
Faces da História
, Assis/SP, v.6, nº2, p.324-348, jul./dez., 2019
No islamismo, a tradição da veneração de relíquias e pessoas excepcionais está
presente desde a formação das bases religiosas desta fé.
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As figuras humanas, os homens
de Deus, os rijāl,
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participam desta formação religiosa como modelos, tipos. Muḥammad
tem sido o modelo maior, assim como os patriarcas e profetas corânicos.
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No entanto,
outros seres humanos adentraram esta tradição como sujeitos exemplares: O Povo da
Casa (Ahl al-Bayt);
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o Povo do Banco (Ahl al-Ṣūffa), amigos próximos de Muḥammad,
durante a sua estadia em Medina;
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os Ajudantes (Ansār), medinenses pobres que
auxiliaram a comunidade muçulmana inicial (Umma) após a Hégira; os Quatro Califas
Bem-Guiados, com devoção especial entre o Povo da Sunna; os Sucessores;
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os
fundadores de madrasas; os principais mártires, tanto nas fitnas,
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quanto nos processos
judiciais;
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os grandes místicos, cujas tumbas são focos de peregrinação, como as
existentes no Shiraz. Nestas figuras, a tradição islâmica assenta seus discursos sobre os
“Amigos de Deus” (awliyāʿ Allah), a quem denominaremos “santos”.
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Importante repensar o islamismo e seus atributos dados pelo senso comum. Tradições puristas buscam
retirar esta veneração do islã por meio de interpretações literais do Corão. As obras sobre profetologia e
santidade escritas por Ibn ʿArabī, como o Fuṣūṣ al-Ḥikam, foram criticadas duramente por Ibn Taymiyya
(ca.1328) e pela salāfiyya (ADDAS, 1993, p. 278). O wahabismo saudita, vertente do islã mais presente nas
mídias, por motivos de política internacional e devido ao fato da família real saudita estar na administração
dos lugares santos de peregrinação, tem sido a principal condutora de destruição destes lugares de
veneração, como a tumba de Muhammad ou sua casa em Medina. Para termos um exemplo da grande
importância destes lugares e da veneração de relíquias e tumbas, podemos assistir, via redes sociais ou
redes virtuais de audiovisual, as peregrinações dos xiitas ao santuário do Imān Ḥusayn em Karbalah na
festa da Ashura, ou mesmo a peregrinação dos muçulmanos paquistaneses às tumbas de santos sufis do
Shiraz (BENAREK; TUPEK, 2009).
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Rijāl, substantivo plural de rajūl, designa em árabe “homens”. Nos escritos esotéricos tem a acepção de
homens que buscaram a união com Deus. Veremos adiante que Ibn 'Arabī utiliza o termo como uma
tipologia dos buscadores (aqueles que adentram ao caminho esotérico, traduz o termo murīd), ao atribuir a
uma de suas mestras, Šams, o qualificativo de rajūl.
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Como religião abraâmica, o islamismo e a revelação corânica aceitam os principais profetas e patriarcas
presentes no antigo testamento, desde Adão, assim como figuras ligadas ao cristianismo, sendo Jesus,
Maria, Zacarias e João Batista importantes profetas – conforme a interpretação do Corão – assim como
figuras cristãs (Sete Dormentes de Éfeso). Além disso, outros profetas específicos do Corão existem, como
Ṣāliḥ. Ao todo, conhecidos e desconhecidos, o Corão aponta mais de 120 mil profetas.
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O Povo da Casa compreende, para os xiitas, os descendentes de Muḥammad, via sua filha Fāṭima e seu
primo ʿAlī. São considerados como os verdadeiros guardiões da interpretação interior do Corão (bāṭin).
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O Povo do Banco constitui o modelo principal de ascetas do início do islamismo, assim como modelo para
os místicos.
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Geração posterior aos que conviveram com Muḥammad, figuras importantes na transmissão e
legitimação dos aḥādīṯ (sing. ḥadīṯ), conjunto de narrações, questões morais, jurídicas e religiosas
atribuídas ao profeta muçulmano.
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As fitnas foram os processos de luta, entre muçulmanos, sobre as questões da organização da Umma,
após a morte de Muhammad e a conquista de um vasto território. Desta guerra civil surgiram as principais
vertentes do islamismo: os hariditas, os xiitas e os sunitas.
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Quanto a santos mortos em processos judiciais, exemplo maior é o caso de Ḥusayn Al-Ḥallāj, o mártir do
amor divino, condenado e morto sob a acusação de novidade. Sua figura foi amplamente estudada por
Louis Massignon (1922).