Memórias do Café Árabe
:
costumes, ritos e
modos de preparo em narrativas de sírios
e libaneses em São Paulo (1970 2019)
Memories of the Arabic Coffee
:
costums, rites
and brewing ways on the narratives of syrian
and lebanese in São Paulo (1970 2019)
CARMO, Bruno Bortoloto do
*
RESUMO: Parte do projeto de História Oral
“Memórias do Café Árabe” (2017 2019),
pesquisadores do Museu do Café realizaram
registros de narrativas de imigrantes árabes
residentes nas cidades de Santos e São Paulo,
SP, tendo como objetivo buscar tradições do
café trazidas consigo em seus
deslocamentos. Propôs-
se cruzar essas
experiências com a declaração do café árabe
por meio do dossiê da Unesco “Café Árabe:
um símbolo de generosidade”. O presente
artigo pretende apresentar uma revisão
bibliográfica do café árabe e sua presença (e
ausência) no Estado de São Paulo, além de
apresentar uma breve biografia de cada
entrevistado e um cruzamento de
informações entre as narrativas registradas.
Serão levantadas questões de acolhimento,
redes de solidariedade em seus processos de
deslocamento, assim como questões relativas
ao café árabe que foram registradas nesses
depoimentos, como modos de preparo,
confues linguísticas, rituais, tradições.
PALAVRAS-CHAVE: café; imigração árabe;
tradições; costumes.
ABSTRACT: As a part of the Oral History
project “Arabic Coffee Memories” (2017-
2019), Coffee Museum’s researchers
documented narratives of Arab immigrants
in Santos and São Paulo, SP, trying to
identify the coffee traditions that these
immigrants brought with them d
ue their
displacements. It was proposed to link these
experiences along the declaration of the
Arabic coffee through the Unesco’s report
“Arabic coffee: a symbol of generosity”. The
present article intends to make public a
bibliographic review of the Arabi
c Coffee
and its presence (and absence) in the State
of São Paulo, besides presenting a brief
biography of each person interviewed and a
cross-
checking information between the
registered narratives registered. There will
be raised some questions about the
reception, solidarity networks in their
process of displacements, as well as
questions about the Arabic coffee that were
registered in their testimonies, like the
brewing methods, linguistic confusions,
rituals, traditions.
KEYWORDS: coffee; arab imigration;
traditions; customs.
Recebido em: 22/07/2019
Aprovado em: 24/10/2019
*
Mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), estado de São Paulo
(SP), Brasil. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da PUC-SP. Pesquisador do Museu do
Café, cidade de Santos, estado de São Paulo (SP), Brasil. E-mail: bruno.bort@gmail.com.
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, Assis/SP, v.6, nº2, p.157-180, jul./dez., 2019
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Introdução
Recentemente, no ano de 2015, a Unesco considerou o café árabe como
patrimônio imaterial. A declaração foi resultado da análise de um documento intitulado
Café Árabe: um símbolo de generosidade” (Arabic coffee: a symbol of generosity),
dossiê elaborado pelos Emirados Árabes, Qatar, Arábia Saudita e Omã. Tais dossiês
acompanhavam um inventário da cultura material utilizada para o preparo do café (desde
sua torra, moagem até a infusão), assim como uma série de práticas culturais tradições
e ritos que envolviam a cultura do café nesses países.
Qahwah ou al-qahwah é um termo utilizado ao menos desde o século XIV na
Península Arábica para designar a bebida que, por meio do termo turco Kahveh, viríamos
a conhecer pela palavra café. Esse caminho etimológico emula o próprio caminho físico
que o café percorreu até chegar às Américas, que começou pelo domínio árabe da bebida
(principalmente nas regiões do atual Iêmen, Egito e Síria), sendo absorvida pelo Império
Otomano (Constantinopla) e propagada para a Europa e, então, para os seus domínios
ultramarinos.
Apesar dessa relação da Península Arábica com o café, as informações sobre suas
relações com a bebida são escassas. Realizou-se pesquisa detalhada com o objetivo de
encontrar referências bibliográficas que, de alguma forma, pudessem lançar luz ao tema
da propagação do café pelo mundo, bem como pela transmissão de suas formas de
preparo, para que se compreendesse a trajetória do café árabe até sua chegada ao Brasil.
Foram buscados livros e artigos científicos em bibliotecas especializadas, em bancos de
teses e revistas acadêmicas que versassem sobre o tema da história do café e das
imigrações; averiguou-se primeiramente títulos em língua portuguesa, quando
constatada a ausência de publicações em língua inglesa, espanhola e francesa.
Os poucos livros encontrados que versam sobre o café árabe tratam o tema com
contornos da curiosidade, sendo a maioria deles calcada no estereótipo exótico do
orientalismo, enquanto uma construção do ocidente, como nos ensina Said:
[...] o Oriente não é um fato inerte da natureza. Não está meramente , assim
como o próprio Ocidente não está apenas . [...] os lugares, regiões e setores
geográficos tais como o “Oriente” e o Ocidente” são feitos pelo homem.
Portanto, assim como o próprio Ocidente, o Oriente é uma idéia que tem uma
história e uma tradição de pensamento, imagística e vocabulário que lhe deram
realidade e presença no e para o Ocidente. As duas entidades geográficas, desse
modo, apoiam, e em certa medida, refletem uma à outra. (SAID, 1996, p. 16-17,
grifo do autor).
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É possível, inclusive, que parte dessa literatura esteja restrita à língua árabe.
Mesmo que compreendêssemos os caminhos e contornos dessa cultura, a possiblidade
de registros de narrativas de imigrantes abre caminho para o esforço da compreensão da
cultura árabe presente em seus movimentos de deslocamentos para o Brasil.
Além disso, o café árabe é, ao mesmo tempo, presente e ausente no Brasil. Es
presente nas comunidades árabes imigrantes, porém pouco chama atenção do brasileiro,
o que pode explicar a escassez de bibliografia sobre o assunto. Isso suscitou, também,
dúvidas sobre a penetração e permancia dessa cultura, principalmente no estado de
São Paulo. Tendo por base a metodologia da História Oral, visou-se mapear possíveis
depoentes para o registro de narrativas a respeito de memórias do café árabe de pessoas
provenientes de países árabes declarados como inventariantes na Unesco (2015a Omã;
2015b Qatar; 2015c Arábia Saudita; 2015d Emirados Árabes Unidos)
1
e
comunidades levantinas (como Líbano, Síria, Palestina, Jordânia, etc.) estabelecidas no
Estado de São Paulo Brasil.
Duas perguntas principais motivaram a formação dos roteiros: quais tradições
relacionadas ao café esses imigrantes traziam consigo em seus movimentos de
deslocamento? Essas pessoas reconheciam as tradições elencadas nos documentos
apresentados à Unesco em suas práticas cotidianas após imigrarem para o Brasil?
Por meio desses testemunhos serão levantadas questões de acolhimento, redes de
solidariedade em seus processos de deslocamento, assim como questões relativas ao
café árabe que foram registradas nesses depoimentos, como modos de preparo,
confusões linguísticas, rituais, tradições, etc. Espera-se com este artigo contribuir para o
preenchimento de uma lacuna na historiografia do café, das imigrações e seus costumes.
Revisão bibliográfica: o café “brasileiro” e o café “árabe”
O que se sabe sobre a história do café anterior à propagação para o ocidente são
descrições feitas por viajantes europeus, tais como Leonhard Rauwolf (1535 1596),
Philippe Sylvestre Dufour (1622 1687) e Antoine Galland (1646 1715). Existem também
obras enciclopédicas datadas do início do século XX, como All About Coffee de William
Uckers (1922) e História do Café no Brasil de Affonso de Taunay (1934). Estes dois
autores utilizam-se desses (e outros) relatos para constituir uma narrativa de como o
café teria se propagado para o ocidente, em geral encarando este processo com caráter
de curiosidade e/ou exotismo.
1
Este recorte de entrevistados mostrou-se inviável com o decorrer do projeto, optando-se apenas por
entrevistados apenas da região levantina. Esta questão será trabalhada mais adiante.
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Nessa revisão bibliográfica, um importante trabalho localizado foi o de Ralph S.
Hattox (1996) intitulado Coffee and Coffeehouses: the origins of a Social Beverage in the
Medieval Near East que, além de confirmar passagens presentes nos trabalhos
historiográficos de Taunay e Uckers no que diz respeito a propagação do café, traz uma
densa pesquisa baseada em documentos. Sua investigação tenta entender como uma
bebida popular entre monges sufistas
2
nos séculos XIV e XV difundiu-se no mundo
árabe.
A ligação entre o café e várias ordens sufistas é uma unanimidade em nossas
fontes, e essa conexão foi importante não somente para o uso inicial do café no
Iêmen, mas também para sua expansão por toda península, assim como para o
Egito e Síria. [...] Membros das ordens sufistas não eram estritamente reclusos
[...]. Esse envolvimento dos membros das ordens em assuntos cotidianos foi, em
todas as probabilidades, um dos mais importantes fatores de dispersão do café.
Se o sufismo fosse um movimento de completo isolamento, um movimento de
altos muros e clausuras como são constantemente caracterizados os
monastérios cristãos, o uso do café talvez tivesse permanecido uma prática
oculta limitada aos poucos que dela faziam parte. No entanto, este não foi o
caso. Se o café era uma ajuda ao dihkr [rezas noturnas], também poderia ser um
assistente para tediosas atividades de trabalho; se poderia ser preparado em um
local de reunião da ordem, também poderia ser preparado por suas esposas em
casa. (HATTOX, 1996, p. 34-35, tradução nossa).
3
Hattox ainda afirma que, apesar de a Etiópia ser o local de proveniência natural
das árvores do cafeeiro, historicamente os árabes iemenitas dominaram o mercado
produtor desde as primeiras décadas de disseminação da bebida até, pelo menos, o
século XVIII (HATTOX, 1996, p. 24). Já no século XV o café era consumido em grande
escala pelo mundo árabe, e foi aos poucos inserido na Europa por meio de sua
introdução na Turquia, sendo popularizado por meio das cafeterias em grandes cidades
como Veneza, Paris, Viena e Londres.
2
O sufismo é uma corrente mística e contemplativa do Islam. Segundo Hattox, possuía uma ênfase em um
místico alcance de Deus de uma forma pessoal e inteligível, e não de forma abstrata. Portanto, o café era
considerado um poderoso estimulante, principalmente para as vigílias noturnas.
3
[No original] “The link between coffee and the various Sufi orders is one upon which our sources are
unanimous, and this connection was one that was to have importance not only for its initial use in the
Yemen, but also for its spread throughout the peninsula and to Egypt and Syria as well. [...] Members of
Sufi orders were not as a rule reclusive [...]. This involvement of the members of the orders in everyday
affairs of the world was, in all likelihood, one of the most important factors in the spread of coffee. If
Sufism had been a movement that stressed isolation, a movement of high walls and cloisters such as so
often characterized Christian monasticism, the use of coffee might have remained an arcane practice
limited to the few who belonged. This was not, however, the case. If coffee was an aid to the dhikr, it could
also be of assistance to the tedious activities of the workplace; if it could be prepared at the meeting place
of the order, so could it be prepared by one’s wife or servants at home. We have no direct evidence of how
coffee came into general use in the Yemen outside the Sufi meeting, but conjecture along these lines is
perhaps most fruitful.” (HATTOX, 1996, p. 34-35).
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O café iemenita conhecido por ser exportado pelo porto de Mocha,
4
mas
posteriormente também o seria pelo de Adendominou esses mercados e manteve forte
presença até, pelo menos, as primeiras décadas do século XX, quando o Brasil (com suas
principais nomenclaturas “Santos” e “Rio”)
5
e outros países produtores ainda construíam
sua imagem (UCKERS, 1922, p. 194).
Entretanto, estudar uma bibliografia que dê conta da propagação histórica do café
do mundo árabe para o ocidente não soluciona, por exemplo, o porquê de o café “à moda
árabe” (por meio da infusão e ebulição) não ter se tornado popular na Europa e em suas
possessões ultramarinas. Iniciou-se, então, uma busca no livro dos italianos Enrico
Maltoni e Mauro Carli: Coffee Makers: Machinne da Caffé (2013), servindo como um
catálogo de uma grande coleção pessoal de cafeteiras, é possível compreender, por meio
da cultura material, que o método de preparo europeu sofreu uma grande influência ao
longo do século XIX por conta das diferentes invenções criadas no bojo das revoluções
tecnológicas ocorridas a partir desse período. Apesar de inicialmente o café ser
consumido na Europa pelo método de infusão, muito parecida à maneira árabe, e servida
por meio de samovares ou coffee urns e outros recipientes, inventores franceses,
italianos, ingleses e alemães introduziram basicamente todas as formas conhecidas
atualmente de preparo de café ao longo do século XIX (MALTONI; CARLI, 2013, p. 103-
105).
6
Não foi possível localizar estudos brasileiros que versem sobre a forma como o
café era consumido desde sua introdução, no segundo quartel do século XVIII,
7
sendo
necessário relacio-lo a possíveis importações do estilo de consumo europeu. Sabe-se
que na Europa, de forma generalizada, o preparo do café coado ou filtrado é bastante
popular desde, pelo menos, o início do século XIX, com a introdução de invenções como
a cafeteira Dubelloy. Uma das mais afamadas obras sobre gastronomia do século XIX,
intitulada Physologie du Gout escrita por Brillat-Savarin em 1825, a recomendava como
melhor e mais indicado método para preparo do café o filtrado:
4
“Antes todo o café da Arábia saía para o mundo pelo porto de Mocha na costa leste do Mar Vermelho.
Mocha, que nunca cultivou nenhum pé de café, hoje não possui mais importância comercial”. [No original]:
“Once all the coffee of Arabia went to the outside world through the port of Mocha on the eastern coast of
the Red Sea. Mocha, which never raised any coffee, is no longer of commercial importance; but its name
has been permanently attached to the coffee of this country.” (UCKERS, 1922, p. 230, tradução nossa).
5
No mercado consumidor, o café geralmente leva o nome do porto por onde foi exportado. Por isso, são
usuais os termos “Rio”, “Santos”, “Mocha”, etc.
6
Cafeteiras que utilizavam diferentes métodos de preparo, como a percolação, vácuo ou pressão, etc.,
foram inventadas ao longo do século XIX. A única exceção fica por conta do café expresso, cujas primeiras
máquinas começaram a ser desenvolvidas na Itália no início do século XX.
7
O café foi introduzido no Brasil, oficialmente, em 1727 no Pará após uma missão do oficial português
Francisco de Mello Palheta à Guiana Francesa.
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Por tempos testei diversos métodos e de todos que me propuseram até hoje e
me decidi, por conhecimento de causa, àquele que chamam à la Dubelloy, que
consiste derramar água fervente sobre o café em um vaso de porcelana ou
prata, vazado com pequenos furos (BRILLAT-SAVARIN, 1848, p. 85, tradução
nossa).
8
Visto a ausência bibliográfica acerca das preferências brasileiras pelo método de
preparo coado/filtrado, realizou-se uma pesquisa na hemeroteca on-line da Biblioteca
Nacional, a fim de encontrar possíveis vestígios que pudessem indicar uma anterioridade
a essa preferência. Nessa busca, privilegiaram-se jornais e periódicos do Rio de Janeiro e
São Paulo e foram utilizados os termos “cafeteira”, “café coado”, “café árabe” e “café
turco”. Ao menos desde os anos 1830 artigos intitulados como “cafeteira de prata” ou
“cafeteira de folha de flandres” apareciam em leilões ou em anúncios de furtos da Corte
no Rio de Janeiro e na Província de São Paulo,
9
tendo presença constante nos jornais
fluminenses e paulistas.
Entretanto, é somente no início do século XX que o café coado aparece pela
primeira vez atrelado ao “gosto brasileiro”: “Para os Brillat Savarin indígenas, o bom
gosto valorizara o café coado pelo clássico saquitel de algodão cru, com a ajuda da
lendária chaleira preta de água a ferver...” (VALORIZAÇÕES, 10 dez. 1908, p. 4). Uma
hipótese plausível é a de que inovações tecnológicas europeias tenham atingido as casas
de algumas ricas famílias brasileiras ao longo do século XIX, e o uso de elementos
coadores mais simples (como filtros de pano) possam ter sido disseminados amplamente
ao longo do mesmo período.
10
Em contrapartida, foram encontradas referências ao método “árabe” ou “turco”
desde pelo menos 1860 em jornais brasileiros, colocando-os como equivalentes e
distanciando-os enquanto formas não usuais de consumo da bebida. Em 1880, uma
coluna intitulada “Cartas do Oriente” descrevia o café árabe consumido no Egito como
algo distante do público brasileiro:
O tabaco e o café são tão necessários à sua existência como o ar que respiram,
e para eles [ilegível] d’esse gozo, creio que só colocam o [ilegível] paraíso de
Mahomet. É por esse motivo que consideram um ato de grande civilidade
oferecê-los a qualquer pessoa que chega. [...] O grão, depois de torrado, sem
excesso, e bem moído de modo a ficar reduzido a um pó impalpável, é misturado
8
[No original] “J’ai essayé dans le temps toutes ces méthodes et celles qu’on a proposées jusqu’à ce jour et
je me suis fixé, en connaissance de cause, à celles qu’on appelle à la Dubelloy, qui consiste à verser de
l’eau bouillante sur le café mis dans un vase de porcelaine ou d’argent, percé de très petit trous.
(BRILLAT-SAVARIN, 1848, p. 85).
9
“Leilão hoje na rua atrás do Carmo, 4 [...] uma cafeteira de prata [...]”; “Fugiu no 19 de julho p.p., um preto
de nome Marculino [...] com [...] uma cafeteira grande nova de folha de Flandres [...]”. (LEILÕES, 6 set. 1831,
p. 3); (NOTÍCIAS Particulares, 4 ago. 1834, p. 6).
10
Não se pretende aqui alongar-se sobre a questão do café coado, deixando em aberto uma possível
análise mais aprofundada sobre o tema.
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com açúcar, e mexido dentro de uma cafeteira de metal cheia de água a ferver.
Pela segunda vez a cafeteira volta ao fogo até levantar nova fervura, feito que o
café e [ilegível] pronto. Parte do pó assenta no fundo da xícara e a outra parte
toma-se juntamente com a bebida. O perfume que tal café exala jamais se
encontra no que é feito segundo o sistema europeu. (VIAGENS, 1880, p. 2).
Acredita-se, portanto, que a forma de preparo árabe pouco teve impacto durante
a formação dos costumes brasileiros de consumo do café. Tal distanciamento também
facilitaria para a não diferenciação do café à moda “turca” daquele feito nos países
árabes. Mesmo com existência de uma expressiva imigração de libaneses e sírios para o
Brasil desde fins do século XIX, essa prática possivelmente ficou restrita a essas
comunidades e não se popularizou ao “gosto brasileiro”.
Então, uma questão é premente: como pode ser caracterizado o “café árabe”? Em
uma pesquisa bibliográfica a respeito de uma cultura do café contemporânea,
principalmente em países levantinos (Síria, Líbano, Palestina e Jordânia), foram
encontrados textos jornalísticos que trouxeram informações relevantes para a pesquisa,
em geral matérias de jornais e revistas on-line que tratavam de uma cultura árabe
beduína, de caráter nômade e tradicional.
Na cultura beduína da Jordânia apresentada por Simone Van den Berg (2015), o
café vem atrelado a um modo de preparo manual, desde a torra dos grãos em panelas ao
fogo a lenha, passando pela moagem em pilões de madeira e o preparo em cafeteiras
altas em formato de bule. O preparo é descrito como feito sempre diante dos visitantes;
ou melhor: o café é feito em consideração ao visitante, importante traço da hospitalidade
árabe beduína.
O anfitrião procederá colocando café para seus visitantes e você é servido com
apenas um pouco em uma pequena xícara. Tecnicamente não mais que um gole,
mas bebê-lo em apenas um também seria considerado uma indelicadeza. Tomar
o café em apenas um gole é sinal que o ca está frio. Então você bebe o café
em três goles. Sempre use sua mão direita enquanto estiver tomando café. [...]
Somente são autorizadas três xícaras. Se você deseja apenas uma, balance sua
xícara rapidamente entre seu dedão e dedos enquanto devolve a seu anfitrião.
Ele a tomará de você, a lavará e dará ao próximo visitante. [...] Sempre da direita
para a esquerda. (VAN DEN BERG, 2015, tradão nossa).
11
Na matéria jornalística Coffee in Gaza is a ritual for grief and creativity, a bebida
é apresentada como algo que vai além do preparo e consumo:
11
[No original] “The host will than proceed to pour the coffee to the guests and you’re served a tiny bit in a
small cup. Technically not much more than one gulp, but drinking it in one go will also be impolite. Taking
just the one sip is a sign that the coffee is cold. So you drink the coffee in three sips. Always use only your
right hand when drinking the coffee [...] No more than three refills are allowed. If you want only one than
you sway the cup quickly between thumb and fingers while holding it out to your host. He will take it from
you, wash the cup and give it to the next guest. There are rarely enough cups to serve all guests at the
same time, so you will be taking turns. Always working from right to left.” (VAN DEN BERG, 2015).
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O café é associado com as tradições da população Levantina. A pop star
libanêsa Samira Tawfiq cantava sobre o café em seu dialeto rural, instruindo,
“coloque o café e adicione um pouco de cardamomo”. Do mesmo modo, o poeta
palestino Mahmoud Darwish menciona o café em “Memórias do Esquecimento”,
que foi escrito durante o sítio de Beirute em 1982. (AL-GHOUL, 2013, tradução
nossa).
12
É também preciso marcar a desambiguação que evolve o café “turco” e o “árabe.
As diversas ocupações Otomanas aos países vizinhos fizeram com que, por um lado, a
tradição do café “à maneira turca” fosse apropriada por essas culturas, principalmente
nas grandes cidades árabes levantinas como Beirute e Damasco; por outro lado, fez com
que surgisse um forte sentimento nacionalista ligado à bebida. Isso fez com que se
criasse um movimento no sentido de apagar os turcos na história do café, fazendo com
que surgissem os termos Café Grego, Armênio, Cipriota, Sírio, etc., sem que, no entanto,
existissem grandes diferenças, se o método de comparação se relacionasse à forma de
preparo? (KAKISSIS, 2013; ABRAHAM-BARNA, 2013). Entretanto, nos países árabes
existe a diferença da adição de cardamomo e outras especiarias, além de fortes tradições
da vida cotidiana ligadas à bebida, sendo muitas vezes simplesmente chamado de “Café
Árabe”.
Memórias do café árabe: prospecção de entrevistados
Partindo, portanto, de um questionamento simples para com o entrevistado
“como você vê a cultura do café no seu país?” ou “o que o café significa para você?” o
projeto justifica-se ao valorizar o que o próprio depoente tem a dizer em detrimento
daquilo que nós, enquanto pesquisadores, temos a dizer sobre sua própria cultura.
A pesquisa iniciou-se, para além da revisão bibliográfica acima mencionada, pela
leitura atenta do documento da Unesco de declaração do café árabe como patrimônio da
humanidade. A partir desse documento pode-se entender que o ato de preparo e
oferecimento do café ao convidado possui grande simbolismo, ligado a questões de
hospitalidade; em outras palavras, “[...] quando as portas de um lar árabe estiverem
abertas, um café será servido como gesto de generosidade aos visitantes” (UNITED
NATIONS, 2015d). Foi possível identificar tais elementos tanto na cultura dos países
inventariantes do Golfo, como também nos países árabes do mediterrâneo por meio de
textos jornalísticos publicados na internet (AL-GHOUL, 2014; VAN DEN BERG, 2015).
12
[No original] “Coffee is associated with the traditions of the Levantine peoples. The Lebanese pop star
Samira Tawfiq sang about coffee in her rural dialect, instructing, "Pour the coffee and add some
cardamom." Likewise, the Palestinian poet Mahmoud Darwish mentions coffee in "Memory for
Forgetfulness," which was written during the siege of Beirut in 1982.” (AL-GHOUL, 2013).
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Em torno dessa cultura material estão diversos objetos, com funções que
envolvem a torra, moagem e infusão do café. Em suma são eles: altawa e almehmas,
respectivamente o recipiente de torra e peça utilizada para mexer os grãos; aljorn, um
pilão utilizado para a moagem dos grãos; e finalmente os dois principais e mais icônicos,
a dallah, utilizada para infusão do café e os funjals, xícaras (UNITED NATIONS, 2015d).
O preparo do café segue todo o processo no momento da infusão, sendo o grão
torrado e moído na hora. Em alguns casos, o aljorn, ou pilão, pode ser “tocado” servindo
como aviso aos visitantes que a bebida está sendo preparada, pois no momento da
moagem se bateria o socador nos cantos da base do pilão como se fosse um sino. A
moagem é feita junto com hail,
13
ou cardamomo, que é adicionado à água quente dentro
da dallah; após a ebulição da água já com o café e cardamomo (geralmente por três
vezes) o café está pronto para ser servido (UNITED NATIONS, 2015d).
Tais objetos, com os nomes apresentados acima, estão presentes no inventário
dos Emirados Árabes, o mais completo dos quatro textos e provavelmente o país que
encabeçou o processo de proposição do café árabe como patrimônio imaterial junto à
Unesco. Sabia-se desde este ponto que objetos tais como torradores e moedores não
seriam encontrados em culturas mais urbanas, onde o café já é comprado
industrializado, sendo estes utensílios provavelmente marcantes de uma cultura de
pequenos vilarejos ou beduína. Entretanto, objetos descritos no documento de inventário
de Dubai como dallah (objeto utilizado para o preparo do café) e funjals ou finjians
(xícaras) esperava-se ter eco tanto em comunidades pequenas como nas das grandes
cidades.
Buscas por textos que conectassem estas tradições com a cultura árabe
contemporânea também nos levaram a compreender que as informações presentes no
documento da Unesco são apenas uma faceta da forma como o café é consumido,
mesmo nos países inventariantes do Golfo. Geysa Araújo, em artigo apresentado à
Universidade do Qatar, explica que:
Apesar de hoje o ritual de preparação do café ter dado lugar um método
simplificado, similar ao preparo do café do Ocidente, o ato de server o gahwa,
ou café Árabe, como um ritual contemporâneo continua ligado à socialização
com amigos, família e parceiros de negócios. Portanto, é presente nos principais
rituais de passagem, como nascimentos, casamentos e funerais. (ARAUJO, 2010,
p. 3, tradução nossa).
14
13
Todas as palavras apresentadas aqui, quando “romanizadas”, podem assumir formas variadas por conta
da diferença estrutural da língua árabe escrita. A palavra cardamomo também pode ser escrita como hail,
hâl ou hayl, sendo todas com o mesmo som final na língua árabe falada, de forma que decidimos adotar no
texto a primeira.
14
[No original] “Although today the multi-stepped coffee preparation ritual has given way to a more
simplified method, similar to the Western coffee making process, the serving of the gahwa, or Arabic
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Tentando buscar eco dessas práticas culturais em imigrantes e refugiados dos
países árabes, pesquisadores do Museu do Café entraram em contato com a síria Muna
Darweesh, encontrada em um aplicativo chamado Conectados.cc,
15
onde imigrantes de
diversas origens têm espaço para vender seus produtos e oferecer seus serviços. Em
2913, Muna veio ao Brasil com marido, filhos e estabeleceu-se na cidade deo Paulo.
Em uma conversa informal foi possível estabelecer pontos de contato entre tradições
expressas na documentação da Unesco. Enquanto, por um lado, Muna apresentou uma
série de costumes em relação ao casamento, funerais e ao oferecimento do café
enquanto uma reverência ao convidado; por outro lado deixou bastante clara a
separação entre a cultura do café urbana com a aquela mais tradicional e afastada dos
grandes centros, marcante em vilarejos e grupos nômades.
Este momento do encontro prévio define-se como ideal para que seja possível a
elaboração de um roteiro personalizado, entendendo a trajetória pessoal do entrevistado
e suas potencialidades para o momento da gravação propriamente dita. Muna nesse
momento nos contou tradições ligadas ao café, que inclusive acabou deixando de fora no
momento de sua entrevista, seja por esquecimento ocasional ou proposital. Isso, no
entanto, não se caracteriza como um problema, visto a característica da memória como
uma narrativa em constante construção e desconstrução, marcada pelas lembranças e
esquecimentos.
A partir deste encontro, foram mapeados outros possíveis entrevistados para o
projeto, buscando narrativas que nos fizessem entender as práticas e costumes do café
árabe trazidas por essas pessoas em seus deslocamentos. As principais características
para um potencial entrevistado estavam nas memórias de “primeira geração” ou seja,
memórias de momentos e experiências vividas pela própria pessoa, e não aquelas
herdadas de seus pais ou avós. Por isso, os movimentos de deslocamento de árabes
recentes ao Brasil eram os que mais interessavam aos pesquisadores.
Apesar do contato fácil com Muna, preferiu-se focar em centros e instituições
que já mantivessem laços com imigrantes para buscar os depoentes seguintes. Devido à
proximidade do Museu do Café e do Museu da Imigração, que são geridos pela mesma
Organização Social (OS) ligada à Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de
São Paulo, conversou-se com pesquisadores dessa instituição em busca de possíveis
coffee, as a contemporary ritual is still connected to socializing with friends, family and business partners.
Thus, it is present in the main rites of passage, such as births, marriages and funerals.” (ARAUJO, 2010, p.
3).
15
Alguns dos primeiros contatos foram feitos diretamente por esse site, porém preferiu-se em um segundo
momento privilegiar contatos estabelecidos por meio de associações e institutos.
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depoentes. Além disso, também entrou-se em contato com a Mesquita Islâmica de
Santos e Litoral Paulista, com o Instituto de Cultura Árabe de São Paulo (ICARABE
SP), com a Câmara de Comércio Árabe-Brasileira de São Paulo (CCAB SP) e com a
Câmara de Comércio e Indústria de Dubai (Dubai Chamber).
Somente este último contato não rendeu depoentes ao projeto
16
, o que significou
um avanço no que diz respeito à escolha de entrevistados. Visto a característica de
deslocamento de pessoas dos países do Golfo ser mais decorrente de contatos
comerciais e reuniões de negócios, o grupo de imigrantes de países levantinos foi
privilegiado em relação aos primeiros, visto uma maior presença da comunidade de sírios
e libaneses no Brasil.
Além destes locais, foi realizada uma incursão em restaurantes, bares e demais
estabelecimentos que são mantidos pela comunidade árabe, em busca de locais que
servissem o café árabe ao visitante. Percebeu-se que o café árabe é pouco servido nestes
estabelecimentos, mesmo quando dirigido por pessoas provenientes de deslocamentos
recentes, com a justificativa que o brasileiro pouco se interessa pelo café árabe e tem a
preferência pelo café coado.
Nessa etapa, em março de 2017, houve o encontro com um imigrante libanês que
vendia café na rua Barão de Duprat, próximo ao número 132 em frente à Galeria Pa
(São Paulo, capital) com uma cafeteira árabe de grandes proporções. O café preparado à
maneira árabe com cardamomo era vendido para comunidade de sírios e libaneses que
trabalhavam no entorno, tornando o lugar um espaço de encontro e sociabilidade.
Infelizmente, não foi possível realizar entrevista com o vendedor por motivos linguísticos
sendo que toda a conversa feita com ele no momento foi traduzida por um gentil
senhor que se dispôs naquele momento. Tudo se sabe sobre este rapaz é que tendo vindo
ao Brasil há poucos anos, trouxe duas cafeteiras e as utilizava para sustento próprio
vendendo café no centro de São Paulo a um Real a xícara/copo.
16
Apesar disso, foi feito contato com a comunidade emirática por meio do presidente da Câmara, João
Paulo Paixão, pessoa que foi de imensa ajuda para o projeto. Por meio dele, foi possível conversar sobre o
assunto com o cônsul dos Emirados Árabes em São Paulo, Ibrahim Salem Alalawi, além de, por meio dele,
ter sido estreitado os laços com o Museu do Café de Dubai e seu diretor Khalid Al-Mullah.
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Imagem 1. Imigrante libanês vendendo café árabe no centro de São Paulo.
Fonte: Fotografia do meu arquivo pessoal, 2017.
Entrevistados e deslocamentos
Antes que se fale sobre os resultados parciais do projeto, pretende-se nesta seção
apresentar sumariamente os quatro principais entrevistados, suas trajetórias e o porquê
foram escolhidos para o projeto. No dia 31 de maio de 2017, foi realizada a primeira
entrevista com Talal Al-Tinawi, que nasceu na cidade de Damasco, Síria, e encontrou no
Brasil refúgio com sua mulher e três filhos no ano de 2013 por conta da guerra civil. Foi
indicado pelos pesquisadores do Museu da Imigração, por conta de suas participações
em eventos naquela instituição. Apesar de ser formado em Engenharia Civil, Talal tinha
em São Paulo um restaurante chamado “Talal Culinária Síria”
17
no bairro do Brooklin,
17
É importante afirmar que Talal e sua esposa, Ghazal, encerraram as atividades do restaurante entre os
anos de 2018 e 2019, tendo passado a trabalhar no atendimento de encomendas e de eventos
gastronômicos.
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onde aconteceu a conversa prévia para montagem de roteiro e a gravação das
entrevistas. Talal, apesar de dizer que pessoalmente não aprecia a bebida, discorreu
sobre o modo de preparo do café árabe, utensílios, tradições culturais na Síria e nos
países vizinhos, como Líbano, Arábia Saudita e Egito, que visitou e também chegou a
atuar por conta de seu emprego como engenheiro.
A presença de imigrantes e refugiados recentes na área da gastronomia é
bastante visível, pois essas pessoas ao se verem impedidas de seguir as profissões que
desempenhavam em seus países de origem vêm na culinária um meio de garantir o
sustento da família. É o caso de Muna e seu esposo, provenientes de Latakia, cidade
portuária localizada ao norte da Síria. Em entrevista gravada em 16 de novembro de 2017,
feita na residência de Darweesh, no bairro do Cambuci em São Paulo, Muna contou-nos
que veio para o Brasil em 2013, com seus três filhos, também por conta da guerra civil.
Muna tem formação em letras (língua inglesa) e trabalhava como secretária em uma
firma importadora de café em Latakia, e seu marido, Wessam, trabalhava como
engenheiro naval. No entanto, ambos atuavam naquele momento como cozinheiros por
verem nesse ramo uma possibilidade de sustento.
Todavia, nem todos árabes em movimentos imigração recente que trabalham na
área da gastronomia o fazem por força das circunstâncias. É o caso de Georges Barakat,
nascido na cidade de Zgharta, Líbano, e que imigrou para o Brasil no ano de 2004.
Apesar de formado em engenharia, seu movimento de deslocamento foi motivado pelo
interesse em abrir um negócio em outro país: após uma viagem turística ao Brasil,
decidiu abrir um restaurante, tornando-se chef de cozinha. A entrevista foi realizada no
dia 31 de maio de 2017 em seu estabelecimento chamado “Shahiya”, no bairro Chácara de
Santo Antônio, zona sul de São Paulo.
Apesar de esse grupo ser composto por dois sírios refugiados e um libanês
imigrante, pertencentes a movimentos de deslocamentos recentes (a partir do ano
2000), conversou-se com uma pessoa pertencente a um período de deslocamento
anterior. É o caso de Salah Muhamad Ali, nascido no pequeno vilarejo libanês chamado
Kamed el Laouz, localizado a leste de Beirute. Deslocou-se para o Brasil no ano de 1977
por conta da guerra civil libanesa (1975 1990) e estabeleceu-se inicialmente em São
Paulo. Mudou-se para São Vicente e, depois, para Mongaguá, onde vive até hoje. Apesar
de formado em letras (literatura francesa), trabalhou grande parte de sua vida com
comércio. Atualmente, é presidente da Sociedade Beneficente Islâmica de Santos e
Litoral Paulista, tendo nos recebido na Mesquita Ismica de Santos e Litoral Paulista,
onde foi gravada sua entrevista no dia 31 de maio de 2017.
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Apesar de distantes, existe uma aproximação entre os quatro depoentes no que
diz respeito aos imigrantes árabes e sua instalação no país de destino. Desde pelo menos
as duas últimas décadas do século XIX até pelo menos a década de 1930, o Brasil recebeu
grande e constante contingente de imigrantes sírios e libaneses.
Segundo Truzzi (1997), a entrada de imigrantes sírios começou a ganhar volume
na virada do século XX, atingindo seu ápice antes da Primeira Guerra Mundial.
Contabilizando sírios e libaneses conjuntamente, em 1913 foram registradas
11.101 entradas. Nos anos 20, o número de entradas se estabiliza na faixa de
5.000 registros anuais, vindo a abrandar durante o sistema de cotas adotado
pelo governo brasileiro, em 1934. No Brasil, durante muito tempo as estatísticas
encaixavam imigrantes oriundos do Oriente Médio na categoria “outras
nacionalidades”, sendo o Estado deo Paulo o primeiro local a registrar
categorias como turcos, turcos-asiáticos, libaneses e sírios. (BRASIL, 2017, p. 7).
Boa parte desses deslocamentos não se davam por meio dos canais que atraíam
trabalhadores para a chamada “grande imigração do café”, feitos entre a iniciativa
privada, representada pelos cafeicultores e fortemente subvencionada pelo governo
imperial, e, depois, republicano. Sírios e libaneses entravam no Brasil por meio de uma
rede de sociabilidade e solidariedade, onde novos membros inseriam-se em pequenos
comércios ou atuavam como mascates. Esses primeiros imigrantes:
[…] se fixaram no Brasil contribuíram para a criação de espaços (igrejas, clubes,
comércios e residências), onde parentes, conterrâneos e amigos, provenientes
da mesma aldeia ou da mesma região, buscavam solidariedade e cooperação. Os
imigrantes pioneiros formaram redes sociais, organismos de ajuda aos recém-
chegados. (VILELA, 2002, p. 160).
Sabe-se que boa parte dos sírios refugiados e que chegaram após o início da
guerra civil de 2011 puderam contar, por exemplo, com auxílios da Sociedade Beneficente
Muçulmana (SBM), ligada à Mesquita Brasil, localizada em São Paulo (MACIEL, 2015).
Salah Muhammad-Ali comentou sobre esse auxílio em nossa primeira conversa, dizendo
que, apesar da Mesquita Islâmica de Santos e Litoral Paulista o ter estrutura para
esse tipo de acolhimento, a instituição fazia parte de uma rede, que encaminhava à
Mesquita Brasil em São Paulo todos que a procuram, além de ofertarem outros tipos de
ajuda. Mesmo quando não auxiliavam financeiramente, estes locais funcionavam como
uma acolhida simbólica no país de destino enquanto locais de sociabilidade, dando
direcionamentos com relação à burocracia governamental brasileira ou oferecendo
cursos e outras atividades de entretenimento e lazer. Talal Al-Tinawi, por exemplo, foi
mencionado em uma matéria da Folha de São Paulo de 2016 como frequentador da
Mesquita de Santo Amaro em São Paulo, local onde três vezes por semana dava aulas de
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inglês, além de ter sido ali que sua família conseguiu ajuda para montar seu restaurante
por meio de um processo de financiamento coletivo (NOGUEIRA, 2016).
Resultados parciais
A partir das entrevistas, foi possível encontrar diversas aproximações entre os
depoimentos e os costumes descritos nos inventários do café árabe enviados para a
Unesco. A primeira delas e mais óbvia está na questão do gosto e do preparo do café,
que aparece quando falam sobre diferença entre o café brasileiro e o café árabe:
Talal Só pra saber, o café lá na Síria é bem diferente do café no Brasil. Lá na
Síria o café é mais forte porque pra preparar... o café normal, o café dia-a-dia,
precisa ferver mais ou menos dez minutos com pó, pó dentro lá não usa filtro
lá também tem café como espresso, capuccino, esse tipo de café, mas eu falo
de café... eu tô falando sobre o café normal, o café dia-a-dia, café feita casa,
café feita reunião... (Talal Al-Tinawi, entrevista, 31 mai. 2017).
Talal, ao descrever o café “normal”, do dia-a-dia, descreve o café onde o pó é
colocado direto na água fervente; quando o café se mistura totalmente à água e uma
espuma espessa sobe, o café está quase pronto. Por esse método o café torna-se mais
forte e com sabor marcante, levando a todos os entrevistados a demonstrarem certo
estranhamento ao chegar ao Brasil e entrarem em contato com o café filtrado. Salah
comenta em seu depoimento que, em 1978, o único café que gostava de tomar era o feito
por máquina de espresso,
18
pois lembrava um pouco mais do gosto forte do café com que
estava acostumado:
E, depois que vim pra cá pro Brasil eu vi que o café é bem diferente, que o café
é bem mais fraco, e só em 78 acredito final de 78, que inventaram a máquina
de café no aeroporto de Congonhas, a gente largava a Zona Leste em grupo de
quatro, cinco jovens aí, pra chegar ao aeroporto só pra tomar um café, uma ou
duas vezes por semana. (Salah Muhammad Ali, entrevista, 30 jul. 2017).
O preparo também envolve a adição de certas especiarias, que podem variar
conforme o gosto de quem o prepara. A mais comum delas é, sem dúvidas, o hail ou
cardamomo, presente na fala e café de todos os depoentes entrevistados até agora.
Georges ainda relembra que o café preparado nas cidades, comprado de indústrias
árabes já torrado e moído, em geral, vêm exposto nas gôndolas do mercado em duas
opções: com ou sem cardamomo, já moído e misturado ao pó de café (Georges Barakat,
entrevista, 28 nov. 2018).
18
Opta-se aqui utilizar o termo em italiano, espresso, que usualmente é aplicado em publicações do
barismo e sobre café em geral.
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Ao falar do preparo, é impossível não tratar dos objetos que são utilizados para tal
fim. Nessa questão, a multiplicidade de denominações utilizadas para o recipiente de
preparo se transformou, em meio as entrevistas, em foco de interesse por parte dos
pesquisadores, incentivando os entrevistados a falarem o nome do objeto em árabe:
“Salah [...] a cafeteira, em árabe parece... Bruno Pode falar em árabe. Salah Rakwe,
rakwe... […] (Salah Muhammad Ali, entrevista, 30 jul. 2017).
Em nenhum momento da pesquisa o nome rakwe aparece para designar o objeto
utilizado para o preparo do café árabe. Em livros ocidentais voltados para a cultura do
barismo
19
(por sinal, bastante difundidos), o objeto sempre aparecia com o nome cezve
para o turco e ibrik para ambos árabe e turco. Colocou-se para os entrevistados o nome
ibrik e o estranhamento foi geral, pois o termo é utilizado para a denominação de
chaleiras, leiteiras ou até moringas.
Muna Ibrik é do chá.
Bruno Do chá.
Muna Do chá. É chaleira.
Bruno Chaleira. Ibrik é chaleira. (Muna Darweesh, entrevista, 16 nov. 2017).
Ainda assim, o termo doolleh ou delleh apareceu com bastante frequência para
denominar o objeto de preparo de café; este termo aproxima-se muito mais daquele
usado pelos países inventariantes junto à Unesco para designar a cafeteira: dallah.
Muna Rakwe.
Bruno Rakwe.
Muna Acho que no árabe tradicional, no língua árabe tradicional, tudo é
delleh.
Bruno Delleh.
Muna Tudo delleh. rakwe é uma coisa você conhece o termo “dois línguas
árabe”... (Muna Darweesh, entrevista, 16 nov. 2017).
20
É possível constatar, ainda, uma grande variedade de formas de denominar o
mesmo objeto em diferentes dialetos do árabe. Enquanto os entrevistados libaneses e
sírios o conhecem por rakwe e doole, foram encontradas também as palavras bakraj,
ghallaay para designar o mesmo objeto (WORD, 2016);
21
além disso é estabelecido como
sinônimo doolleh ou delleh comumente utilizado para tanto o objeto conhecido como
19
Barismo é um ramo da gastronomia que visa uma especialização no preparo do café em suas diversas
formas.
20
O árabe possui uma estrutura tradicional e antiga, que inclusive está presente no Alcorão, e outra
coloquial. É esta última que varia de país para país, sendo a primeira utilizada apenas em orações e
ocasiões específicas.
21
O assunto foi encontrado no fórum Word Reference, especializado em discussões linguísticas, onde
nativos debateram sobre as diferenças de termos para designar o preparo do café em diferentes países
árabes.
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dallah, utilizado mais em comunidades beduínas e os países árabes do Golfo (Arábia
Saudita, Catar, Emirados Árabes, etc).
Imagem 2. Objetos no Museu do Café: à esquerda dallah/Baghdad boiler e à direita
rakwe.
Fonte: Museu do Café, 2017.
Entretanto, é importante notar que o documento da Unesco ao mencionar dallah
não fala do mesmo instrumento que Muna, assim como Talal, que também utiliza a
denominação doolleh. Geysa Araújo, citando importante obra sobre a transformação
histórica das cafeteiras de Bramah, Edward e Joan Bramah, cita a dallah como baghdad
boiler/Arabic coffee pot, sendo talvez um dos mais antigos formatos de instrumentos
para o preparo de café, sendo substituído apenas no século XVIII pelo objeto que vamos,
aqui, denominar de rakwe em árabe, ou cezve em turco (BRAMAH; BRAMAH, 1989, p. 22
apud ARAUJO, 2010, p.4).
22
Esta diferença de nomenclaturas acontece, possivelmente,
devido à influência turca nos países levantinos, visto que o rakwe e cezve são,
aparentemente, os mesmos objetos. Estes não estão presentes na cultura da bebida do
Golfo que, por sua vez, possui bastante proximidade com a cultura beduína dos países
levantinos; os entrevistados marcam em suas narrativas uma forte diferença entre o que
diriam sobre os costumes de “pequenos vilarejos” e a vida urbana.
22
O livro em questão intitula-se Coffeee Makers: 300 years of Art & Design, de autoria de Bramah,
Edward e Joan Bramah (1989). Essa obra é uma das mais completas a respeito da transformação do design
de cafeteiras.
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Outra constância no discurso dos entrevistados são as tradições do café nos
momentos do casamento e velórios. Sobre este último, cita-se como sendo um café
diferente, um café “amargo”. Talal fala sobre esse café, que possui uma forma diferente
de preparo daquilo que considera o café cotidiano:
Talal Lá tem café especial, […] o café de luto. Esse café, pra fazer, precisa de
mais ou menos 4 ou 5 horas.o como o dia-a-dia, não. Esse café executado
com muito de água, ah... e deixa no fogão mais ou menos 3-4 horas. Cada vez é
só colocar água, você sabe, vai...
Bruno ...ferver.
Talal Ferver, fica vapor. Então, você precisa colocar água a cada 30 minutos,
depende!
Bruno Sim.
Talal É. Depois, 3-4 horas fica bem, bem, magro [amargo] e... forte! Amargo e
forte. (Talal Al-Tinawi, entrevista, 31 mai. 2017).
Dentro da cultura islâmica,
23
o luto possui um papel comunitário nos rituais de
morte, sendo a participação de um funeral um “dever social”, uma oportunidade para
“refletir sobre a vontade de Deus e sobre a vulnerabilidade e transitoriedade da vida”
(RACY, 1986, p. 28, tradução nossa).
24
Talvez por isso, Salah, que é diretor da Mesquita
de Santos e da Baixada Santista, tenha trazido em sua narrativa:
Salah ...ainda. Exemplo, no Líbano, exemplo, é... quando morre uma pessoa, as
pessoas preparam esse café bem forte, amargo, e fica servindo de direita pra
esquerda, com pouquinho uma quantidade bem pequena a pessoa pega e
pede benção ou pede perdão pro morto. Hoje em dia, a gente pega uma matéria,
porque não tem como receber... exemplo, na minha cidade é uma localidade que
falei o nome dela Kamed al Laouz 10 mil habitantes mas, praticamente, todo
mundo vai dar os pêsames pro família do morto, ou do falecido. Onde vo
recebe essa gente? Então vo pega um terreno, põe uma cobertura, uma tenda
de lona, pega emprestado 400, 500 cadeiras coloca lá e o pessoal [inaudível];
então tem uma pessoa que pega o, faz o café, esse aí é sinal de tristeza pra
começar a servir. Antigamente, a pessoa pegava o rakwe, quando morria
alguém, e virava de cabeça pra baixo e deixava algum tempo em sinal de luto,
igual quando a gente coloca um sinal de luto quando morre alguém. Então lá, na
minha cidade, o pessoal oferece o café com essas quantidades pequenas, é...
sem chacoalhar; porque se você chacoalha, mostra aquele barulho que eu falei
no início, quando tá sinal de alegria, de visita, normal, mas não pra... na, no
recebimento do... das pessoas, quando morre alguém, não pode balançar, não
pode fazer barulho nenhum, só servir pequenas quantidades para as pessoas, as
pessoas do jeito que eu falei pega e toma de uma vez só, e pede clemência,
perdão, do morto. Até agora tem esses costumes. (Salah Muhammad Ali,
entrevista, 30 jul. 2017).
23
É importante destacar que nem todo árabe professa a fé islâmica. Em especial a comunidade síria em sua
primeira época de deslocamentos para o Brasil, muitos cristãos ortodoxos e maronitas vieram e aqui se
fixaram. Entretanto, os quatro principais entrevistados nesta pesquisa são muçulmanos, portanto não
consideraremos neste artigo a influência de outras religiões na cultura do café árabe.
24
[No original] “Funeral attendance is considered a public duty. The funeral enables those in attendance to
reflect upon God’s will, and upon the vulnerability and transience of life.” (RACY, 1986, p. 28).
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A presença desse assunto em todas as narrativas dos depoentes atesta a
importância desse “café amargo” que, possivelmente, tem o papel de transmitir um
símbolo de reflexão e pesar, em função do luto pelo falecido. Georges ainda adiciona a
questão do chaffe, que seria a quantidade correta para se colocar na xícara do convidado
nessas ocasiões; em outras palavras, chaffe é a quantidade ideal para se tomar o café em
apenas um gole, em uma “sorvida” (Georges Barakat, entrevista, 28 nov. 2018).
No que diz respeito aos ritos do funeral, as aproximações são flagrantes com a
cultura do café árabe registrada pelos inventários dos países do Golfo. A forma de
preparo do café, a estrutura em que o café é servido (da direita para a esquerda) e a
quantidade colocada na xícara são marcadas enquanto regras de etiqueta nos
inventários; entretanto, tais particularidades só são reconhecidas pelos entrevistados
nesse momento de luto ou por conhecerem como hábitos distantes, de pequenos
vilarejos ou caravanas beduínas.
É nesse ponto onde é possível marcar um distanciamento das práticas registradas
pela Unesco e aqueles reconhecidos pelos entrevistados enquanto uma cultura do café.
Os países inventariantes trouxeram em seu texto uma cultura tradicional e beduína,
marcada pelos processos manuais e artesanais de torra, moagem e preparo, sempre
diante do visitante. Tais práticas se distanciam de uma cultura de café urbana muito mais
simplificada, ágil e menos parecida com as tradições beduínas, o ato de servir o café
contém elementos ligados à socialização com amigos, família, parceiros de negócio,
assim como em rituais de passagem (ARAUJO, 2010, p. 3).
Além disso, os inventários mencionam genericamente a presença de canções e
poemas relacionados ao café; tais questões podem ligar-se a uma tradição beduína, mas
pode ser marcado nas canções da pop star libanesa Samira Tawfiq ou dos poemas de
Mahmoud Darwish, como citados anteriormente (AL-GHOUL, 2013), também
mencionado por Muna em seu depoimento.
25
Em outras palavras, as quatro narrativas
constroem-se entre aproximações e distanciamentos da cultura urbana e a cultura
beduína, sendo esta última registrada como patrimônio imaterial.
Por fim, duas perguntas de corte
26
eram feitas para todos os entrevistados: como
viam o café árabe no Brasil? Mantinham as tradições do café? No caso do oferecimento
ao convidado, todos responderam da mesma forma: em geral, se fossem pessoas da
25
Enquanto este artigo era escrito, um outro depoimento foi feito com a palestina Oula Alsaghir, residente
na cidade de São Paulo. O depoimento ainda está em fase de transcrição e análise, mas é importante deixar
registrado que a entrevistada também citou (e recitou) um poema de Mahmoud Darwish, que fala sobre os
dias em que ficou preso e relaciona as saudades da mãe ao café feito por ela.
26
O termo “pergunta de corte” refere-se às perguntas presentes em todos os roteiros de entrevistas.
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própria comunidade, sim; caso fossem brasileiros, o estranhamento ao café árabe fazia
com que buscassem outras soluções, como oferecimento de chá ou café coado.
Todos os entrevistados trouxeram consigo em seus processos de imigração os
objetos de preparo do café, indicando ser um item importante para suas vidas no país de
destino. Tinham os dois tipos: o rakwe e a dallah, ao estilo bagdad boiler, considerada
mais tradicional. O primeiro objeto seria para um uso cotidiano e corrente; já o segundo,
de maiores proporções, era considerado uma cafeteira para ser utilizada em ocasiões
especiais, como casamentos e funerais, eventos presentes na vida comunitária dos
entrevistados.
Considerações finais
Desde 2017, os pesquisadores do Museu do Café têm se esforçado para entender
a inserção e as permanências da cultura do café árabe no Brasil, sobretudo nas cidades
de São Paulo e Santos. Nesses últimos dois anos, foi possível, por meio da análise das
narrativas desses depoentes e do cruzamento com a literatura já escrita sobre o assunto,
adentrar ao mundo do café árabe.
Até que se entrasse em contato com a declaração do café árabe enquanto
patrimônio imaterial pela Unesco em 2015, se tinha apenas uma vaga noção da
importância do café para essas comunidades, sem, no entanto, ter ideia de possíveis
caminhos a seguir para compor um escopo de estudo a respeito do assunto. A leitura
atenta de uma bibliografia, dos inventários e o contato com essas comunidades foi de
fundamental importância para que se entendesse que, de fato, essa cultura do café está
presente no estado de São Paulo e, apesar de não difundida no paladar do brasileiro, ao
menos possuía eco dentro das comunidades imigrantes levantinas.
Entende-se que o processo de inventariar costumes pode ser, por vezes, genérico
para que se consiga alcançar o status de patrimônio imaterial. Entretanto, é importante
ressaltar que os inventários serviram como guias que nortearam os roteiros dos
depoimentos, levando os entrevistados a possibilidade de confrontação das tradições ali
inscritas. Tendo-se em mente as diferenças dos povos levantinos e do Golfo,
principalmente no que diz respeito a uma cultura urbana, da qual os entrevistados fazem
parte, sobressai o fato de que exista uma aproximação de uma cultura do café árabe
entendida como tradicional e beduína.
As aproximações dão-se por meio da forma de preparo, a utilização de especiarias
especialmente o cardamomo ou hail, além da diferença do café cotidiano para o café
“amargo” do funeral. A dicotomia entre uma memória coletiva distante da cultura do café
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beduíno e sua vivência de uma cultura urbana do café faz com que pensemos
criticamente a respeito dos inventários enviados à Unesco. É inclusive essa aproximação
por meio de uma memória coletiva de uma cultura do café beduíno que, em ambos os
casos, acaba tornando-se um tanto rarefeita no contexto de aceleração da vida urbana,
mesmo no caso dos países inventariantes do Golfo. Em outras palavras: o café registrado
como patrimônio acaba não sendo o café cotidiano desses países.
Além disso, é importante marcar a influência das dominações turcas nos países
levantinos. Isso fez com que objetos e formas de preparo sofressem alterações, sendo o
café árabe trazido pelos entrevistados em seus processos de deslocamento um tanto
diferente daquele consumido nos países do Golfo, assim como às proporções de café e
cardamomo no processo de preparo do café.
É importante deixar registrado que o projeto se posiciona em uma lacuna dos
estudos da historiografia do café no Brasil. Os laços históricos do grão com a Península
Arábica e a presença histórica de sírios e libaneses não foram suficientes para gerar
esforços para o estudo de tais tradições e sua presença no Brasil e, especificamente, no
estado de São Paulo. A preferência histórica do brasileiro pelo café filtrado/coado talvez
tenha feito com que o café árabe ficasse restrito às comunidades de imigrantes,
diferentemente do que aconteceu com a culinária árabe como um todo.
A confusão do nome dado ao objeto de preparo do café ao ser apresentada aos
entrevistados relaciona-se com essa questão: apesar de existir inúmeros nomes dados ao
objeto em diversos países árabes (e especificamente mencionado nas entrevistas rakwe
e dolleh), conhece-se na tradição ocidental europeia com o único nome ao qual os quatro
entrevistados não reconheceram enquanto um objeto ligado ao preparo do café, o ibrik,
um objeto que relacionam em suas memórias ao consumo do chá.
Uma hipótese para esta possível confusão reside na maior proximidade do Brasil
com a experiência e costumes europeus do café. A propagação do café árabe em jornais
e periódicos brasileiros desde fins do século XIX e ao longo do século XX era com algo
distante e, muitas vezes, apresentado genericamente como “turco”. Mesmo Brillat-
Savarin, bastante lido até hoje em cursos de gastronomia e na área do barismo,
apresentava o “café oriental” ao público europeu como “à maneira turca”. Tais questões
talvez tenham lançado uma sombra nas particularidades da cultura do café árabe no
Brasil. O tema ainda possui lastro para discussões e poderá ser trabalhado em suas
diferentes particularidades em outros trabalhos desenvolvidos.
Por fim, entendendo o museu em sua função social alicerçada na tríade:
“conservação pesquisa extroversão”, o Museu do Café não se limitará ao
entendimento da cultura imaterial e material do café árabe presente no Brasil na
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contemporaneidade. Logo, espera-se com este material, que sejam realizadas exposições
e ações de mediação, a fim de que o público visitante possa ter contato com a
complexidade do tema. Nessas exposições, as narrativas desses imigrantes coletadas e
ainda os que serão contatados e registrados serão de suma importância, devolvendo,
assim, à sociedade a contribuição dada por estes depoentes ao longo do projeto
“Memórias do Café Árabe”.
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