Os panditos e os jesuítas: indícios da medicina
ayurvédica nos colégios da Companhia de
Jesus no Estado da Índia (séculos XVI - XVIII)
The Pandits and Jesuits: traces of Ayurvedic
Medicine at the Society of Jesus Colleges
in State of India (16th-18th centuries)
SOUZA, Lais Viena de
*
RESUMO: No ano de 1542, quando os
primeiros missionários jesuítas
desembarcaram em Goa, a chamada medicina
Ayurveda remontava a mais de um milênio
em sua forma escrita. Entre os séculos XVI e
XVIII, a Companhia de Jesus erigiu uma
complexa rede missionária que envolvia as
atividades educativas e catequéticas no
Oriente. Os renomados colégios abrigavam
não somente os jovens educandos, padres e
irmãos, mas também serviam como
importantes centros produtores e difusores
de saberes religiosos, botânicos,
farmacêuticos, médicos. Este artigo visa
evidenciar a presença dos dicos indianos
vaidyas, denominados pelos portugueses de
panditos, assim como dos saberes e práticas
de cura da medicina Ayurveda que
confrontaram-se e dialogaram com os
inacianos. Indícios da medicina hibridizada
registrada nos escritos jesuítas, e que
circulou através das redes do Império
Português no período moderno.
PALAVRAS-CHAVE: Ayurveda; Companhia
de Jesus; Índia (séculos XVI-XVIII).
ABSTRACT In 1542, when the first
missionaries arrived in Goa, medicine
Ayurveda dates back more than a
millennium in written form. Between the
16th and 18th centuries, the Society of Jesus
built a complex missionary mission as
educational and catechetical activities in the
East. The renowned colleges shelters not
only the young students, priests and
brothers, but also were great centers that
produce and disseminate religious,
botanical, pharmaceutical and medical
knowledge. This article aims to highlight the
presence of Indian Vaidyas doctors, called
by the Portuguese as panditos, as well as the
knowledge and healing practices of
Ayurvedic medicine that confronted and
dialogued with the Ignatians. Traces of
hybridized medicine recorded in the Jesuit
texts, which circulated through the
networks of the Portuguese Empire in the
modern age.
KEYWORDS: Ayurveda; Society of Jesus;
India (16th centuries -18th century).
Recebido em: 12/08/2019
Aprovado em: 05/11/2019
*
Doutora em História pela Universidade de Évora, cidade de Évora, Portugal. Professora EBTT do Instituto
Federal da Bahia, campus Salvador, estado da Bahia (BA), Brasil. E-mail: laisviena@ifba.edu.br
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Corria o ano de 1548, e da ilha de Goa foram remetidas algumas notícias sobre as
missões no Estado da Índia para os irmãos em Portugal e em Roma. O autor da carta,
possivelmente o Pe. Henrique Henriques (1520-1600), destacou o constante conflito
entre os padres e o dico que assistia os inacianos no Cogio de São Paulo. Descreveu
o tal homem como sendo da casta dos brâmanes, reputado e considerado “grande” em
sua “lei”. O religioso relatou que era costume que ficassem em disputa por uma hora ou
mais. Contudo, o “gentio" era o obstinado - em suas palavras, “emperrado” - que em
nada cria. E, quando começava a perder nos embates, partia, “malicioso e malíssimo”,
pois não havia nele “senão toda a peçonha” (WICKI, 1948, p. 254, vol. 1).
A primeira questão que se pode aventar desse relato é sobre a presença de tal
personagem - descrito com o pesadas letras - assistindo como médico no renomado
Colégio de São Paulo. A narrativa poderia ser considerada como um dos muitos exemplos
de disputas e confrontos ordinários no processo de tentativa de conversão de
populações no Estado da Índia no período moderno. Contudo, a análise mais detalhada
sobre a documentação produzida pelos missionários da Companhia de Jesus permite
entrever a figura desses brâ
manes dicos, estudiosos e detentores dos saberes e
prescrições de cura, mais especificamente denominados de panditos em Goa
(DALGADO, 1919, V. 1, II, p. 155-156; GRACIAS, 1994, p. 153; WALKER, 2002, p. 78).
A narrativa sobre o inmito pandito e os jesuítas apresenta indagações sobre
personagens, produtos, saberes e práticas de cura. Este artigo se propõe a discutir os
embates e assimilações que envolveram os religiosos da Companhia de Jesus e o sistema
de cura hindu na Índia Portuguesa entre os séculos XVI e XVIII. O corpus documental
que fundamenta este estudo é basicamente a documentação inaciana. De tal forma, entre
o dito e o não-dito, que se revelam no discurso dos religiosos os indícios da medicina
ayurvédica e sua circulação através do Império Português (CHARTIER, 2002, p. 83-85;
CERTEAU, 2007, p. 67; FOUCAULT, 2011, p. 284).
Medicina Ayurvédica e alguns debates com a historiografia eurocêntrica
Aquando as concepções e práticas dicas hipocrático-galênicas chegaram a
bordo das naus europeias no processo de expansão e conquista comercial, confrontaram
e, por vezes, dialogaram com o sistema de teorias e práticas médicas milenares nas
culturas sob influência hinduísta na Índia, denominadas de Ayurveda. Herdeira de
tradiçõ
es orais ancestrais, a medicina ayurvédica antecedeu os escritos galênicos, com
um corpus escrito datado desde ao menos o culo V (WUJASTYK, 1998, P. 39; ROCHA
NETO, 2009; DEVEZA, 2013). Enquanto saber e prática dica, pode ser identificada em
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casas de caridade e cuidados médicos no império Asoka, datados do culo XV a.C.
(WUJASTYK, 1998, p. 1-2; VALIATHAN, 2002, P. 18-24).
Seguindo a etimologia da palavra, a medicina ayurvédica pode ser compreendida
como o conjunto de conhecimentos e práticas para alcançar a longevidade (ROCHA
NETO, 2009, p. 78). A principal chave interpretativa é a teoria dos humores (tridosa-
vidya) o vento (vata), o calor (pitta) e a fleugma (kapha) , que interagem com os sete
constituintes do corpo: linfa, sangue, carne, gordura, ossos, medula e men”. Assim
como na medicina Ocidental do período moderno, para conservar a saúde, era
necessário ter moderação e prevenção, abrangendo todos os fatores da vida, “incluindo
limpeza dos dentes, dieta, exercício, regimes, moralidade” (WUJASTYK, 1998, p. 3). A
alimentação, o sono, os exercícios, o sexo e os remédios deveriam ser mantidos sempre
com “limite, racional, controlado e equilibrado (WUJASTYK, 1998, p. 4). As doenças, por
sua vez, teriam suas causas internas (humores e digestão), externas (influência do
ambiente) e mentais (“por não se ter o que se quer”) (WUJASTYK, 1998, p. 70).
A tradição ayurvédica foi consolidada em textos, como no Compendium de
Caraka (século V a.C.), dividido em 120 capítulos, que apresentou as principais
recomendações quanto a farmacologia, dietética, causas das enfermidades e terapias
(WUJASTYK, 1998, p. 41). Muitos séculos antes da chegada e conquista dos portugueses
em Goa, existiam centros de estudos avançados em diversas áreas do conhecimento,
incluindo a Medicina chamados de agraharas e brahmapuris (reservadas aos brâmanes)
(FIGUEIREDO, 1984, p. 226). Segundo o Compendium, havia mais de uma forma de
prática médica ligada à ayurvédica e ao hinduísmo: (1) sacra (ligada à ritualística e às
cerimônias hindus, com recitação de mantras e oferendas aos deuses); a (2) racional
(utilizando princípios terapêuticos na “dieta, medicinas e drogas”); e ainda uma (3) que
combinava bons pensamentos e se afastar de tudo que pudesse ser prejudicial ao
indivíduo. Sobre osdicos, afirmou que o bom e virtuoso deveria saber conciliar
conhecimentos teóricos e as práticas (WUJASTYK, 1998, p.72-73). Vale observar que os
praticantes da medicina eram denominados de vaidyas, e que o termo pandito foi a
denominação dada pelos portugueses, oriunda do termo Pandit, que em sânscrito
significa estudioso (FIGUEIREDO, 1984, p. 228).
A complexidade da Ayurveda, sumariamente apresentada acima, foi ignorada e
negada por estudos históricos sobre a Medicina do Império Português. Saltam aos olhos
algumas referências com certo teor nacionalista e, em alguns casos, ufanista, próprios do
Estado Novo Português (1933-1974). Como se faz notar no artigo de Luís de Pina (1938),
apresentado no I Congresso da História da Expansão Portuguesa no Mundo, no qual
debateu os contributos dos portugueses para a medicina. Afirmou que, no culo XVI, a
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medicina no Japão e na China eraatrasada e a praticada na Índia por hindus era
inferior à conhecida por Garcia de Orta (PINA, 1938, p. 271; 279). Pina (1938, p. 293)
concluiu afirmando que “a História Geral das Ciências e, com ela, a História da
Humanidade” não poderia ser escrita “sem consultar os livros e documentos" nos quais
"os Portugueses escreveram com tinta perenemente luminosa, a História da sua
Expansão pelas cinco partes do Mundo”.
Em artigo intitulado História da assistência ao indígena no Ultramar Português”,
José de Jesus Coelho do Vale (1954, p. 2252) dividiu os contributos portugueses para a
medicina em fases. Sobre o primeiro período, chamado pelo autor de período das
Descobertas, apontou a política ultramarina portuguesa como caracterizada pela
“valorização do indígena como agente de progresso político, e a sua nacionalização”, e
declarou que “a assistência sob todas as formas lhes tem sido prestada, constituiu
sempre uma das mais altas preocupações da política ultramarina portuguesa”. O autor
enalteceu a ação dos missionários como “um instrumento perfeito da política de
cooperação racial”.
O autor denominou o segundo período de “Império Oriental e o caracterizou
pelas relações “pacíficas”, nas quais os indianos se aliaram aos portugueses e eram
tratados humanamentee que muitos foram “cristianizados e cruzaram-se livremente".
Enalteceu, novamente, a ação dos missionários “que chegaram mesmo às regiões aonde
não chegou a nossa ocupação política e militar, e assim contribuíram para a civilização,
cristianização e assistência dos povos da Índia, Indochina, Insulíndia, China, Coreia,
Japão e Abissínia” e Timor (VALE, 1954, p. 2253).
Nesta mesma linha, Fernando Alves Rodrigues Nogueira (1962, p. 3) escreveu
sobre a medicina, na Índia, no contexto da descolonização tardia, na cada de 60. Logo
no primeiro capítulo, afirmou que “os povos de cor levantaram-se contra o Ocidente e
colocam os brancos na cadeira dos us, sob a acusação de colonialismo, de exploração,
de tirania”, esquecendo-se que a “maré da civilização europeia alastrou pela África, pela
Ásia, pela Oceania, reconstruiu ou fez do nada a Am
érica”. No campo médico, acusou os
três continentes de copiarem e adotarem a “civilização europeia”, pois, utilizavam “os
remédios que ela descobriu, aprendem a ciência nascida e desenvolvida na Europa”.
Nogueira (1962, p. 5) afirmou que o proselitismo religioso e a medicina foram os
grandes contributos dos europeus no mundo. Especificamente sobre a Índia, declarou
que os portugueses lançaram “as primeiras sementes da ciência europeia” e da Medicina
e colocaram “um velho mundo, sob esse aspecto mais atrasado e muito menos
evolutivo[...] em contato com os fundamentos e com os progressos dessa grandiosa
edificação que é a Medicina científica europeia”. Mencionou S. Francisco Xavier,
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atribuindo-lhe a afirmação de que era a Índia “um charco de peste” e enumerou os
grandes feitos portugueses como a fundação de hospitais em 17 cidades da Índia,
enfermarias, postos de socorro. Destacou especialmente o Hospital Del-Rei, em Goa,
que, segundo o autor, abrigava de 1500 a 3000 doentes locais e europeus.
Os artigos acima mencionados evidenciam a narrativa da História que se cumpre
nacionalista. A premissa básica deste artigo, e da tese da qual se originou, busca
ultrapassar o crivo de nação e nacionalismo, assim como a centralidade do Ocidente e da
Europa como fundamentos para a constituição do conhecimento histórico (SOUZA,
2018). Ideias que confluem com os debates propostos por Sanjay Subrahmanyam (2012,
p. 33-64) para as constantes delimitações anacrônicas e restritivas de nação para o
estudo do período moderno, principalmente no que toca a Índia e o Oriente. E também
convergem com as problematizações de Serge Gruzinski (2014, p. 41-45) na negativa
teórica e metodológica do eurocentrismo, passando a considerar as muitas formas de
mestiçagens e de circularidade de saberes, produzidos e interpretados pelos povos locais
e europeus, assim como a multiplicidade de centralidades entre Europa, Ásia, América e
África.
Importa destacar que, na produção historiográfica recente sobre o Império
Português, e notadamente nos campos temáticos da assistência e da área da medicina,
notáveis pesquisas que buscam ultrapassar a narrativa eurocêntrica, privilegiando a
abordagem da circulação de produtos e saberes (COSTA e LEITÃO, 2009, p. 43-53;
WALKER, 2009, p. 270). Os estudos de John M. De Figueiredo (1984) e Timothy Walker
(2002) sobre o uso da medicina ayurvédica em instituições médicas em Goa entre
meados do século XVII e princípios do século XVIII introduziram as reflexões sobre as
quais esse artigo se dedica.
A partir de relatos, decretos e correspondências entre a Coroa e o governo do
Estado da Índia, os autores destacaram a presença de médicos e funcionários indianos (e
mestiços) e de medicamentos do repertório asiático em hospitais, farmácias e
enfermarias. Não se pode olvidar que havia ainda a presença e circulação de elementos
da medicina de influência islâmica, judaica, chinesa e japonesa através da Índia
Portuguesa e das redes do Império Português. Para este artigo, mostra-se fulcral
compreender os indícios desses saberes, práticas e produtos, o que Walker (2011, p. 23-
24; 2002, p. 75) denominou por “medicina híbrida”.
Os panditos na Índia Portuguesa
Desde os primeiros anos de conquista e estabelecimento do Império Português
nas Índias, se fazem notar os contatos entre os repertórios da medicina ocidental e a
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Ayurveda, e a menção aos físicos indianos. John M. De Figueiredo (1984, p. 228) destacou
que o governador Martim Afonso de Sousa (1500-1571) recomendou que os médicos
indianos e portugueses examinassem vitimas do surto de cólera em 1543. Relatou ainda
os elogios de Gaspar Correia (1495-1561) aos panditos e seus modos de curar enfermos.
Notável a esse respeito, o dico Garcia de Orta (1501-1568) registrou em seus
colóquios os saberes e usos terapêuticos não-ocidentais sobre mezinhas simples e
compostas. Além de informar aos leitores sobre a origem do produto medicinal, a
diferenciação da nomenclatura nas mais diversas partes do Oriente, o físico criso-novo
apontou as utilidades para apaziguar sintomas e a cura atribuída a febres e câmaras.
Notadamente sobre a medicina ayurvédica, destacou os produtos indianos, sua
nomenclatura nas partes de Guzerate, entre os canarins e em Goa, e apontou os
conhecimentos recebidos dos físicos indianos, e boticários (chamados de guandis).
Destacou em seus diálogos os saberes passados diretamente pelo físico hindu Malupaa
(ORTA, 1563, p. 1, 206-207; BOXER, 1963, p. 15).
A abundante produção documental da Companhia de Jesus também fez registrar a
presença dos físicos indianos ainda nas primeiras décadas do estabelecimento da Ordem
no Oriente. Em princípios do culo XVII, Pe. Sebastião Gonçalves (1557-1619) apontou a
presença dos panditos ou dicos “dos quais a Índia está bem povoada”. Relatou que
estes eram formados em medicina nas universidades e que curavam com mezinhas
“simples, muito doutra maneira que os nossos físicos” (GONÇALVES, 1957, p. 67). No
terceiro livro sobre a vida do Pe. Francisco Xavier, Pe. Sebastião Gonçalves apresentou
argumentos atribuídos ao “beato padre sobre a enganação dos brâmanes e suas curas
na Costa da Pescaria. Comparou o comportamento dos brâmanes que, visitando o
enfermo, não procuravam aliviá-lo, antes “consolar a si”, pedindo ofertas de “faes"
(pequenas moedas) "ao pagode, tanto sândalo, tantos carneiros e que logo receberá
saúde”. Por sua vez, afirmou que os padres cuidavam que os cristãos examinassem a
consciência, confessassem os pecados. E, “por que Deus muitas vezes castiga nossas
culpas com doenças”, acontece de, por vezes, o doente arrependido recobrar a saúde
sem “remédios humanosatravés da vontade divina (GONÇALVES, 1957, p. 273).
O visitador Pe. Alessandro Valignano (1539-1606) relacionou os panditos à casta
dos brâmanes, e de forma claramente pejorativa, os qualificou como de “pouco
entendimento e sem qualquer tipo de ci
ência, especialmente nas coisas de após a morte.
Afirmou que todo o seu entendimento estava posto em coisas de comer e da terra e
destacou que alguns tinham conhecimentos em Medicina e Astrologia: “sabem tanto
sobre eclipses como s”. De modo geral, sabiam “escrever e compor seus livros de
histórias e canções em prosa e verso”. Por fim, concluiu que, comparados aos europeus,