A comunidade virtual “Boa Ventura
de São Roque é Assim”: uma
história feita pelo público
“Boa Ventura deo Roque
is like this” virtual community:
a history made by the public
NASCIMENTO, Éder Dias do
*
RESUMO:
Este artigo apresenta uma
reflexão sobre a comunidade do Facebook
“Boa Ventura de São Roque é Assim”, que foi
analisada como um projeto de história feita
pelo público sobre a cidade de Boa Ventura
de São Roque/PR. O objetivo do trabalho foi
conhecer e compreender as especificidades
da citada fanpage
como espaço de
divulgação da memória. O estudo é
exploratório e seus resultados evidenciam a
necessidade de os historiadores públicos
estarem atentos às diferentes narrativas
históricas e ao potencial dos projetos
informais de divulgação da história das
cidades nas redes sociais.
PALAVRAS-CHAVE:
cidade; lugar da
memória; história pública.
ABSTRACT: This article presents a
reflection on the Facebook community ‘Boa
Ventura de São Roque é Assim’ (Boa
Ventura de São Roque is Like This),
analyzed as a project of history made by the
public about the city of Boa Ventura de São
Roque, State of Paraná, Brazil. The objective
of the study was to know and understand
the characteristics of the referred fan page
as a spa
ce for dissemination of memories.
The study is exploratory, and its results
evidence that public historians need to be
attentive to the different historical
narratives and the potential of informal
projects to disseminate the history of cities
in social networks.
KEYWORDS:
city; memory place; public
history.
Recebido em: 01/05/2019
Aprovado em: 30/08/2019
*
Graduado em história pela Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná (UNICENTRO),
Guarapuava, estado do Paraná (PR), Brasil. Mestre em história pela Universidade Estadual do Paraná
(UNESPAR), Campo Mourão (PR), e professor efetivo da rede pública estadual do Paraná, Brasil. E-mail:
ederptga@gmail.com.
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Introdução
As discussões sobre História Pública
1
iniciam-se com mais vigor entre os anos
1970 e 1980 (ALMEIDA; ROVAI, 2013, p. 1-2). No contexto britânico ela era sensível às
questões ligadas à memória, à narrativa e aos conteúdos identitários, abordadas de uma
perspectiva alinhada à “história vista de baixo”
2
.
No caso estadunidense, com engajamento político menor se comparado aos
ingleses, a ênfase recaía sobre a necessidade de expandir a audiência da história. Uma
das preocupações evidenciadas era “lidar com um público diverso e com as mídias;
refletir sobre os sujeitos fora do ambiente acadêmico, com suas vontades e discursos
múltiplos”
3
(ALMEIDA; ROVAI, 2013, p. 2).
No Brasil, semelhante aos dois exemplos acima mencionados, a História Pública é
marcada por uma realidade particular
4
. Ao contemplá-la, Ricardo Santhiago mapeia as
seguintes possibilidades de atuação para os historiadores públicos: “história para o
público, história com o público, história feita pelo público e história e público”
(SANTHIAGO apud SOARES, 2017, p. 569).
Em especial, na “história feita pelo público” estão as variações não acadêmicas e
com frequência desenvolvidas por pessoas sem formação de historiador (SANTHIAGO
apud SOARES, 2017, p. 583). Dentro delas situam-se os memorialistas e seus projetos de
difusão da história/memória.
O enfoque deste texto na história feita pelo público converge com diversas
inquietações ligadas à relação entre redes sociais e espaço urbano, surgidas da disciplina
“Cidade, Patrimônio Urbano e Ensino de História”, ministrada pelo prof. Dr. Michel
Kobelinski, no Programa de Mestrado Profissional em Ensino de História da
1
A História Pública é um movimento centrado na divulgação da história para diferentes públicos. Nele,
além dos historiadores, outros profissionais encontram espaço de atuação, por exemplo: “jornalistas,
radialistas, cineastas, em suas tantas subcategorias”. “E há também os bibliotecários, sociólogos,
arquivistas, escritores, memorialistas, diletantes e tantos outros agentes que têm a história e o público em
sua pauta de interesses. A forma de inserção de cada um desses agentes no campo da história pública é
que é uma questão delicada,que eles respondem a demandas muito diferentes que nem sempre se
afinam, nem deveriam se afinar, ao crivo acadêmico. Fazer a mediação entre essas várias instâncias é um
desafio” (SANTHIAGO, 2014, n.p.).
2
A “história vista de baixo diz respeito à história das “pessoas comuns”, aquelas sem um envolvimento
direto com os grandes acontecimentos políticos e econômicos do passado (SHARPE, 1992, p. 54), por
exemplo: a história das mulheres, dos operários, dos camponeses, etc.
3
“Embora a prática seja muito anterior, muitos autores já mostraram como o conceito de “história pública
surgiu com a grande crise de empregos da década de 1970 nos Estados Unidos, quando o historiador
Robert Kelley, entre outros, procurou conceituar esse fenômeno do surgimento (ou da criação!) de
carreiras ou de um potencial mercado de trabalhos alternativos à carreira acadêmica para historiadores
que não conseguiam ingressar nos postos das universidades” (MALERBA, 2014, p. 28).
4
Na pós-graduação, dentro da realidade particular brasileira, algumas iniciativas voltadas à construção das
bases de um movimento mais consistente já podem ser mapeadas. Este é o caso do mestrado em História
Pública da Universidade Estadual do Paraná cuja primeira turma de pós-graduandos iniciou suas atividades
no ano de 2019. Em relação aos eventos, registra-se o 1º,, 3º e 4º Simpósio Internacional da Rede
Brasileira de História Pública.
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Universidade Estadual do Paraná, entre os meses de agosto e dezembro de 2016. Nesse
período, o autor deste artigo iniciou uma investigação sobre a cidade de Boa Ventura de
São Roque/PR. Para este trabalho, uma das sugestões de Kobelinski dizia respeito à
relevância de problematizar as imagens que faziam parte do acervo da comunidade
virtual “Boa Ventura de São Roque é Assim”.
Com este objetivo particular, várias leituras ampliaram as reflexões iniciais, entre
elas, do artigo Histórias de municípios narradas nos seus sites oficiais: a História
Pública e seu potencial para a pesquisa histórica, de Jorge Pagliarini Junior (2017). Nele,
o autor sonda a narrativa histórica apresentada ao grande público por 25 municípios da
região de Campo Mourão/PR, centrando-se na relação entre história, memória,
esquecimento e identidade presentes nas páginas oficiais dos integrantes da
Comunidade dos Municípios da Região de Campo Mourão (COMCAM)
5
.
Sobre a investigação desenvolvida, Junior pontua que o uso da internet enquanto
veículo oficial de divulgação da história dos municípios possibilita diferentes apreciações
do passado. As quais, “ora procuram sintetizar discursos presentes nas memórias e
representações sobre a história dos lugares, ora projetam leituras que se pretendem
tornar oficiais” (2017, p. 249).
O estudo desse autor também possibilita-nos perceber dois movimentos: o dos
espaços oficiais e o dos espaços não oficiais de divulgação da história. Frente a eles, três
aspectos merecem atenção: i) o impacto das redes sociais sobre o relacionamento das
pessoas com o saber histórico; ii) a especificidade da narrativa (textos, imagens, sons,
etc.) da história dos municípios, seu formato e audiência nos diversos suportes
disponíveis no ciberespaço; iii) o surgimento de espaços informais na internet com a
finalidade de corroborar, ampliar ou negar determinadas interpretações históricas.
Ao tencionar esse último eixo, interpelamos a comunidade estudada como uma
iniciativa informal de divulgação histórica. A qual foi criada em 20/2/2012 e tem 2.832
6
membros na atualidade. Nesse espaço podem ser encontradas informações sobre
esporte, vendas de imóveis, fotos antigas digitalizadas e recados de utilidade pública. Se
comparada com páginas do Facebook como a “Tastemade Brasil” e seus 16.217.367
7
seguidores, trata-se de uma iniciativa bem modesta. Contudo, ao enfocar um município
pequeno e emancipado há poucos anos, com uma população estimada de 6.554
5
Os seguintes municípios paranaenses compõem a COMCAM: Altamira do Paraná, Araruna, Barbosa
Ferraz, Boa Esperança, Campina da Lagoa, Campo Mourão, Corumbataí do Sul, Engenheiro Beltrão, Farol,
Fênix, Goioerê, Iretama, Janiópolis, Juranda, Luiziana, Mamborê, Moreira Sales, Nova Cantu, Peabiru,
Quarto Centenário, Quinta do Sol, Rancho Alegre D’Oeste, Roncador, Terra Boa e Ubiratã.
6
Consulta em 20/04/2019, na página da comunidade do facebook Boa Ventura de São Roque é Assim
(2012).
7
Consulta em 30/12/2017, na página da comunidade do facebook Tastemade Brasil (2015).
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habitantes, menor que a de um bairro de Curitiba, sendo 1.544 na área urbana e 5.010 na
rural (IPARDES, 2017, p. 13), a comunidade desenvolve um setor pouco contemplado
pelas políticas públicas municipais.
Provendo-nos de elementos para pensar essa comunidade a partir de um quadro
mais amplo de reflexões, Thais Nívia de Lima e Fonseca, ao enfocar questões
relacionadas à mídia, aponta a existência de conflitos entre a academia e as iniciativas
não acadêmicas de produção e divulgação da história (FONSECA, 2016, p. 188). Embates
suscitados quando diferentes produções (tv, internet, radio etc.) dão audiência a
interpretações incoerentes do passado, a ponto de surgirem críticas dos historiadores
profissionais que reforçam a separação entre eles e o grande público.
Em face desse distanciamento, a História Pública é um dos caminhos para que a
produção da academia encontre novas formas de o historiador transmiti-la à sociedade
8
,
sobretudo, ao levar-se em conta a existência de um gosto do público pela história,
todavia, nem sempre aquela produzida com o uso da linguagem acadêmica.
A este respeito, Anita Lucchesi e Bruno Leal Pastor de Carvalho, em alusão aos
dados de 2013 da empresa Brandindex, enfatizam o caso do canal History Channel,
presente em mais de 125 países, um símbolo de interesse social pela história. Interesse,
do mesmo modo, explorado com fins comerciais por revistas, desenhos, filmes e
inúmeras efemeridades (CARVALHO; LUCCHESI, 2016b, p. 149), algumas delas marcadas
pela presença de historiadores.
Um aspecto muito presente no trabalho desses profissionais é a complexidade
relacionada aos formatos de apresentação das informações e as demandas geradas pelo
público consumidor
9
. Ao encará-las, o protagonismo deste público, que não é um
telespectador passivo das produções históricas, impõe o desafio de pensar espaços de
compartilhamento de autoridade
10
(FRISCH, 2016). Jurandir Malerba, com olhar voltado à
internet, indaga essa questão. Para ele,
A rígida divisão a que estamos familiarizados entre produtores (homens e
mulheres treinados na universidade nos fundamentos da história como ciência,
8
Para Santhiago, apesar da ênfase dada à divulgação, esse eixo não resume todos os potenciais da História
blica. “Muito do discurso sobre história pública está ligado a palavras como “disseminar”, “divulgar”,
“difundir”, “traduzir”, “publicizar”, “publicar”, “transmitir”. A ampliação dos públicos da história, por meio
desses recursos, é uma dentre as várias facetas da história pública e tem implicações metodogicas e
teóricas agudas, que merecem um olhar mais demorado” (SANTHIAGO, 2014, n.p.).
9
Na visão de Santhiago, o “praticante de históriablica conduz sua pesquisa levando em conta as normas
e os critérios específicos da “história”, mas também as especificidades do ‘público” (SANTHIAGO, 2014,
n.p.).
10
O compartilhamento de autoridade diz respeito às possíveis trocas e interações entre os historiadores
públicos e o público no desenvolvimento de projetos de divulgação da história. Isso tudo, pela via de
desconstrução de algumas hierarquias tradicionais entre conhecimento acadêmico e não acadêmico.
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no manejo de fontes e do método crítico) e consumidores de conhecimento
sobre o passado se destina em alguma medida a salvaguardar a autonomia dos
historiadores profissionais. O processo de ampliação vertiginosa de
protagonistas e meios de circulação da história, porém, coloca em xeque aquela
divisão. O discurso da autoridade não cola bem no mundo real muito menos
no mundo virtual. Além disso, a web parece configurar-se numa espécie de
“esfera pública” que dispensa qualquer “validação” formal ou atestado de
competência para uma interpretação particular do passado. Nesse ambiente
imune ao discurso da autoridade, parece crucial que os historiadores busquem
não apenas o avanço do conhecimento, mas também entender como esse
conhecimento vem sendo testado e negociado (MALERBA, 2017, p. 144).
Seguindo a lógica do autor, as redes sociais são espaços privilegiados para se
observar esquemas de produção e consumo da história típicos do ciberespaço. Dinâmica
que tem levado a uma aproximação entre a História Pública e a discussão sobre os
potenciais das plataformas virtuais de interação social. Algo perceptível, por exemplo,
nos artigos História pública e redes sociais na internet: elementos iniciais para um
debate contemporâneo (2016a) e Faça aqui o seu login: os historiadores, os
computadores as redes sociais online (2014), publicados por Carvalho, e Representação
do Passado e História Pública: a História das Mulheres na Internet (2017), de Gabriela
Correa Silva. Na visão de Lucchesi (2014, p. 51) parafraseando o humanista digital
Shawn Graham , “as mídias digitais fazem de toda história, história pública, isto é, ao
menos potencialmente divulgada, na medida em que fica acessível para amplas
audiências na Internet”.
Neste universo, a relação entre a cidade e a divulgação da memória nas redes
sociais é tema relevante para História Pública. Recorte que rememora reflexões
desenvolvidas ainda no século XX, no qual, a tentativa de distinguir a “ciência histórica”
da “memória” levou a debates simplistas. Nessas discussões predominava a ideia da
história como “verdade” absoluta sobre o passado e a depreciação do potencial
explicativo da memória (DANTAS, 2008, p. 13). Essa separação validava papéis sociais ao
opor ciência histórica e saber memorialístico sem considerar as possíveis trocas e
interações entre elas. Problemática, na atualidade, marcada por contornos a serem mais
bem explorados pelos historiadores públicos no ciberespaço.
Os genealogistas virtuais
Segundo Magda Rodrigues da Cunha, com o surgimento e disseminação das redes
sociais, as memórias individuais passaram por um processo de complexificação, pois em
tais espaços podemos “contar histórias de todas as épocas para muitos, tantos quantos
possam e desejem acompanhá-las. Mas também deixamos nossos registros e percepções
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sobre os lugares que visitamos, as experiências que vivenciamos, nos diferentes períodos
da vida” (2013, p. 114).
Frente a esse cenário, deve-se considerar o fato dos debates sobre memória
serem extensos e nem sempre marcados por consensos entre os pesquisadores. Por esse
motivo, cabe ressaltar nossa perspectiva de interpretação deste conceito. Segundo
Maurice
Halbwachs, a memória coletiva diz respeito ao expediente no qual “nossas
lembranças [...] nos são lembradas por outros, ainda que se trate de eventos em que
somente nós estivemos envolvidos” (HALBWACHS, 2006, p. 30). Em sua visão, dentro
dos sujeitos estão encapsuladas as recordações e experiências de outras pessoas,
tempos e lugares (HALBWACHS, 2006, p. 39). Portanto, cada um de nós é uma ntese de
lembranças da sociedade da qual fazemos parte. Para Eliza Bachega Casadei, Halbwachs,
assim, “nega todos os elementos que possam de alguma forma, remeter ao indivíduo em
si e, por isso, seu trabalho recebeu duras críticas” (2009, p. 5).
De acordo com Casadei, algumas dessas críticas feitas por Michel Pollak, são
sobre o fato de Halbwachs desconsiderar a existência dos conflitos gerados pela
memória coletiva ao obscurecer a dimensão plural das memórias individuais dos sujeitos
(2009, p. 6). Na perspectiva defendida por Pollak, a memória oficial seria resultado das
disputas entre grupos e versões diferentes sobre o passado, processo de enquadramento
responsável por justificar e dar vida a determinadas formas de leitura dos fatos
históricos, advindas das memórias de vivências diretas ou indiretas de um passado
coletivo ao qual se julga pertencer (POLLAK, 1992).
Nesse âmbito, as tecnologias comunicacionais, ao dinamizarem formas
específicas de trato e fruição das informações, acabam impactando os lugares da
memória, entendidos por Pierre Nora como “qualquer entidade signicante, material ou
o material em sua natureza, que por força da vontade humana ou pelo trabalho do
tempo tenha se tornado um elemento simbólico da herança memorial de dada
comunidade” (CASADEI, 2009, p. 7). Diante disso, no entendimento de Casadei, quando
se observa o uso da internet enquanto palco principal das rememorações de um grupo,
surgem os chamados “novos lugares da memória” (CASADEI, 2009, p. 4).
Tais lugares podem compor cenários virtuais marcados pela confusão do excesso
de informações disponíveis ou por seus silenciamentos. Sob essa ótica, a comunidade
investigada é um lugar da memória sobre a cidade, vivenciado nas fotos antigas
digitalizadas, nas selfies, nos comentários, nas curtidas e compartilhamentos.
De acordo com Serge Noiret (2015, p. 37):
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As memórias de família, com materiais e fontes primárias descobertas em casa,
podem ser hoje facilmente compartilhadas. Novos “genealogistas” podem,
assim, escrever a história deles, que, por força das circunstâncias, carece de
contextos narrativos e do necessário aprofundamento historiográfico. O
passado de cada um na rede não é mais distante e historicizado, mas se torna
emoção em um presente contínuo, nivelando os tempos históricos pela
atualidade.
O termo “genealogista”, presente no fragmento, vai além da preocupação em
demonstrar a linhagem de algo. Se assim não fosse, Noiret teria dispensado o uso das
aspas. Também fica evidente na fala do autor a percepção de uma conjuntura histórica,
social e política de supervalorização das memórias
11
na internet, pressuposto alinhado às
ideias de Carvalho e Lucchesi. Para os dois autores: o “fascínio pelo passado encontrou
terreno fértil para se desdobrar em produções culturais de variados portes, ou
simplesmente para se manifestar publicamente em perfis pessoais, comerciais e
institucionais como Facebook, Instagram, Twitter, Flickr” (CARVALHO; LUCHESI, p.
155). Isso explica a obsessão demonstrada pelas pessoas em atualizar a todo o momento
as informações (fotos, comentários, compartilhamentos etc.) sobre si e sobre os outros
nas redes sociais (RENDEIRO, 2011, p. 260).
Sobremaneira, a cidade moderna é um palco de episódios marcados por esta
dinâmica. Para Milton Santos, a instantaneidade da comunicação provocada pelo avanço
da técnica, devido ao excesso de informações transmitidas, produz a sensação de que os
lugares, em escala global, são muito parecidos (1994, p. 178). Contudo, este processo
também possui uma característica inversa, pois “cada lugar, na busca de sobrevivência e
de individualidade”, também procura “se diferenciar o mais que possível dos demais”
(ABREU, 1998, p. 21). Por esse caminho, o estudo dos projetos minoritários de divulgação
da história/memória de municípios pequenos pode revelar determinadas representações
públicas diluídas pelo ciberespaço.
Olhando para essas particularidades, este artigo configura-se em uma pesquisa
exploratória, a qual busca contemplar um tema pouco estudado com objetivo de
desenhar um ponto de partida para investigações posteriores de maior abrangência (GIL,
2008, p. 27). Por essa razão, ao abordar a comunidade “Boa Ventura de São Roque é
Assim”, apesar de considerarmos a importância do estudo da interatividade entre seus
membros, refletida nas curtidas e comentários feitos nas postagens, não nos deteremos
11
Maurício de Almeida Abreu (1998, p. 35) entende que a incerteza quanto ao futuro disseminada nas
sociedades atuais nasce do sentimento da desesperança quanto às benesses do progresso científico, como
defendiam os iluministas. Os quais tinham a crença de que os avanços da ciência seriam suficientes para
levar o ser humano a um tempo de glória e conquistas, entretanto, os fatos do século XX, as duas guerras
mundiais e os ideais de eugenia, provaram totalmente o contrário. Perante essas experiências, os sujeitos
passam a desconfiar do futuro e se apegam de maneira bastante particular ao presente e ao passado. Em
razão disso, as memórias individuais e coletivas passam a ser supervalorizadas. Processo que impacta a
relação entre as memórias dos sujeitos e a interação com as cidades.
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de maneira profunda nesse aspecto. Até porque se buscou compreender a fanpage como
um “lugar da memória”, tangível no acervo histórico divulgado por ela na internet.
O município de Boa Ventura de São Roque: trajetos históricos
Os fatos históricos ligados ao surgimento de Boa Ventura de São Roque
ocorreram no século XIX, período em que o médico francês Jean Maurice Faivre, após
receber uma doação de terras de D. Pedro II, ocupou uma área na região do atual
município de Cândido de Abreu-PR, dando origem à colônia Tereza Cristina. Nela foram
grandes as dificuldades relacionadas ao isolamento, o risco de ataques de índios, as
epidemias e os problemas financeiros (FERNANDES, 2006, p. 240).
Devido a esses contratempos, era difícil a população manter-se animada
questão abordada por Josué Corrêa Fernandes (2006, p. 40). Por isso, na segunda
metade do século XIX, um grupo evadiu-se da colônia, e chegou onde hoje está o
município de Boa Ventura de São Roque. Anos depois, a região também foi alvo de
migração de famílias de Prudentópolis-Pr, o que explica a grande presença de
descendentes de ucranianos na sua composição étnica (MIRANDA et al., 2001, p. 1-2).
Nas primeiras décadas de ocupação do lugar, a principal mão de obra empregada
era familiar, utilizada principalmente na agricultura de subsistência e no cuidado dos
animais para consumo. Exceto pelas roupas, açúcar e sal, quase tudo era produzido nas
pequenas propriedades (MIRANDA et al., 2001, p. 2-3). Nesse sistema, a vida no campo
corria distanciada da dinâmica dos espaços urbanos da época, reforçando o sentimento
de solidariedade imbricado nos laços de avizinhamento e nas práticas comunitárias,
quase sempre forjadas pela participação nos ritos do catolicismo.
Posteriormente, devido à inserção da prática da engorda extensiva de porcos, da
extração de madeira e da coleta da erva-mate (1940-1980), a mão de obra familiar
continuou a ser utilizada, apesar de fragmentada em outras atividades mais capitalizadas,
como as serrarias e os barbaquás espalhados pela região (MIRANDA et al., 2001, p. 2-3).
Sobre a criação de suínos, podem ser encontrados diversos relatos sobre a
história de pessoas que conduziam porcos de áreas distantes até o povoado de Boa
Ventura, próximo de onde normalmente um caminhão aguardava, ou em frente a um dos
lugares mais conhecidos pela população local a Igreja São Roque. Desse ponto e de
outros não especificados nos vários relatos disponíveis, os animais eram levados até a
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cidade de Ponta Grossa. Nessa época, vários safristas
12
saíam de madrugada de suas
casas, pois tinham que enfrentar longos trechos de caminhada.
Em tais circunstâncias eram comuns problemas ligados à distância e a falta de
recursos. E isso forçava as pessoas a usar as plantas e os animais de forma pouco
convencional para os dias de hoje, principalmente na produção de remédios caseiros.
Como resultado, muitas foram as gestantes que tiveram seus filhos tomando beberagens
de banha de raposa e tantas outras mais exóticas (LIMA; SILVA, 2014, p. 3-4). Quando
Boa Ventura de São Roque se tornou distrito administrativo de Pitanga em 1957, as
dificuldades provocadas pela distância das benesses da vida moderna só não eram
maiores que a grande habilidade demonstrada por seus moradores de revertê-las a seu
favor.
Nessa época, a área era parte da região conhecida como “grilo do tigre”, em razão
da presença de grileiros responsáveis por matar ou expulsar seus primeiros povoadores.
Segundo José Erondy Iurkiv, tratava-se de uma localidade em que a presença do Estado
visava sanar os problemas da falta de documentação de terras e, nos casos mais difíceis,
decifrar os documentos falsificados. Em muitas circunstâncias, a inexistência de
registros fundiários decorria do estilo de vida de uma população inadaptada a
determinados mecanismos de controle da vida social
13
.
Conflitos de terra foram marcas dos primeiros anos de povoamento do local. E
mesmo com inúmeras dificuldades, a região só deixou de pertencer à estrutura
administrativa de Pitanga em 1995, pois, entre 1988 e 1996, a consolidação da abertura
democrática e o fim da ditadura militar abriram um espaço maior para a articulação de
diversos grupos políticos no Paraná. Logo, surgiram, então, 76 novos municípios em
várias regiões (SILVA; ZINKE, 2017, p. 154).
Dentro desta conjuntura, um projeto antigo foi levado adiante: emancipar o
distrito de Boa Ventura. O processo emancipatório foi viabilizado pelos dispositivos da
Constituição Federal de 1988 e da Constituição do Estado do Paraná de 1989. Esta última
estabelecia, em seu artigo 19, diversos critérios para o processo de emancipação, entre
os mais notórios, a necessidade de um plebiscito popular, quantidade mínima de
população e estudos de viabilidade municipal. Tais critérios foram “atendidos” com a
articulação de agentes externos, como o então deputado Renato Adur, autor do projeto
12
Com relação à criação e engorda extensiva de porcos, quem praticava essa atividade era conhecido
como “safrista”. A atividade do safrista consistia em plantar roça de milho, onde depois de madura, os
porcos eram largados para engordar, alguns safristas colhiam as espigas de milho maiores, outras não. A
“safra” ficava pronta a partir de agosto e os porcos eram tocados, a pé” (MIRANDA et al., 2001, p. 1-3).
13
Para José Erondy Iurkiv, a desatenção por parte da população em “relação à documentação, talvez, ligue-
se justamente ao fato da ausência, durante muito tempo, do Estado na vida das populações, assim como
uma visão diferente da propriedade e do uso da terra, muito ligada à sua sobrevivência, e ainda, pode-se
dizer, às táticas que os sujeitos criam diante à ação normatizadora” (1999, p. 42).