Recebido em: 21/02/2019
Aprovado em: 20/04/2019
A sátira social no cinema soviético da Era Brejnev:
os
limites da censura
The social satire in the Soviet cinema of the Brezhnev
era:
the limits of censorship
FRANCISCON, Moisés Wagner
*
PONCE MARTINS, Gelise Cristine
*
Resumo: O Glavlit era o órgão encarregado da censura na União Soviética. Sua presença
na diretoria de produtoras, em fiscalizações e no controle da edição não era a única
fonte de repressão na produção fílmica. Estúdios e diretores dependiam dos contratos
com o governo, pois trabalhavam em um sistema estatizado. Era conveniente receber as
encomendas de filmes, cuja produção era numericamente prevista pela planificação.
Embora houvesse apenas uma fonte de financiamento, existiam vários estúdios
repartindo tais recursos. O sistema incentivava a autocensura. Os diretores eram
cobrados para que o filme fosse economicamente viável e agradasse ao público.
Entretanto, havia espaço para a crítica no cinema soviético, dentro de certos limites. Sua
transposição equivalia a condenar a película à tesoura da censura. Esse espaço de
manobra variou durante as etapas poticas do regime: aberto nos tempos de Lenin
(durante a NEP), estreito sob Stalin, amplo com Kruschev (1953-64) e um pouco menos
*
Mestre em História pela Universidade Estadual de Maringá, Maringá-PR, doutor em História pela
Universidade Federal do Paraná, Curitiba-PR. Professor da Secretaria de Estado da Educação do Paraná.
E-mail: mwfranciscon@hotmail.com
*
Mestre em História pela Universidade Estadual de Maringá, Maringá-PR, doutoranda em História pela
Universidade Estadual de Maringá, Maringá-PR. Professora da Secretaria de Estado da Educação do
Paraná. E-mail: gelise.ponce@yahoo.com.br
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extenso com Brejnev (1964-82), como indica Lewin. A sócio-história cinematográfica de
Ferro, caracterizada pela percepção de mensagens latentes ao filme decorrentes de sua
produção num ambiente social conflituoso e o trabalho de Bakhtin sobre a ambivalência
do humor popular, permitem-nos analisar três comédias que obtiveram resultados
distintos diante da censura: Interventsiia (1969), Slujebnyi roman (1977) e Sportloto-82
(1982).
Palavras-chave: Sócio-história cinematográfica; União Soviética; Crítica social.
Abstract: Glavlit was the agency responsible for censorship in the Soviet Union. His
presence on the production board, oversight, and editing control was not the only source
of repression in film production. Studios and directors depended on contracts with the
government, since they worked in a nationalized system. It was convenient to receive
orders for films, - whose output was numerically predicted by the planning. Although
there was only one source of funding, there were several studios sharing such resources.
The system encouraged self-censorship. Directors were charged to make the film
economically viable and appealing to the public. However, there was room for criticism
in Soviet cinema, within certain limits. His transposition was tantamount to condemning
the film to the scissors of censorship. This space of maneuver varied during the political
stages of the regime: open in the times of Lenin (during the NEP), narrow under Stalin,
broad with Kruschev (1953-64) and somewhat less extensive with Brezhnev (1964-82), as
indicated Lewin. Ferro's cinematographic socio-history, characterized by the perception
of latent messages to the film stemming from his production in a conflictive social
environment and Bakhtin's work on the ambivalence of popular humor, allow us to
analyze three comedies that obtained different results in the face of censorship:
Interventsiia (1969), Slujebnyi roman (1977) and Sportloto-82 (1982).
Keywords: Cinematographic socio-history; Soviet Union; Social criticism.
Introdução
Em 1953, após a morte de Stalin, o cinema soviético vivenciou um período de
florescimento quantitativo e qualitativo, tornando-se crítico e aderindo à novas formas
narrativas e estéticas e inseriu estas novidades na corrente oficial do realismo socialista,
rejuvenescendo-a e transformando-a. Em relação ao governo Kruschev, os anos Brejnev
(1964-82) diminuíram a liberdade e o espaço criativo do cinema, mas não de forma aguda.
Certos gêneros eram mais vigiados que outros: mais o cinema histórico e menos a
comédia. Diante disso, os diretores testaram com mais tranquilidade os limites da
censura no espaço da comédia. Formularam representações satíricas das diferenças
sociais e de sua estrutura, das liberdades individuais, do ambiente de vida e de trabalho
no país. A comédia era o gênero de maior audiência na URSS. O humor ácido de certos
filmes (já consagrado no anedotário russo, as anekdoty) acabou desfrutando de maior
público do que alguns filmes que pretendiam formar a memória histórica soviética.
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Na análise dos filmes selecionados, empregamos a teoria sócio-histórica
cinematográfica de Marc Ferro. Esta permite identificar as películas como produtos
históricos de uma sociedade e compreendê-las por uma ótica que textos escritos não
podem oferecer (FERRO, 1992; 1976). Ferro defende a existência de mensagens latentes
nos filmes, não explícitas, que apresentam uma denúncia consciente, porém sutil, ou um
lapso revelador da sociedade apesar da crença sincera de seus produtores. A noção de
conteúdo latente é adequada ao estudo das contestações presentes em filmes
humorísticos. A concepção de filmes enquanto fontes indissociáveis de seu contexto de
criação e que não são desnaturalizados por considerar sua linguagem própria, põe em
xeque as teorias do totalitarismo, que percebem a produção fílmica soviética como
propaganda potica de ditadores ou como uma dicotomia simplista entre cineastas
lacaios e dissidentes. Esta tese está expressa ou subentendida nas obras de Kenez
(2008), Overy (2009), Pereira (2012), entre outros.
Os filmes pertencem à época do líder soviético Leonid Brejnev, um período de
aumento nas restrições à liberdade criativa de diretores e da vida artística como um
todo, comparado ao anterior, de Nikita Kruschev. Interventsiia (1969) rompeu os limites
tácitos e ironizou a história da Revolução Russa. Slujebnyi roman (1977), uma comédia
cáustica, foi campeã de público. Sportloto-82 (1982) é um exemplo detira social com
conteúdo moralizante e enganadoramente pró-sistema. Estes filmes permitem-nos
pensar o Glavlit
1
como uma força menos atuante do que suas congêneres da América
Latina as ditaduras militares contemporâneas ao governo Brejnev e evidenciam três
formas distintas de burlar ou conviver com a censura. Os filmes obtiveram três destinos
diversos, revelando o talento de seus produtores ao se adequarem às regras não escritas
do considerado suportável pelo regime.
O uso preferencial da comédia para a crítica social e política na URSS pode ser
explicado pelas convenções que atenuam a contundência e a seriedade das acusações e
reclamações por meio do humor. Não costuma ser considerada muito grave a crítica na
forma de piada comparada à denúncia formal e exaltada. O Estado soviético sempre
tratou de modo mais brando a crítica enviesada no humor ou atenuada pela ficção (como
Aelita, ainda nos anos 1920
2
ou as obras de Eisenstein sob Stalin). A convivência entre o
1
Surgido em 1922 como Glavnoye upravleniye po delam literatury i izdatelstv pri Narkomate
prosveshcheniya RSFSR, ou Administração Principal para Assuntos Literários e Editoriais sob o
Comissariado do Povo da Educação da RSFSR, após várias reestruturações, foi renomeado em 1966 como
Glavnoye upravleniye po okhrane gosudarstvennykh tayn v pechati pri SM SSSR, ou Direção Principal
para a Proteção dos Segredos de Estado na Imprensa no âmbito do Conselho de Ministros da URSS.
Apesar de seu objetivo ser o controle de informação impressa, o acrônimo passou a referenciar
informalmente todo o aparelho de censura.
2
Ferro emprega um capítulo de seu livro para analisar um faroeste produzido nos anos 1920, ambientado
nos Estados Unidos, que tratava da repressão e das atitudes do sistema judiciário soviético (FERRO, 1992).
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poder e a crítica, dentro de certos limites, pelo humor, pode ser relembrada na existência
dos bobos da corte ou nas piadas acerca da avareza de Quéops, que circulavam no Egito,
no tempo de Heródoto.
Soleni Fressato emprega os conceitos de cultura popular, circularidade cultural
e crítica pelo riso, de Mikhail Bakhtin, ao analisar o julgamento e a imagem da sociedade
rural brasileira feita pelo cineasta e ator Mazzaropi, inclusive nos filmes rodados durante
a ditadura militar. Conceitos importantes para a compreensão do cinema humorístico e
crítico na União Soviética:
Contexto de repressão não muito distante ao que Bakhtin vivia na então União
Soviética. Talvez, por isso Bakhtin tenha se sentido atraído e interessado pela
obra de Rabelais, autor pouco conhecido e estudado em seu país. Referenciando
outro espaço e tempo, Bakhtin refletiu sobre a situação da cultura popular na
União Soviética e nos deixa uma mensagem clara e precisa: por mais eficiente e
homogeneizante que seja a cultura dominante, sempre existe espaço para o
deboche, para a rebeldia e para o protesto, enfim, para a cultura popular
(FRESSATO, 2009, p. 37).
Bakhtin (1993) atenta para a existência de uma dualidade na concepção de
mundo do homem medieval, cindido entre a cultura oficial e a cultura popular, entre a
seriedade litúrgica e o humor da contestação. Esta dualidade está presente em qualquer
regime autoritário, em níveis diferentes de intensidade em relação ao poder político
constituído. Se na Idade Média a festa e o carnaval sancionavam o riso, na URSS ele era
disseminado pela rica tradição das anekdots, o sarcástico anedotário russo, que tinha
lugar reservado nos bares (no período pós-Stalin), nos grupos de discussão, na família e
em algumas obras fílmicas.
Havia espaços e momentos próprios para a repetição mecânica da ideologia
oficial e o mesmo para sua negação (POCH-DE-FELIU, 2003) ou reinterpretação
(LEWIN, 1988). A propaganda ou informação advinda de meios de confiança do governo
poderia ser simplesmente rejeitada ou invertida pela desconfiança crônica dos ouvintes
ou ainda trabalhada e refletida em grupos de discussão informais, como o coletivo de
trabalho, áreas de lazer, reunes familiares e de amigos, ou departamentos acadêmicos
(BAKHTIN, 1993). Estes grupos são endêmicos em sociedades em que a informação
oficial é controlada rigidamente. Segundo Lewin (1988), por meio de sua existência,
podia-se reconhecer que a informação não-oficial, verdadeira ou não, fatos e boatos,
comprometiam o monopólio dos meios de comunicação estatais e faziam essa mesma
informação fluir rapidamente. Eles espalhavam o anedotário e eram tão eficientes que,
mesmo sem qualquer comunicado nos jornais, multidões se aglomeraram no funeral do
roqueiro dissidente Vladimir Vysotski, em 1980 seu tom era considerado politizado e
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crítico demais pelas autoridades, para que fosse executado nas emissoras de rádio, como
as músicas dos demais grupos de rock (BROWN, 2010). Um evento de curta duração que
demonstra a rapidez da disseminação de informação e mobilização proporcionada pelas
redes de comunicação informais.
Do mesmo modo que, para Ginzburg (1987 apud FRESSATO, 2009), é possível
saber mais sobre a cultura camponesa consultando a obra de Rabelais do que qualquer
outra fonte, a sociedade soviética pode ser melhor estudada através do cinema cômico,
do que por meio das teorias do totalitarismo, para as quais a existência da condenação,
da resistência, da sátira, não só abertas e públicas, mas veiculadas por produtos
provenientes de empresas pertencentes ao próprio Estado (os estúdios), seria
simplesmente impensável. No Renascimento, a prática da paródia, da sátira, disseminou-
se da cultura popular para a erudita. Algo similar se deu com o cinema cômico soviético.
A circularidade cultural levou as anedotas do imaginário popular para as películas. Bem
como, constituiu um “circuito comunicacional”
3
entre o humor popular, a literatura e a
crítica escrita, dentro de limites tácitos
4
e o cinema especialmente nos anos Kruschev.
O cinema na URSS não era a máquina de lavagem cerebral, o núcleo do aparato
de coerção ideogica das massas, como defendem Pereira (2012), Kenez
5
ou Overy
6
. Os
3
Valim define o circuito comunicacional como um “circuito consumo-mediação-produção, com vistas a
tratar adequadamente das mediações institucionais e culturais que regulam, permitem ou impedem a
produção e o consumo de filmes, indo ao encontro da carreira, da trajetória das imagens”. E insere o
conceito no contexto do imaginário anticomunista da sociedade brasileira. “As manifestações, e os folhetos
distribuídos por organizações anticomunistas; os documentos estadunidenses enviados para o DOPS; as
matérias em jornais e revistas informando a população sobre “as infiltrações comunistas”; compõem parte
de um circuito comunicacional. Juntamente com outros textos, formaram o sistema de representações
ficcionais ou sociais que deram o suporte para que o ideário anticomunista se tornasse inteligível.
Outrossim, se observarmos o contexto de produção e circulação desses discursos, as mensagens
presentes nesses documentos e as redes de pticas que renovaram e defenderam esse sistema ideogico,
conseguiremos nos aproximar e compreender como um complexo de relações entre os textos e as
condições sociais de sua produção e consumo construiu a hegemonia política que fomentou e difundiu o
anticomunismo em meados do século XX” (VALIM, 2006, p. 30; 147).
4
A revista satírica Krokodil, fundada em 1922 e de distribuição semanal, era o principal veículo impresso
voltado para o humor dentro da URSS. Apesar de suas charges serem direcionadas especialmente para a
condenação e o motejo do modo de vida ou da política ocidentais, também satirizava “inconvenientes
elementos isolados da vida soviética” (SMORODINSKAYA; ROMAINE; GOSCILO, 2007, p. 312). Corrupção,
irresponsabilidade, preguiça e indisciplina no trabalho, a economia soviética, comportamento social, a
burocracia, o “departamentalismo”, a rotina dos escritórios. Havia um amplo leque da realidade do país que
era tratada com comicidade em suas páginas. E o anedotário se fazia presente.
5
“Ninguém na época possuía uma clara apreciação do potencial da propaganda do cinema quanto Lenin e
seus colegas. Os leninistas, com sua impaciência e sua voluntarista visão da história, estavam
constantemente procurando por meios para levar suas crenças para o povo. O cinema era um dos muitos
meios utilizáveis [...]. Ele era um político e, naturalmente, estava primeiramente interessado em filmes
como um instrumento de educação política”. A produção fílmica, a liberdade artística, o cineasta eram
concebidos como agitadores políticos, agitki. Sobre a dimensão e a eficácia da propaganda para o controle
do Estado sobre a sociedade, afirma que: “é impossível separar os resultados da doutrinação das
consequências de outros aspectos do sistema soviético. Quem é capaz de dizer o quanto extenso era o
endosso popular de seu governo porque concordava com as metas do regime por terem vindo a considerá-
las como suas próprias metas e em que medida eles fizeram isso, porque tinham medo das consequências
do dissenso? Similarmente, fez o povo soviético aceitar as metas do regime porque eles consideraram
estas metas atrativas, ou produziu seu suporte ao regime, como resultado extensivo de uma inteligente
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filmes carregados de propaganda política não eram os mais assistidos. A população
apreciava, acima de tudo, as comédias portadoras do escapismo, da diversão suave e da
sátira. Ao contrário dos filmes valorizados pelo regime e difundidos nos jornais
7
, estas
comédias foram tão influentes a ponto de algumas de suas frases passarem a compor o
vocabulário popular, permanecendo na mentalidade dos soviéticos
8
.
O sistema de produção e distribuição privados da época czarista foi substituído
pelo modelo estatal, com a nacionalização e expropriação de cinemas, estúdios e
instrumentos, em 1919. A partir de 1929, o regime descentralizado foi substituído pelo
centralizado. O cinema passou a contar com um ministério e agências de fomento e
controle. As constantes reorganizações burocráticas também atingiram os órgãos
estatais encarregados do cinema. A antiga Sovkino, que cuidava da distribuição, foi
extinta. Seu lugar foi preenchido com a maior e mais poderosa Soyouzkino
9
. A produção,
distribuição e previsão de público passaram a ser previstas numericamente pelos planos
manipulação da opinião? [...] Eu posso estabelecer com segurança, todavia, que em particular, os métodos
leninistas-stalinistas de mobilização de massas e a de doutrinação foram aspectos essenciais para o Estado
de propaganda. Por um lado, não se pode imaginar o regime soviético funcionando sem esta mobilização de
massas sistêmica; por outro, os vários métodos de propaganda que os bolcheviques usavam faziam sentido
apenas no ambiente político dado”. O sistema político-social soviético inteiro se apoiava na propaganda e
esta era realizada, acima de tudo, pelo cinema (KENEZ, 1985, p. 106-111; 251, tradução nossa).
6
Segundo Overy, havia a “convicção de que a cultura tinha uma extraordinária capacidade de influenciar o
estado de espírito e as crenças do observador. Não fosse assim, os esforços para arregimentar cada
manifestação individual da palavra impressa, ou a imagem pictórica, ou o ambiente construído teriam sido
redundantes. Os critérios para medir o valor da produção artística ou literária refletiram as aspirações
sociais e as necessidades políticas da ditadura. A arte oficial não era inteiramente cega à realização
estética, mas tinha como principal prosito expressar valores sociais e ideais políticos aprovados, para
que fossem apreciados pelo público comum, e não pelo mundo mais estreito de críticos e patronos da arte”
(OVERY, 2009, p. 362-363).
7
Ferro chama a atenção para a importância junto ao público do filme Tchapaev (FERRO, 1992), mas
Tchapaev é mais uma exceção do que a regra para o filme engajado na retórica oficial do regime. Ele foi
produzido num momento em que a planificação econômica havia reduzido a produção de filmes (KENEZ,
2008), limitando o espectador a vê-lo repetidas vezes. Ainda assim, as piadas surgidas sobre o filme
concentraram-se em seus momentos de humor, como no romance entre o estafeta de Tchapaev e a
operária combatente.
8
O sol branco do deserto (1970), de Vladimir Motyl (1927-2010), é o primeiro “faroeste passado no
Oriente” astico da URSS que, por tradição, é sempre assistido pelos astronautas russos antes de irem a
missões no espaço. O filme se tornou tão popular que várias expressões que fizeram sucesso na tela
entraram no vocabulário do dia a dia do russo: “O Oriente é uma coisa sutil”; “Alguma pergunta? Nenhuma
pergunta”; “É mais calmo quando se está morto, mas também é mais chato” (SEGRILLO, 2012, p. 64). Os
Osterns, os faroestes produzidos na URSS e em outros países comunistas, continham uma boa dose de
humor (SEGRILLO, 2012 p. 267-268).
9
A primeira entidade destinada a controlar a produção e distribuição cinematográfica foi a VFKO, Seção
de Fotografia e Cinematografia de Todas as Rússias (1919-22) (TAYLOR; CHRISTIE, 1991); sucedida pela
Goskino, ou Comitê Estatal de Cinematografia (1922-24); que foi substituída pela Sovkino (1924-30) que,
por sua vez, o foi pela Soyuzkino (1930-33); esta trocada pela GUKF, Diretoria Geral da Indústria
Cinematográfica e Fotográfica (1933-39); abolida pelo Comitê Central de Assuntos Cinematográficos (a
1946), substituído pelo Ministério do Cinema (1947). Em 1963, a Goskino foi relançada, primeiro como
Comitê de Estado do Conselho de Ministros da URSS em Cinematografia (1963-65), em seguida, como
Comitê de Cinematografia do Conselho de Ministros (1965-72), depois, como Comitê Estatal de
Cinematografia (1972-78) e, por fim, tornou-se o Comitê do Estado da URSS em Cinematografia (1978-91).
Em russo, a sigla VFKO significa Vserossiyskiy fotokinootdel; Goskino, Gosudarstvenii komitet po
kinematografii; GUKF, Gosudarstvennoe upravlenie kinofotopromychlennosti (TAYLOR; CHRISTIE, 1991).
Sovkino, além do nome departamental, faz referência a “filmes soviéticos Sov-kino; Soyuzkino a “filmes
da União” Soyuz-kino.
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quinquenais estipulados pelos ministérios em Moscou. Esse processo ocorreu não sem
embates entre aqueles que desejavam que o cinema fosse franco e os que defendiam que
o valor dos ingressos deveria ajudar no financiamento da produção fílmica. Se este
financiamento seria baseado nos filmes nacionais, os únicos a serem exibidos no país, ou
se os filmes estrangeiros poderiam ser usados para arrecadar recursos
10
. Se a arte
deveria se render ao produtivismo e ao consequente aumento de películas lançadas.
Como e em que medida o realismo socialista seria adotado e no que ele exatamente
consistia, ou ainda sobre a forma da distribuição das películas através do vasto país e de
seu público diferenciado urbano ou rural.
Nos primeiros tempos da planificação, os cineastas e diretores dos estúdios
foram compelidos a se adaptarem às restrições à liberdade artística, intrínsecas ao
padrão desejado pelo “realismo socialista”, por meios variados, que iam do fim do
financiamento até a execução no pareo. Além da produção que visava atingir o número
previsto de filmes e a cota orçamentária, os estúdios recebiam encomendas do Estado.
Geralmente, eram obras comemorativas, palco para a propaganda política. O tema era
imposto pelo governo e as filmagens acompanhadas de perto pelo aparato de vigilância.
No período pós-Stalin (1953-91), a pior condenação sofrida por um cineasta foi o exílio
forçado de Tarkovski, nos anos Brejnev (BIRD, 2008). Aproveitaram sua viagem à
Europa Ocidental para proibir seu retorno ao país, no mesmo estilo do exílio infligido a
Chaplin pelo governo americano.
10
Kenez descreve alguns destes debates. “A questão mais controvertida concernia ao financiamento da
cineficação. Todos os participantes da controvérsia assumiram que o governo não poderia pagar. Além
disso, todo mundo tinha como certo que, no longo prazo, a indústria cinematográfica se constituiria em
uma importante fonte de receitas. Trotsky escreveu em 1923, [...] [que] por um lado, os filmes proveriam
um maior entretenimento cultural para o povo russo do que o álcool e, por outro, que as receitas
provindas da venda de vodka poderiam ser substituídas pela venda de ingressos de filmes. Stalin, no XV
Congresso do Partido em 1927, repetiu a expressão de Trotsky quase literalmente. E, desde então, a ideia
de que o cinema poderia tomar o lugar da vodka tornou-se um clichê dos publicitas soviéticos [...].
Qualquer coisa que o futuro distante possa trazer, para as pessoas práticas, a questão mais importante era
para onde o dinheiro da aldeia destinado ao cinema deveria ir agora. Sovkino, que era a responsável pela
distribuição, foi impiedosamente atacada por seus inimigos, por ‘desvios de direita’, que não estava
prestando atenção na visão do camponês e que o estava pressionando com altas taxas de lucro. Para a
Sovkino, o cerne da questão era que embora em 1929 quase metade das performances cinematogficas na
União Soviética fosse realizada nas vilas, estas renderam apenas 16% do total. Para diminuir os prejuízos, a
Sovkino definiu preços relativamente altos”.Outra razão para a escassez de filmes era comercial. A
Sovkino, que vivia sob constante pressão para fazer dinheiro, enviava as pias dos filmes mais populares
primeiro para os teatros das cidades, onde os lucros eram muito maiores e os filmes eram menos
danificados pelo manuseio impróprio. Do ponto de vista inteiramente comercial, fazia sentido exibir os
filmes para as audiências urbanas e, posteriormente, distribuir para os clubes de operários e para o
interior. Por esta política de distribuição, os líderes da Sovkino eram amargamente atacados [...]. A
população das cidades, que nos anos 1920 gozava de considerável possibilidade de escolha, podia
expressar suas preferências por meio da compra de ingressos. Podemos dizer, por exemplo, que Douglas
Fairbanks e Mary Pickford possuíam as maiores bilheterias porque exibiam uma grande variedade de
filmes, nos melhores teatros das cidades. Camponeses e soldados não tinham escolha, assistiam aos filmes
disponibilizados”. E poderiam pagar (caso tivessem tal quantia) até 10 ou 15 copeques pelo único filme
ofertado no cinema local (KENEZ, 2008, p.78; 80-82, tradução nossa).
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Com a desestalinização do sistema soviético fomentada por Kruschev, a censura
passou a ser promovida pelos próprios diretores e produtores e não mais pelo KGB. A
autocensura era desejável pelo corpo cinematográfico, porque se a produção fílmica não
obedecesse às regras tácitas, o financiamento e os pedidos de novos filmes seriam
cortados
11
. Mas quando não se tratavam de obras comemorativas encomendadas pelo
Estado, os esdios podiam escolher livremente diretores e roteiros. Assim, cineastas
consagrados encontravam emprego mesmo depois de ter cenas ou filmes inteiros
censurados pelo governo. Foi o caso de Alexei German (LAWTON, 1992), Andrei
Tarkovski (BIRD, 2008) e Gennadi Poloka.
Portanto, mesmo pertencendo ao Estado e sendo vigiado pelas agências de
censura, o sistema de produção e distribuição do cinema soviético não cumpriu o
pretendido papel de máquina de propaganda, diante do consumo, da transmissão,
recepção e interiorização dos produtos de propaganda pelo público
12
. Apesar dos
diretores e roteiristas sofrerem pressões por parte dos controladores dos estúdios
cinematográficos, do aperto financeiro e do acompanhamento do aparato de repressão
do regime autoritário, conseguiam espaço para inovar, experimentar e realizar críticas ao
sistema soviético, ainda que restritas. O uso do riso na produção fílmica crítica,
expressava o que ocorria na sociedade, especialmente após a morte de Stalin e a
consequente reestruturação do aparato de segurança interno.
Uma vez que existia o discurso grave e oficioso de filmes que endossavam a
ideologia oficial, a sátira aos mesmos era algo quase obrigatório. Como expõe Bakhtin ao
descrever o embate entre o crescente poder real e a resistência dos costumes da cultura
popular, no cenário do Renascimento:
O sério é oficial, autoritário, associa-se à violência, às interdições, às restrições.
Há sempre nessa seriedade um elemento de medo e de intimidação. Ele
dominava claramente na Idade Média. Pelo contrário, o riso supõe que o medo
foi dominado. O riso não impõe nenhuma interdição, nenhuma restrição. Jamais
o poder, a violência, a autoridade empregam a linguagem do riso (BAKHTIN,
1999, p. 78).
Ferro (1976; 1992) demonstra que o filme é fonte de inquietação e objeto de
controle tanto nas “democracias liberais” quanto nas “democracias populares”
13
. O filme
11
As Andrei Rublev (1966), Tarkovski passou a receber encomendas menores. Solaris (1972) e O espelho
(1974) enfrentaram dificuldades de distribuição (BIRD, 2008, p. 46). Outra forma de pressão era a
divulgação. Siberiada (1987), de Andrei Konchalovski, foi exibido em Moscou praticamente sem
publicidade.
12
Poch-de-Feliu (2003) apresenta um quadro de desengajamento político na cultura soviética nos anos
1970-80.
13
“Quem suposta imagem da realidade oferece, a oeste, essa indústria gigantesca, a leste, esse Estado que
tudo controla? De que realidade o cinema é verdadeiramente a imagem? [...] os poderes públicos e o
privado pressentem que ele pode ter um efeito corrosivo; eles se apercebem que, mesmo fiscalizado, um
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é produto de uma sociedade e expressa seu funcionamento de forma latente,
conscientemente ou não, voluntariamente ou não. Trata-se de uma fonte para além dos
documentos escritos:
[...] Partir da imagem, das imagens. Não procurar nelas exemplificação,
confirmação ou desmentido de um outro saber, aquele da tradição escrita.
Considerar as imagens tais como são, com a possibilidade de apelar para outros
saberes para melhor compreendê-las [...]. Eles [os historiadores da Nova
História] reconduziram a seu legítimo lugar as fontes de origem popular,
escritas, de início, depois não escritas. Resta estudar o filme, associá-lo ao
mundo que o produz. A hipótese? Que o filme, imagem ou não da realidade,
documento ou ficção, intriga autêntica ou pura invenção, é História; o
postulado? Que aquilo que não se realizou, as crenças, as intenções, o
imaginário do homem, é tanto a História quanto a História (FERRO, 1976, p.
203).
Ferro desenvolve o método para ler o filme como um documento escrito, que
visa perceber, nas entrelinhas, as mensagens não declaradas ou involuntárias das quais
ele é portador, a expressão de seu diretor e produtor, dos atores, da sociedade e do
embate durante e após a realização e edição do produto final.
Ademais, a parte inesperada, involuntária, pode também ser grande nesse caso.
Esses lapsos de um criador, de uma ideologia, de uma sociedade constituem
reveladores importantes. Podem ocorrer em todos os níveis do filme, como na
sua relação com a sociedade. Seus pontos de ajustamento, os das concordâncias
e discordâncias com a ideologia, ajudam a descobrir o latente por trás do
latente, o não-visível através do visível (FERRO, 1976, p. 204).
O filme analisado por Ferro, Dura Lex, produzido nos anos 1920, contém uma
crítica consciente e oculta ao sistema soviético (como a dos três filmes da era Brejnev
escolhidos para a análise), expressa no roteiro, que continha vários pontos alterados
frente ao livro do qual foi adaptado. Assim tornou-se perceptível:
[...] uma zona de realidade não-visível. Nessa sociedade soviética, o crítico
esconde em si mesmo as verdadeiras razões de sua atitude (acordo/desacordo)
frente ao filme. O realizador transe (conscientemente/inconscientemente)
uma narrativa da qual ele inverte inteiramente o argumento (se o dizer, sem que
seja dito, sem que ninguém o queira ver) (FERRO, 1976, p. 207, grifo do autor).
Interventsiia
A película humorística Interventsiia [Intervenção], de Gennadi Poloka, foi
produzida a partir da estilização do roteiro de Lev Slavin, quando a liberdade artística
filme testemunha [...] Ele destrói a imagem do duplo que cada instituição, cada indivíduo se tinha
constituído diante da sociedade. A câmara revela o funcionamento real daquela, diz mais sobre cada um do
que queria mostrar. Ela descobre o segredo, ela ilude os feiticeiros, tira as máscaras, mostra o inverso de
uma sociedade, seus lapusus” (FERRO, 1976, p. 202).
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sob Kruschev esvaía-se diante das novas tendências repressoras (HUTCHINGS, 2005).
Promove uma crítica à história oficial da Revolução Russa, mesclando-a e atenuando-a
com a citação de elementos desta história, especialmente no início, na tentativa de
permanecer dentro do jogo não declarado de liberdade artística e de repressão à
dissidência, que perde força ao longo do filme. Uma das cenas que endossa a versão
oficial é aquela em que o diplomata russo traduz a mensagem recitada com uma voz de
trompete militar pelo general francês, comandante das tropas interventoras, diante de
“todo o Império reunido” em Odessa, enquanto bandeiras da França, Inglaterra e Império
Austro-húngaro são hasteadas diante de seus olhos:
Damas e cavalheiros, políticos! Senhoras e senhores, cadetes! Social
Revolucionários! LCDPesses! NEPesses
14
! Centristas moderados. Com
plataformas e sem plataformas! Senhoras e senhores sionistas
15
! Senhoras e
senhores da União do Arcanjo Miguel! Senhoras e senhores, outubristas
16
borodbistas
17
, monarquistas, anarquistas, nacionalistas... E outras senhoras e
senhores. Eu os cumprimento em nome da Entente. Nós viemos para ajudar os
patriotas russos a restaurar a ordem no país. Vocês deviam aos aliados sete e
meio bilhões antes mesmo do ano de 1913. Nós lhes demos três anos e meio
bilhões durante a guerra. Dois bilhões e meio são de dívidas ferroviárias. Além
disso, dois bilhões, que foram emprestados às organizações municipais. O total
que a Rússia deve aos aliados é: 14 bilhões, 720 milhões, 398 mil e 649 francos.
Eu não calculei os juros ainda. Sim! Tudo aqui é nosso: o carvão, os portos,
bondes, pistas de corrida, restaurantes. As caas, que vocês vestem. Mulheres,
com quem vocês dormem. Tudo aqui é nosso. (INTERVENTSIIA, 1969)
Neste momento, a comicidade faz coro à interpretação do regime para a atuação
e intenção das forças interventoras estrangeiras forçar o pagamento das dívidas da
Rússia czarista, tomar e dividir regiões da Rússia conjuntamente com as diferentes
facções brancas, fragmentando seu espaço territorial.
Além do narrador inicial, o filme conta com quatro personagens que abrem
algumas cenas: um militar obtuso, uma monja impetuosa, um aristocrata que só
consegue repetir a si mesmo, um boêmio e um cambista. Por meio deles, as forças
intervencionistas são satirizadas: “Howitzers! Lançadores de bombas! Tanques! Viva!
Bigodes! Bigodes! Voltaires! Balzacs! George Sands!” (INTERVENTSIIA, 1969).
14
Cadetes ou Partido Democrata Constitucional, partido liberal; SRs ou Social Revolucionários,
agrupamento político com influências populistas, socialistas e de base camponesa; LCDP ou
mencheviques, facção do Partido Trabalhista Social Democrata Russo, que adotou a democracia liberal e
aliou-se aos brancos.
15
Havia três movimentos políticos formados por judeus durante a revolução: o Trabalhadores de Sião, o
Partido Popular Judaico e o Bund (Federação Geral Trabalhista Judaica).
16
Uma referência à União do 17 de Outubro, um movimento centrista, monarquista constitucional, que faz
alusão ao outubro da Revolução de 1905.
17
Os borodbistas (Lutadores) eram um partido da esquerda nacionalista atuante na Ucrânia.
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A sátira social no cinema soviético da Era Brejnev: os limites da censura
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Imagem 1. À direita, sionistas tocando violinos. À esquerda, “todo o Império está aqui”
Fonte: INTERVENTSIIA, 1969.
A cada menção de um dos escritores, segue-se à caracterização da tropa com
seu penteado ou aparência. Os soldados das potências estrangeiras são saudados pelo
aristocrata com os nomes dos expoentes da literatura francesa. Para ele, são os
portadores da civilização, prontos para marchar até Moscou e derrotar a horda
comunista, o que parece ser em questão de semanas. Mas fica claro que essa ligação é
superficial, com a reprodução dos penteados.
A presença dos sionistas tocando violinos, com sua aparência ortodoxa, vestes
pretas, cachos, chapéus típicos, evidencia a dubiedade na significação do movimento
judaico na revolução. Eles são retratados como chauvinistas, do mesmo modo que o
movimento sionista era oficialmente visto na URSS de Brejnev e em Israel. A cena que
alude ao musical da Broadway, Violinista no telhado, baseado na obra do escritor ídiche
Sholom Aleichem (SEGRILLO, 2012), fez muito sucesso na época, ao mostrar a população
judaica perseguida por pogroms, perseguições, organizados pelo regime czarista.
Através do narrador, Interventsiia se apresenta como um musical, um “drama-
bufo”, uma farsa com forte linguagem teatral. Na abertura, faz alusão ao Encouraçado
Potemkin, de Eisenstein e aos musicais americanos, com uma grande escadaria, ladeada
por colunas, na qual se revessam imagens estilizadas de bolcheviques (em vermelho), da
burguesia, aristocracia, Exército Branco e forças intervencionistas. Em tomadas
posteriores, a dança e a música preenchem o segundo plano, com dançarinas de
cartola na mão, soldados figurantes que executam coreografias ao fundo, marchas
militares das tropas expedicionárias que se convertem em dança, ao estilo da Broadway.
O filme se concentra em cenas caóticas, rápidas, de perseguições, com
mudanças bruscas na angulação e uma sucessão de personagens e situações, que
reforçam a imagem da confusão reinante e da diversidade de facções em que se dividiam
as antigas elites russas e as classes dela dependentes. De popular, há apenas a
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personagem Sanka (Gelena Ivlieva), vendedora de flores e agente comunista disfarçada.
Essa variedade de personagens e o incontável número de grupos em luta foram
realçados na cena já citada da chegada das tropas estrangeiras e, antes dela, na
introdução do narrador:
A história de como a bela madame Ksidias [aristocrata e banqueira] deixou a
cena. De como todos quiseram se tornar um Napolo, o que tornou impossível
caminhar nas ruas sem satisfazer aos outros Napoleões. Sobre como uma
Cinderela arruinou um príncipe. Os personagens são: poetas e algozes, cantores
e bandidos. Soldados e boêmios. Generais e "bues". Aesculapiuses [médicos] e
intrigantes políticos. Vendedores ambulantes e santos. Bem como
contrabandistas, artesãos e um califa das horas [capitalista] (INTERVENTSIIA,
1969).
Segundo a historiografia oficial soviética, transformar-se em um Napoleão ou em
um novo czar era ambição dos generais e barões brancos durante a Guerra Civil, que
fatiaram entre si e com as tropas intervencionistas, o antigo território do império. A
maioria deles foi derrotada pelo Exército Vermelho, como Denikin na Criméia, Kolchak
na Sibéria, Wrangel no sul da Rússia, Kornilov no Don, Mannerheim na Finlândia e
Iudenich no Báltico.
A apresentação da Revolução Russa como caos faz eco ao anedotário popular.
Algumas piadas apresentam Lenin como um grande líder frente aos demais dirigentes do
Kremlin, outras não o perdoam
18
. Muitas vezes, o processo revolucionário foi associado
com bagunça, em decorrência da oposição, negação e inversão do discurso oficial, por
parte dos setores que foram derrotados em 1917-21 e que não emigraram:
Entrevista na TV com um cidadão centenário:
Conte-nos, Sr. Ivanov, como está tão bem conservado aos 167 anos?
Bem, na Grande Revolução de Outubro...
Olha, é melhor contar-nos algo sobre Lenin!
Durante a Grande Revolução de Outubro...
Por que não nos conta algo sobre Dostoievsky?
Deixe-me explicar! Durante a Grande Revolução de Outubro a baderna era tanta
que alguém acrescentou mais cem anos na minha carteira de identidade!
(LEWIS, 2014, p. 143).
A revolução como caos também é lembrada pelo jogo de cartas. O filho da
aristocrata e banqueira Ksidias (Olga Aroseva), Jenka Ksidias (Valeri Zolotukhin),
18
Havia uma grande diversidade nos posicionamentos do anedotário, conforme o grupo do qual emergiu.
Em geral, era portador de uma “contra-história” (FERRO, 1992). “Lenin mostrou como se pode dirigir.
Stalin mostrou como se deve dirigir. Kruschev mostrou que qualquer idiota pode dirigir. Brejnev mostrou
que nem todo idiota pode dirigir”. Essa é uma anedota criada pelos setores stalinistas desgostosos com as
reformas iniciadas com a morte do dirigente georgiano. Outro exemplo: “Por que Lenin usava sapatos e
Stalin botas? É que na época do Lenin, a Rússia estava na merda somente até o tornozelo”. Já esta pertence
aos nacionalistas russos que, considerando a URSS como sucessora e perpetuadora da antiga Rússia,
opunham-se ao regime.
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A sátira social no cinema soviético da Era Brejnev: os limites da censura
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vestindo uniforme de cadete, com vagas simpatias socialdemocratas ou socialistas e um
professor (Voronov) que, sob o capote burguês, revelava-se um comunista infiltrado e
jogava com a revolução. Suas cartas e retratos na parede possuíam a efígie dos
principais revolucionários do período do Terror: Marat, Danton, Robespierre e
Desmoulins, mortos naquele processo. “[...] 10,000. Eu já seria um Marat. Quando eu
estou jogando comigo mesmo, eu sou brilhante”. Os diversos grupos sociais estariam
“jogando revolução”, com alianças e atuações inconstantes. Como qualquer jogo, o
resultado do processo revolucionário era imprevisível. Uma roleta russa como a que o
próprio Jenka experimentou posteriormente.
Imagem 2. À direita: Jenka e o “jogo da Revolução”. À esquerda: “Voltaires”
INTERVENTSIIA, 1969.
Os bolcheviques são uns poucos espiões infiltrados entre as diversas facções da
antiga elite. Alguns ainda são estrangeiros, como Jeannie Barbier (Yuliya Burigina).
Procuravam incessantemente pelo perigoso agitador bolchevique Brodsky, mas ninguém
conseguia encontrá-lo, até descobrirem que ele é o insípido professor dos Ksidias e
conselheiro dos oficiais estrangeiros. Não parecem ter forças para serem os vitoriosos.
Ao seu lado estão alguns elementos populares que são derrotados pelos brancos,
levando ao drama da prisão, tortura e execução de Brodsky/Voronov (interpretado pelo
controverso cantor, compositor e ator Vladimir Vysotski acima citado) e Jeannie. No
final, alguns elementos das forças estrangeiras percebem-se como proletários e passam
para o lado bolchevique, desarticulando a saída das barricadas para o ataque, comandada
por um oficial da Entente.
O enredo dá a impressão de que as forças comunistas só saíram vitoriosas por
causa da divisão entre as forças contrarrevolucionárias. Philipp (Yefim Kopelian), o
gangster de Odessa, chega a afirmar que na luta entre os distintos e inconciliáveis
grupos, quem mais tinha chances de se apoderar da situação era ele, representante do
crime organizado. E não os generais czaristas ou as tropas estrangeiras (americanas,
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japonesas, francesas, austríacas), consideradas pela historiografia, a verdadeira ameaça
ao poder comunista. Ele tem o poder e os contatos adequados para assaltar livremente,
sem ser incomodado por qualquer autoridade e, assim, exercer seu domínio perante os
grupos da elite e estrangeiros que frequentam seu clube noturno. Sua influência cresce
sem publicidade, nas sombras das relações tecidas com outros poderosos. Ele atrai Jenka
(que já havia entregado seus amigos agitadores para o serviço de inteligência das tropas
brancas) para sua lista de subordinados, prometendo torná-lo seu Marat. Até onde
Philipp é de fato um personagem da Revolução Russa e não uma representação da máfia
que crescia dentro das empresas de distribuição de bens de consumo, desviando-os para
o mercado negro e que maquiava livros de contabilidade e de produção em indústrias e
fazendas e contrabandeava ícones, peles ou diamantes para o exterior, amealhando
pequenas fortunas, com as bênçãos de altos membros do Estado e do partido, nos anos
Brejnev?
19
Se a intenção de Poloka era realmente essa, sua alise dos crescentes
problemas da sociedade soviética foi profética. Os sionistas de Interventsiia são
cosmopolitas e chauvinistas ou são perseguidos? Retratam o período da Revolução
Russa ou a questão sionista e dos refusiniks
20
, sob o governo de Brejnev? Alguns dos
diálogos não ocultam as críticas, como os do médico/químico judeu:
As pessoas pararam de se interessar em suas urinas. Elas estão interessadas em
política. Nada de bom vai sair disso [...].
Ei, químico, me dê um pouco de ópio. Eu tenho diarreia.
Oh! Finalmente posso ver alguém com uma doença decente [e não ferimentos a
bala ou arma branca].
Algum tempo atrás, o meu trabalho era o mais pacífico. O óleo de peixe. O óleo
de mamona. As pessoas estavam morrendo de forma moderada. Posso
perguntar-lhe: para onde foram as boas e velhas doenças? Onde está a ciática?
Onde estão as hemorroidas? Vejo apenas feridas, furos [...].
Meu Deus, meu Deus. Que tipo de tempo é esse? Que tipo de tempo louco é
esse? Quem vai me dizer? Por que eu não morri em 1916? (INTERVENTSIIA,
1969).
Com a vitória bolchevique, as multidões compostas pelas forças interventoras e
as diferentes facções da antiga elite são arrojadas pela escadaria que aparece na
abertura para dentro de navios abarrotados, com destino ao exílio. A câmera passa para
19
Tornaram-se famosos os grupos mafiosos no Uzbequistão. Lewin (2007) destaca um processo gradual de
apropriação dos bens públicos e estatais ao longo dos anos 1970.
20
Refusiniks eram os judeus soviéticos que desejavam emigrar para Israel ou para os Estados Unidos via
Israel, e entravam em choque com a política de concessão de vistos. Na URSS havia um personagem judeu,
espertalhão, Rabinovitch, que compunha uma coletânea de piadas. A questão sionista não ficava ausente
do anedorio. E o mais famoso soviético com sangue judaico estava presente: “Lenin ressuscitou. Uma
semana depois recebeu de parentes de sua mãe um convite para emigrar para Israel e rapidamente
encaminhou sua documentação ao Departamento de Emigração da URSS. E, para onde vai, Vladimir
Ilitch? Emigrar, meu filho. É preciso começar tudo de novo!” O anedotário era carregado com todo tipo
de personagem do mundo do humor: havia o Vóvotchka, similar às piadas do Joãozinho, ou o Tchukcha,
como eram chamados os povos indígenas da Sibéria que, por sua estranheza à tecnologia, incorporavam o
aspecto da piada de português.
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A sátira social no cinema soviético da Era Brejnev: os limites da censura
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os cenários urbanos: antes repletos daqueles mais variados tipos, agora parecem
desolados, desérticos, com papéis ao vento. Não se vê massas populares festivas. É como
se a vida do país tivesse ido embora.
Interventsiia não era um filme agradável para o regime, que o havia
encomendado para as comemorações dos cinquenta anos da Revolução. Quase
totalmente gravado em estúdio, foi censurado e liberado apenas em 1987, com a glasnost.
Apesar do conteúdo latente, crítico e portador de uma revisão histórica (HUTCHINGS,
2005), é provável que tenha sido censurado por conta das cenas explícitas de consumo
de cocaína pelos mafiosos de Philipp ou por causa das palavras de baixo calão como as
encontradas nos diálogos entre os soldados da Entende ao tratar sobre os bordéis russos
e as doenças que poderiam contrair. Mesmo tendo seu filme censurado, Poloka foi
chamado para dirigir outra película no ano seguinte (1970). Antes de Interventsiia,
realizara apenas dois filmes (1963, 1966). Depois dele dirigiu outros sete.
Slujebnyi roman
Slujebnyi roman (1977), de Eldar Riazanov, foi um dos maiores sucessos da
história do cinema soviético em termos de bilheteria e audiência. Um filme tão popular
que recebeu uma refilmagem, recentemente (2011). A tradução literal é Romance de
escritório. Mas Romance burocrático é um título mais adequado à crítica bem-humorada
construída sobre a visão negativa dos extratos médios da sociedade a respeito da
burocracia soviética, em que as ações simples, como uma conversa ou entrega de flores,
transformam-se em verdadeiros transtornos sem fim. A mistura de romance
melodramático com comédia e a sátira ao sistema soviético repetiu-se em A garagem
(1979) e Estação para dois (1982) (BEUMERS, 2009).
Na abertura, o diretor caracteriza Moscou, cidade que une desordenadamente
prédios novos e velhos, o centro sob as muralhas do Kremlin e seus subúrbios
despojados, caminhões Gaz malcuidados, pequenos carros Lada Laika, multidões
anônimas pelas calçadas.
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Imagem 3. Moscou com carros e pedestres lutando por espaço.
Fonte: SLUJEBNYI ROMAN, 1977.
Ao invés do novo homem soviético numa sociedade fraternal, há uma encenação
de um empurra-empurra no transporte coletivo condição rotineira que o protagonista
Novoseltsev (Andrei Miagkov
21
) chama de “revigorantes exercícios matinais
obrigatórios”, enquanto é espremido num trem abarrotado. Novoseltsev olha com
admiração para o carro com motorista sempre à disposição da diretora Kalugina (Alisa
Freindlich
22
) e para o luxuoso Volga de Samokhvalov (Oleg Basilachvili
23
).
Imagem 4. Tumulto no transporte público e Novoseltsev no trem.
Fonte: SLUJEBNYI ROMAN, 1977.
21
Um dos mais conhecidos e premiados atores dessa época e um dos preferidos de Riazanov, com quem
também trabalhou em Ironia do destino (1975), A garagem (1979) e Romance cruel (1984).
22
Atriz importante que trabalhou com Riazanov em Romance cruel (1984) e atuou em filmes como Stalker
(1979), de Tarkovski e Agonia Rasputin (1975), de Klimov. Descende da conia de alemães que Catarina a
Grande assentou em São Petersburgo.
23
Interessante escolha do diretor por um ator nascido em Moscou, mas de sangue georgiano. A república
do Cáucaso era conhecida pela extensão da disseminação de atividades econômicas particulares (não
reconhecidas pelo regime até 1986) e máfias.
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A sátira social no cinema soviético da Era Brejnev: os limites da censura
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Samokhvalov é um soviético que estudou por anos no Ocidente. Portador de
valores morais, padrões de consumo e comportamentos sociais diferenciados, para
conseguir o cargo de diretor assistente, ele agenda entrevistas com a diretora por
intermédio da secretária do escritório, recompensada com produtos ocidentais, como
maços de Marlboro, uma prática rotineira, pois como observa Novoseltsev, ela veste
roupas de grifes importadas, sem ter condições de comprá-las (devido aos altos valores
praticados no mercado negro). Com a trilha sonora cantada pelo casal de protagonistas
(Miagkov/Novoseltsev e Freindlich/Kalugina) e marcada pela música disco do Ocidente,
o filme expõe as mudanças na sociedade soviética, iniciadas com a desestalinização.
Consumir não era mais um pecado burguês.
Novoseltsev trabalha há anos no escritório e nunca foi promovido. Kalugina é
uma mulher de meia idade, solteira, que se veste como nos tempos stalinistas. Ela vive
em função do trabalho e inferniza seus subordinados, que a chamam de “nossa bruxa”.
Novoseltsev tem medo e rancor de Kalugina, mas seu amigo Samokhvalov o convence
que para obter um cargo na diretoria, precisa conquistá-la. Sua desastrosa aproximação
é inteiramente calculista. Este é o retrato da URSS dos anos 1970, quando o crescimento
econômico arrefeceu, a mobilidade social estagnou e a massa de recém-formados
sujeitou-se a empregos de menor importância e salário. Enquanto os praktiki, diretores
práticos, sem estudo, forjados nas necessidades da era de rápido crescimento,
distribuíam as vagas, gerando um profundo descontentamento (LEWIN, 2007; 1988). Um
praktiki, como Bublikov (Pyotr Shcherbakov), podia escolher até seu local de trabalho,
estrategicamente abaixo da escadaria usada pelas secretárias.
Imagem 5. O velho e o novo disputam lugar e nem sempre o segundo triunfa: a Catedral da
Assunção e seus símbolos encobrem a Universidade de Moscou e os símbolos do regime
soviético. Nova retórica, velhos métodos: Samokhvalov, a secretária Verotchka e o pacote de
Marlboro.
Fonte: SLUJEBNYI ROMAN, 1977.
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Com a estabilização da sociedade após a morte de Stalin sem mais expurgos,
fuzilamentos, campanhas de mobilização de massas, vigilância intensa uma
conscientização de posição social emergiu. É um equívoco chamar esse processo de
conscientização de classe, como alega Todd (1976). É difícil pensar em classes quando
estaso estão amparadas por diferentes posições legais no controle da propriedade.
Num sistema estatal como o soviético, faz mais sentido falar em conscientização de
extrato social. Como Lewin (2007) e Fernandes (2000) lembram, também é equivocado
crer que o sistema soviético era controlado pela burocracia, uma vez que, na prática,
todos trabalhavam para o Estado e todos eram burocratas. Os extratos médios de
profissionais, técnicos, especialistas, ressentiam-se por ter que enfrentar filas para o
consumo e serviços juntamente com os trabalhadores pobres, enquanto administradores,
gerentes, diretores e políticos desfrutavam dos privilégios concedidos à nomemklatura.
Assim, a burocracia associada à presença ou ao comando dos extratos mais altos
passou a ser vista como um corpo negativo dentro da sociedade.
O ambiente retratado no filme é o de um escritório de estatísticas ligado a algum
dos vários ministérios econômicos talvez ao GOSSNAB (abastecimento). Os diálogos
são carregados de ironia acerca da importância apregoada pelo governo ao aparato de
gestão ecomica:
Imagem 6. Benesses do praktiki. E ocupações no escritório.
Fonte:
SLUJEBNYI ROMAN, 1977.
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A sátira social no cinema soviético da Era Brejnev: os limites da censura
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Imagem 7. Circuito comunicacional: charge de Krokodil de 1960 sobre o programa de auxílio
no trabalho.
Fonte: DOBSON, Miriam. Khrushchev's Cold Summer. Ithaca: Cornell University Press, 2009, p. 180.
Novoseltsev: O trabalho enobrece a humanidade. É por isso que as pessoas
acham prazer em ir para o trabalho. Eu, pessoalmente, vou para o trabalho
porque me enobrece. Sem as estatísticas não teríamos a menor ideia... bem... de
como nós trabalhamos [...]. Tudo começou numa manhã rotineira, quando
nossas belas contadoras de estatísticas estavam terminando com a maquiagem
no trabalho e mergulhavam no delicioso mundo mágico, poético das contas,
balanços, e relatórios de lucros e perdas [...].
Kalugina: A estatística é uma ciência. Ela não suporta aproximações. Como vo
pode usar dados não verificados? [...] Você já reparou nas regulares
interrupções no fornecimento de bens?
Novoseltsev: Claro, vou às compras.
Samokhvalov: Na Suíça, as lojas...
Kalugina: Isso acontece porque as entregas estão programadas por
incompetentes como você (SLUJEBNYI ROMAN, 1977).
Acusam-se as estatísticas de receberem mais atenção do que a produção real,
invertendo prioridades: “Eu acho que não há vida sem estatísticas” (SLUJEBNYI ROMAN,
1977). A intrusão de Samakhvalov sugere que no capitalismoo há filas (mito presente
no anedotário popular da URSS). É retratado o ambiente da empresa típica na URSS, com
restaurante, farmácia, teatro e a babuchkazeladora de casacos e chapéus na recepção,
espaço da acusação de improdutividade. A primeira coisa que as contadoras fazem ao
chegar ao trabalho é pôr seus estojos de maquiagem sobre suas mesas e passar o tempo
se embelezando. As redes de informação no trabalho, além de serem fatores de baixa
produtividade, criam boatos como a morte do diretor Bublikov, que todos sabiam, menos
ele próprio.
A crítica social de Riazanov levou 58.4 milhões de soviéticos aos cinemas no ano
de estreia, época em que a televisão se universalizava e o número de bilhetes vendidos
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caía rapidamente. À cargo de comparação, o campeão de bilheteria de 1982, Sportloto-
82, alcançou um público pagante de 55 milhões. Filmes cult, voltados para a
intelligentsia, apesar do grande público alvo, dificilmente atingiam 20 milhões. Os
últimos episódios da megaprodução bélica Liberação obtiveram renda menor que esta
(YOUNGBLOOD, 2007).
Sportloto-82
Sportloto-82 (1982), de Leonid Gaidai, não obstante promova uma crítica bem-
humorada ao sistema, reforça-o por meio de um discurso moralista. A posição de Gaidai
é esclarecida em Tchastnyi detektiv, ili operatsiia Kooperatsiia (1990), no qual mostra as
cooperativas na prática, empresas privadas surgidas com a liberalização da economia
pela perestroika e cortejadas pelos reformistas de Gorbachev como espaços de
corrupção e crime. O roteiro lembra os filmes ocidentais: um bilhete premiado da loteria
esportiva é perdido, gerando uma corrida entre mocinhos e bandidos.
A maioria dos autores lembra-se dos samizdat (publicações clandestinas que
existiam nos países comunistas) apenas como material contrário ao regime. No entanto,
compunham um mundo muito mais vasto. Caso não fossem classificados como
subversivos, poderiam ser comercializados na vasta segunda economia não-oficial dos
pequenos negócios privados que pululavam no país (LEWIN, 2007), como os romances
vendido nas ruas, que alcançavam a tiragem de centenas de exemplares. Suas histórias
continham violência e amor em doses mais agressivas do que as oferecidas pelos meios
de comunicação oficiais.
A crítica do filme enfoca a juventude soviética e a desigualdade social. Mostra
jovens mergulhados no padrão de consumo de seus pares ocidentais: calças e jaquetas
jeans, roupas country, calças boca de sino e golas largas, camisas com expressões em
inglês. E o rock como trilha musical. Os objetos de consumo variam conforme a origem
nacional ou importada. Coca-Cola, Pepsi ou Baikal? Marlboro ou fumo da Ásia Central?
Também há o desejo de viajar os jovens se impressionam com as viagens de Sanytch
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para fora do Leste Europeu, mas precisam se contentar com as praias da Criméia.
Sanytch e seu sócio Stepan são contrabandistas que enriquecem com o tráfico de
produtos frescos, como laranjas. Enquanto alguns vão para hotéis de luxo nas
montanhas ou para acampamentos motorizados, Kostia (Algis Arlauskas), dono do
bilhete premiado, passa suas férias num galinheiro.
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Interpretado pelo famoso comediante Mikhail Pugovkin, que atuou em grandes sucessos do cinema,
como Ivan Vasilevich muda de profissão (1973).
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A sátira social no cinema soviético da Era Brejnev: os limites da censura
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Imagem 8. A ocidentalização da sociedade soviética. E Kostia no galinheiro
Fonte: SPORTLOTO-82, 1982.
Neste filme, Gaidai conseguiu realizar os sonhos do antigo diretor da GUKF,
Boris Chumiatskii. Na segunda metade da década de 1930, Chumiatskii planejou construir
uma Hollywood soviética na Crimeia ou nos balneários do norte do Cáucaso. Mas pela
má gerência dos fundos do cinema, nesta e em outras empreitadas, acabou fuzilado em
1938, acusado de sabotagem. Gravar nas praias do Mar Negro permitiu ao diretor acesso
rápido aos mais diferentes ambientes situados a poucos quilômetros de seu set de
filmagens: montanhas, mar, neve, litoral tórrido, florestas de diferentes climas. Além de
diminuir o risco de extrapolar o tempo programado de filmagem, ao contrário dos
grandes estúdios situados nas cidades ao norte, com poucos dias ensolarados e grandes
chances de enfrentarem uma paralisação do trabalho em decorrência do clima. Para o
cinema soviético enquanto indústria, afligido por problemas de ordem natural e logística,
Sportloto-82 demonstrou a diferença que o abandono das antigas metrópoles
representava.
Considerações finais
Sportloto-82 significou um êxito para seus produtores, embora não se
comparasse ao sucesso desfrutado por Slujebnyi roman, a maior bilheteria do ano na
URSS. Seus diretores conseguiram produzir críticas à sociedade soviética e, ao mesmo
tempo, conquistar o gosto das massas e a aceitação por parte do regime. Já a iconoclastia
de Interventsiia rompeu com o espaço sancionado pelo uso do humor. O filme foi
censurado, o estúdio e seus produtores perderam o financiamento e a oportunidade de
angariar reconhecimento entre seus pares da indústria cinematográfica.
De acordo com Lewis (2014), o humor servia para diminuir a pressão das
reivindicações populares, dos problemas internos e ocultava a falência do sistema,
preservando sua imagem e a dos governantes, ao questionar somente dificuldades
pontuais. Contudo, como os três filmes demonstram, as críticas não eram amenas. Os
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cineastas que defendem que o humor e a arte estavam a serviço do regime estão longe
da realidade. O próprio Lewis menciona a tensão do encontro entre Stalin e o
comediante Igor Iliinski, que atacara a imagem do burocrata na comédia musical Volga-
Volga (1938). As dificuldades do cotidiano não eram a matéria básica das anekdoty
apenas durante o regime ditatorial, como Lewis supõe. A Rússia czarista já a possuía e a
Rússia pós-soviética capitalista as mantém. Tais piadas existiam por toda a área eslava
da Europa, da atual República Tcheca às terras magiares-eslavas da Hungria. Esse humor
tradicional, um tanto melancólico, conformista e ácido, contaminou a produção destas
comédias.
Apesar de se fazerem presentes em toda a sociedade, as piadas se disseminavam
prioritariamente entre os estratos médios, técnicos e intelligentsia, formados por
pessoas que desejavam comparar seu status em bens e serviços com o da Europa
Ocidental, visto que possuíam informações amplas e atualizadas do que se passava do
outro lado da Cortina de Ferro. Porém, o público pagante dos dois filmes que passaram
pelo crivo da censura vai muito além dos 20 milhões que a intelligentsia proporcionava
ao cinema. Sem dúvida, para boa parcela dos estratos médios e grupos entre operários e
camponeses, o humor ácido era visto com uma crítica sistêmica. Diferente do modo
como um filme ocidental do gênero tende a ser visto pelo próprio público poucos
expectadores percebem os problemas no mundo capitalista como problemas inerentes
ao capitalismo.
A crítica bem-humorada adentrou também no gênero dramático. O ganhador do
Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 1981, Moscou não acredita em lágrimas (1980) de
Vladimir Menchov, traçou uma imagem nada elogiável da sociedade soviética fosse nos
anos 1950 ou da década de 1970. Como Brown (1997) demonstra, no regime de Brejnev,
os elementos desgostosos, dissidentes ou avessos ao sistema não seriam passíveis de
uma reincorporação pela propaganda, mas possuiriam as chaves de leitura que abririam
as perspectivas de uma crítica mais ampla. O trabalho do regime seria impedir sua
radicalização ou disseminação, tornando a censura uma ferramenta essencial.
A relativa liberdade desfrutada pelo cinema soviético, nos anos Brejnev, teve
uma brusca interrupção com Yuri Andropov. Saído do aparato do KGB e alçado ao
poder, através de sua chefia de anos, o novo presidente e secretário-geral do Partido
Comunista da União Soviética possuía uma compreeno diferente do papel da censura
num sistema fechado como o soviético. Para ele, o regime não poderia se manter de pé
sem o uso intensivo do controle, sobre a circulação de informação e o abafamento da
crítica o que o coloca em uma posição bem diferente dos dois últimos líderes e do
futuro secretário-geral Gorbachev (após o interregno de Chernenko).
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A sátira social no cinema soviético da Era Brejnev: os limites da censura
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A experiência de Andropov como embaixador na Hungria, durante o levante
armado de 1956
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, como chefe do Departamento para Relações com Países Socialistas,
durante a Primavera de Praga, em 1968 e como presidente do KGB, durante as greves do
Solidariedade de 1980, fizeram com que considerasse com apreensão a liberdade de
crítica em público, mesmo fragmentária, moderada ou limitada. Como chefe do KGB,
Andropov reduziu a dissidência política e os samizdat de oposição a uma quase nulidade
(BROWN, 2010, p. 410).
Uma vez na cúpula do Kremlin, Andropov intensificou a vigilância sobre a
produção cinematográfica. No período entre 1982 e 1985, “alcançaram grande sucesso os
filmes nos quais os problemas sociais não tinham praticamente nenhum papel, tendo sido
deslocados por histórias de amor, dramas familiares, ou por contos de conflito pessoal”
(LAWTON, 1992, p. 266, tradução nossa). O cinema tornou-se moralista. O espaço de
negociação entre a crítica e o louvor foi cerrado nesses breves anos, contenção que
gerou a explosão de insatisfação com as liberdades novas da glasnost.
Nos anos Brejnev, entretanto, o riso teve seu lugar garantido como promotor da
contestação e da crítica moderada aos problemas do país. Como fala o narrador de
Interventsiia (1969):Você pode rir. Rir é permitido, mas se você gosta de chorar, então
chore. Porque se você nem chorar nem rir, então... em seguida, despeça-se de seu
dinheiro”.
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25
As imagens da Insurreição Húngara devem ter sido impactantes sobre o ainda jovem diplomata e tê-lo
feito pensar sobre o destino dos altos membros do partido em situações similares. “Em 30 de outubro, o
Presidium do Comitê Central do PCUS, em Moscou tamm tinha optado por uma solução pacífica para a
crise. No entanto, os acontecimentos na Hungria seguiram numa espiral fora de seu controle. Isto incluiu
os linchamentos dos comunistas particularmente odiados, principalmente de membros da polícia secreta,
nas ruas de Budapeste ações espontâneas por uma minoria dentro da Resistência húngara de que se
lamentou Nagy. Notícias de seus companheiros enforcados em árvores e postes de iluminaçãoo só não
ajudaram a mudar a mentalidade em Moscou, como modificou o humor dos líderes dos países comunistas,
nos quais a liderança soviética não podia mandar” (BROWN, 2010, p. 282, tradução nossa).
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