O Múltiplo no Tratado do Amor
Cortês de André Capelão
The Multiple in The Art of Courtly
Love by Andreas Capellanus
CARVALHO, Ligia Cristina
*
RESUMO: O Tratado do Amor Cortês (2002)
foi escrito no século XII por André Capelão.
Composta por três livros, a obra tornou-se
alvo de estudo e de polêmicas,
principalmente, em razão da discrepância
entre os dois primeiros livros e o terceiro.
Enquanto no primeiro e no segundo livro
vislumbramos o enaltecimento da prática do
amor denominado cortês e a exaltação do
feminino, no terceiro e último livro o autor
assume uma postura oposta, enumerando os
males ocasionados por esse amor dito
profano e vilipendiando as mulheres. Neste
artigo, buscamos pensar a discrepância do
Tratado partindo da identificação do autor e
das vozes presentes na composição da obra,
para tanto pautamos a nossa análise pelos
princípios teóricos e metodológicos da
Análise de Discurso que nos possibilitou
averiguar a polifonia constitutiva da obra.
PALAVRAS-CHAVE: Análise de Discurso;
Literatura Medieval; Amor cortês.
ABSTRACT: The Art of Courtly Love (2002)
was written in the twelfth century by
Andreas Capellanus
. Composed by three
books, the work became the subject of study
and controversy mainly due the discrepancy
between the first two books and the third.
While in the first and second books one can
see the praising of the practice of love called
courteous and
the exaltation of the
feminine, in the third and last book the
author takes an opposite stance,
enumerating the evils caused by this
profane love, while vilifying women. In this
article we seek to think about the
discrepancy of The Art of Courtly Love
star
ting from the identification of the author
and the voices found in the composition of
the work, therefore our analysis is based on
the theoretical and methodological
principles of Discourse Analysis, which
enabled us to find out the constitutive
polyphony of the work.
KEYWORDS:
Discourse Analysis; Medieval
Literature; Courteous Love.
Recebido em: 27/04/2019
Aprovado em: 18/10/2019
*
Doutora em História pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Assis, estado de São Paulo
(SP), Brasil. Este artigo é produto da tese de doutorado realizada no Programa de Pós-graduação em
História da UNESP/Assis, sob a orientação do Prof. Dr. Ruy de Oliveira Andrade Filho. E-mail:
licris2002@gmail.com.
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Não sei quem sou, que alma tenho.
Quando falo com sinceridade não sei com que sinceridade falo.
Sou variamente outro do que um eu que não sei se
existe (se é esses outros)...
Sinto crenças que não tenho.
Enlevam-me ânsias que repudio.
A minha perpétua atenção sobre mim perpetuamente me ponta
traições de alma a um carácter que talvez eu não tenha,
nem ela julga que eu tenho.
Sinto-me múltiplo.
Sou como um quarto com inúmeros espelhos
fantásticos
que torcem para reflexões falsas
uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas.
Como o panteísta se sente árvore (?) e até a flor, eu sinto-me vários seres.
Sinto-me viver vidas alheias, em mim, incompletamente,
como se o meu ser participasse de todos os homens,
incompletamente de cada (?),
por uma suma de não-eus sintetizados num eu postiço.
Fernando Pessoa (1966, p. 93)
Seguindo os rastros de André Capelão
O Tratado do Amor Cortês foi escrito por André Capelão na segunda metade do
século XII. A obra está dividida em três livros. O Livro I é composto de onze capítulos, o
Livro II contém oito capítulos, já o Livro III consiste em um texto único, sem divisões.
Enquanto nos dois primeiros livros o autor exalta o amor cortês, descrevendo-o e
ensinando as formas de conquistá-lo e mantê-lo, o terceiro e último livro é marcado por
uma crítica sistemática ao sentimento amoroso que o homem direciona à mulher, alvo de
inúmeros julgamentos depreciativos. Essa dicotomia entre os dois primeiros livros e o
terceiro tornou-se alvo de diversas interpretações focadas principalmente no autor.
Todavia, as informações sobre André Capelão são concisas e partiram das poucas
referências contidas em sua obra Tratado do Amor Cortês (o único livro conhecido e que
chegou até nós).
A precisão quanto à data de composição do Tratado ainda é alvo de discussões
entre os historiadores. Das diferentes teses levantadas, a que nos parece mais plausível é
a de Felix Schlösser. No diálogo C do Tratado, entre um plebeu e uma mulher de alta
nobreza, encontramos a menção a um rei da Hungria que, desprovido de qualidades
físicas, destacava-se por suas virtudes (ANDRÉ CAPELÃO, 2002, p. 56-57). Segundo
Felix Schlösser (1964) esse rei era provavelmente Bela III, e tal suposão ganha ainda
mais força pelo fato de André Capelão mencionar novamente a Hungria no diálogo E, no
qual, a dama afirma: “Prefiro ficar na França e contentar-me com alguma moeda ruim,
tendo a liberdade de ir aonde me agrada, a estar em poder de outrem, ainda que coberta
de dinheiro da Hungria, pois nesse caso ser rica é nada possuir”
(ANDRÉ CAPELÃO,
2002, p. 78). Ainda que essa comparação entre a liberdade sem recursos e a escravidão
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provida de riqueza seja lugar comum em provérbios medievais, ela é aplicável ao terceiro
casamento, ocorrido em 1186, do rei Bela III (1148-1196), da Hungria, com Margarida da
Fraa (1158-1197), filha do rei Luís VII (1120 - 1180). A pompa que envolveu esse
casamento e o cortejo imponente que acompanhou Margarida à Hungria seguramente
repercutiram no período, tanto mais porque a Hungria era considerada terra de
bárbaros, por vezes comparados aos hunos, dos quais deriva seu nome. Tal associação
adquire maior respaldo pelo fato de Margarida da França ser meia-irmã de Maria de
Champagne (1145-1198), filha do primeiro casamento do rei Luís VII com Eleonora da
Aquitânia (1124 - 1204), constantemente citada no texto. Logo, é provável que o Tratado
do Amor Cortês tenha sido composto entre os anos de 1185 e 1187.
Partindo da datação do Tratado, André Capelão viveu no século XII e, entre 1182 e
1186, seu nome aparece como testemunha em inúmeros títulos de propriedades
(BURIDANT, 2002). Um desses títulos foi concedido pela já citada Maria de Champagne,
conhecida patrona literária, tanto que Moshe Lazar afirma que “não é impossível que
Maria de Champagne tenha sido inspiradora dessa obra” (LAZAR, 1954, p. 268). Essa
associação entre André Capelão e Maria de Champagne torna-se mais consistente
devido ao fato do nome da condessa ser mencionado diversas vezes na obra. Porém,
Georges Duby refuta tal tese em relão ao Tratado asseverando que “André, com toda
a evidência, não o compôs ‘sob a inspiração de Maria de Champagne’ como alguns o
dizem e escrevem ainda”
(DUBY, 2001. p. 146).
1
De qualquer forma, o que podemos
constatar é que existia um mecenato benévolo à literatura no momento em que André
Capelão escreveu sua obra.
A falta de exatidão em relação à autoria e à datação da obra é característico da
Alta Idade Média (séculos IV X). Nos seus estudos The Humility Formula in Middle
High German Poets, Julius Schwietering afirma que com o cristianismo ocorre a censura
em relação à indicação do nome do autor, tal como podemos aferir nos preceitos de
Salviano (c. 400- c.450), Sulpício Severo
(c. 363- c. 425) e outros, que admoestam os
escritores contra o pecado da vanitas terrestris. Caso o autor mencione seu nome, é na
tentativa de “alcançar, com as preces dos ouvintes e leitores, o perdão dos pecados”
(SCHWIETERING apud CURTIUS, 1957, p. 629), ou ainda porque o nome de seu
comitente é mencionado também. Porém, não são somente admoestações religiosas que
explicam o anonimato. O fato das obras serem frequentemente lidas em voz alta fazia
com que os ouvintes aclamassem meramente a sua leitura, tendo pouca importância as
distinções entre autor e intérprete. Quando redigido objetivando à leitura performática, o
1
Nesta obra, Georges Duby não justifica essa afirmação, mas na obra As três ordens ou o Imaginário do
Feudalismo (DUBY, 1982) o autor oferece uma explicação para tal asseveração.
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texto não necessita se ater a todos os rigorismos da escrita, tal como a menção à origem
da compilação e ao autor responsável. De acordo com Arnold Hauser (1972. v.1), foi com
os noruegueses que a nítida distinção entre o poeta e o recitador teve início e, a partir da
Idade Média Central (século XI-XIII), a menção do nome torna-se mais frequente,
inclusive, o monge cluniacense Pedro de Poitiers justifica tal prática e censura a omissão
do nome do autor
em uma carta-dedicatória escrita, por volta 1140, para Pedro, o
Venerável, abade de Cluny:
Se alguém se indignar comigo, por ter-me atrevido a assinar alguns trabalhos
com meu nome e a acrescentá-los a vossos livros, saiba que isto não é devido a
minha presunção, mas a vossa ordem, a que não ouso desobedecer. Pois, como
em todas as coisas, nessa também não tenho dúvida em atender-vos, não por
arrogância que o Senhor sempre a mantenha longe de mim! -, mas por
obediência submissa, sobretudo por saber que muitos homens de religiosidade e
humildade comprovada adotaram outrora, prazerosamente, prática semelhante.
Decerto prefiro imitar a esses, neste nosso osculo, por mais modesto que
seja, a seguir certos escritores de nossa época, que suprimem seu nome em
toda parte, por uma espécie de cautela ou imperícia. Incorrem, assim, na
loucura dos escritores apócrifos que, temendo a acusação de falsidade ou de
heresia, em parte alguma indicaram seu nome. Ninguém, pois, me condene aqui,
antes do tempo, mas entregue-me a Deus, e a minha consciência, escrevendo
por sua conta, se quiser, Ovídio sem título. (CURTIUS, 1957, p.
631-632)
Para Eni Pulcinelli Orlandi (2008, p. 81), ainda que se possa falar de uma prática e
até mesmo da figura de escritor no período medieval, a noção de autor tem uma
emergência muito lenta e se situa entre o século XVI a XIX. Entretanto, podemos
considerar que no século XII os poetas retomam o cuidado com a questão da autoria,
precaução que podemos associar a um aspecto mais geral que foi a emergência do eu
decorrente da crescente valorização do indivíduo. Os romancistas medievais Chrétien de
Troyes e Maria de França, por exemplo, mencionam seus respectivos nomes em suas
obras, tal como André Capelão que, em uma passagem do Tratado do Amor Cortês,
reporta-se a si próprio como André, Capelão da corte real.
O trecho citado acima
conciliado com a análise da obra nos ajudam a traçar as
poucas informações sobre o autor. A formação clerical de André Capelão pode ser
atestada por certos elementos, tal como o domínio do latim, as inúmeras referências
bíblicas e o discurso religioso presente no Livro III do Tratado. Apesar de pertencer ao
clero, André Capelão residia na corte, fato evidenciado no Livro I e no Livro II,
impregnado de concepções seculares características deste ambiente e de sua máxima
forma de expressão, a literatura. Mas o que representava ser capelão da corte real? O
termo capelão foi utilizado pela primeira vez por volta do ano 316 a 400 d. C. para
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designar um padre que cuidava da capela de Martinho de Tours (c.316-397).
2
Durante o
final do Império Romano a capelania tornou-se uma ação institucionalizada de
assistência espiritual-religiosa, conforme o registro do historiador Sozomeno (c. 400 - c.
450), em História Eclesiástica, escrita por volta de 439-450 d. C., Sozomeno relata as
medidas tomadas por Constantino nas investidas militares:
[...] cada vez que devia afrontar a guerra, costumava levar consigo uma tenda
disposta a modo de capela, para quando viessem a encontrar-se em lugares
solitários, nem ele nem o seu Exército fossem privados de um lugar sagrado
onde pudessem louvar ao Senhor, rezar em comum e celebrar os ritos sagrados.
Seguiam-no o sacerdote e os diáconos com encargo de atender ao local sagrado
e de nele celebrar as funções sagradas. Desde aquela época, cada uma das
Legiões Romanas tinha a sua tenda-capela, assim como os seus sacerdotes e
diáconos adstritos ao serviço sagrado. (SOZOMENO apud NUNES, 2013, p. 97)
“Capelão” era então o sacerdote cuja obrigação era cuidar da capela, assumindo a
função de líder e conselheiro espiritual do rei e seu séquito, e tal posto foi se
consolidando ao longo dos séculos. Como salienta Claude Buridant (2002, p. X),
Capellanus sem dúvida designa, de saída, o capelão vinculado a uma capela real ou
senhorial e encarregado do serviço divino: essa função só podia ser exercida por um
padre”, porém, nas cortes medievais importantes era comum que o santo ministério
fosse exercido por archicapellarii que, geralmente, eram abades, arciprestes e bispos, ao
passo que os capelães desempenhavam as funções de secrerio: “Assim, nos
documentos históricos, capellanus costuma ter sentidos muito próximos de notarius (na
acepção: escriba da chancelaria real), de ‘secretarius’ (na acepção: secretário, escriba
confidencial), ou de cancellarius (na acepção: notário da chancelaria real)” (BURIDANT,
2002, p. X). Todavia, o autor prossegue afirmando que, ainda que o termo capelão não
nos permita assegurar que André Capelão era padre, indícios presentes no Tratado do
Amor Cortês, tal como sua insistência em afirmar que Deus concede aos clérigos
privilégios divinos,
sugerem que André Capelão era ordenado.
2
Martinho, bispo de Tours, é considerado o pai do monasticismo na Gália. Filhos de pais pagãos, nasceu na
Panônia, em Sabaria e, antes de sua conversão ao cristianismo, serviu no exército romano, coagido por seu
pai, que era oficial. Fundou o primeiro mosteiro da Gália e depois o de Marmoutier, nos arredores de
Tours. Por volta de 372 aceitou o bispado de Tours. Martinho morreu em 397 e, venerado como santo,
tornou-se “o primeiro santo não mártir a receber culto oficial da Igreja Católica”. No período final da Idade
Média, Martinho, Pedro e Maria, eram os três patronos mais populares da Europa Ocidental e, desde o
reconhecimento de Clóvis, que seguia para combater os visigodos em 507, São Martinho tornou-se o santo
protetor da monarquia francesa. (JUDIC, 2013; LOYN, 1997; NUNES, 2013)
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Do sujeito ao verbo
Diante das concisas informações sobre André Capelão, fomos levados a indagar
sobre a questão do sujeito e, consequentemente, a acepção de autor. Conforme
Ingedore
G Koch
(2003), a concepção do sujeito caminha de acordo com a concepção de língua
adotada. Ao conceber a língua como representação do pensamento, temos o sujeito
psicológico, o sujeito centro, individual, visto como um ego que representa pela fala
aquilo que foi mentalizado. Existe, eno, na utilização da linguagem, um predomínio da
consciência individual em um sujeito dono de sua vontade, de sua fala e de suas ações.
Neste caso, espera-se que o interlocutor desvende com o ato de interpretação a intenção
do sujeito.
3
Essa liberdade do sujeito concebido como fonte da linguagem é postulada
pelas teorias da enunciação, cujo principal expoente é Émile Benveniste (1988; 1989). Por
este viés, o nosso maior desafio seria captar o que André Capelão intencionava ao redigir
o Tratado, qual era seu propósito ao elaborar uma obra na qual o terceiro livro contradiz
o primeiro e o segundo livro, posto que o autor, enquanto sujeito consciente, é senhor
único de sua fala.
Tal liberdade conferida ao domínio da fala, segundo Régine Robin (1977, p. 25),
“[...] inscrevia-se numa Filosofia do sujeito neutro, transparente a si próprio (uma
Filosofia de antes da descoberta freudiana), e naquela de um sujeito sem determinações
sócio ideológicas (uma Filosofia de antes de Marx)”. Desta forma, predominava a
concepção de um sujeito “sem inconsciente, sem pertencer a uma classe, sem ideologia”
(
ROBIN, 1977, p. 41). Entretanto, influenciada pelo materialismo, pela psicanálise e pela
linguística-estrutural, a Análise de Discurso de linha francesa não considera o sujeito
como centro do discurso.
Para Maria do Rosário Gregolin, as visões de Marx e Freud são “estruturalistas
4
na avaliação das estruturas profundas:
Ambos entendem os fenômenos sociais ou comportamentais como
obrigatoriamente condicionados por forças impessoais (o Capitalismo, o
Superego), deslocando, desde então, o problema do estudo da consciência ou
das escolhas individuais para um quadro bem mais amplo, dos macro-sistemas.
Para Marx e Freud o sujeito resulta de uma construção, deriva de sistemas
impessoais (no marxismo, o sistema econômico; na psicanálise, o inconsciente;
na antropologia estrutural de Lévi-Strauss, as relações de parentesco
3
Neste sentido, “[...] Locke (1689) dizia que a comunicação verbal é uma fonte de telementation, ou seja, a
transmissão exata de pensamentos da mente do falante para o ouvinte. Compreender um enunciado
constitui, assim, um evento mental que se realiza quando o ouvinte deriva do enunciado o pensamento que
o falante pretendia veicular” (KOCH, 2003, p. 14).
4
Embora a afirmação feita por Maria do Rosário Gregolin de que as visões de Freud são estruturalistas
não seja de todo equivocada, acreditamos ser temeroso utilizá-la, porém o faremos com referência à
autora.
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determinadas pelo totemismo). Os indivíduos, por conseguinte, nem produzem
nem controlam os códigos e as convenções que regem e envolvem a existência
social, a vida mental ou a experiência linguística. (GREGOLIN, 2004, p. 33)
Aqui vemos predominar a concepção de um sujeito “assujeitado”, determinado,
que condiz com a noção de língua como estrutura (KOCH, 2003). O sistema, seja
linguístico ou social, tornar-se o caminho explicativo para toda ação individual de um
sujeito agora concebido como sujeito social, “inconsciente”, que não é a fonte de seu
dizer nem dono de sua vontade. O sujeito é determinado pelo inconsciente e pela
ideologia sendo, em resumo, um sujeito ideológico.
Dotado de inconsciente e interpelado pela ideologia, o sujeito tem a ilusão de ser a
fonte de seu dizer e acredita na transparência do sentido do que é dito. Ora, nesta
perspectiva, quem fala é o inconsciente, o id, e não o ego, e conforme Lacan “[...] o
sujeito não sabe o que diz, visto que ele não sabe o que é” (KOCH, 2003, p. 15).
De acordo com
Fernanda Mussalim (2001), na primeira fase da Análise de
Discurso
5
com Pêcheux, o sujeito não poderia ser concebido como fonte do próprio
discurso, isso porque cada processo discursivo é produzido por uma “máquina
discursiva”. O sujeito encontra-se, então, assujeitado à maquinaria e “quem de fato fala é
uma instituição, ou uma teoria, ou uma ideologia” (POSSENTI 1996, p. 49).
Porém, com a incorporação da noção de Formação Discursiva de Michel Foucault,
ocorre uma alteração da noção de sujeito. Tal como a Formação Discursiva, o sujeito
também é concebido como dispersão, substituindo a concepção de unidade do sujeito
que marca a primeira fase. O sujeito pode então assumir diversos papéis, de acordo com
os diferentes lugares de onde enuncia e o essas posições que determinam o que pode e
deve ser dito. Portanto, essa liberdade do sujeito em assumir diferentes posições é
apenas aparente, posto que ele sofre coerções das Formações Discursivas da qual
5
Ao longo dos séculos XIX e XX, a linguagem passou a ocupar cada vez mais um lugar de destaque entre
as ciências humanas e sociais. Um grande número de autores buscou estabelecer diálogos entre a
epistemologia das ciências humanas e a filosofia por meio da linguagem, num movimento que mesclava
afirmar a cientificidade das humanidades e ao mesmo tempo superar (na medida do possível) os preceitos
metafísicos da filosofia em favor da epistemologia. Alguns dos autores que colaboraram para esse
movimento, que nos dizem respeito diretamente, são: Ferdinand de Saussure (1857-1913), Mikhail M.
Bakhtin (1895-1975) Roman Jakobson (1896-1982), Jacques Lacan (1901-1981), Émile Benveniste (1902-1976),
Claude Lévi-Strauss (1908-2009), Paul Ricoeur (1913-2005), Roland Barthes (1915-1980), Gilles Deleuze
(1925-1995), Michel Foucault (1926-1984) e Michel Pêcheux (1938-1983). Certamente, ao remeter à filosofia
da linguagem não poderíamos esquecer autores como Ludwig Wittgenstein (1889 - 1951), Martin Heidegger
(1889 - 1976), Jürgen Habermas (1929), Hans-Georg Gadamer (1900 - 2002), Umberto Eco (1932 2016) e
ainda outros, mas estes não tiveram o mesmo peso que àqueles anteriormente citados para o projeto
específico da Análise do Discurso, mas sim uma foa maior no campo da semiótica e da hermenêutica. Em
relação ao primeiro grupo, embora alguns autores não sejam totalmente convergentes no que tange ao
conceito que cada um propôs acerca do discurso e da questão da autoria, nossa intenção neste texto
consiste em apresentar algumas das principais percepções acerca do tema no sentido de trazer ao leitor
uma visão holística acerca do discurso, do sujeito e do autor na obra Tratado do Amor Cortês de André
Capelão.
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enuncia e esta é regulada por uma formação ideológica (MUSSALIM, 2001, p. 101-139), no
caso do sujeito medieval, a interpelão é sobretudo religiosa e isso fica patente na obra
de André Capelão. Aqui cabe uma colocação de Jacques Le Goff: “[...] na Idade Média, e
isso é que é determinante, havia o predomínio de um pensamento religioso. A Bíblia
permanece como texto de referência explicando o universo e a sociedade e regulando os
comportamentos culturais, políticos e sociais” (LE GOFF, 2013, p. 34-35). Existia
portanto um monopólio discursivo da Igreja.
Para Michel Foucault
(2010, p. 132-133; 2012, p. 25) o discurso é “[...] um conjunto
de enunciados, na medida em que se apoiem na mesma formação discursiva; [...] para os
quais podemos definir um conjunto de condições de existência”, e o autor não deve ser
considerado o responsável pela produção do discurso, mas como “princípio de
agrupamento do discurso” sob a forma de texto. Assim, o texto se constitui de
enunciados, e um único texto pode ser composto de enunciados provindos de diferentes
discursos. Ainda para Foucault, diferente das enunciações que possuem uma
individualidade espaço-temporal e não se repetem, a concepção de enunciado pressupõe
uma materialidade repetível (FOUCAULT, 2010, p. 114-115). Mesmo não sendo “original”,
“inédito”, podemos considerar que o Tratado do Amor Cortês é único na medida em que
articula, em um determinado contexto de produção, diferentes discursos que se realizam
por meio de enunciados.
Assim, o autor é uma função que possibilita organizar o universo discursivo.
Porém, segundo Foucault, “antes do fim do século XVIII, o homem não existia”
(FOUCAULT, 2007. p. 425), foi na passagem da Idade Clássica para a Modernidade, com
a virada do século XIX, que se dá o surgimento do homem que assumiu uma “posição
ambígua de objeto para um saber e de sujeito que conhece”
(FOUCAULT, 2007, p. 328).
Desta forma, Foucault não reconhece a existência do autor antes do século XVIII.
Caberia uma discussão sobre como a modernidade pensa e elabora a própria concepção
de autor, o que fugiria de nosso objetivo primeiro.
Partiremos então para a noção da língua como lugar de interação que acarreta
uma reelaboração da concepção do sujeito.
6
Em razão do processo dialógico, temos um
sujeito mais ativo, definido de forma menos “estruturalista”, que não só reproduz o
social como também participa da própria definição da situação na qual se encontra. Com
a recepção de Mikhail M. Bakhtin, os trabalhos de Jacqueline Authier-Revuz e o primado
do interdiscurso, temos então um sujeito heterogêneo, “[...] um sujeito que se cinde
porque átomo, partícula de um corpo histórico-social no qual interage com outros
6
Ver BRANDÃO (2003), KOCH (2003) e MUSSALIM (2001).
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discursos, de que se apossa ou diante dos quais se posiciona (ou é posicionado) para
construir sua fala” (BRANDÃO, 2003, p. 53).
7
Ao pensar a linguagem em termos de interação social, o sujeito só pode ser
considerado como um sujeito social, cuja constituição ocorre na interação entre o “eu” e
o “outro”, em outras palavras, é na relação com a alteridade que se estabelece a
identidade. Percebe-se que as teorias do inconsciente estão presentes uma vez que o
“outro”, o inconsciente, torna-se parte da própria identidade. Dito isto, a
heterogeneidade mostrada e constitutiva evidencia a presença do “outro” no Tratado do
Amor Cortês que, atravessado por uma multiplicidade de vozes, é uma construção
polifônica.
A obra de André Capelão apresenta elementos tanto da heterogeneidade
mostrada quanto da heterogeneidade constitutiva do discurso. Esses dois níveis de
heterogeneidade foram evidenciados por Jacqueline Authier-Revuz (1982), que denomina
heterogeneidade mostrada aquela que é de domínio da textura do discurso, ou seja,
quando conseguimos localizar na superfície do texto um discurso outro. A
heterogeneidade mostrada pode ser ainda dividida entre a marcada e a não marcada. As
formas não marcadas ocorrem por meio do discurso indireto livre, antíteses, alusões,
ironia, enquanto que as formas marcadas se fazem presentes pelo discurso direto e
indireto, pelo uso de aspas, itálico, glosas, etc. Diferente da heterogeneidade mostrada, a
heterogeneidade constitutiva não é identificada na superfície do texto e ocorre quando o
discurso é dominado pelo interdiscurso, presente na memória discursiva, em outras
palavras, o discurso se constitui por meio da relação que mantém com o outro. E, devido
à heterogeneidade constitutiva, o discurso não se estabelece como um espaço “estável”,
“fechado” e “homogêneo”, contudo, tal fatoro o impede de estar imerso em um espaço
controlado pela formação ideológica a qual pertence, sofrendo suas coerções (AUTHIER-
REVUZ, 1982; MAINGUENEAU, 2012; MELO, 2009; MUSSALIM, 2001).
André Capelão representa um sujeito dividido e apresenta em sua obra discursos
diversos. O interessante no Tratado do Amor Cortês é a distribuição desses discursos.
Nas três partes da obra podemos vislumbrar a coexistência de diferentes discursos,
porém, a preeminência do discurso cortês no Livro I e no Livro II, cede lugar à
hegemonia do discurso religioso do Livro III. A obra (ANDREAE CAPELLANI REGII
FRANCORUM, 1972) encontra-se dividida da seguinte forma:
7
Conforme coloca Ana Paula Tavares Magalhães: “Humana em sua origem, em sua construção e em suas
finalidades, a linguagem é pulsante, trai emoções por mais racional que se pretenda e evidencia
contradições internas ao próprio homem” (MAGALHÃES, 2015, p. 12).
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“Prefácio
PRIMEIRO LIVRO: Abordagem do tratado do amor
Cap. I: O que é o amor
Cap. II: Entre quem é possível esse amor
Cap. III: De onde vem dito amor
Cap. IV: Quais são os efeitos do amor
Cap. V: Quais pessoas são aptas para amar
Cap. VI: Com adquirir o amor e quais as maneiras
A. Fala do plebeu a uma plebeia
B. Fala do plebeu a uma nobre
C. Fala do plebeu a uma mulher de alta nobreza
D. Nobre a uma plebeia
E*
8
. Fala do nobre à uma nobre
F. Fala de um homem de alta nobreza a uma plebeia
G. Fala de um homem de alta nobreza a uma nobre
H. Fala de um homem de alta nobreza a uma mulher de alta nobreza
Cap. VII: Do amor dos clérigos
Cap. VIII: Do amor das religiosas
Cap. IX: Do amor pelo dinheiro adquirido
Cap. X: Da facilidade de conceder algo que foi solicitado
Cap. XI: Do amor dos rústicos
Cap. XII: Do amor das meretrizes
SEGUNDO LIVRO: Como manter o amor
Cap. I: Como preservar o amor adquirido
Cap. II: Como o perfeito amor pode aumentar
Cap. III: Como o amor diminui
Cap. IV: Como termina o amor
Cap. V: Dos sinais do amor recíproco
Cap. VI: Se um dos amantes infringir a fé do outro amante
Cap. VII: Dos vários julgamentos de amor
(I, II, III, IV, V, VI, VII, VIII, IX, X, XI, XII, XIII, XIV, XV, XVI, XVII, XVIII, XIX, XX,
XXI)
Cap. VIII: Das regras do amor
TERCEIRO LIVRO: Da condenação do amor” (ANDREAE CAPELLANI REGII
FRANCORUM, 1972, p. 365- 367, tradução nossa)
9
O Tratado do Amor Cortês parece ecoar Ars Amatoria e Remedia Amoris, ambas
composta por Ovídio (43 a.C.17/18 d.C.). Nos cinco primeiros capítulos do primeiro
livro que descrevem o amor e seus efeitos vislumbramos elementos da tradição ovidiana.
Conforme o editor da versão italiana, Salvatore Battaglia (apud BURIDANT, 2002, p.
XLVIII- XLIX): “Depois de algumas páginas de introdução, o tratado abandona o texto
8
Provavelmente devido a um erro, dois diálogos são designados com a mesma letra no original.
9
Praefatio/ LIBER PRIMUS: Accessus ad amoris tractatum/ Cap. I: Quid sit amor/ Cap. II: Inter quos possit
esse amor/ Cap. III: Um dedicatur amor/ Cap. IV: Quis sit effectus amoris/ Cap. V: Quae personae sint
aptae ad amorem/ Cap. VI: Qualiter amor acquiratur et quot modis/ A. Loquitur plebeius ad plebeiam/ B.
Loquitur plebeius nobili/ C. Loquitur plebeius nobiliori feminae/ D. Nobilis plebeiae/ D*. Loquitur nobilis
nobili/ E. Loquitur nobilior plebeiae/ F. Loquitur nobilior nobili/ G. Loquitur nobilior nobiliori/ Cap. VII: De
amore clericorum/ Cap. VIII: De amore monacharum/ Cap. IX: De amore per pecuniam acquisito/ Cap. X:
De facili rei petitae concessione/ Cap. XI: De amore rusticorum/ Cap. XII: De amore meretricum/ LIBER
SECUNDUS: Qualiter amor retineatur/ Cap. I: Qualiter status acquisiti amoris debeat conservari/ Cap. II:
Qualiter perfectus amor debeat augmentari/ Cap. III: Qualiter amor minuatur/ Cap. IV: Qualiter finiatur
amor/ Cap. V: De notitia mutui amoris/ Cap. VI: Si unus amantium alteri fidem frangat amanti/ Cap. VII: De
variis iudiciis amoris (I, II, III, IV, V, VI, VII, VIII, IX, X, XI, XII, XIII, XIV, XV, XVI, XVII, XVIII, XIX, XX, XXI)/
Cap. VIII: De regulis amoris/ LIBER TERTIUS :De reprobatione amoris. (ANDREAE CAPELLANI REGII
FRANCORUM, 1972, p. 365- 367)
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ovidiano e volta-se para os temas contemporâneos com uma determinação mais
significativa porque teria sido fácil, para André Capelão, continuar no caminho que ele já
começara a trilhar”. No prólogo da versão castelhana (ANDREAS CAPELLANUS, 1985),
Inés Creixell Vidal-Quadras considera que Ovídio, além de ser a “autoridade” clássica
mais citada, é a principal fonte estrutural de André Capelão.
Não podemos desconsiderar que Ovídio gozava de grande notoriedade na época
da composição do Tratado, tanto que o filólogo alemão Ludwig Traube denominou aetas
ovidiana (idade ovidiana) o período da literatura medieval, em latim e em vernáculo, que
floresceu no cenário cultural do século XII. Contemporâneos de André Capelão, Maria de
Fraa e Chrétien de Troyes também mencionam o poeta latino em suas obras, este
último teria inclusive traduzido Remedia Amoris e Ars Amatoria, traduções as quais ele
faz alusão nos versos iniciais de Cligés. Não é improvável que André Capelão tenha lido
as obras de Ovídio, ou então tenha tido acesso indireto aos seus enunciados.
Todo discurso é produzido por meio de um já dito: “Todo texto se constrói como
um mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto. Em
lugar da noção de intersubjetividade, instala-se a de intertextualidade” (KRISTEVA, 1974,
p. 64). A exemplo disso, o Tratado do Amor Cortês parece absorver e transformar os
textos de Ovídio, tanto no que se refere ao conteúdo quanto à forma. Porém, outros
nomes são citados na obra, tal como Cícero, Sêneca e Horácio. As citações e alusões aos
autores da latinidade clássica inserem-se no que já descrevemos como heterogeneidade
mostrada e podemos considerar também que, ao utilizar de máximas de diversos autores,
André Capelão faz uso da citação de pertencimento: “Nesse tipo de citação, os
enunciadores produzem seu discurso com base num discurso segundo, objetivando
partilhar do capital simbólico concentrado no interdiscurso” (BARONAS, 2006, p. 159).
Ora, a remissão a essas “autoridades” fortalece os argumentos apresentados pelo autor
e, por vezes, proporciona-lhe uma conclusão. Quando André Capelão utiliza dessas
citações, ele renuncia sua própria autoria em função da autoridade de outro autor.
Por fim, a interdiscursividade e a intertextualidade estão presentes na
constituição do Tratado do Amor Cortês, sendo importante lembrar que elas se referem
a fenômenos distintos e por vezes complementares:
A intertextualidade e a interdiscursividade concernem à questão das vozes [...].
Com efeito, sob um texto ou um discurso ressoa outro texto ou outro discurso;
sob a voz de um enunciador, a de outro. A interdiscursividade não implica a
intertextualidade, embora o contrário seja verdadeiro, pois, ao se referir a um
texto, o enunciador se refere, também, ao discurso que ele manifesta. (FIORIN,
1999, p. 29-36). [...] A intertextualidade não é um fenômeno necessário para a
constituição de um texto. A interdiscursividade, ao contrário, é inerente à
constituição do discurso [...]. O discurso não é único e irrepetível, pois um
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discurso discursa outros discursos. Nessa medida o discurso é social. (FIORIN,
1999, p. 34-35)
Ao entendermos o discurso como social, devemos também considerar as relações
dialógicas que o estabelecem. E é esse caráter dialógico do discurso que, em Análise de
Discurso, constitui o seu sentido. Retomando o conceito de dialogismo de Mikhail M.
Bakhtin, cada enunciado responde a enunciados precedentes assim como antecipa
enunciados posteriores. Dito isto, todo enunciado é um elo na complexa cadeia da
comunicação discursiva. Mikhail M. Bakhtin ressalta ainda que as relações com outros
enunciados não precisam situar-se necessariamente no plano verbalizado estilístico-
composicional, mas podem ser encontradas no plano semântico-objetival. O objeto do
discurso de um dado enunciado está presente como objeto do discurso em outros
enunciados e, ainda que ocasionalmente existem elementos originais, podemos
considerar que todo objeto advém de uma construção discursiva: “O objeto, por assim
dizer, já está ressaltado, contestado, elucidado e avaliado de diferentes modos; nele se
cruzam, convergem e divergem diferentes pontos de vista, visões de mundo, correntes
(BAKHTIN, 2011, p. 300). O tema do amor é objeto de diferentes discursos, tal como o
discurso cortês, o discurso religioso, o discurso filosófico etc, e seus diferentes pontos
de vistas, presentes em diversos enunciados, ecoam no Tratado do Amor Cortês. E aqui
podemos ressaltar um aspecto de suma importância para a análise da fonte, ainda que
dois enunciados sejam estranhos um ao outro, isto é, cada enunciado ignora a existência
do outro, ao abordarem o mesmo tema, estabelecem necessariamente relões dialógicas
entre si, relações interdiscursivas.
Embora todo enunciado seja inexoravelmente dialógico, a estratégia discursiva
adotada determinará se esse dialogismo estará oculto ou não no texto, o que i
caracterizar o enunciado como polifônico ou monofônico respectivamente. A polifonia
ocorre nos textos nos quais distinguimos diversas vozes, já os textos monofônicos
aparentam a existência de uma voz (BARROS, 1999).
10
Como já mencionamos, o Tratado do Amor Cortês é notoriamente um texto
polifônico que permite ao analista vislumbrar as diferentes vozes orquestradas pelo
autor que, todavia, parece perder o ritmo na passagem do segundo para o terceiro livro.
10
Diana Luz Pessoa de Barros (1999, p. 6) ainda sugere que com essa distinção podemos separar os
discursos autoritários dos discursos poéticos. Os discursos autoritários são aqueles em que as vozes em
conflito são abafadas e com isso o discurso se manifesta como “discurso da verdade única, absoluta,
incontestável”, escondem-se as posições divergentes, os choques sociais. Já no discurso poético a
ambivalência das múltiplas posições se fazem presentes, evidenciando “a complexidade e as contradições
dos conflitos sociais”.
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As diversas vozes podem ser escutadas, principalmente, devido à estratégia discursiva
do diálogo e dos julgamentos.
Nos oito diálogos presentes no Capítulo VI do primeiro livro, as personagens -
sempre um homem e uma mulher - discutem questões amorosas por meio de uma justa
de palavras na qual um argumento e seu contrário são defendidos com a mesma
persistência, lembrando um torneio. Interessante notar que nos conflitos militares
ocorridos no período medieval, a defesa frequentemente possui a vantagem e é
considerada honrosa (BARTHÉLEMY, 2010). Nos diálogos, tal defesa cabe à mulher. Além
disso, devemos considerar que a “[...] justa de oratórias está de fato no espírito das
assembleias da época em que prender o adversário, em suas próprias palavras, para se
vingar de um mal sofrido, é um golpe estimado” (BARTHÉLEMY, 2010, p. 429). E,
conforme Felix Schösser (1964), assemelhando-se a uma casuística, os diálogos não
possuem o aspecto de situação vivida, tanto que já no primeiro diálogo, após a dama ter
rejeitado o pretendente idoso, considera-se a situação contrária, na qual o personagem
seria demasiado jovem. De qualquer forma, por meios desses personagens podemos
verificar uma multiplicidade de vozes e pontos de vista, ora concordantes, ora
destoantes.
Já no Capítulo VII do segundo livro, André Capelão insere enunciados
supostamente emitidos por renomadas damas que deliberam sobre exemplos teóricos de
situações amorosas marcadas por dilemas morais. Os vinte e um “julgamentos de amor”
relatados pelo autor são atribuídos a Maria de Champagne (julgamentos I, III, IV, V, XIV,
XVI e XXI), a Eleonora da Aquitânia (julgamentos II, VI, VII), a Rainha (julgamentos XVII,
XIX, XX) que pode ser Adélia de Champagne ou Isabel de Hainaut, mãe e esposa
respectivamente do rei Filipe Augusto da França, a Hermengarda de Narbonne
(julgamentos VIII, IX, X, XI, XV), a condessa de Flandres (julgamentos XII e XIII) e às
damas da corte de Gasconha (julgamento XVIII). Será que essas mulheres proferiram
realmente estas sentenças, constituindo uma heterogeneidade mostrada, ou estas foram
forjadas pelo autor? Ainda que não seja nosso objetivo responder a essa questão no
presente artigo, podemos frisar que, ao citá-los e atribuí-los a essas mulheres, André
Capelão parece reconhecer o prestígio que elas detinham na solução das questões
amorosas, sendo uma forma de valorização do que está sendo dito.
André Capelão utiliza, assim, de diferentes artifícios discursivos para construir
seu texto. Mas segundo Eni Pulcinelli Orlandi, o sujeito enquanto autor deve submeter-se
a um dizer padronizado e sua relação com a linguagem encontra-se propícia às injunções
sociais. Uma série de exigências é feita ao autor, tal como coerência, respeito às regras
textuais e gramaticais, clareza, unidade, não-contradição etc. Ora, essas exigências têm
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como propósito tornar o “[...] sujeito visível (enquanto autor, com suas intenções,
objetivos, direção argumentativa). Um sujeito visível é calculável, controlável, em uma
palavra identificável” (ORLANDI, 2001, p. 78).
Enquanto autor, André Capelão não é facilmente identificável e parece fugir ao
controle social ao desconsiderar exigências como “não-contradição”, “coerência” e
“unidade”. Sua obra, ainda que compreensível, tornou-se inaceitável pelo bispo Estevão
Tempier que a condenou como heresia por portar a existência de duas verdades
contraditórias (BURIDANT, 2002). André Capelão apresenta tanto proposições
contrárias quanto proposições contraditórias, em especial, no que se refere às relações
entre os sexos e às mulheres. As proposições são contrárias quando não são
simultaneamente verdadeiras; mas podem ser simultaneamente falsas; já as proposições
são contraditórias quando não são nem simultaneamente verdadeiras e nem
simultaneamente falsas, em outras palavras, uma é verdadeira enquanto outra é falsa
(PLANTIN, 2012, p. 129-130). A existência dessas relações lógicas de contrariedade e de
contradição afetam a coerência do texto, de ordem da “textualidade baseada na
informação”. E a aparente incongruência da obra ainda é objeto de inúmeras teses.
Considerações finais
O Tratado do Amor Cortês é um texto polêmico cujas luzes lançadas pela Análise
de Discurso possibilitam escutar as vozes diferentes e, por vezes, distintas ecoadas na
obra. Se antes esta obra nos chamava atenção pela beleza e riqueza do texto, ao
exploramos a profusão de vozes orquestrada na composição da obra podemos conhecer
o universo discursivo por trás da temática literária do amor cortês.
André Capelão representa, pois, o sujeito dividido, heterogêneo, clivado entre o
consciente e o inconsciente. O autor não é um “sujeito adâmico”, origem única de seu
dizer, mas uma representação vocal de uma pluralidade de vozes, apresentando
discursos distintos que não precisam necessariamente se harmonizar e nem se excluir,
expressando assim a polifonia constitutiva do texto.
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