator (The Merchant). Plautus’
writing portrays women in positions and
dialogues dissonant with the Roman social
arrangement. Theoretically, we draw on a gender
perspective, considering politics as a field for
studying the articulation of social relations in
Rome. Thus, we present the portrayal of the
female characters in Plautine sources and
demonstrate how their roles challenge or reflect
Republican-era power dynamics.
KEYWORDS: Plautine theater; Female roles;
Social-political relations; Roman Republic.
Recebido em: 17/12/2024
Aprovado em: 10/03/2025
* Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
Filho” (UNESP), campus de Franca/São Paulo, sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Margarida Maria de Carvalho.
Bolsista pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processo 2023/17770-5.
Pesquisadora integrante do Grupo do Laboratório de Estudos Sobre o Império Romano G. LEIR (UNESP/Franca).
E-mail: lais.lucon@unesp.br.
Este é um artigo de acesso livre distribuído sob licença dos termos da Creative Commons Attribution License.
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Considerações iniciais
O contexto histórico romano dos séculos III e II AEC, conhecido como Média República,
foi assinalado pelas constantes expansões ao longo do Mediterrâneo. Diante dos novos
horizontes, Roma vivenciou uma vasta mescla cultural, principalmente marcada no seu
desenvolvimento em face ao mundo grego. Precisamente nesse momento multicultural de
exposição, seguiram-se os caminhos sobre os quais o teatro e as comédias vieram a se
desenvolver. Sobre isso, o historiador Tito Lívio (59 AEC 17 EC) nos conta que dançarinos e
músicos etruscos performaram pela primeira vez em Roma, no ano 364 AEC, marcando o
princípio dos jogos cênicos, denominados ludi scaenici (Von Albrecht, 1997, p. 50). Anos
depois, em 240 AEC, Lívio Andrônico (c. 284 204 AEC), traduziu dramas gregos que foram
apresentados em jogos organizados após a Primeira Guerra Púnica (264 a 241 AEC),
evidenciando a primeira produção do teatro latino (Manuwald, 2019, p. 17-18).
Em meados do século III AEC, nasceu o comediógrafo conhecido por nós como Plauto
(c. 255/250 184 AEC)
1
. Ainda que informações sobre a vida e obra de nosso poeta estejam
cercadas por incertezas, sabemos que vivenciou uma série de transformações profundas na
República. Quando adulto, por exemplo, testemunhou a projeção do poder romano tomar
proporções ainda maiores com os acontecimentos da Segunda Guerra Púnica entre 218 a 201
AEC período que coincidiu com a produção e difusão de suas obras em Roma
2
. À vista desse
panorama, as peças plautinas, atuando como notável fonte de práticas do teatro, revelam-
nos, também, evidências sobre aspectos do arco temporal no qual estavam inseridas. Melhor
dizendo, pontuamos como o teatro de nosso comediógrafo facejou uma sociedade cuja vida
estava caracterizada por transformações e, nessa lógica, expressou caráter significativo ao
passo em que, estando vinculado à vida do cenário que o formava, refletia e personificava o
meio social republicano que o consumia (Von Albrecht, 1997, p. 21).
1
Segundo Adrian S. Gratwick (1973), sobreviveram até nossos dias cinco denominações a Plauto, são elas, no
latim: Plautus, Macci Titi, Maccus, Maccius e T. Macci Plauti. A forma mais recorrente nas fontes, Plautus,
traduzida para o português como Plauto, acompanha os historiadores envolvidos nos estudos plautinos. Sobre
sua vida, de acordo com Gian Biagio Conte (1987, p. 50), o ano aproximado de nascimento foi obtido
indiretamente de uma referência feita por Cícero. Frequentemente, deparamo-nos com afirmações de que
Plauto nasceu em 254 AEC (Dutsch; Franko, 2020). Ainda que o ano seja possível, os escritos antigos não fixam
uma data específica. No que diz respeito ao fim de sua vida, Cícero (Brut., 60 apud Hunter, 2010) relatou que
Plauto morreu em 184 AEC.
2
Gélio (Noct. Att., XVII, 21, 47) relatou que a carreira de Plauto coincidiu com a carreira de Catão, o Velho, na
política, ou seja, entre 205 e 184 AEC. Nesse sentido, Gratwick (1993, p. 1) assinala marcações do ano de
apresentação no Estico (200 AEC) e no Psêudolo (191 AEC), bem como alusões históricas que indicam as datas
do Soldado Fanfarrão (204 AEC), Cásina e As Báquides (ambas depois de 186 AEC).
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Nesse sentido, a construção das peças demonstra nossa compreensão de Plauto como
gerador, reprodutor ou subversor de práticas sociais e ideais romanos de seu tempo. Tendo
em mente a noção dessas obras como substanciais para um estudo da sociedade romana,
observamos a relevância das figuras femininas dentro dos argumentos de cada texto, questão
que nos indicou constantes subversões à ordem apreendida. Desenvolvemos, então, nossa
proposta para este artigo: Plauto realizava críticas às relações de poder existentes em seu
tempo, utilizando-se de personagens femininas para tal. Assim, recorremos à peça O
Mercador, acentuada por seu caráter crítico explicito para nosso estudo. A partir da análise
das passagens, portanto, revelamos o papel exercido pelas mulheres na comédia plautina,
bem como uma percepção de personagens ativas em críticas ao meio político-familiar da
República.
As relações de poder em Roma
Antes de nos debruçarmos à construção das relações de poder no contexto romano,
convém assinalar questões relacionadas à perspectiva de gênero. Nas palavras de Joan
Wallach Scott (2018, p. 42), “[...] o gênero é um elemento constitutivo das relações sociais
com base nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primária de
significar relações de poder.” Em um primeiro momento, também marcamos como as
identidades do feminino e do masculino, entendidos como os papéis atribuídos às mulheres e
aos homens, configuram-se flexíveis ao passo em que são formadas e reformadas no
processo histórico (Scott, 2018, p. 32). Assim, a História figura tanto como local de registro
quanto como participante na produção de noções sobre o gênero. O conhecimento produzido
concerne, também, a instituições e estruturas, bem como práticas cotidianas. Isto é,
baseando-se nas relações entre os sexos, podemos compreender mais profundamente os
padrões dispostos nas organizações de cada tempo histórico.
De maneira mais específica, o gênero nos oferece instrumentos para pensar nas
formas como as hierarquias, de inclusão e exclusão, constituíram-se na cena política, social e
familiar do mundo romano (Scott, 2018, p. 10). Na cena teatral, por sua vez, temos em mente
que “[...] as peças latinas foram escritas para audiências cujas perspectivas e expectativas de
gênero eram moldadas pela vida em Roma e seus arredores” (Dutsch; James; Konstan, 2015,
p. 5). Portanto, as personagens, desempenhando seu gênero, aparecem significando as
concepções e construções das associações de poder romanas (Scott, 2018, p. 45). Nesse
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sentido, vale mencionar que a aplicabilidade de reflexões que abarcam o teatro antigo a partir
de seu significado social vem crescendo desde meados do século XX.
Atualmente, o viés de gênero aparece cada vez mais como uma possibilidade de
interpretação à cultura teatral. A obra Pela abstinência do Falo”: um estudo das esposas
atenienses na Comédia Antiga (2020), escrita pela historiadora Bárbara Alexandre Aniceto, é
exemplo de estudo que ilumina a associação entre a comédia, as relações políticas e de
gênero. Paralelamente, o retrato oferecido pelas publicações que versam sobre Plauto
também reflete questões acerca das relações de poder. Podemos mencionar, por exemplo, o
artigo Sobre la familia y el dinero en Asinaria de Plauto (2021), escrito por Gabriela Monti. Ao
versar sobre A Comédia dos Burros, a autora coloca o dinheiro como personagem principal,
cuja circulação delimita as relações de poder. Sua articulação constata a proeminência da mãe
no espaço familiar associado ao dinheiro. Logo, percebe um teor cômico na posição inferior
dos homens pai e filho da peça (Monti, 2021, p. 225).
Isso posto, voltamo-nos para a noção que envolve a ideia da família atrelada as
relações de poder na sociedade republicana. Em linhas gerais, a complexa formação da
sociedade republicana, essencialmente pautada pelas hierarquias e pela justaposição dos
vínculos de poder, tinha seus traços projetados no seio familiar (Hölkeskamp, 2010, p. 113).
Melhor dizendo, a construção de uma imagem do lar tem suas bases nos ideais e,
consequentemente, na lei de Roma. Podemos, então, começar a pensar nessa realidade a
partir da predominância da aristocracia, isto é, da nobilitas nos moldes do direito. Central na
sociedade e no comando da administração da República Romana, a aristocracia teve sua
influência refletida no espaço doméstico:
O sistema de valores aristocráticos foi definido por uma série de fatores tradicionais:
por um lado, superioridade, posição, autoridade, talento e realizações a serviço da
res publica; no outro lado, era balanceado por subordinação, aceitação e deferência.
Similarmente, o tipo ideal do lar romano dependia do patriarcado, isso é, do poder
do homem chefe da família. Essa ideologia da família estava profundamente
arraigada e nunca foi questionada, muito menos seriamente desafiada. O lar ideal
também servia como um paradigma de autoridade e da ordem social na sociedade
e na República como um todo (Hölkeskamp, 2010, p. 113-114).
Tal discernimento aparece marcando como questões de ordem política e social estão
envolvidas nas representações do lar. De acordo com Karl-Joachim Hölkeskamp (2010, p. 114),
o lar, como espaço físico e social, era um local de afirmação do status e influência, atuando
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como extensão da posição de poder exercida pelos homens nos ambientes políticos da
República. Para além disso, reputamos essa compreensão especialmente em face à
importância da imagem da família quando utilizada para construir e manter o poder e a
identidade social da elite política de Roma. Afinal, a realidade, conforme retratada, privilegia
as relações de acordo com os ideais estabelecidos pelas figuras masculinas das elites
republicanas: ela representa uma construção feita para transmitir determinados valores,
fortemente moldados por normas e pelo gênero (Huskinson, 2011, p. 540-541). Diante desse
entendimento, ressaltamos como a permanência da família enquanto instituição demonstra
seu êxito, também, dentro dos termos político-sociais. Torna-se nítido o modo como a base
político-social romana é familiar e vice-versa.
Todavia, traçam-se evidentes limites entre o cotidiano no lar e a construção pautada
na assimetria das relações de poder. Exemplo disso diz respeito à centralidade disposta na
figura do chefe do lar romano: o pater familias (pai de família). Por lei, o pater atuaria como
uma força dominante, mantendo um controle amplo e exclusivo sobre o ambiente e os
componentes do lar (Frier; McGinn, 2004, p. 11). No entanto, conforme Hölkeskamp (2004, p.
124), “[...] o pater familias era cercado por certas limitações legais e, principalmente, por
convenções sociais e normas morais.” Assim, quando nos atentamos para além do âmbito
legal, os estereótipos que compreendiam essa figura aparecem de um modo fortemente
representativo. Em outros termos, a importante posição da família na cultura política
republicana demonstra ser parte de uma representação das ideias delineadas na consciência
cultural de Roma (Dixon, 1992, p. 31).
Reputamos esse entendimento ao nos debruçarmos sobre a figura feminina, posto que
era cercada por idealizações, constantemente tensionadas com a realidade. De maneira geral,
o “[...] curso da vida de uma mulher era marcado por eventos particulares relacionados ao seu
papel familiar (como filha, esposa, mãe e viúva) e ao seu status em relação aos homens de sua
vida” (Parkin, 2011, p. 280). Desse modo, menos atenção foi dada para a posição feminina
posto que foi constantemente colocada abstratamente ao lado da figura masculina (Dixon,
2014). Nessa ótica, a realidade aparentemente estabelecida sugeria uma autoridade paternal
moderada e, conforme levantou Suzanne Dixon (2014, p. 43), o lar contava com “[...] muitos
direitos efetivos por parte da mãe, os quais tinham pouca ou nenhuma base na lei formal.”
Esperava-se, em termos gerais, limites tangíveis dentro da autoridade que a figura feminina
exercia, essencialmente sobre os filhos, no lar.
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Novamente, ressaltamos a ambivalência entre a lei e o cotidiano: o agregado familiar
não era monolítico e deve ser percebido nas nuances das relações de poder (Saller, 1999). Em
suma, pontuamos essas construções como parte da consciência cultural romana, cuja
fundação foi baseada na assimetria das relações. Sobre isso, o “[...] fato de os romanos
considerarem com admiração uma grande casa administrada em linhas frugais por um
inflexível pater familias é, por si só, informação histórica significante sobre os romanos e a sua
mentalidade” (Dixon, 1992, p. 31). Assim sendo, dentre as evidências que foram transmitidas
até nossos dias, as fontes literárias proporcionam cores únicas quanto à vida no íntimo da
família. A partir das peças de Plauto e de acordo com os padrões possíveis de análise para
tais documentações podemos, portanto, ir além dos panoramas legais, absorvendo mais
informações sobre esses relacionamentos. Partimos, então, para a apreensão dessas
representações na peça plautina.
O papel feminino no Mercador de Plauto
Quando nos debruçamos à leitura de O Mercador, o tom do primeiro ato prontamente
introduz a lógica comum à maioria das obras da literatura latina: somos informados acerca da
realidade de um homem abastado. Deparamo-nos com o jovem Carino em um monólogo, no
qual explanava sua vida: “No princípio, logo depois que deixei de lado os interesses de menino,
envolvi-me completamente com uma cortesã daqui; imediatamente, a fortuna de meu pai, às
ocultas, começou a ir embora com ela” (Plauto, Mercator, v. 40). Realçamos duas questões
quanto ao trecho transcrito. A primeira se refere à forma como uma cortesã causou grandes
complicações nas relações familiares. Pensando em um quadro mais amplo, a situação que se
desenrola ao decorrer da peça é iniciada e instigada pelo encanto de Carino com tal mulher.
Nesse sentido, percebemos uma subversão na ordem estabelecida no lar romano,
visto que, cativado pela paixão, Carino deixa de lado suas devoções e seus princípios para com
seus pais. Sobre isso, dois aspectos referentes à concepção da família romana merecem
destaque. Primeiramente, quando tratamos a relação dos filhos para com os pais, voltamo-
nos para a temática da educação. Conforme nos informou Dixon (1992, p. 131), esperava-se a
transmissão da moral e o supervisionamento da educação por parte do pai e da mãe. Além
disso, a autora também marcou como “[...] a deferência aos pais estendia-se, nocionalmente,
para muito além da infância e até mesmo da juventude” (Dixon, 1992, p. 131).
Secundariamente, tratando-se da relação entre pai e filho, era esperado que os filhos homens
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seguissem os passos do pai, respeitando determinados valores familiares assimilados a noção
de um dever esperado. Assim sendo, vemos como o comportamento de Carino destoa desses
ideais, uma vez que deixa suas ações, instigadas por uma figura feminina, serem guiadas pelo
próprio desejo.
O jovem, anos depois do acontecido, retorna para sua casa após um período além mar.
Contudo, não volta sozinho: traz consigo uma prostituta, Pasicompsa, que havia adquirido e
pela qual estava apaixonado. Carino, preocupado com a reação de seus pais, decide seguir
com uma mentira: a mulher que trouxe para casa seria uma escrava comprada para sua mãe.
Novamente, o rapaz não respeita os deveres para com sua família, demonstrando
consideração somente com sua paixão. Sob a mesma ótica masculina, inicia-se o Ato II: nele,
Demifão, pai de Carino, aparece descrito como perplexo. Ao ver o navio de seu filho ancorado
no porto, Demifão decidiu ir até ele. Ali, encontrou sentido nos pensamentos que se formaram
durante seu sono (Plauto, Mercator, v. 225-255). O sonho que tivera na noite passada, de
projeções animalescas e confusas, havia adquirido significado na vida real:
Demifão E lá, eu vejo uma mulher, uma jovem perfeitamente bela, que meu filho
trouxe para sua mãe como escrava. Me apaixonei no minuto em que coloquei os
olhos nela, não como costumam amar os homens sensatos, mas como costumam
amar os insensatos. Por Hércules! Sem dúvida eu me apaixonei outrora, na minha
juventude, mas nunca dessa maneira. Por Hércules! Na verdade, uma coisa eu já sei:
estou perdido! Vejam vocês mesmos, de quanto sou capaz! (Plauto, Mercator, v.
260-265).
Associando Pasicompsa com as imagens de seu inconsciente, o pater familias fica
perdidamente atraído por ela, sem saber que é a amada de seu filho. Os pensamentos do
pater são interrompidos com a aparição de Lisímaco, seu vizinho e amigo, que, junto de seu
escravo, conversava sobre a castração de um bode (Plauto, Mercator, v. 270-275). Associando
o diálogo ao seu sonho, Demifão toma o assunto como um agouro e, vendo a circunstância
em que se encontra, teme que sua esposa o castre (Plauto, Mercator, v. 275-276). À primeira
vista, pensamos que o teor absurdo da fala está atrelado a intenções cômicas. Não nos
contentamos unicamente com essa percepção e subscrevemos Vilma Arêas (1990, p. 24)
quando diz que as funções da comédia estão além de meras pretensões de instigar o riso. A
frase, colocada na voz da autoridade mais proeminente do lar, o pater familias, demonstra
receio diante do possível comportamento de uma personagem feminina.
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Novamente, observamos a inversão dos valores familiares, uma vez que, na legislação
romana, todos os componentes da casa estavam sujeitos ao poder do pater familias. Em
outros palavras, o comediógrafo opta por fazer com que o próprio Demifão emita um
comentário questionável sobre seu relacionamento com a mater familias. Na sequência,
Lisímaco também evidencia a relevância de sua esposa, ao passo em que enfatiza a
necessidade de que seu escravo a mantivesse informada sobre seus compromissos na cidade:
“Avise minha esposa [...] para que não me espere; pois hoje julgarei três casos” (Plauto,
Mercator, v. 278-281). A fala permanece na voz de um pater, mas, outra vez, a autoridade não
parece estar centralizada nas suas mãos. O trecho destacado também revela o caráter político
das figuras masculinas. Lisímaco estaria participando de três julgamentos em breve, o que
indica sua ocupação em alguma instituição política republicana. Ao mesmo tempo em que
demonstra sua preeminência, Plauto também lhe confere vulnerabilidade ante sua esposa.
Ainda que constantemente consideremos esse aspecto de modo implícito, aqui, temos um
vislumbre nítido da característica político-social presente nas peças plautinas. Afinal,
Na vida cotidiana de um membro da classe política, os papéis e responsabilidades
“públicos” e “privados” se sobrepunham e estavam, de fato, inextricavelmente
interligados. Para um aristocrata (nobilis), ser o chefe de uma grande casa era tanto
uma característica de sua posição de poder no mais alto escalão da sociedade quanto
pertencer ao Senado (Hölkeskamp, 2010, p. 114).
Seguindo, Demifão é informado acerca de Pasicompsa ser uma escrava comprada para
sua esposa e, desejando-a, planeja meios de conseguir a jovem para si, argumentando que ela
não teria uma aparência digna de seu lar. De acordo com ele, a beleza da jovem não era
compatível com o que buscavam em uma escrava: “Nada nos é necessário, a não ser uma
escrava para tecer, moer farinha, cortar madeira, fiar, varrer a casa, levar açoites e preparar
alimento todos os dias para a família. Ela não pode fazer nada disso” (Plauto, Mercator, v. 395-
398). Ademais, Demifão diz que não permitiria tal mulher como companhia para sua esposa,
posto que sua família poderia ser acusada de explorar a prostituição diante de possíveis
comportamentos desagradáveis de homens perante a beleza de Pasicompsa (Plauto,
Mercator, v. 405-411). Os versos mencionados nos informam claramente acerca dos
estereótipos de gênero colocados nas escravas romanas. Além disso, também reconhecemos
a infâmia projetada nos que eram vinculados ao ramo da prostituição.
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Nesse momento, um não sabe as intenções do outro, mas o público já entende que a
mulher estava causando antagonismo entre pai e filho. Lisímaco, ao saber dos interesses de
seu amigo, ridiculariza-o ao dizer que “[...] um velho decrépito é quase tão útil como um
quadro pintado na parede” (Plauto, Mercator, v. 314-315). À vista disso, os amores de pai e
filho aparecem com reações completamente diferentes: enquanto o de Carino aparece como
algo esperado, dentro das perspectivas culturais de gênero tencionadas na juventude; o de
Demifão é ridicularizado. Nesse sentido, marcamos que as expectativas romanas projetadas
nos homens mais velhos eram de amadurecimento quanto ao desejo sexual excessivo (Witzke,
2020, p. 333 apud Krauss, 2004, p. 88-182).
Defendendo-se do julgamento e desaprovação de seu amigo, Demifão argumenta que
não havia nada para ser censurado, afinal de contas, “[...] outros homens ilustres fizeram a
mesma coisa” (Plauto, Mercator, v. 319). A fala do senex, ao colocar a imagem de homens
romanos influentes como justificativa para seus atos, denota uma percepção diferente das
expectativas culturais de seu tempo. Além da questão tocante à idade, documentadamente,
o pai romano “[...] serviu de modelo para como um pater familias, um patronus, um
descendente de sua família com sua tradição distinta e um representante de como o senatus
populusque Romanus deveria andar, falar e agir” (Harders, 2010, p. 51). Todavia, aqui, os
rumos de sua vida aparecem guiados por cortesãs. Em suma, percebemos uma visível crítica
às preeminentes figuras patriarcais, engendradas por uma degradação que, manchando o
prestígio masculino, parte do feminino.
Pouco tempo depois dos acontecimentos do segundo ato, inicia-se o Ato III. Pela
primeira vez, vislumbramos uma mulher em cena: Pasicompsa, após ser comprada por
Demifão, está chorando e é acompanhada por Lisímaco. Até então, mesmo que todos os
acontecimentos tenham girado em torno de mulheres, nem uma única figura feminina havia
aparecido. Os dois personagens conversam sobre a compra e o amigo de Demifão repreende
a garota por estar chorando, afinal, acreditava que ela teria mais motivos para sorrir do que
para chorar (Plauto, Mercator, 499-501). O diálogo continua com um questionamento de
Pasicompsa, o qual leva a outras falas marcantes quanto à imagem das mulheres. A princípio,
a cortesã argumenta que, com sua sabedoria e seus recursos, iria fazer o que pensava ser
desejado por Lisímaco. Ele, então, argumenta que não exigiria nada difícil por parte da jovem.
Aliviada, Pasicompsa diz que não havia aprendido a realizar tarefas comumente
associadas a escravas, indicando como não conhecera uma vida com os afazeres de mulheres
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que seriam somente condicionadas à escravidão sem vínculos com serviços sexuais. O amigo
de Demifão continua argumentando:
Lisímaco Se você for boa, vai ser bom para você.
Pasicompsa Por Pólux, então estou completamente perdida.
Lisímaco Por quê?
Pasicompsa Porque lá, de onde fui comprada, estar bem é comum para as garotas
más.
Lisímaco Como se você dissesse que nenhuma mulher pode ser boa.
Pasicompsa Na verdade, não digo; nem é meu costume proclamar algo que creio
que todos sabem.
Lisímaco Por Pólux, as palavras dela valem mais do que a quantia pela qual foi
comprada (Plauto, Mercator, v. 504-514).
Pasicompsa, logo após mencionar que faria uso de sua sabedoria, demonstra um
comportamento completamente alinhado com as expectativas de Lisímaco. O senex acaba por
valorizar os dizeres da cortesã, manifestando satisfação com a reprodução de um estereótipo
negativo acerca das mulheres. Percebendo as palavras da jovem em tom crítico, observamos
essas ações ultrapassando o previsível: além de estar ditando o tom dos acontecimentos da
peça, ela ganha valor ao falar o que gostaria de ser ouvido. Dessa maneira, Plauto faz com que
a personagem tire proveito de um momento oportuno para ecoar uma concepção que trará a
ela benefícios. Ou seja, a crítica à imagem feminina atua como o meio pelo qual, justamente,
a figura de uma mulher se torna mais estimada. O controle, que supostamente deveria estar
nas mãos de representantes patriarcais, encontra-se na mão de tipos subalternos. Pasicompsa
reflete seu papel social de prostituta, bem como marca o papel de escravas, performando,
neles, preconcepções de seu gênero. Ao mesmo tempo, utiliza-se disso e corresponde ao
motivo que questiona e desfaz os posicionamentos esperados dentro do lar romano,
perturbando as normas socioculturais. Isso à vista, pensamos ser pertinente tecer algumas
considerações a respeito da conjuntura da República Romana.
Conforme supracitado, o âmbito de Plauto já contava com apreensões distintas sobre
o fluxo de influências externas advindas das expansões. Sobre isso, Flower (2010, p. 8) arguiu
que a cultura republicana, criando trocas materiais e ideais com mais regularidade, percebeu
as mudanças sociais como indicações de decaimento moral. Nessa lógica, surgiu um
sentimento de rememoração e exaltação das tradições romanas anteriores ao tempo de
Plauto. Assim sendo, essas passagens poderiam ser entendidas de maneira muito negativa,
ainda mais em um momento temporal e social em que as figuras femininas, influentes,
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estavam se tornando mais ativas. A fala de Pasicompsa, avaliada superficialmente, poderia
agradar e ser alvo de humor por parte de alguns, porém, não agradaria ao todo do público.
Todavia, a situação parece ser amenizada quando pensamos que o tom das adaptações
realizadas manteve o cenário grego como fundo das narrativas. Ao preservar a ambientação
grega, o comediógrafo ainda poderia retratar os contornos culturais romanos, evitando
maiores desagrados com as esferas locais mais influentes. Portanto, a escolha plautina se
mostra aparentemente despolitizada, versando sobre formas domésticas como uma forma de
não realizar comentários diretos sobre a sociedade de Roma (Leigh, 2004, p. 5). Posto de outro
modo, Plauto conseguia ter mais liberdade em sua escrita, uma vez que era mais seguro
zombar de personagens ficcionais concatenados com outro território (Panayotakis, 2005, p.
132).
Seguindo o argumento da peça, a pedido do Demifão, Lisímaco disponibiliza sua casa
para abrigar a jovem. Contudo, só o faz porque sua esposa, Doripa, estava ausente, no campo
(Plauto, Mercator, v. 515-543). Melhor dizendo, a presença de Pasicompsa se torna possível
devido à ausência de sua esposa, o que evidencia a preocupação do senex para com sua
mulher, seja por respeito ou receio. Da mesma forma, a presença da cortesã na casa de
Demifão também não seria bem recebida por sua esposa. As encenações subsequentes
realçam essa visão dos maridos em relação às suas esposas. Em uma delas, Demifão admite
que comprar secretamente a jovem era um erro, afinal, os jovens deveriam se preocupar com
seus próprios desejos. Os mais velhos, pelo contrário, deveriam se contentar com o ócio
(Plauto, Mercator, v. 545-565). Assim, Demifão reconhece que sua atitude vai contra o
esperado, afastando-se do papel de pater familias, judicioso e atento à imagem do lar.
Ainda que esteja em contradição com o que era esperado de sua idade e reputação, o
breve monólogo do homem firma certas normas de gênero masculino. Melhor dizendo,
Demifão, completamente seduzido, expressa comportamentos sexuais associados ao
masculino quando confere tamanha importância ao que esperava conseguir com Pasicompsa.
Sobre isso, mencionamos como é “[...] um truísmo afirmar que as atitudes a respeito dos
comportamentos sexuais romanos foram embebidas dentro de hierarquias complexas de
desigualdade social com numerosas interseções de características econômicas, políticas e
sociais” (Goldberg, 2021, p. 16). Retornando para a peça, logo em seguida, verifica-se outra
situação de preocupação por parte de Lisímaco, o qual assevera Demifão a procurar um lugar
para a cortesã ficar. Nesse instante, ele sentencia: “[...] ela [Pasicompsa] não ficará em minha
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casa a não ser hoje. Tenho medo de que minha esposa encontre essa mulher aqui se voltar do
campo amanhã” (Plauto, Mercator, v. 585). Novamente, percebemos a preeminência das
esposas, cuja caracterização nos reflete a respeitada figura da matrona romana.
Nesse sentido, recorrendo aos acontecimentos do tempo plautino, destacamos o
momento da Segunda Guerra Púnica em que líderes romanos, aflitos pela extensão das
campanhas, buscaram soluções religiosas em cerimônias públicas, as quais envolviam o uso
de mulheres em papéis político-sociais (Culham, 2010, p. 145). Além de atos de inovação
religiosa, outras transformações significativas ocorreram na sociedade romana. A Península
Itálica ficara ocupada por anos e Roma “[...] teve que mobilizar novos exércitos a cada ano
para repor suas perdas, mudando radicalmente a economia da península e o equilíbrio de
poder de gênero na cidade” (Fantham; Foley; Kampen; Pomeroy; Shapiro, 1994, p. 261). Na
ausência das figuras masculinas, a mater familias assumia o controle pelo menos dentro de
casa. Ainda que pouco sobre a educação das mulheres tenha chegado até nossos dias, torna-
se explícito como as das classes mais altas eram suficientemente capacitadas para participar
de aspectos da vida política de seus familiares masculinos.
O que se coloca, então, refere-se à diminuição da sujeição feminina à autoridade
masculina, posto que estava frequentemente ausente na conjuntura da guerra. Ainda que o
território romano tenha deixado de ser o palco de conflitos após o fim da Segunda Guerra
Púnica, a “[...] implantação constante de mão de obra masculina em todo o mundo
Mediterrâneo no século II AEC impediu que as relações de gênero romanas voltassem ao que
eram antes da guerra” (Culham, 2010, p. 147). Portanto, o cenário da Média República,
provavelmente, denotou uma atenuação da vocação das mulheres de ceder aos homens,
dando-lhes, até certo ponto, a oportunidade de desenvolver certa independência. Em suma,
apreendemos tais comportamentos femininos do teatro plautino dialogando com seu tempo,
afinal, verificou-se uma mudança palpável nas atribuições relacionadas às mulheres no
período republicano.
Tendo isso em mente, voltamo-nos para o início do Ato IV com a entrada de Doripa,
cujo ânimo é descrito como enfurecido. Seguindo seu instinto, ela decidiu retornar para sua
casa. No caminho, deparou-se com sua fiel escrava Sira e, ao avistar o altar diante da casa de
seu vizinho, Demifão, pediu à escrava que lhe entregasse o ramo de louro que segurava, com
a intenção de prestar honras (Plauto, Mercator, v. 670-675). Roga, então, para que Apolo
conceda boa saúde para sua família, suplicando, principalmente, pelo seu filho (Plauto,
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Mercator, v. 680). Esses pedidos ressoam um comportamento de preocupação que também
era esperado por parte do pater familias, todavia, somente nesse momento é expressado de
forma genuína. Anteriormente, quando Demifão demonstrara preocupação para com sua
família, suas palavras aparecem como dissimuladas, visto que foram usadas como uma
estratégia para conquistar a cortesã. Assim sendo, as atitudes do pater não condizem com o
que era esperado de sua posição. A matrona, por sua vez, ao assumir o cuidado por sua família,
equilibrando seus deveres de mãe e esposa com suas práticas religiosas, alinha-se às
expectativas associadas à mater familias (Pomeroy, 1995, p. 149-150).
Os ânimos entre Lisímaco e Doripa pioram com a presença do cozinheiro que iria
preparar o jantar encomendado pelos velhos amigos. O personagem, pensando que Doripa
era a prostituta, faz comentários sobre a aparência e idade da mulher. Além disso, também
acha que Lisímaco seria o senex apaixonado e dialoga sobre o motivo da realização do
banquete (Plauto, Mercator, v. 745-755). O cozinheiro ainda consegue piorar a situação ao
proferir para Lisímaco que “Seguramente, sua mulher está no campo, aquela que há pouco
você disse que odiava, como a uma cobra” (Plauto, Mercator, v. 760). Doripa, até então calada,
manifesta-se dizendo que seu marido não deveria negar o ódio que nutria por ela. Por fim,
decreta que não iria mais suportar estar tão mal casada e pede para que sua escrava buscar
seu pai (Plauto, Mercator, v. 785).
Na presença de Lisímaco, ela expõe a autoridade de seu pai como uma maneira de
solucionar sua situação. Juntamente, expõe o dote, assimilando a ideia de que “[...] a posição
de respeito e autoridade da mãe romana emanava, em partes, do poder efetivo que dispunha
sobre sua fortuna” (Dixon, 2014, p. 41). Segundo a lei romana, o divórcio poderia ser
estabelecido pelo pai da esposa a depender do formato do casamento (Feltovich, 2015, p.
130). Ou seja, em uma união sine manu, a mulher continuaria subordinada ao seu pai,
mantendo-o como pater familias em vez de passar para o controle de seu marido. Em caso
de divórcio, portanto, poderia recuperar o importante valor do dote (Knapp, 2013, p. 56).
Embora a autoridade da matrona estivesse nas mãos de um homem, ela demonstra meios de
exercer sua influência, buscando defender seus próprios interesses. De maneira geral, as
mulheres plautinas agem administrando suas influências de modo vantajoso a si. Colocado de
outra forma, em uma sociedade dominada pelo masculino, as mulheres usavam os recursos
disponíveis para obter alguma forma de proteção, manejando suas redes. Nesse contexto,
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ambas recorrem a outras personagens masculinas para distorcer a autoridade que lhes era
imposta.
Isso posto, retornamos para o final do Ato IV. A penúltima cena conta com Sira
retornando após não encontrar o pai de Doripa. Sob o prisma de desgosto da matrona para
com sua condição no casamento, o ato é encerrado com o solilóquio que nos é mais marcante
na peça. Nele, Sira declara:
Sira: Por Castor, as pobres mulheres vivem sob uma lei dura e muito mais injusta do
que os homens. Pois, se um marido, às escondidas, mantém uma prostituta e a
esposa descobre, o homem fica impune. Mas, se uma esposa sai fora do lar às
escondidas do marido, ele tem fundamentos e o divórcio acontece. Oh, eu gostaria
que a lei fosse a mesma para esposa e marido. A esposa que é boa se contenta com
um único marido; por que um homem não se contentaria somente com sua esposa?
Por Castor, se os maridos também fossem castigados, caso mantivessem uma
prostituta, da mesma forma que as esposas repudiadas tem que se divorciar, garanto
que haveria mais homens solitários do que agora há mulheres (Plauto, Mercator, v.
818-830).
A fala da personagem expressa uma crítica direta ao modo como as leis, no que tange
ao casamento, configuravam-se de forma diferente para homens e mulheres. O fato de uma
escrava, o tipo social mais objetificado nos palcos, ser a voz de uma contestação do poder é,
por si só, elemento suficientemente significativo (Richlin, 2017, p. 265). Sobre o peso das
palavras de Sira, pensamos, inicialmente, nas concepções de que falas femininas seriam
propositalmente exageradas para um efeito ainda maior de comicidade. Não nos
contentamos somente com tal explicação, especialmente em face à categoria de Sira ser a
mais marginalizada da peça. Ademais, novamente reiteramos que as relações concernentes
ao lar eram vinculadas ao regime de poder do pater e das obrigações dos demais integrantes
da família para com ele. Assim, ao realizar o comentário sobre uma questão moral, a escrava
atinge, para além de somente o masculino em relação ao feminino, o cerne das leis: os homens
das elites romanas.
No final da peça, os conflitos são revelados e resolvidos de modo que a fragilidade
moral do pater é ainda mais acentuada, o que permite que o público ria da situação. A peça,
então, é concluída de maneira cômica e alicerça nossa interpretação acerca do monólogo de
Sira, posto que, nesse momento, Plauto sobreleva críticas ao senex. O pater familias é
ridicularizado, e suas tentativas de manter relações extraconjugais são punidas através pela
advertência de Eutico, um jovem amigo de Carino. A peça plautina é encerrada, acentuando
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a forma como subalternos filhos, escravos, prostitutas e esposas atuam na transgressão
das normas sociais, familiares e políticas de Roma.
Considerações finais
Realçando uma compreensão do papel social da mulher como ativo no texto cômico
plautino, o feminino aparece legitimando, desafiando e mantendo diferenças de gênero. Em
sua essência, a construção do gênero, consoante com a do comediógrafo, possibilita-nos uma
contemplação objetiva de referências das personagens da peça O Mercador. Posto de outro
modo, as vivências masculinas e femininas do cotidiano romano reverberaram e moldaram as
representações do teatro. Aqui, como personagens enquadradas em categorias de menor
prestígio social, as mulheres tem suas ações e habilidades de persuasão constantemente
atuando de modo a subverter as ordens vigentes. O discurso feminino, referindo-se, aqui, ao
conteúdo e não ao estudo da linguagem, permite-nos um vislumbre de temáticas que eram
do interesse feminino. Assim sendo, assimilamos noções “[...] sobre os contextos, propósitos,
objetivos e condições de vidas das mulheres, conforme refletidas na comédia romana” (James,
2015, p. 108).
De várias maneiras, Plauto subverte a ordem de Roma em suas obras. No Mercador,
destacamos o uso de mulheres e do meio familiar para tal. O corpo do texto plautino,
portanto, pode ser percebido com constantes juízos de valor que, engendrados por figuras
femininas, reverberam no cenário político-social de Roma. Nas palavras de Martin Tobias
Dinter (2023, p. 79), a comédia “[...] desafia seu público a refletir sobre como [...] os contextos
narrativos influenciam tanto a ação no palco quanto o diálogo”. Finalizando, a situação de
Plauto permitia que sua escrita fosse internamente crítica às relações de poder de seu tempo.
Determinando uma importância intensa nas entrelinhas dos personagens de estratos sociais
mais baixos, os textos de Plauto permitem um vislumbre do mundo romano que não se limita
aos homens das elites. Estes que, logicamente, também exerceram seu predomínio na
literatura latina. Em síntese, as realidades sociais encenadas na peça demonstram uma
fraqueza da autoridade moral dos homens, os quais são repetidamente colocados abaixo da
ordem a qual pertenciam no âmbito de Roma.
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