Recebido em: 30/07/2015
Aprovado em: 06/01/2015
Misoginia medieval: a construção da justificação da
subserviência feminina a partir de Eva e do peca-
do original
Medieval Misogyny: the construction of justification
of female subservience from Eve and the original sin
PIRES, João Davi Avelar
1
Resumo: No decorrer da Idade Média, o gênero feminino foi representado e entendido,
muitas vezes, por meio de imagens e estereótipos que, em simultâneo, se contradiziam
e se complementavam. Nas discussões propostas neste trabalho, voltamo-nos para
a justificação religiosa da inferioridade feminina, elaborada por doutores da Igreja,
inspirada e fundada no pecado que envolveu a primeira mulher. Partindo do pecado
original, à todas as mulheres foram imputadas as mesmas características da primeira,
a curiosidade, o orgulho, a fragilidade, a desobediência e, por conta de tais elementos,
um possível risco de subversão da hierarquia masculina instituída e fortalecida durante
a Idade Média.
Palavras-chave: Idade Média; Feminino; Mulher; Eva.
Abstract: During the Middle Ages, the female gender was often represented and
1. Professor Mestre – Programa de Pós-Graduação em História – UFPR – Universidade Federal do Para-
ná, Campos de Curitiba – Rua General Carneiro, 460, CEP: 800.060-150, Curitiba, Paraná, Brasil. E-mail:
joaodavi_ap@hotmail.com
Misoginia medieval: a construção da justificação da subserviência feminina a partir de Eva e do pecado original
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.3, nº1, p. 128-142, jan.-jun., 2016.
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understood through images and archetypes that simultaneously contradicted and
complemented each other. In the discussions proposed in this paper, we analyze the
religious justification of female inferiority, as elaborated by doctors of the Church, based
on the original sin involving the first woman. Because of the original sin, all women
inherited the same characteristics of Eve: curiosity, pride, weakness, and disobedience.
Due to those elements, they were considered a possible subversive risk against the
male hierarchy that was established and strengthened during the Middle Ages.
Keywords: Middle Ages; Feminine Gender; Woman; Eve.
O papel da mulher no contexto da Idade Média pode ser compreendido e
caracterizado de várias formas diferentes e, em grande parte, tais interpretações estão
relacionadas à influência religiosa e aristocrática fortemente presentes naquele período.
A construção de estereótipos nos discursos medievais foi de certa forma,
fundamentada a partir da apropriação de elementos do discurso aristotélico, o qual
indicava e evidenciava as distinções entre os corpos dos machos e das fêmeas (SILVA;
MEDEIROS, 2013). E, por isso, grande parte do que se sabe sobre a vida das mulheres
medievais, assim como sobre os documentos aos quais se tem acesso atualmente,
pode ser atribuída ao monopólio masculino sobre a produção do conhecimento e,
consequentemente, das mulheres e de sua condição social.
Segundo Ribeiro (2000), a distinção entre as funções de homens e mulheres,
o papel social referente a cada gênero e a hierarquia que predomina durante toda a
Idade Média não podem ser vistos como meramente uma consequência dos discursos
e sermões religiosos. A hierarquia entre masculino e feminino é anterior ao período
medieval e até mesmo ao Cristianismo e aos primeiros cristãos, resultado de elementos
sociais e culturais anteriores.
Dessa forma, o contexto em que o medievo estava imerso influenciou em grande
parte os discursos da Igreja e dos intelectuais cristãos sobre o papel de cada um dos
sexos e a construção dos gêneros. Assim, o próprio Cristianismo e os discursos dele
provenientes foram influenciados por um contexto cultural e social muito mais amplo.
Pode-se dizer, então, que os discursos religiosos construídos e amplamente difundidos
durante a Idade Média apresentam-se como a justificação de uma ordem social que
havia sido estabelecida há muito tempo antes.
Entretanto, o Cristianismo e a Igreja medieval desempenharam papel exercido
para que essas interpretações ganhassem força e se sedimentassem no imaginário
religioso e social (RIBEIRO, 2000). Platagean (1990), numa tentativa de elaboração do
conceito de imaginário, argumenta que:
O domínio do imaginário é constituído pelo conjunto das representações
que exorbitam do limite colocado pelas constatações da experiência e pelos
encadeamentos dedutivos que estas autorizam [...]. Em outras palavras, o limite
entre o real e o imaginário revela-se variável, enquanto território atravessado
por esse limite, ao contrário, sempre e por toda parte idêntico, já que nada
mais é senão o campo inteiro da experiência humana, do mais coletivamente
social ao mais intimamente pessoal: a curiosidade dos horizontes demasiados
distantes do espaço e do tempo, terras desconhecidas, origens dos homens e
das nações; a angústia inesperada pelas incógnitas inquietantes do futuro e
do presente; a consciência do corpo vivido, a atenção dada aos movimentos
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involuntários da alma, aos sonhos, por exemplo; a interrogação da morte;
os harmônicos do desejo e da repressão; a imposição social, geradora de
encenações de evasão ou recusa, tanto pela narrativa utópica ouvida ou pela
imagem, quanto pelo jogo, pelas artes da festa e do espetáculo... (PLATAGEAN,
1990, p. 291).
Concordando com a definição de Platagean (1990) em relação ao imaginário,
pode-se dizer que o esforço para que se estabelecesse e se justificasse a hierarquia
de gênero não foi uma investida apenas da Igreja, mas também de alguns setores mais
conservadores da sociedade que deram apoio à Igreja, como a aristocracia. Entretanto,
não bastava apenas que a delimitação dos papéis e espaços fosse instituída, mas também
que a mulher ocupasse papel inferior ao homem e que a ele estivesse subordinada.
A disseminação dessas interpretações sobre a hierarquia de gênero foi tão
grande que, segundo Ribeiro (2000), ocorreu um processo de interiozação, por parte
das próprias mulheres, dos comportamentos e práticas sociais que se esperam delas.
Nesse sentido, os textos, discursos e sermões, produzidos em grande medida por
clérigos e homens religiosos, ou pelo menos influenciados por eles, situavam a mulher
em funções e espaços distintos, alternando sua imagem entre a pecadora, descendente
de Eva, e a santa, numa clara analogia à Virgem Maria, que servirá como modelo de
conduta às mulheres que almejam abandonar os resquícios da Eva primitiva.
Entre esses dois polos - Eva e Maria – está situada a figura de Maria Madalena,
a qual representa o arrependimento, exemplo que as pecadoras, descendentes de Eva,
devem seguir para tentar alcançar a santidade de Maria e a salvação. Em outras palavras,
a visão que se tinha das mulheres não era única e não representava a totalidade do
gênero feminino.
Por vezes, as mulheres foram vistas como Eva, quando não conseguiam se libertar
de sua carnalidade e servir de corpo e alma a Deus e à Igreja e, quando o faziam, eram
vistas como pecadoras arrependidas, que recusaram as paixões da carne e, por isso,
tornavam-se semelhantes à Maria Madalena, numa busca constante pela santificação e
ao ápice da santidade feminina, representado pela figura de Maria.
Dessa forma, as visões sobre o feminino não atuavam em uníssono, pelo
contrário, foram criadas categorias móveis, às quais, na perspectiva clerical, as
mulheres se identificavam a partir de seu comportamento. Tais categorias móveis -
Eva, Maria Madalena e Maria - frequentemente se entrelaçavam atribuindo às mulheres
características inerentes a cada uma dessas representações, como frágeis ou fortes,
vítimas ou culpadas, santas ou pecadoras (SILVA; MEDEIROS, 2013).
Simultaneamente, foi sendo construído o estereótipo
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do masculino, numa clara
oposição à todo o sexo feminino e suas características depreciativas. Ao homem, foram
atribuídas características que o valorizavam, como a retidão, a honra, a espiritualidade,
entre outras. À mulher, pelo contrário, atribuiu-se características que a colocavam em
posição oposta á do homem, através de elementos que a desvalorizava e a inferiorizava,
como, por exemplo, a desonra, a mentira, a confusão, a sedução, a tendência ao pecado,
entre outros. Por essas e outras justificativas, o homem era responsável por atuar no
espaço público, enquanto a mulher era responsável pelo ambiente privado, onde se
2. Optamos pela utilização do termo estereótipo para nos referir às construções feitas em relação ao
feminino e ao masculino, em detrimento de outros conceitos que possam parecer similares.
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tornava menos perigosa.
Não é, contudo o intuito deste artigo defender a ideia de que as representações
construídas em relação às mulheres, sobretudo as que tomam Eva por referência,
tenham sido uma tentativa totalmente consciente por parte da Igreja e dos clérigos para
a total exclusão das mulheres da vida social medieval, e que a postura clerical estava
totalmente ligada à estes estereótipos.
Nas cidades, por exemplo, onde o trabalho se organizava a partir das confrarias
e corporações, a presença da mulher era constante em trabalhos relacionados à fiação,
tecelagem de seda e couro, produção de chapéus, entre outros artigos (SOUZA, 2004).
Algumas conseguiram chegar às universidades, como aponta Évelyne Sullérot:
Na Idade Média, algumas universidades, e, muito particularmente a universidade
de Bolonha, tinham admitido, do século XII ao século XVII, algumas mulheres,
e chegaram a oferecer cátedras de direito a diplomadas femininas como, por
exemplo, Magdalena Buonsingnori, Betina Calderini e Bettesta Gozzadini.
Este liberalismo, contudo, fora esmagado pelo desenvolvimento da burguesia
pré-capitalista... (SULLÉROT, 1970 apud SOUZA, 2004, p. 168).
Imagens negativas não eram, portanto, as únicas que habitavam o imaginário
medieval. Sabe-se, também, que Eva, em escala menor, foi vista, por vezes, como
criatura de Deus, feita a partir do homem para que a ele se assemelhasse, e também
como mãe da humanidade, a responsável pela sua continuidade. Até mesmo entre os
clérigos havia aqueles que defendiam a causa feminina.
No século VI, o papa Gregório Magno demonstrou-se contrário a algumas
proibições impostas às mulheres, entre elas a de não comungarem no período da
menstruação ou da gestação (WEMPLE, 1990, p. 231). Jacques Le Goff (2008) trata, por
sua vez, da argumentação de Tomás de Aquino, para o qual a criação do homem e da
mulher não possui característica hierárquica, mas sim de igualdade.
Para Tomás de Aquino, segundo Le Goff (2008), a matéria-prima usada para a
criação de Eva não foi o pé de Adão, para que ela fosse inferior, e nem a cabeça, para
que fosse superior. Deus utilizou uma costela, osso que se localiza, grosso modo, no
meio do corpo, o que demonstra a intenção de Deus em garantir a igualdade entre eles.
Dessa forma, algumas vezes, as visões sobre o feminino e suas atitudes podiam ser
abrandadas por um discurso valorativo do papel de Eva no surgimento da humanidade.
Todavia, as representações de Eva enquanto a pecadora que levou à queda toda a
humanidade e a impossibilidade da habitação eterna no Éden são as representações
que mais ganharam força e que mais foram disseminadas durante o período medieval.
Contribuiu para que os espaços destinados aos sexos e a submissão e obediência
das mulheres aos homens fossem aceitos e incorporados por grande parte da sociedade
europeia, o fato de que tais elementos foram considerados como naturais e de origem
divina. Eva foi a principal das justificativas, entretanto, ela não foi a única mulher
retratada na Bíblia a ser utilizada como argumento da suposta inferioridade feminina.
Dalila, cuja história aparece no livro de Juízes, usou de sua sedução para convencer
Sansão, seu marido, a lhe revelar a origem se sua força sobre-humana. Traído, Sansão
foi entregue por Dalila aos filisteus, que lhe arrancaram os olhos e o encarceraram
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(Jz. 16.1-21). No Gênesis (Gn. 19.24-26), quando Sodoma e Gomorra foram destruídas,
Deus ordenou a Ló e a seus familiares que abandonassem a cidade e que, em nenhuma
hipótese olhassem para trás.
A esposa de Ló, cujo nome não é citado, não resistiu e voltou seu olhar para trás,
na direção da cidade. Imediatamente transformou-se numa estátua de sal. Ainda há
mais exemplos. O profeta e rei Davi, impressionado com a beleza e formosura de Bate-
Seba, a desejou, a seduziu e junto dela cometeu adultério (II Sm. 11.1-4).
Exemplos semelhantes também podem ser encontrados na mitologia grega como
no caso de Pandora, a qual, dominada por sua curiosidade, abriu a caixa que recebeu
de Zeus, mesmo que dele tivesse recebido ordens de nunca abri-la. Como resultado, os
males escaparam da caixa e passaram a assolar a humanidade.
Assim, as narrativas bíblicas ofereceram diversos argumentos para a construção
da imagem da mulher enquanto ser fraco e problemático em muitos aspectos. Nesta
ocasião, optamos por analisar o caso de Eva como justificador da pretensa inferioridade
feminina e do perigo que a mulher representa se não tutelada. Essas tentativas de
justificação vão desde à Criação até o episódio do pecado original.
De acordo com o Gênesis, na Criação:
O Senhor Deus fez cair um sono pesado sobre Adão e este adormeceu. E
tomou uma das suas costelas, e cerrou a carne em seu lugar. E da costela que
o Senhor Deus tomou do homem formou uma mulher e trouxe-a a Adão. E
disse Adão: essa é agora osso dos meus ossos, e carne da minha carne; esta
será chamada varoa, porquanto do varão foi tomada. Portanto deixará o varão
o seu pai e a sua mãe, e apegar-se-á à sua mulher, e serão ambos uma carne
(Gn. 2.20-24).
De acordo com o livro de Gênesis, existe uma rigorosa ordem na Criação. Dia
após dia, novos elementos e criaturas vão surgindo até que, após formar o mundo e
tudo o que nele há, Deus criou o homem, Adão, à sua imagem e semelhança.
Ao contrário de todo o universo, criado apenas pela Palavra de Deus, Adão
foi formado com cuidado, moldado num contato direto com o Criador que, depois de
concluída a obra, soprou em suas narinas para que o homem tivesse vida; e, assim,
viveu sozinho no Jardim do Éden por algum tempo, nomeando toda a criatura formada
pela Palavra do Criador.
Após certo tempo, Deus percebeu que todos os animais tinham um par, um
semelhante para que não estivessem sozinhos. Adão não o tinha. Assim, para que o
homem não estivesse só, o Criador decidiu criar outro ser vivo para estar com Adão.
Tem-se, dessa forma, a criação de Eva, não do barro ou do sopro de Deus, mas sim da
costela de Adão, de uma criatura já pronta.
Nota-se, num primeiro momento, que a hierarquia já está aí estabelecida, na
medida em que Deus é o Criador de tudo, Adão foi criado à semelhança de Deus, e
Eva de uma costela de Adão. Pensando dessa forma, Deus ocuparia o topo da pirâmide
hierárquica, Adão o ponto intermediário, e Eva a base, a parte mais baixa, pois ela é um
ser derivado, secundário.
A esse respeito, segundo Ribeiro (2000), Agostinho procurou justificar a
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hierarquia entre homem e mulher a partir de duas premissas, a Criação e o pecado
original. Na primeira delas, a criação Agostinho defende que a criação de Eva não teve
por objetivo a simples companhia ou a boa conversa, pois, se assim fosse, outro homem
seria mais adequado.
Partindo dessa constatação, Agostinho, segundo Ribeiro (2000), argumenta
que a ordem da criação e a diferença entre a primeira e a segunda criatura, implica a
subordinação da segunda, pois para que duas pessoas possam conviver, é necessária a
hierarquia e a dominação de uma delas.
Na segunda interpretação agostiniana, a culpabilidade de Eva pelo Pecado
Original é a responsável pela sua sujeição. Nessa perspectiva, a subserviência feminina
aparece representada como uma punição ao pecado e à desobediência da primeira
mulher a Deus, quando comeu do fruto proibido.
Nogueira (1991), referindo-se ao pensamento religioso medieval, argumenta que,
nesta perspectiva, todo ser humano possuía uma alma espiritual assexuada e um corpo
sexuado. No caso do homem, seu corpo é um espelho da alma, visto que ele foi formado
por Deus a partir de sua imagem e semelhança. A mulher, pelo contrário, é um ser
derivado, devendo ser submissa ao ser do qual ela deriva.
Além disso, não foi o Criador quem deu um nome à mulher, mas sim Adão, assim
como fez a toda criatura. Eva torna-se uma criatura acabada quando Adão lhe dá uma
identidade, ou seja, quando ele a nomeia, demonstrando a posição superior ocupado
pelo primeiro homem em relação à mulher na hierarquia do Éden.
O Malleus Maleficarum, obra do século XV, em relação à Criação, diz que:
Convém reconhecer que houve uma falha na formação da primeira mulher,
por ter sido ela criada a partir de uma costela recurva...contrária a retidão
do homem [...] em virtude dessa falha, a mulher é animal imperfeito, sempre
decepciona e mente (KRAMER; SPRENGER, 1991, p. 116)
O Malleus Maleficarum, destinado às bruxas, serviu de importante referência
para a Inquisição e os inquisidores nos séculos que se seguiram. Na obra, diversas
são as passagens que corroboram a ideia da mulher enquanto criatura frágil, carnal,
imperfeita e merecedora de toda a suspeição.
No trecho citado, é evidente a tentativa de imputar à mulher características
que promovem a sua desvalorização, que demonstrem sua imperfeição e, ainda, que
justifiquem sua suposta inferioridade em relação ao homem.
Nesta abordagem, a imperfeição feminina advém da Criação, na qual a matéria
prima utilizada foi uma costela recurva. Se a costela é um osso curvado, torto, a mulher
também é uma criatura torta em sua essência e natureza, naquilo que diz respeito ao
seu comportamento, ou nos desvios daquilo que se espera da dela. Os argumentos que
tratam desses desvios comportamentais encontrarão ainda mais força na narrativa do
pecado original. Em relação ao pecado original, o Gênesis assim o retrata: “Vendo a
mulher que aquela árvore era boa para se comer, e agradável aos olhos, árvore agradável
para dar entendimento, tomou do seu fruto, e comeu, e deu também a seu marido, e ele
comeu com ela” (Gn. 3.6).
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Destaca-se, no episódio, o fato de a serpente ter procurado Eva, e não Adão. No
discurso religioso medieval, essa escolha não foi aleatória muito menos ocasional. A
preferência se deve às características que citamos anteriormente, bem como a maior
probabilidade de sucesso no seu intento.
O fato de Eva ter sido escolhida pela serpente para ser tentada e enganada, serviu,
além da justificativa para a representação da mulher como fraca, para uma suposta
estupidez feminina (RIBEIRO, 2000). Daí advém uma das oposições construídas que
buscam justificar a superioridade masculina em detrimento do feminino.
A estupidez, atributo das mulheres, e a razão, atributo dos homens. Defendia-se,
então, que as mulheres, todas descentes de Eva, possuíam uma tendência natural de se
corromper, pela sua fraqueza e também pela estupidez, por ser mais fácil de enganar.
Adão e Eva estavam destinados a passar suas vidas usufruindo do Paraíso no Jardim
do Éden. Uma vida tranquila, sem preocupação, sem problemas e sem conhecimento da
dor e do mal. Entretanto, devido à desobediência de Eva, essa existência paradisíaca
tem fim.
Através dela, toda a humanidade que se seguiria seria vítima de toda sorte de
males e desgraças. “Eva come do fruto proibido e convence Adão a fazer o mesmo.
O pecado original transforma os seres puros, criados por Deus, em seres impuros”
(LARAIA, 1997, p.157). Ainda segundo Laraia (1997) “Eva é a responsável pela morte
de todos os seus descendentes que poderiam ser imortais se continuassem a viver no
Paraíso” (LARAIA, 1997, p. 160).
Em relação à predisposição feminina ao pecado, o Malleus Maleficarum nos diz
que:
Já que o principal objetivo do diabo é corromper a fé, prefere então atacá-
las [...] são mais impressionáveis e mais propensas a receberem influência do
espírito descorporificado [...] mas a razão natural está em que a mulher é mais
carnal que o homem, o que se evidencia pelas muitas abominações carnais
(KRAMER; SPRENGER, 1991, p. 115-116).
Seguindo no pensamento de Kramer e Sprenger (1991), as mulheres são livres para
escolherem a maneira que mais lhe agrada proceder, entretanto, possuem tendência
forte e natural para o pecado e o comportamento carnal. Por esse motivo, são o alvo
preferido para que se tornem instrumentos humanos a serviço do diabo. Assim, “essas
mulheres cooperam com o demônio tendo a ele se entregado, a princípio, por sua livre
e espontânea vontade” (KRAMER; SPRENGER, 1991, p. 70).
Nessa perspectiva, a mulher seria a porta por onde o diabo conseguiria entrar
e através dela causar todo tipo de malefícios à humanidade. “Mulher, tu és a porta do
diabo. Foste tu que tocaste a árvore de satã e que, em primeiro lugar, violaste a lei
divina” (DELUMEAU, 2009, p. 316).
Diversas são as características depreciativas imputadas à Eva, que partem
do momento da Criação até o pecado original e a expulsão do Éden como: orgulho,
pois, posteriormente, a mulher se encantou com a fala da serpente ao lhe dizer que,
se comesse do fruto, seria igual a Deus, que tomaria consciência de todas as coisas;
desobediência, pois motivada pelo orgulho e por não se contentar com sua posição,
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a mulher transgrediu as ordens dadas pelo Criador; sensualidade e influência, porque
depois de comer do fruto proibido, a mulher o levou ao homem e, utilizando-se de seus
atributos físicos e de sua sensualidade, o convenceu a também comer e pecar com ela;
e capacidade de causar mal, a si e aos outros, pois sua transgressão levou à expulsão
do paraíso e a uma vida de sofrimento. O discurso religioso tentou transferir a todas as
mulheres tais atributos, claramente depreciativos:
Presumia-se que se a primeira mulher cometeu tal infração todas guardariam
em si o mesmo desejo de sobrepor-se ao universo masculino. O pecado de Eva
seria, no final, um pecado feminino e que não apenas condenava este sexo e
tornava sua natureza perversa indiscutível, mas da mesma forma isentaria
o homem de responsabilidade sobre a expulsão do Paraíso, ou ao menos
minimizaria sua participação no evento (FERREIRA, 2012, p. 61).
A esses atributos, aglutinam-se também a mentira, carnalidade, a tendência
ao pecado, a fragilidade, a fraqueza espiritual, elementos que não estão presentes
na essência masculina, mais ligada ao espírito e à retidão. Os atributos descritos, de
propriedade de Eva, foram considerados também como a essência de todo o gênero
feminino, estando no cerne das construções de gênero e hierarquia medievais (RIBEIRO,
2000).
No discurso medieval, acreditava-se que o pecado original só foi possível graças
à essa essência da primeira mulher:
Eva permitiu que o pecado fosse realizado através de duas de suas portas
de entrada mais evidentes: os olhos, que foram seduzidos pela beleza do
fruto proibido e a boca que o mordeu. Ela é a personagem inconsequente,
irresponsável, que não se preocupa com as implicações de seus atos sobre os
demais (FERREIRA, 2012, p. 60).
Consequentemente à tentação, Eva sucumbe à serpente e come do fruto
proibido, acreditando que, como disse a serpente, se igualaria a Deus, em posição e
conhecimento. O homem, Adão, também come do fruto proibido, mas pela tentação e
sedução exercidas pela mulher.
Nesta perspectiva, a mulher é ao mesmo tempo porta de entrada para os malefícios
advindos do pecado, inconsequente e irresponsável, na medida em que não se preocupa
com as consequências futuras de seus atos. Tais consequências, no episódio do pecado
original, pairaram sobre Eva, Adão e, indo mais além, toda a humanidade.
Logo, se a mulher possui tal capacidade, ou seja, de convencer outras pessoas
para que assim como ela, transgrida aos desígnios do Criador, é necessário que haja
sobre ela a tutela de um ser superior. Assim, justifica-se e legitima-se, mais uma vez,
a sobreposição dos gêneros por parte do homem e a obediência que lhe é devida por
parte da mulher.
De acordo com o Gênesis, no diálogo com a serpente, Eva demonstra conhecimento
e consciência da proibição imposta por Deus em relação ao fruto da árvore que ficava
no centro do Jardim do Éden:
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É assim que Deus disse: Não comereis de toda a árvore do jardim? E disse a
mulher à serpente: Do fruto das árvores do jardim comeremos. Mas, do fruto
da árvore que está no meio do jardim, disse Deus: Não comereis dele, nem nele
tocareis, para que não morrais. Então a serpente disse à mulher: Certamente
não morrereis. Porque Deus sabe que, no dia em que dele comerdes, se abrirão
os vossos olhos, e sereis como Deus, sabendo o bem e o mal (Gn. 3.1-5).
Partindo da narrativa do Gênesis, o desejo e o orgulho são os principais
responsáveis pela quebra dos laços com o Criador. O orgulho, por não se satisfazer com
a condição que lhe foi dada no Éden. O desejo, por comer do fruto e tornar realidade
seu desejo. Dessa forma, Eva tencionava, conscientemente, tornar-se parecida ou igual
ao Criador.
Segundo Ferreira (2012), são diversos os discursos que, na Idade Média, tomam
por escopo o orgulho, já considerado em si mesmo como um pecado. Sua existência,
como no caso de Eva, representava uma ameaça a todo tipo de hierarquia social, religiosa
e econômica existente no período medieval. Portanto, o combate a esse grande mal que
se apresentava sob a forma do orgulho, era fundamental para que as relações sociais
estabelecidas permanecessem, tanto entre Igreja e sociedade, quanto entre homens e
mulheres.
No discurso religioso, o pecado sempre tem consequências. No caso de Adão e
Eva, a punição foi a expulsão do Jardim do Éden, além de, daquele momento em diante, a
mulher numa posição de subserviência e dependência em relação ao homem, ao marido,
ao tutor. Pelo discurso recorrente que relacionava a mulher ao afastamento de Deus e
a uma suposta associação com o mal, com o diabólico, o pernicioso, a carnalidade e ao
demoníaco – lembremo-nos, também, dos exemplos bíblicos já citados, Dalila, Bate-
Seba e também a mulher de Ló – era necessário que, para que ela não causasse dano,
que se submetesse e que fosse obediente a uma criatura mais perfeita, mais ligada ao
espírito e à razão, o homem (RIBEIRO, 2000).
A possibilidade de causar mal, natural, torna-se inseparável do episódio do
Pecado Original, que representa um pecado não apenas contra Deus, mas também
contra o homem. No discurso religioso medieval, Eva:
Pecou duplamente, contra Deus e contra o homem. Também foi duplamente
punida, não apenas por Adão, pela dor física, mas pela sujeição ao poder
masculino. É por isso que, depois da queda, a mulher não deve ocultar
apenas seu sexo como o faz o homem, mas também sua cabeça, apregoando
duplamente a vergonha dos ardores de seu ventre e de sua “temeridade
imperiosa”. Nesse comentário, a leitura dos versículos do Gênesis desemboca
em uma peça de acusação contra os defeitos da natureza feminina, esses
vícios cujas vítimas são os homens (DUBY, 2001, p. 56).
O Gênesis foi e, sem dúvida ainda é o fundamento principal através do qual se
justificou e ainda se justifica a sujeição das mulheres aos homens, por serem um perigo
em potencial. Se, por um lado, os homens são considerados superiores às mulheres, por
outro, eles se tornam suas vítimas, pois necessitam conviver com elas e com todos os
seus vícios. Se a culpada principal de todo o pecado é a mulher, os homens passam a
ser considerados apenas como vítimas desse mal encarnado que é o gênero feminino,
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pois mesmo quando erram e pecam, o fazem devido à insistência e sedução femininas.
Por ser intrinsecamente feminino, o pecado original absolvia a culpa que Adão também
poderia ter sobre a expulsão do Éden.
Nesta perspectiva, Adão pode ser considerado a primeira vítima da mulher,
pois desobedeceu as ordens do Criador devido à sua influência (SILVA, 2011). “A parte
(feminino) desvirtuou o todo (masculino), uma vez que Adão, constituído à imagem e
semelhança do Criador, foi traído por Eva” (SILVA, 2011, p. 39).
Além do estigma de primeira pecadora, às representações sobre o feminino
foram se acrescendo outras características que o denegriam, relacionadas a desejos
carnais, como, por exemplo, a luxúria e a concupiscência (FERREIRA, 2012). Acreditava-
se que, através de atitudes e práticas luxuriosas, permeadas pela sensualidade natural
da mulher, ela conseguiria envolver os homens e desviá-los do caminho correto,
submetendo a seu controle e domínio o espírito masculino.
Lembremo-nos que, na Idade Média, milhares de mulheres foram torturadas
e queimadas vivas em praça pública sob as acusações de terem realizado pactos
demoníacos, terem praticado feitiços, causado doenças nos animais, arruinado
plantações e até mesmo por haverem tido relações sexuais com os demônios (KRAMER;
SPRENGER, 1991).
No discurso religioso, o mal tem a mulher como principal instrumento de ação.
Portanto, há mais dificuldade para que o homem incorra no erro e no pecado, portanto,
a mulher, é um meio pelo qual o homem pode ser destruído. A esse respeito, remetendo-
se à beleza feminina, São Crisóstomo diz que:
Que há de ser a mulher senão uma adversária da amizade, um castigo inevitável,
um mal necessário, uma tentação natural, uma calamidade desejável, um
perigo doméstico, um deleito nocivo, um mal da natureza, pintado de lindas
cores (KRAMER; SPRENGER, 1991, p. 114).
A beleza feminina é considerada um dos recursos pelos quais as mulheres
conseguem dos homens aquilo que elas desejarem, seja a prática do pecado, seja o
exercício de dominação sobre eles. São Crisóstomo salienta o fato de que, apesar de
toda a beleza característica da mulher e de todo o deleite que ela possa oferecer, ela é
uma adversária poderosa, uma tentação e um castigo aos homens, que pode distanciá-
los de Deus.
Foi dito anteriormente que o discurso misógino não era uma exclusividade da
Igreja. Fora do âmbito religioso, que diz respeito à beleza, posturas, ideias e permanências
que se remetiam a Eva também podem ser percebidas. Esse é o caso do Ornatus
Mulierum, um manual de beleza escrito por volta do ano 1250, de autoria anônima.
Numa análise feita por José Rivair Macedo (1998-1999), ele argumenta que, para o autor
do Ornatus Mulierum, no momento da criação de Eva, Deus a presenteou com a beleza
da juventude. Contudo, devido à desobediência, a beleza lhe foi retirada como forma de
punição. Como justificativa para a elaboração de seu manual, o autor argumenta que
mesmo as mulheres de sua época continuavam sofrendo pelo pecado cometido por Eva,
pois, enquanto eram jovens, tinham a pele bonita e saudável, mas que após certa idade
ou depois de se casarem, tal beleza se esvaía. Outras, ainda, não gozavam dessa sorte
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em nenhum momento da vida, nem antes nem depois do casamento (MACEDO, 1998-
1999).
A esse respeito, Macedo diz que:
O compositor apresenta já no início de seu texto uma contravisão do corpo
feminino satanizado pelo discurso clerical. Se, naquele discurso, a imagem
arquetípica de Eva era apreendida como metáfora do pecado e da perdição,
como emblema da fraqueza, aqui a evocação à primeira mulher ganha sentido
diverso. O pecado de Eva teria acarretado a perda da beleza ancestral da
juventude edênica [...] (MACEDO, 1998-1999, p. 4).
Macedo enfatiza a influência religiosa que pode ser percebida na perspectiva
do manual de beleza em relação às mulheres. Note-se que a ideia da mulher enquanto
primeira pecadora e também responsável pelas desgraças humanas está implícita na
posição do autor, mesmo que de forma velada.
Apesar do enfoque não recair sobre os mesmos elementos que encontramos
nos discursos religiosos – o autor tem como tema central técnicas e recursos para
a preservação da beleza ou sua recuperação, como por exemplo, a maquiagem – Eva
também aparece representada como prejudicial a todo o seu gênero.
Ao mesmo tempo em que manuais de beleza eram inscritos, houve um esforço
significativo por parte da Igreja para que as mulheres abdicassem de sua beleza ou que
pelo menos a escondessem.
A humildade, a modéstia e a simplicidade deveriam ser as marcas do sexo
feminino, seja no rosto, nas expressões, no comportamento e no modo de se vestir,
acrescidas da abnegação. Se a mulher assim não procedesse, os discursos e sermões
religiosos argumentavam que:
Não é apenas ela que peca contra o pudor mas leva igualmente os outros
(homens) a pecar [...] Tornam-se evidentes as ligações entre pecado, corpo
e mulher. Esta aparece então, como manipuladora da beleza, do adorno e do
charme para enganar o homem (RIBEIRO, 2000, p. 13).
Dessa forma, para evitar que os homens fossem enganados pelas mulheres, era
necessário que elas renunciassem à beleza, características femininas naturais, através
de rigorosas normas de comportamento. Em relação à beleza, Dalarun se remete à Odão
de Cluny, que reafirma as advertências de São Crisóstomo em relação à Eva, inspirando
em seus monges aversão e distanciamento do feminino, ao dizer que:
A beleza do corpo não reside senão na pele. Com efeito se os homens vissem
o que está debaixo da pele, a vista da mulher dar-lhes-ia náuseas. Então,
quando nem mesmo com a ponta dos dedos suportamos tocar um escarro ou
um excremento, como podemos desejar abraçar esse saco de excrementos?
(DALARUN, 1990, p. 35).
A partir de Odão de Cluny, percebe-se de modo claro o repúdio que se tentou
construir e que, até certo ponto foi construído em relação à beleza feminina, considerada
Misoginia medieval: a construção da justificação da subserviência feminina a partir de Eva e do pecado original
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como um invólucro agradável e aprazível à essência e ao interior de um ser repulsivo.
Além da renúncia à beleza, a Igreja buscou exercer controle também sobre a
sexualidade, dos jovens, dos não casados, até mesmo dos que haviam contraído
matrimônio, pois o corpo, principalmente os órgãos genitais, e as práticas sexuais, eram
portas por onde o diabo poderia se manifestar.
Segundo Claude Thomasset (1990), no discurso religioso medieval, a mulher era
considerada como “uma força inquietante, como um corpo que escapa ao domínio de um
espírito, como um ser governado pelos seus órgãos, e em particular pelos seus órgãos
sexuais” (THOMASSET, 1990, p. 65). Ainda de acordo com Thomasset (1990), durante a
Idade Média, os órgãos genitais e as próprias mulheres eram, por vezes, denominadas
como natureza.
Assim, até mesmo a maneira como eram chamadas demonstra as relações entre
as mulheres e a matéria, o mundo físico, mundo carnal, do qual os clérigos buscavam
se afastar. Explica-se assim, em parte, o distanciamento que é proposto na Idade Média
em relação a elas.
De maneira geral, as práticas sexuais eram consideradas pela Igreja como um dos
meios pelos quais o diabo poderia se manifestar e levar as almas para o seu domínio. Por
esse motivo, a fornicação era proibida e considerada pecado grave, pois se travava de
um relacionamento íntimo entre pessoas que não haviam se dado em casamento numa
cerimônia, quase pública, realizada pela Igreja e com a sua bênção.
Em relação aos maridos e as esposas, as práticas sexuais deveriam ocorrer com
moderação, pois sua função é estritamente a reprodução e a manutenção da linhagem.
O prazer e a excitação feminina eram proibidos, pois poderia dar lugar á influência
maligna.
A própria instituição do casamento no período medieval foi uma das tentativas
da Igreja no intuito de disciplinar a sexualidade. A esse respeito, Georges Duby diz que:
E já que, dentre as armadilhas postas pelo demônio não há nenhuma pior do
que o uso imoderado dos órgãos sexuais, a Igreja admite o casamento como
um mal menor. Ela o adota, o institui [...] mas com a condição de que sirva para
disciplinar a sexualidade, para lutar eficazmente contra a fornicação (DUBY,
2011, p. 18)
Assim, o casamento, um enlace onde a mulher é, nitidamente, considerada numa
posição mais baixa na hierarquia, pois o homem é a cabeça da casa, se trata de um
combate contra o pecado da fornicação, considerado como um dos mais graves pela
Igreja medieval.
Mesmo após o casamento, jurídica e religiosamente unidos, o uso dos órgãos
sexuais deveria ocorrer de forma moderada, para se evitar “as demências da alma
apaixonada, desse amor selvagem no estilo de Tristão” (DUBY, 2011, p. 18). A Igreja admite
o casamento e as relações sexuais, mas estas deveriam ser comedidas, obedecendo
sempre aos propósitos da procriação (AGOSTINHO, 2010).
Quando os casais se permitem sentir os prazeres provenientes da união carnal,
encontram-se a partir daí maculados, sujos e contaminados, devendo se afastar dos
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sacramentos até que sejam purificados. Para corroborar e incentivar o cumprimento
desta proibição argumentava-se que os casais “se abstenham de todo contato carnal
durante os períodos sagrados, se não Deus se vingará” (DUBY, 2011, p. 18).
É importante lembrar que quando tratamos do casamento na Idade Média, a maior
parte dos documentos que conhecemos referem-se ao que a Igreja propunha sobre os
moldes ideais de um casamento cristão, mas, como bem o disse Duby (2011, p. 11) torna-
se missão complicada para nós, historiadores, que vemos apenas o exterior, desnudar o
véu da oficialidade, das convenções, das formalidades e chegarmos às práticas privadas
no interior dos lares medievais.
Voltemo-nos à procriação como o principal fundamento do matrimônio. A partir
da perspectiva agostiniana, a reprodução também se apresenta como um dos aspectos
no quais a mulher é detentora de papel inferior e deve estar submissa ao homem.
De acordo com Agostinho: “ali o homem semearia e a mulher receberia o sêmen,
quando e quanto fosse necessário, sendo os órgãos da geração movidos pela vontade,
não excitados pela libido” (AGOSTINHO, 2010, p.160). A partir do pensamento de
Agostinho, Tereza M. Toldy (2010) argumenta que, na reprodução, cada um dos sexos
apresenta papel distinto na geração de uma nova vida.
O homem contribui com o sêmen, que se equivale a uma semente que cai numa
terra fértil, contendo, em essência, tudo aquilo que é necessário para a geração de uma
nova vida. A mulher, por outro lado, se equivale a terra que recebe a semente, ou seja,
o embrião, pronto para crescer e se formar.
Pensando dessa forma, o homem ocupa papel ativo e principal na reprodução,
enquanto a mulher detém um papel tímido e passivo. Para Thomasset (1990), “a mulher
é inteiramente um ser natural, já que é o instrumento da continuidade da raça humana”
(THOMASSET, 1990, p. 65).
Importante dizer que, para Agostinho, o sexo deveria ocorrer sem a presença
da libido, ou seja, do desejo sexual, considerado por ele como uma doença, a “libidinis
morbo”, que, se não controlada, sobrepuja a vontade e a razão, passando a controlar o
comportamento (AGOSTINHO, 2010, p. 366).
Os teólogos medievais acreditavam – e conseguiram fazer com que boa parte das
pessoas também acreditasse – que muitas mulheres se entregavam ao mal através de
pactos demoníacos, geralmente relacionados à práticas sexuais distorcidas e luxuriosas
com íncubus, súcubos e até mesmo com o próprio demônio, ficando a mercê de suas
vontades e transformando-se num instrumento para a realização de suas intenções
maléficas. Depois de firmados os pactos, as mulheres, tornadas feiticeiras ou bruxas,
teriam poderes sobrenaturais e a capacidade de causar mal, dor e o sofrimento, inclusive
contra a cristandade (ZORDAN, 2005).
Com todo o esforço da construção de uma identidade feminina que colocasse
as mulheres numa condição inferior a que foi delimitada aos homens, a Igreja e seus
teólogos conseguiram também justificar e operacionalizar uma intensa vigilância e
perseguição sistemática a todos aqueles que não se enquadravam de alguma forma nos
dogmas da Igreja, direcionada, em certo período, principalmente às mulheres.
Conseguiu, também, suplantar, em grande medida, a voz das mulheres medievais,
de modo que muito do que conhecemos sobre o período e sobre a própria condição
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feminina da época, não nos foi deixado por elas, mas por homens. Entretanto, não
podemos nos esquecer de que, apesar do predomínio masculino, havia mulheres que
escreviam, por exemplo Heloisa, Marie de France e Cristina de Pisano. Georges Duby
(2011), enfatizando a sobreposição do homem em relação à mulher no período medieval,
em todos os aspectos da vida cotidiana, o chama de “Idade Média, Idade dos Homens”.
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