Orientalizar-se
:
as representações dos “orientais”
em Personal Narrative of a Pilgrimage to
Al-Madinah & Meccah, de Richard
Francis Burton (1855-56)
Orientalizing oneself
:
the representation of the “orientals
in Personal Narrative of a Pilgrimage to
Al-Madinah & Meccah, by Richard
Francis Burton (1855-56)
CARVALHO, Paula Carolina de Andrade
*
RESUMO: Este artigo volta-se para a
representação mais generalista dos
personagens “orientais” dentro da obra
Personal Narrative of a Pilgrimage to Al-
Madinah & Meccah (1855-56), do explorador
britânico Richard Francis Burton (1821-1890)
que, ao empregar o disfarce do muçulmano
Shaykh Abdullah figura esta que aparece
em outros livros do autor , conseguiu
realizar a peregrinação à Meca, o hajj, ritual
sagrado do islã proibido a não muçulmanos.
O outro “oriental” que se apresenta no relato
de viagem toma a forma da categoria
bastante abrangente de “muçulmanos”,
heterogênea por si só, ainda mais no
contexto do hajj, em que diferentes grupos se
reúnem em Meca para realizar os rituais
sagrados islâmicos. Nessas descrições,
percebe-se que Burton acaba caindo em
generalizações do que são esses orientais.
PALAVRAS-CHAVE: Richard Francis Burton;
Islã; Peregrinação; Literatura de Viagem;
Imperialismo.
ABSTRACT: This article describes the
representation of the “Oriental” characters
in Personal Narrative of a Pilgrimage to Al-
Madinah & Meccah (1855-56), written by the
British explorer Richard Francis Burton
(1821-
1890) who, disguised as the muslim
Shaykh Abdullah
a character that appears
in other of his books made the pilgrimage
to Mecca, or hajj, the sacred Islamic ritual
forbidden for Chr
istians. These “Oriental
others are part of the wide and
heterogeneous category of “muslims”,
whose diversity is amplified in a ritual like
the hajj
, when diferent groups gather in
Mecca to fullfill their religious rites. In the
book, Burton ends up making
generalizations about “Orientals”.
KEYWORDS: Richard Francis Burton; Islam;
Pilgrimage; Travel Literature; Imperialism.
Recebido em: 01/07/2019
Aprovado em: 23/08/2019
*
Mestra em História pela Universidade Federal do Estado de São Paulo (UNIFESP) Guarulhos, estado de
São Paulo (SP). Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da UFF, Niterói, estado do Rio de
Janeiro (RJ), Brasil. E-mail: paula_carvalho33@yahoo.com.br. O presente artigo foi retirado da minha
dissertação: Going Native”? Islã e alteridade em Personal Narrative of a Pilgrimage to Al-Madinah and
Meccah (1855-6), de Richard Francis Burton. 2017. Dissertação (Mestrado em História) Escola de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, UNIFESP; realizada com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado de São Paulo (Fapesp).
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No relato de viagem Personal Narrative of a Pilgrimage to Al-Madinah & Meccah,
(1855-56), o explorador britânico Richard Francis Burton (1821-1890) narra como realizou
o hajj, um dos principais rituais da fé islâmica proibida a não muçulmanos, sob o disfarce
do muçulmano Shaykh Abdullah. Assim, procurou viver como um seguidor do islã por
seis meses, passando por cidades do Egito e da Península Arábica para chegar a Meca e
Medina. O livro em sua superfície se resume a um relato de viagem, mas trata-se, na
verdade, da história de um disfarce, pois Abdullah e a habilidade de Burton em se fazer
passar por um “oriental” são essenciais dentro da trama do livro, tanto no que concerne
ao suspense do disfarce ser descoberto, quanto para dar um verniz de legitimidade à
história. Mesmo assim, a relação de Burton com Abdullah é bem mais complexa e
extrapolou as páginas do livro, pois ele viveu, de alguma forma, como Abdullah.
Explorador, antropólogo, etnólogo, tradutor, diplomata e militar, Burton escreveu
livros sobre suas viagens pela Ásia, África, América do Norte e América do Sul, e
Abdullah apareceu em cinco de suas obras sob formas distintas: em Falconry in the
Valley of Indus [Falcoaria no Vale do Indo] (1852), surgiu como Mirza
1
Abdullah
perambulando pelos vilarejos da região do Sind, hoje situado no Paquistão; em Personal
Narrative of a Pilgrimage to Al-Madinah & Meccah
2
[Narrativa pessoal de uma
peregrinação para Medina e Meca], assumiu a forma de Shaykh
3
Abdullah; em First
Footsteps in East Africa or an Exploration of Harar [Primeiras pegadas no leste da
África ou uma exploração de Harar] (1856), já cumprido a peregrinação, tomou para si o
título de Haji Abdullah para chegar até a cidade sagrada de Harar (hoje na Etiópia), à
época proibida a não muçulmanos, além de poder ser considerado o autor do poema The
Kasidah of Haji Abdu El-Yezdi, escrito em 1853 logo após a peregrinação, mas só
publicado em 1880 com notas extensas. Haji Abdullah volta de forma intermitente em
The Lake Regions of Central Africa, A Picture of Exploration [As regiões dos lagos da
África central, uma imagem da exploração] (1860), em que Burton narra a busca pela
nascente do rio Nilo no meio do continente africano, na companhia de John Hanning
Speke, no que provavelmente é a viagem mais famosa do explorador. Nesses livros
1
Segundo o próprio Burton, mirza significa “senhor” em persa. Na definição do dicionário Collins, mirza é
um título respeitoso colocado antes do sobrenome de um oficial, estudioso ou alguém com uma posição
social de destaque, inclusive podendo significar “filho de senhor nobre”. A origem da palavra mirza,
provavelmente, vem do termo persa amirzade, que significa “filho do emir”, que vem do árabe amir, que
significa “comandante” e “príncipe”. A definição de Mirza encontra-se disponível no dicionário
anteriormente mencionado:
http://www.collinsdictionary.com/dictionary/english/mirza?showCookiePolicy=true. Acesso em: 04 jun.
2016.
2
De agora em diante, a obra será referida apenas por Pilgrimage.
3
O termo shaykh (xeque) designa juristas renomados e também oder das confrarias místicas sufis
(SOURDEL; SOURDEL apud SANTOS, 2013, p. 35). Optou-se por manter a grafia usada por Burton para
este termo.
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encontra-se uma espécie de genealogia de Abdullah: se em Falconry -se o seu
nascimento, e em First Footstesps o seu declínio, uma vez que o disfarce foi revelado,
Pilgrimage pode ser considerado o apogeu de Abdullah, que conseguiu realizar todos os
ritos do hajj, cumprindo com sucesso um dos Pilares da religião islâmica.
4
Pilgrimage foi originalmente publicado em três volumes entre 1855 e 1856.
5
O
primeiro volume discorre sobre a chegada de Burton a Alexandria, sua ida ao Cairo, o
aprimoramento da sua identidade de peregrino muçulmano, a travessia por Suez, o
embarque no navio de peregrinos com destino a Yambu, e sua chegada à Medina. O
segundo volume descreve sua estadia em Medina e arredores, suas visitas a lugares
considerados sagrados pela fé islâmica, como o túmulo do Profeta Muhammad, e o
caminho até Meca; essa parte também contém descrições dos habitantes de Medina e
dos beduínos do Hejaz (nome da região oeste do que hoje é a Arábia Saudita). O terceiro
e último volume descreve a cidade de Meca, os lugares a serem visitados, os rituais que o
muçulmano deve seguir para realizar o hajj, e o retorno ao Egito a partir de Jiddah.
É importante mencionar que não existe tradução no Brasil desse relato, assim
como da maior parte da sua obra, o que dificulta o acesso aos leitores e estudiosos
brasileiros. As únicas obras traduzidas no Brasil de Burton são: Cartas aos Campos de
Batalha do Paraguai (Editora Biblioteca do Exército, 1997); Kama Sutra da Versão
Clássica de Richard F. Burton, de Mallanaga Vatsyayana (Trad.: Waltensir Dutra. Zahar,
2012); Kasidah o Tilintar da Sineta do Camelo. (Editora Thot, s.d.); Viagens aos
Planatos do Brasil. 3 tomos (Do Rio de Janeiro a Morro Velho; Minas e os Mineiros; O Rio
São Francisco) (Trad. Américo Jacobina Lacombe. São Paulo: Editora Nacional, 1941). O
terceiro tomo também foi publicado como Viagem de canoa de Sabará ao oceano
Atlântico. 1ª edição, 1869. (Trad. Murilo Carvalho, Ronaldo Kotscho. Belo Horizonte/São
Paulo, Itatiaia/Edusp). Vikram e o Vampiro (Vikram and the Vampire or Tales of Hindu
Devilry), coletado e adaptado por Richard Francis Burton (Tradutor: Sérgio Augusto
Teixeira. Círculo do Livro, s.d.).
4
Os outros quatro Pilares do islã são a shahada (declamação e aceitação da máxima de que “Não há outro
Deus além de Deus e Muhammad é seu mensageiro”), o salat (as cinco preces diárias), o zakat (donativo
para ajudar os mais pobres) e o saum, o jejum ritual praticado por todos os muçulmanos no Ramadã, o
nono mês do calendário islâmico.
5
Não existe tradução no Brasil desse relato, mas acabei por descobrir uma edição em inglês de 1874
disponível online. Com quase novecentas páginas e redigido em língua inglesa com grafias, expressões e
construções frasais do século XIX, o livro contém descrições bem detalhadas da geografia e dos povos
locais, assim como dos rituais islâmicos da peregrinação. No entanto, essa edição não continha as
ilustrações feitas por Burton ao longo da viagem, e só havia dois dos seis apêndices que o explorador
redigiu para a obra original, com descrições das peregrinações de alguns de seus antecessores europeus e
anotações mais específicas sobre o próprio hajj. Também notei a ausência de algumas passagens em
relação à edição original. Por essas razões, adquiri no final de 2014 um fac-símile da “edição
comemorativa” original de 1893 editada por Isabel Burton, mulher do explorador, e que foi relançada em
1964 pela editora norte-americana Dover Publications; esta é provavelmente a edição mais completa da
obra em questão.
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Do mesmo modo, é importante mencionar que apenas uma biografia dentre mais
de quarenta sobre Burton encontra-se traduzida para o português: Sir Richard Francis
Burton: o agente secreto que fez a peregrinação a Meca, descobriu o Kama Sutra e
trouxe As mil e uma noites para o Ocidente, de Edward Rice. Também foi publicada no
Brasil a biografia romanceada O colecionador de mundos, de Ilija Trojanow. Ao procurar
trabalhos acadêmicos sobre o relato, notei que não havia nenhum estudo mais
aprofundado sobre essa obra tanto no Brasil quanto no exterior. O explorador tem uma
obra vasta e heterogênea, o que reflete na diversidade da produção acadêmica realizada
no Brasil que toma seus trabalhos como base e que, deve-se apontar, ainda não é
muito numerosa: existem estudos sobre suas traduções,
6
suas impressões sobre a
África,
7
a Guerra do Paraguai,
8
o período em que viveu no Brasil e a paisagem natural
brasileira em sua obra,
9
assim como estudos que tratam do Oriente em seus relatos.
10
Há
também uma são bem breve dedicada à representação das populações da Península
Arábica feita por Burton em Pilgrimage na dissertação de mestrado A experiência do
contato. As descrições populacionais de Richard Francis Burton, de Alexsander Lemos
de Almeida Gebara, defendida em 2001 na História Social, da Universidade de São Paulo.
Como se vê, não há nenhum trabalho tendo Pilgrimage como o principal objeto de
análise.
O fato de Edward Said, no seminal Orientalismo, ter dedicado algumas páginas a
Pilgrimage deu origem a alguns estudos sobre o próprio Burton e da totalidade da sua
obra sob a vertente orientalista. No livro, Said reconhece a ambiguidade de Burton: o que
interessa ao autor é como coexistiam no explorador a contradição de ser um rebelde
contra autoridade inglesa e de ser um “agente potencial” dessa mesma autoridade no
Oriente. Ao final, Said afirma que até mesmo a complexidade de Burton se rende ao
molde político-intelectual perpetrado pelo orientalismo, no que é seguido por outros
estudiosos do tema.
11
Ben Grant, em Postcolonialism, Psychoanalysis and Burton: Power Play of
Empire, faz uma crítica à interpretação orientalista do intelectual palestino-americano
sobre Burton. Para o autor, a tese de Said de que a disciplina do orientalismo é imprecisa
e generalista vai de encontro à obra de Burton, que é extremamente rigorosa. No
entanto, Grant desdobra o pensamento de Said: para ele, a fantasia orientalista é
6
Para maiores informações sobre essas traduções, consultar: Eduardo Luis Araújo de Oliveira Batista e
Else R. P. Vieira (2009, p. 13-25); Caléu Nilson Moraes (2014); Felipe Salvador Weissheimer (2014).
7
Para maiores informações sobre o tema, consultar Alexsander Lemos de Almeida Gebara (2006; 2010).
8
Para maiores informações sobre o tema, consultar Giane Aparecida Barroso (2005).
9
Para maiores informações sobre o tema, consultar Wilton Carlos Lima da Silva (2003).
10
Para maiores informações sobre o tema, consultar Lisa Marina Ofélia Torcato (1996).
11
Para maiores informações sobre o tema, consultar John Wallen (2013, p. 1-36); Philip Williams ([s.d.]).
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revelada por causa do conhecimento vasto e “preciso” que o explorador britânico exibe
sobre a cultura “oriental”. Burton é visto por Grant como alguém que é, ao mesmo
tempo, um “escriba imperial” e um “indivíduo formidável” e, para entender as
contribuições do explorador ao projeto imperialista e aos debates teóricos do século XIX,
volta-se para a construção da individualidade de Burton. Para tanto, o autor utiliza-se de
conceitos da psicanálise e dos estudos pós-coloniais, para concluir que o relativismo e a
“crítica ao etnocentrismo britânico” na obra de Burton fazem parte da ideologia
imperialista, e não de uma tentativa de sua superação.
O artigo de Parama Roy, “Oriental Exhibits: Englishmen and Natives in Burton's
Personal Narrative of a Pilgrimage to Al-Madinah & Meccah”, reúne a crítica ao
orientalismo de Said e o conceito de mímica de Homi Bhabha para analisar as
representações de populações “orientais” realizadas por Burton não só em Pilgrimage,
como também nas suas obras sobre o Sind. A autora conclui que Burton, ao invés de
desmistificar a imagem do “oriental” engendrada pela tradição orientalista, reafirma essa
representação, reproduzindo, consequentemente, o discurso imperialista. Já Daniel
Bivona, em Desire and Contradiction: Imperial Visions and Domestic Debates in
Victorian Literature, tem uma vio diferente. Ao analisar os efeitos dos disfarces de
Burton na Índia e na Península Arábica, ele afirma que esse jogo de trocas constantes de
identidades culturais é uma forma de criticar o etnocentrismo britânico. Dessa forma,
para o autor, Burton passa a entender a identidade como uma categoria relativa, e não
absoluta, desafiando as representações de não europeus como inferiores.
Este artigo, portanto, abordará a representação mais geral dos “orientais” que
Burton conheceu ao longo do trajeto. A representação é um conceito importante de ser
estudado pois, para parafrasear Anne McClintock (1995, p. 119), antes que uma categoria
seja “disciplinada” ou “racionalizada”, ela primeiro precisa ser “sistematicamente
representada”. Com relação a esse conceito, Edward Said (2011, p. 109-110) defendeu que
a produção, circulação, história e interpretação da representação sejam situadas dentro
de uma esfera cultural que esteja intrinsecamente associada ao seu contexto político,
que é basicamente imperial. Nessa visão, cultura e política não estão e nem devem ser
dissociadas. Assim, para além da dimensão interna da obra, essas representações estão
inseridas no âmbito mais geral da cultura do imperialismo. Logo, acabam portando
conotações políticas, seja para reafirmar a superioridade europeia com relação a povos
não europeus, seja para questio-la.
Afinal, quem são esses outros “orientais” do relato? Aparentemente de simples
resposta “são os muçulmanos , esta pergunta carrega o problema da
heterogeneidade presente nesta categoria, ainda mais no contexto do hajj, uma prática
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tão difundida no mundo islâmico que atrai os mais diferentes grupos. É grande o risco de
se cair em generalizações ou em nomenclaturas equivocadas que ocultam as
complexidades desses grupos o próprio Burton, contudo, não deixa de cair nesse tipo
de generalização criando uma tipologia do “oriental” ou do “asiático”.
No fundo, é um problema que envolve identidades, e o século XIX, como observou
Said (2011, p. 28
), consolidou uma noção “estática” de identidade, sendo este ocleo do
pensamento cultural na era do imperialismo”. Assim, “durante todo o contato entre os
europeus e seus ‘outros’, iniciado sistematicamente quinhentos anos atrás, a única ideia
que quase variou foi a de que existe um ‘s’ e um ‘eles’, cada qual bem definido, claro,
intocavelmente autoevidente”, tornando-se esta a “marca registrada das culturas
imperialistas e também daquelas que tentavam resistir à penetração europeia”.
No entanto, é preciso fazer uma ressalva no que tange a esse tipo de divisão
identitária, uma vez que não é, e nem deve ser vista, como uma exclusividade do
imperialismo europeu do século XIX. Como indicou Jack Goody (2013, p. 15), “todas as
sociedades humanas exibem um certo etnocentrismo que, em parte, é um requisito de
identidade pessoal e social de seus membros”; portanto, o etnocentrismo entre cujas
variações estão o eurocentrismo e o orientalismo é um fenômeno muito mais geral.
Os gregos antigos não possuíam nenhuma paixão pela “Ásia”, os romanos
discriminavam os judeus. As razões variam. Os judeus baseiam-se em
argumentos religiosos, os romanos priorizam a proximidade com sua capital e
civilização, a Europa atual justifica-se pelo sucesso no século XIX. Assim, um
risco etnocêntrico oculto é ser eurocêntrico sobre etnocentrismo [...] (Goody,
2013, p. 15).
Ainda para esse autor, o etnocentrismo europeu foi agravado posteriormente com
a dominação mundial da Europa em várias esferas, o que foi frequentemente visto como
primordial. O antropólogo resumiu o desenvolvimento dessa percepção da seguinte
forma:
No século XVI, a Europa alcançou uma posão dominante no mundo em parte
por conta do Renascença e dos avanços na navegação e nos armamentos que
lhe permitiram explorar e colonizar novos territórios e desenvolver sua
empresa mercantil, em parte pela adoção da imprensa, que ampliou o alcance do
conhecimento. Pelo final do século XVIII, com a Revolução Industrial, a Europa
alcançou o domínio econômico mundial. No contexto da dominação, o
etnocentrismo assume um aspecto mais agressivo. “Outra raça” passa a ser
automaticamente “raça inferior” e na Europa um ensino sofisticado (às vezes
racista no tom, embora a superioridade fosse considerada de caráter cultural e
não natural) criou justificativas para explicar por que as coisas eram assim
(Goody, 2013, p. 16).
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Esse tipo de atitude dicotômica com relação às identidades é percebido,
principalmente, em termos discursivos, pois a realidade é muito mais complexa. Como
Pandit Laisram (2006, p. 153, tradução nossa)
12
indicou, o explorador almejava ser aceito
pela sociedade “oriental”, tanto por razões práticas como emotivas, uma vez que todas
as interações que ele teve com os muçulmanos foram mediadas pela figura de Abdullah.
Assim, pensa-se em uma “retórica da alteridade” do relato, tendo como base o estudo de
François Hartog (2014) sobre o instrumental discursivo de Heródoto ao descrever os
povos não gregos em suas Histórias. Essa retórica da alteridade nada mais é do que
“uma operação de tradução: visa a transportar o outro ao mesmo (tradere) constituindo
portanto uma espécie de transportador da diferença(HARTOG, 2014, p. 268, grifos do
autor).
É bastante comum que, ao longo de Pilgrimage, Burton faça comentários
generalistas sobre o caráter e os costumes dos “orientais”, colocando os muçulmanos e
as sociedades islâmicas que travou contato nesta categoria. É a partir dela que o
explorador descreve os grupos que encontrou na viagem, procurando também encaixar
as características observadas nos personagens coletivos na sua descrição dos
personagens individuais, assim como adequar o disfarce de Abdullah ao que ele
considerava ser “oriental” a fim de não levantar suspeitas.
Logo no primeiro capítulo do relato, Burton contou quais medidas adotou para
aparecer “de repente como um oriental no palco da vida oriental”: em Southampton,
seguiu o conselho do seu amigo oficial Capitão “(agora Coronel)” Henry Grindlay, da
Cavalaria de Bengala, e passou a se vestir com uma roupa “oriental”; além disso, todos
os seus pertences foram modificados para que parecessem “excessivamente orientais”.
Já no dia seguinte, um “príncipe persa”, acompanhado pelo Capitão Grindlay, embarcou
no “magnífico” barco a vapor Bengal da Companhia de Navegação a Vapor Peninsular e
Oriental (BURTON, 2014, v. 1, p. 5, tradução nossa).
13
Ele passou, então, treze dias “bem aproveitados para treinar as maneiras
orientais”, que seriam baseadas na “diferença entre um cavalheiro e seu reverso, ou seja,
os dois realizam as mesmas tarefas da vida, mas cada um de formas bastante diferentes”,
podendo ser aplicada tanto em “orientais” quanto “ocidentais” (BURTON, 2014, v. 1, p. 6,
12
[No original] “Burton views them as ahistorical, stereotypical, physical entities, but, on the other hand, as
we shall see, he also views them as individuals existing under unique socio-economic conditions”
(LAISRAM, 2006, p. 153).
13
[No original] “On the evening of April 3, 1853, I left London for Southampton. By the advice of a brother
officer, Captain (now Colonel) Henry Grindlay, of the Bengal Cavalry,little thought at that time the
adviser or the advised how valuable was the suggestion!my Eastern dress was called into requisition
before leaving town, and all my “impedimenta” were taught to look exceedingly Oriental. Early the next day
a “Persian Prince,” accompanied by Captain Grindlay, embarked on board the Peninsular and Oriental
Company’s magnificent screw steamer ‘Bengal’ (BURTON, 2014, v. 1, p. 5).
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245
tradução nossa).
14
A ideia de o “oriental” ser o “reverso” do cavalheiro/europeu é
bastante esclarecedora pois é uma forma de ver o “ocidental” em espelho ao “oriental”,
sendo um dos tipos de recurso da retórica da alteridade de Burton. Com essa
observação, o explorador tem por intuito “traduzir o outro” nesse caso, o “oriental
muçulmano” em termos de um “saber compartilhado” com o seu leitor inglês, para
fazer com que esse público acredite no outro Abdullah que está sendo construído
nas páginas do relato (HARTOG, 2014, p. 41).
Para exemplificar essa definição, Burton descreveu o modo como um “indiano
muçulmano” bebia um copo de água:
Para nós [ocidentais], é uma operação bem simples, mas a sua [do muçulmano]
performance inclui ao menos cinco novidades. Em primeiro lugar, ele agarra o
copo como se fosse o pescoço de um inimigo; em segundo, ele profere: “Em
nome de Allah, o Misericordioso, o Misericordiador” antes de molhar seus
lábios; em terceiro, ele embebe os líquidos, engolindo-os, eo aos goles como
deveria, e termina com um grunhido satisfeito; em quarto, antes de afastar o
copo do rosto, ele sussurra: “Abençoado seja Allah” algo cujo significado
completo só se compreende no deserto; e, em quinto, ele retruca: “Que Allah
torne aprazível paras”, ao que seu amigo lhe deseja educadamente: “Prazer e
saúde!” Ele também é cuidadoso em evitar o ato irreligioso de beber o elemento
puro estando em pé, tendo em mente as três exceções reconhecidas: o fluido do
poço sagrado de Zam-Zam, a água distribuída em atos de caridade, e a que
permanece depois do wuzu, a ablução menor. Além do mais, na Europa, onde as
duas mãos são usadas indiscriminadamente, esquece-se do uso exclusivo da
mão direita, a manipulação do rosário, o abuso da cadeira pois o oriental
genuíno coloca as suas pernas para cima, parecendo estar tão confortável nesta
posição quanto um marinheiro no lombo de um cavalo trotando com os dedos
s colocados retos na frente, o olhar sério e o hábito de proferimentos
devotos” (BURTON, 2014, v. 1, p. 16, tradução nossa).
15
Ainda que não a tenha referenciado diretamente, é provável que Burton tenha
retirado essa descrição das sunnas do Profeta Muhammad, o conjunto de regras de bom
comportamento que se espelha nas ações do próprio fundador da religião islâmica e que
os muçulmanos procuram seguir. De acordo com as sunnas, ao beber é preciso que o
14
[No original] “the difference between a gentleman and his reverse, -- namely, that both perform the same
offices of life, but each in a several and widely different way is notable as applicable to the manners of
the Eastern as of the Western man]” (BURTON, 2014, v. 1, p. 6).
15
[No original] “Look, for instance, at that Indian Moslem drinking a glass of water. With us the operation is
simple enough, but his performance includes no fewer than five novelties. In the first place he clutches his
tumbler as though it were the throat of a foe; secondly, he ejaculates, “In the name of Allah the
Compassionate, the Merciful!” before wetting his lips; thirdly, he imbibes the contents, swallowing them,
not sipping them as he ought to do, and ending with a satisfied grunt; fourthly, before setting down the
cup, he sighs forth, “Praise be to Allah”of which you will understand the full meaning in the Desert; and,
fifthly, he replies, “May Allah make it pleasant to thee!” in answer to his friend’s polite “Pleasurably and
health!” Also he is careful to avoid the irreligious action of drinking the pure element in a standing position,
mindful, however, of the three recognised exceptions, the fluid of the Holy Well Zemzem, water distributed
in charity, and that which remains after Wuzu, the lesser ablution. Moreover, in Europe, where both
extremities are used indiscriminately, one forgets the exclusive use of the right hand, the manipulation of
the rosary, the abuse of the chair,your genuine Oriental gathers up his legs, looking almost as
comfortable in it as a sailor upon the back of a high-trotting horsethe rolling gait with the toes straight to
the front, the grave look and the habit of pious ejaculations” (BURTON, 2014, v. 1, p. 16).
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muçulmano, primeiro, inicie o ato em nome de Allah; beba com a mão direita “de acordo
com a tradição”; respire fora da vasilha entre os goles, pois segundo a tradição “o
Profeta (Allah o abençoe e lhe dê paz) costumava respirar três vezes entre os goles ao
tomar água (Narrada por Muslim)”; beba sentado; e agradeça a Allah por tomar água,
pois “Allah fica satisfeito com o servo que, após comer, O agradecer, e após beber,
louva-O (Narrado por Muslim)”
(MIL SUNNAS NOITE E DIA, s.d., p. 33).
Burton partiu do indiano muçulmano, seu referencial mais próximo de “oriental”,
tanto para construir o disfarce de Abdullah, quanto para balizar as características dos
“orientais”, uma vez que ele viveu por vários anos na Índia, onde travou contatos mais
profundos com muçulmanos e com a religião islâmica. É possível que seu conhecimento
sobre o comportamento dos muçulmanos não estivesse apenas baseado em autores
europeus orientalistas (como Edward Lane), mas também na própria literatura religiosa
islâmica (não referenciada diretamente) e em livros escritos por autores muçulmanos
(como Ibn Battuta e Ibn Jubayr), assim como na sua experiência pessoal.
Mesmo assim, Burton nunca deixou de seguir a cartilha do discurso do
orientalismo que oferecia “orientais que podiam ser descritos” (SAID, 2013, p. 143). Como
Laisram (2006, p. 148, tradução nossa)
16
apontou, Burton via o “oriental” como um “tipo
distinto de personalidade, funcionando de uma maneira consistente, sem levar em conta
tempo, espaço ou circunstância”, e como o “oriental” não possuía nenhuma vida interior,
a narrativa está repleta de “generalizações que assumem que o Oriente é um tipo isolado
e estático”.
É comum encontrar em Pilgrimage expressões como “mente oriental“‘A mente
oriental’, diz um esperto escritor sobre os súditos indianos, ‘alcançou tudo menos uma
verdadeira grandeza de objetivo e execução’” (BURTON, 2014, v. 1, p. 93, tradução
nossa);
17
“Ambos são o que as fés orientais e o treinamento oriental sempre foram
ambos estão eminentemente adaptados para a mente oriental” (BURTON, 2014, v. 1, p.
110, tradução nossa);
18
“Mas para convencer a mente oriental é preciso encantá-la
(BURTON, 2014, v. 1, p. 87, tradução nossa).
19
Há também exemplos de outros termos
semelhantes, como “barbarismo oriental” “Malta, também, usa um velho rosto familiar,
que faz com que se peça um jantar e supervisione o esfriamento do vinho (começo do
16
[No original] “At one level, Burton regards the Oriental as a distinct type of personality, functioning in
one consistent manner, regardless of time, place, or circumstance (...) Since the Oriental, from Burton’s
point of view, has no inner individual life, the narrative is rife with generalizations that assume the Orient
to be one static, isolated type” (LAISRAM, 2006, p. 148).
17
[No original] “‘The Oriental mind’, says a clever writer on Indian subjects, ‘has achieved everything save
real greatness of aim and execution’” (BURTON, 2014, v. 1, p. 93).
18
[No original] “Both are what Eastern faiths and Eastern training have ever been , both are eminently
adapted for the Oriental mind” (BURTON, 2014, v. 1, p. 110).
19
[No original] “But to convince the oriental mind you must dazzle it” (BURTON, 2014, v. 1, p. 87).
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barbarismo oriental)
(BURTON, 2014, v. 1, p. 7, tradução nossa)
20
; “metafísica oriental”
“Foi uma lição em metafísica oriental ver as suas condições” (BURTON, 2014, v. 1, p.
165, tradução nossa)
21
; e até “disciplina oriental“A essência da disciplina oriental é o
respeito pessoal baseado no medo” (BURTON, 2014, v. 1, p. 212, tradução nossa)
22
; e
“mentir para o oriental é como comida e bebida, e o teto que o acolhe” (BURTON, 2014,
v. 2, p. 211, tradução nossa).
23
Esse tipo de afirmação, para Laisram (2006, p. 147), mostra
que as concepções de Burton sobre o “Oriente” eram baseadas em uma certa fixidez.
Nesse sentido, é possível usar o conceito de “estereótipo” de Homi Bhabha (2007,
p. 105) para pensar no “oriental” representado pelo explorador, cuja obra encontrava-se
inserida em meio à expansão imperialista britânica pelo mundo e, consequentemente, do
discurso colonial, que só ganharia força e legitimidade diante
da sua dependência do conceito de “fixidez” na construção ideológica da
alteridade. A fixidez, como signo da diferença cultural/histórica/racial no
discurso do colonialismo, é um modo de representação paradoxal: conota
rigidez e ordem imutável como também desordem, degeneração e repetão
demoníaca. Do mesmo modo, o estereótipo, que é sua principal estratégia
discursiva, é uma forma de conhecimento e identificação que vacila entre o que
está sempre “no lugar”, já conhecido, e algo que deve ser ansiosamente repetido
[...] como se a duplicidade essencial do asiático ou a bestial liberdade sexual do
africano, que não precisam de prova, não pudessem na verdade ser provados
jamais no discurso.
Assim, a “mente oriental” precisa ser estática e a-histórica, o próprio “Oriente” e
o “oriental” são entidades fixas às quais são negadas a “própria possibilidade de
desenvolvimento, transformação, movimento humano” (SAID, 2013, p. 282). Nesse
sentido, contudo, as representações de determinadas categorias de “orientais” em
Pilgrimage continuam permeadas pela ambiguidade. Pois Burton reconheceu em alguns
grupos a busca por mudanças, ainda que ele não venha a concordar com a maioria
dessas tentativas e venha a justificar o “fracasso” delas pela “aplicação da ciência
popular ocidental para reivindicar as suas noções de superioridade cultural” (LAISRAM,
2006, p. 149, tradução nossa).
24
Tanto que para demonstrar sua autoridade científica, fazia parte do disfarce de
Burton, no Cairo, apresentar-se como um “médico indiano”. Grande entusiasta de teorias
20
[No original] “Malta, too, wears an old familiar face, which bids you order a dinner and superintend the
iceing of claret (beginning of Oriental barbarism)” (BURTON, 2014, v. 1, p. 7).
21
[No original] “It was a lesson in Oriental metaphysics to see their condition” (BURTON, 2014, v. 1, p. 165).
22
[No original] “The essence of Oriental discipline is personal respect based upon fear” (BURTON, 2014, v.
1, p. 212).
23
[No original] “Lying to the Oriental is meat and drink, and the roof that shelters him” (BURTON, 2014, v.
2, 211).
24
[No original] “the application of a Western popular Science to vindicate his notions of cultural
superiotiy (LAISRAM, 2006, p. 149).
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científicas e pseudocientíficas difundidas na época, Burton utilizava-as para tratar as
doenças dos “orientais” que lhe procuravam e descrever as populações que encontrava
na viagem uma função dupla, tanto para a medicina quanto para a etnografia. Segundo
ele, a frenologia e a fisiognomia teorias que se baseavam na análise das características
físicas visíveis para indicar as propensões de caráter dos indivíduos desapontavam
“frequentemente em meio às populações civilizadas”, sendo que o cérebro desses grupos
acabavam por se sobressair às características físicas devido “à educação, ao acaso, ao
exemplo, ao hábito e à necessidade”. Mas elas eram “guias toleravelmente seguros” no
tocante à “mente do homem em seu chamado estado natural, um ser de impulso, naquela
condição de crisálida do desenvolvimento mental, que é mais instinto que razão
(BURTON, 2014, v. 1, p. 17, tradução nossa).
25
Burton também se valeu de metáforas de animais para descrever os “orientais”, e
essa “justaposição”, segundo Laisram (2006, p. 150, tradução nossa),
26
“representa a
crença do seu estado primitivo de desenvolvimento”. Essa comparação aparece com
mais frequência quando se refere aos beduínos e aos magrebinos que o acompanhavam
no navio que saiu de Suez para Yambu:
Nossos magrebinos são animais bem bonitos, dos desertos de Trípoli e Túnis,
tão selvagens que, há algumas semanas, ao verem um barquinho, perguntaram-
se quanto tempo demoraria para que este chegasse ao tamanho do navio que os
havia levado até Alexandria. A maioria deles era de jovens robustos, de cabeças
redondas, de ombros largos, altos e de membros longos, com olhos sérios, e
vozes urrando perpetuamente. As suas maneiras são rudes, e seus rostos são
cheios de um feroz desprezo ou familiaridade insolente. Havia alguns homens
mais velhos com expressões de ferocidade intensa; mulheres tão selvagens e
combativas quanto os homens, e belos rapazes com vozes agudas e mãos
colocadas sobre suas adagas (BURTON, 2014, v. 1, p. 190, tradução nossa).
27
Segundo Shohat e Stam (2006, p. 200), a “animalização” é um tropo “essencial” da
retórica da alteridade colonial, que “teve a função de suprir todas as características
semelhantes ou relativas ao animal que porventura constituíssem o eu”. Portanto, o
25
[No original] “Phrenology and physiognomy, be it observed, disappoint you often amongst civilised
people, the proper action of whose brains upon the features is impeded by the external pressure of
education, accident, example, habit, and necessity. But they are tolerably safe guides when groping your
way through the mind of man in his so-called natural state, a being of impulse in that chrysalis state of
mental development which is rather instinct than reason” (BURTON, 2014, v. 1, p. 17).
26
[No original] “Burton’s use of animal metaphors for Orientals, and his juxtaposition of descriptions of
animals with those of Oriental also represents his belief in their primitive state of development” (LAISRAM,
2006, p. 150).
27
[No original] “Our Maghrabis were fine-looking animals from the deserts about Tripoli and Tunis; so
savage that, but as few weeks ago, they had gazed at the cock-boat, and wondered how long it would be
growing to the size of the ship that was to them to Alexandria. Most of them were sturdy young fellows,
round-headed, broad-shouldered, tall and large-limbed, with frowning eyes, and voices in perpetual roar.
Their manners were rude, and their faces full of fierce contempt or insolent familiarity. A few old men
were there, with countenances expressive of intensive ferocity; women as savage and full of fight as men;
and handsome boys with shrill voices, and hands upon their daggers” (BURTON, 2014, v. 1, p. 190).
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processo de “animalização faz parte do mecanismo mais amplo e difuso da naturalização,
ou seja, a redução do elemento cultural e biológico associando assim o colonizado a
fatores vegetativos e instintivos em vez de associá-lo a aspectos culturais e intelectuais”.
Nesse tipo de representação, os povos colonizados são vistos como corpos em vez de
mentes.
A decorrência lógica da visão do mundo colonizado como esfera da matéria-
prima, em oposição ao universo manufaturado e da atividade mental, é
considerar o sujeito colonizado sob a perspectiva da atividade física, em
contraposição a uma possível atividade mental. [...] Tanto a Ásia quanto a África
são vistas como essencialmente deficientes, ao passo que a Europa sempre
permanece no ápice dessa hierarquia de valores (SHOHAT; STAM, 2006, p.
202).
Além de “selvagem”, Burton costumava chamar os orientais de “semibárbaros”,
mas não deixava de admirar algumas das suas qualidades. Os albaneses, “em sua maioria
meio asiáticos em suas maneiras” (BURTON, 2014, v. 1, p. 136, tradução nossa),
28
foram
elogiados na sua habilidade superior em combates em relação aos ingleses:
O finado Capitão Noland [1818-1854, militar britânico que lutou na Guerra da
Crimeia] determinou que a “proeza individual, a habilidade em equitação e
combates corpo a corpo, e espadas afiadas tornam uma cavalaria formidável”,
esses semibárbaros são mais sábios que os civilizados, que nunca praticam com
armas (de forma adequada), e cujo treino nunca fez surgir um bom cavaleiro,
cujos cavalos estão acima do peso e cujas espadas são precárias. Eles têm outra
característica superior as desenvolvem a individualidade do soldado,
enquanto nós procuramos torná-lo um mero autômato (BURTON, 2014, v. 1, p.
268, tradução nossa).
29
Os albaneses, na sua visão, estavam muito bem adaptados a meios inóspitos e, por
isso, mostravam-se mais fortes e mais bem preparados para se movimentar nesse tipo de
terreno que os soldados ingleses, “meros autômatos”, refletindo a mentalidade produtiva
da Revolução Industrial que consolidou a máquina como o ideal a ser atingido, deixando
de lado a individualidade do ser humano. Ainda que os admirasse, Burton fez esta
observação para chamar a atenção para uma fraqueza dos soldados ingleses, a fim de
que essas falhas fossem resolvidas.
De vez em quando, o explorador fazia comparações entre os “orientais” e os
“irlandeses”, tanto em relação ao caráter quanto aos hábitos, e até em aspectos físicos
28
[No original] “These Albanians are at most half Asiatic as regards manner” (BURTON, 2014, v. 1, p. 136).
29
[No original] “The late Captain Nolan determine that “individual prowess, skill in single combats, good
horsemanship, and sharp swords render cavalry formidable,” these semibarbarians are wiser in their
generation than the civilised, who never practise arms (properly so called), whose riding drill never made a
good rider, whose horses are over-weighted, and whose swords are worthless. They have yet another
point of superiority over us; they cultivate the individuality of the soldier, whilst we strive to make him a
mere automaton” (BURTON, 2014, v. 1, p. 268).
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provavelmente para oferecer referências mais familiares ao leitor inglês, valendo-se
novamente da “operação de tradução” da “retórica da alteridade”: “o berbere, devo
lembrar, é como se fosse o ‘Paddy’ [termo pejorativo usado para se referir ao irlandês]
nesta parte do mundo, celebrado por seus touros e suas tolices” (BURTON, 2014, v. 1, p.
63, tradução nossa);
30
“os cidadãos [de Medina] deleitam-se em conversar sobre tâmaras
como o irlandês sobre batatas” (BURTON, 2014, v. 1, p. 402, tradução nossa);
31
Como no
celta, o polegar do árabe é bastante grande” (BURTON, 2014, v. 2, p. 83, tradução
nossa).
32
As comparações com os irlandeses prosseguem: “mas o árabe, com
simplicidade e páthos, possui um fogo, uma força da linguagem, e uma profundidade de
sentimento, que o irlandês, por mais admirável que seu verso seja, nunca poderia
rivalizar” (BURTON, 2014, v. 2, p. 93, tradução nossa);
33
“eles [beduínos], como os
camponeses irlandeses, odeiam e temem [os militares]” (BURTON, 2014, v. 1, p. 261,
tradução nossa);
34
“o oriental paga a conta do médico como o irlandês paga o seu
aluguel, queixando-se” (BURTON, 2014, v. 1, p. 54, tradução nossa).
35
Os camponeses
europeus também foram usados como referência de comparação, pois eles, como os
“orientais”, queriam que o médico “‘fizesse valer o dinheiro deles’”, por isso Burton tinha
que prescrever algo “sólido e material” junto com alguma ação que causasse dor
(BURTON, 2014, v. 1, p. 268, tradução nossa).
36
Não é de surpreender a comparação entre os “orientais” e irlandeses e
camponeses, que eram comumente vistos como os outros internos dos ingleses e de uma
Europa urbana. Burton escreveu Pilgrimage em um momento em que a Inglaterra
passava por transformações sociais profundas, sentindo os efeitos da Revolução
Industrial, que acabou por levar à organização da classe trabalhadora e à sua luta pela
ampliação dos direitos de igualdade social. Então, é preciso ter no horizonte que a
concepção conservadora e aristocrática de estrutura social via essas classes como uma
“ameaça” que deviam ser melhor controladas (GEBARA, 2010, p. 44).
Nesse contexto, o domínio colonial torna-se de importância estratégica não só
política mas até de caráter psicológico: pois se há uma ascensão social modificando a
30
[No original] “The Berberi, I must remark, is the ‘Paddy’ of this part of the world, celebrated for bulls and
blunders” (BURTON, 2014, v. 1, p. 63).
31
[No original] “The citizens delight in speaking of dates as an Irishman does of potatoes” (BURTON, 2014,
v. 1, p. 402).
32
[No original] “As in the Celt, the Arab thumb is remarkably long” (BURTON, 2014, v. 2, p. 83).
33
[No original] “But the Arab, with equal simplicity and pathos, has a fire, a force of language, and a depth
of feeling, which the Irishman, admirable as his verse is, could never rival” (BURTON, 2014, v. 2, p. 93).
34
[No original] “whom they, like Irish peasants, hate and fear” (BURTON, 2014, v. 1, p. 261).
35
[No original] “The Eastern pays a doctor’s bill as an Orishman does his ‘rint’, making a grievance of it
(BURTON, 2014, v. 1, p. 54).
36
[No original] “Whatever you prescribe must be solid and material, and if you accompany it with
something painful, such as rubbing to scarification with a horse-brush, so much the better. Easterns, like
our peasants in Europe, wish the doctor to ‘give them value of their money’” (BURTON, 2014, v. 1, p. 54)
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hierarquia de classes da metrópole, o domínio sobre povos e territórios distantes pode
acabar funcionando como um “substituto”, uma “continuação natural” ou até um
“escape” para o tipo de dominação que parece estar em risco na metrópole.
Desse modo, a função do discurso colonial é a “criação de um espaço para ‘povos
sujeitos’ através da produção de conhecimentos em termos dos quais se exerce
vigilância e se estimula uma forma complexa de prazer/desprazer” (BHABHA, 2007, p.
111). Ele se legitima pela produção de conhecimentos estereotipados do colonizador e do
colonizado que são avaliados dicotomicamente. O objetivo do discurso colonial é,
portanto, apresentar o colonizado como “uma população de tipos degenerados com base
na origem racial de modo a justificar a conquista e estabelecer sistemas de administração
e instrução”. Além disso, o discurso colonial produz o colonizado como uma “realidade
social que é ao mesmo tempo umoutro’ e ainda assim inteiramente apreensível e visível
(BHABHA, 2007, p. 111). E de alguma forma, é o que Burton acabou por fazer em grande
parte de Pilgrimage,
37
ainda que tenha tido contato mais próximo com vários “orientais”
graças à presença de Abdullah, este também um “oriental”.
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(Doutorado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.
37
É importante deixar claro que, apesar dessas generalizações, a relação de Burton com personagens
individuais de Pilgrimage acaba tornando mais complexas e ambíguas essas representações,
principalmente por causa do seu disfarce de Shaykh Abdullah. No entanto, esse não é o tema deste artigo.
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