Santos do Ordinário
:
hagiografias e função da
santidade entre os “amigos de Deus” na Ris
ā
lat R
ūḥ
al-Quds de Ibn
ʿ
Arab
ī
de rcia (séc. XII-XIII)
Saints of the ordinary
:
hagiographies and sainthood’s function
in the “God’s friends” on
Ris
ā
lat R
ūḥ
al-Quds
of Ibn ʿArabī of
Murcia (séc. XII-XIII)
BARCELOS, Matheus Melo
*
RESUMO: Awliy
ā
All
ā
h, os amigos de Deus,
são os considerados santos islâmicos. Neste
texto, abordaremos algumas hagiografias
islâmicas (ṭābaqāt gerações) de mestres
sufis andaluzes relatados por Ibn ʿArabī de
rcia em uma de suas obras, a Risālat Rūḥ
al-Quds fī muḥāsabat al-nafs (Epístola do
Espírito da Santidade sobre o exame de
Consciência da Alma), texto em que são
apresentadas algumas hagi
ografias de
mestres sufis, considerados pelo autor como
santos. Para o autor murciano, os “amigos de
Deus” participavam da condição perfeita de
servos, elemento essencial para a
classificação como santo. Como homens de
Deus, eram simples, como homens sociais
eram ordinários, sendo membros do Povo da
Reprovação (malāmiyya
). Neste artigo
buscaremos apresentar como os santos
andaluzes de Ibn ʿArabī nos introduzem na
discussão da santidade islâmica e de sua
principal característica: os santos místicos
como homens e mulheres do ordinário.
PALAVRAS-CHAVE: hagiografia; santidade;
islamismo; mística.
ABSTRACT: Awliy
ā
All
ā
h, God's friends, are
considered the Islamic saints. In this text we
will address some Islamic hagiographies
(ṭābaqāt -
generations) of Andalusian Sufi
masters reported by Ibn ʿArabī of Murcia in
one of his works, Risālat Rūḥ al-Quds fī
muḥāsabat al-nafs (Epistle of the Spirit of
Sainthood on the examination of
Consciousness of the Soul), a text in which
some hagiographies of Sufi masters are
considered, considered by the author as
saints. For the Murcian author, the saints, or
"God’s friends," participated in the perfect
condit
ion of servants, an essential element
of classification as a saint. As men of God,
they were simple, as social men were
ordinary, being members of the People of
Blame (malāmiyya). In this article we will try
to present how the Andalusian saints of Ibn
ʿArabī
introduce us the discussion on
islamic sainthood and its central feature: the
mystical saints as ordinary men and women.
KEYWORDS:
hagiography; holiness; Islam;
mysticism.
Recebido em: 12/05/2019
Aprovado em: 09/09/2019
*
Graduado em História pela Faculdade de Filosofia Letras e Ciência Humanas da Universidade de São
Paulo (FFLCH-USP,) estado de São Paulo (SP), mestrando do Programa de Pós-Graduação da Universidade
Estadual Paulista (UNESP), campus de Assis (SP), Brasil. Bolsista CAPES. Texto associado à dissertação de
mestrado Caminhantes na Senda Reta: os santos mestres sufis da Andaluzia segundo os relatos de Ibn
ʿArabī de Múrcia (Séc. XII e XIII E.C.). E-mail: matheus.melo-barcelos@hotmail.com.
Faces da História
, Assis/SP, v.6, nº2, p.324-348, jul./dez., 2019
325
No islamismo, a tradição da veneração de relíquias e pessoas excepcionais está
presente desde a formação das bases religiosas desta fé.
1
As figuras humanas, os homens
de Deus, os rijāl,
2
participam desta formação religiosa como modelos, tipos. Muammad
tem sido o modelo maior, assim como os patriarcas e profetas corânicos.
3
No entanto,
outros seres humanos adentraram esta tradição como sujeitos exemplares: O Povo da
Casa (Ahl al-Bayt);
4
o Povo do Banco (Ahl al-Ṣūffa), amigos próximos de Muammad,
durante a sua estadia em Medina;
5
os Ajudantes (Ansār), medinenses pobres que
auxiliaram a comunidade muçulmana inicial (Umma) após a Hégira; os Quatro Califas
Bem-Guiados, com devoção especial entre o Povo da Sunna; os Sucessores;
6
os
fundadores de madrasas; os principais mártires, tanto nas fitnas,
7
quanto nos processos
judiciais;
8
os grandes místicos, cujas tumbas são focos de peregrinação, como as
existentes no Shiraz. Nestas figuras, a tradição islâmica assenta seus discursos sobre os
“Amigos de Deus” (awliyāʿ Allah), a quem denominaremos “santos”.
1
Importante repensar o islamismo e seus atributos dados pelo senso comum. Tradições puristas buscam
retirar esta veneração do islã por meio de interpretações literais do Corão. As obras sobre profetologia e
santidade escritas por Ibn ʿArabī, como o Fuṣū al-ikam, foram criticadas duramente por Ibn Taymiyya
(ca.1328) e pela salāfiyya (ADDAS, 1993, p. 278). O wahabismo saudita, vertente do islã mais presente nas
mídias, por motivos de política internacional e devido ao fato da família real saudita estar na administração
dos lugares santos de peregrinação, tem sido a principal condutora de destruição destes lugares de
veneração, como a tumba de Muhammad ou sua casa em Medina. Para termos um exemplo da grande
importância destes lugares e da veneração de relíquias e tumbas, podemos assistir, via redes sociais ou
redes virtuais de audiovisual, as peregrinações dos xiitas ao santuário do Imān usayn em Karbalah na
festa da Ashura, ou mesmo a peregrinação dos muçulmanos paquistaneses às tumbas de santos sufis do
Shiraz (BENAREK; TUPEK, 2009).
2
Rijāl, substantivo plural de rajūl, designa em árabe “homens”. Nos escritos esotéricos tem a acepção de
homens que buscaram a união com Deus. Veremos adiante que Ibn 'Arabī utiliza o termo como uma
tipologia dos buscadores (aqueles que adentram ao caminho esotérico, traduz o termo murīd), ao atribuir a
uma de suas mestras, Šams, o qualificativo de rajūl.
3
Como religião abraâmica, o islamismo e a revelação corânica aceitam os principais profetas e patriarcas
presentes no antigo testamento, desde Adão, assim como figuras ligadas ao cristianismo, sendo Jesus,
Maria, Zacarias e João Batista importantes profetas conforme a interpretação do Corão assim como
figuras cristãs (Sete Dormentes de Éfeso). Além disso, outros profetas específicos do Corão existem, como
Ṣāli. Ao todo, conhecidos e desconhecidos, o Corão aponta mais de 120 mil profetas.
4
O Povo da Casa compreende, para os xiitas, os descendentes de Muammad, via sua filha Fāima e seu
primo ʿAlī. São considerados como os verdadeiros guardiões da interpretação interior do Corão (bāṭin).
5
O Povo do Banco constitui o modelo principal de ascetas do início do islamismo, assim como modelo para
os místicos.
6
Geração posterior aos que conviveram com Muammad, figuras importantes na transmissão e
legitimação dos aḥādīṯ (sing. adīṯ), conjunto de narrações, questões morais, jurídicas e religiosas
atribuídas ao profeta muçulmano.
7
As fitnas foram os processos de luta, entre muçulmanos, sobre as questões da organização da Umma,
após a morte de Muhammad e a conquista de um vasto território. Desta guerra civil surgiram as principais
vertentes do islamismo: os hariditas, os xiitas e os sunitas.
8
Quanto a santos mortos em processos judiciais, exemplo maior é o caso de usayn Al-allāj, o mártir do
amor divino, condenado e morto sob a acusação de novidade. Sua figura foi amplamente estudada por
Louis Massignon (1922).