Política, cultura e a Questão Palestina
em charges
:
expressões de um artista
palestino em Haifa nas décadas
de 1970 e 1980
Politics, culture and the Palestine Question
in Cartoons
:
expressions of a palestinian artist
in Haifa in the 1970s and 1980s
FIGUEIREDO, Carolina Ferreira de
*
RESUMO: Este artigo tem por objetivo
analisar charges produzidas pelo artista
palestino Abed Abdi entre 1972 e 1981. O
trabalho desenvolvido pelo artista era
publicado no jornal Al-Ittihad, um periódico
criado em 1944, ligado ao Partido Comunista,
e que publicizou amplamente sua oposição a
medidas propostas pelo novo Estado de
Israel, criado em 1948. Partindo da trajetória
individual de Abed Abdi e sua relação com o
periódico, pretende-se problematizar
questões relativas à produção cultural e
política do período, considerando que, desde
a criação do Estado de Israel, diferentes
grupos passaram a delinear um projeto
nacional para a Palestina, enviesado pelas
ideias de libertação territorial e resistência à
ocupão. Analisam-se as charges de Abed
Abdi como um veículo de denúncia,
dialogando local e global a partir de temas
como Imperialismo, colonialismo e a invasão
às terras palestinas.
PALAVRAS-CHAVE:
História; Arte;
Palestina; Charges; Periódicos; Haifa.
ABSTRACT: This article aims to analyze
cartoons produced by the Palestinian artist
Abed Abdi between 1972 and 1981. The work
developed by the artist was published in the
newspaper Al-Ittihad, a journal created in
1944, linked to the Communist Party, and
which widely publicized its opposition to the
measures proposed by the new State of
Israel, created in 1948. From Abed Abdi's
individual trajectory and relationship with
the journal, it is intended to problematize
issues related to cul
tural and political of the
period, considering that, since the creation
of the State of Israel, different groups have
outlined a national project for Palestine,
biased by the ideas of national liberation and
resistance of the occupation. The cartoons
of Ab
ed Abdi are analyzed as a vehicle of
denunciation, dialoguing local and global
from themes such as Imperialism,
colonialism and the invasion of the
Palestinian lands.
KEYWORDS:
History; Art; Palestine;
Cartoons; Journals; Haifa.
Recebido em: 13/08/2019
Aprovado em: 01/12/2019
*
Mestra em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, estado do Rio
Grande do Sul (RS), Brasil. Doutoranda em História Social, Programa de Pós-Graduação em História Social,
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), estado do Rio de Janeiro (RJ), Brasil. Bolsista CAPES. Este
artigo deriva de parte das discussões realizadas na Dissertação de Mestrado, concluída no ano de 2016. E-
mail: carolina.ferreirafigueiredo@gmail.com.
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A luta política na Palestina atravessada pela pauta de sua libertação pode ser
visualizada de diferentes formas ao longo das últimas décadas, protagonizadas por
sujeitos e grupos diversos, e com estes, ações que contêm estratégias e substrato
variado. Em termos gerais, desde 1948, a Palestina vive sob uma condição negada, um
quasi-estado, nas definições do historiador palestino Rashid Khalidi (2007), já que o
processo que culminou no Estado de Israel, e seus desdobramentos, inviabilizou a
criação de um estado nacional soberano na Palestina e para a população palestina.
1
O
Nakba, como é chamado pelos árabes a criação do Estado de Israel, ou a catástrofe,
resultou, entre outros, em um número expressivo de palestinos expulsos de seus
territórios, sendo aos sobreviventes relegados a um destino incerto, no exílio e em
campos de refugiados. Sob a perspectiva da discursividade, Edward Said (2012) disserta
sobre a Questão da Palestina, tratando diretamente do significado da “questão” para
apontar um problema de existência em relação aos palestinos, e a instabilidade do
conceito enquanto central para compreender a política e a cultura do mundo
contemporâneo (SAID, 2012, p. 4-5).
Do ponto de vista da história palestina, o Nakba e as produções de sentidos
identitários e nacionais sofreram ressignificações ao longo do tempo, como analisa, por
exemplo, o historiador Nur Masalha (2012) e a socióloga Anaheed Al-Hardan (2015), esta
última tomando uma abordagem da historiografia. O Nakba também foi e permanece
sendo retratado por artistas palestinos, que encontraram meios de externalizar luta,
revolta e perda, bem como produzir um sentido à produção cultural. O artista abordado
neste trabalho, o palestino Abed Abdi, se insere dentro desta problemática ao se integrar,
do ponto de vista geracional, aos sujeitos de uma “primeira geração” do pós-Nakba,
tendo nascido antes de 1948, mas com formação artística depois dos anos 1960, e nesse
sentido, já arrebatado pelas questões urgentes relativas à população e ao território
nacional.
Assim, o artigo visa problematizar a relação entre a cultura visual e o
engajamento político na Palestina. Para tanto, parte-se das perspectivas dos
historiadores Ulpiano Bezerra de Meneses (2003) e Paulo Knauss (2006) acerca do
estudo da cultura visual, já que considera-se que a visualidade não é universal nem
natural, sendo possível analisar a historicidade da experiência visual; além disso, atribui-
se que a visualidade compõe linguagens, que por sua vez inscrevem certos projetos
culturais envoltos de objetivos e discursos. Nesse sentido, a cultura visual propicia uma
aproximação entre a história social e cultura, já que pode ser compreendida como “[...] o
1
Para ampliar a discussão sobre a formação da identidade nacional palestina, inclusive no período anterior
à 1948, sugere-se a leitura do livro de Rashid Khalidi, The Iron Cage (2017).
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campo de estudos da construção social do visual em que se operam imagens visuais e se
realiza a experiência visual” (KNAUSS, 2006, p. 108); bem como “[...] entendida como o
estudo da construção visual do social, o que permite tomar o universo visual como
terreno para examinar as desigualdades sociais” (KNAUSS, 2006, p. 108). A fim de
investigar estas dimensões, toma-se como documentação charges que foram produzidas
pelo artista palestino Abed Abdi para o Jornal Al-Ittihad durante quase uma década, entre
os anos de 1972 e 1981.
Destaca-se que, junto às análises das charges, pretende-se apresentar, ainda que
de forma breve, a trajetória do artista palestino, de modo a compreender sob que
circunstâncias Abdi passou a integrar o corpo editorial do periódico e assim, tratar
transversalmente as temáticas acerca do papel da imprensa e sua relação com a arte e a
política. Também, objetiva-se demonstrar as complexas relações estabelecidas entre
Israel e Palestina, sob uma perspectiva territorial e humana, já que o próprio artista tem
uma relação muito particular com a cidade de Haifa, uma localidade atravessada por
pertencimentos e memórias diversas. Haifa também é a cidade em que foi criado o
periódico Al-Ittihad, ainda na década de 1940, jornal que abrigará as charges de Abdi
décadas depois. Nesse sentido, a ambientação se dá na investigação das trajetórias
individuais, coletivas e institucionais, alinhavando com a produção das charges em si,
que por sua vez, tensionam as discussões entre as territorialidades do global e o local
nos contextos das décadas de 1970 e 1980.
Haifa: encontro de Abed Abdi com o jornal Al-Ittihad
Abed Abdi retrata 1948, o Nakba, trazendo em sua pintura a experiência de muitos
moradores de Haifa e de sua própria família, como é possível visualizar na Imagem 1,
pintura realizada pelo artista no ano de 1988. Através de tons azulados e cinzas, a cidade
se forma entre diferentes construções, cada qual narrando uma parte do local. Ao fundo,
com azuis de diferentes tons e texturas, o mar é apresentado a partir de navios, os quais
parecem destino de muitos/as. As pessoas presentes neste cenário são diversas e se
avolumam, apesar das centenas de corpos pequenos e distantes. Para o primeiro plano,
observa-se o pai de Abed Abdi, informação complementada a partir do título da obra,
com rosto enrugado e chapéu de lã cinza, imóvel e estarrecido pelo acontecimento. Logo
atrás, à sua direita, uma mulher se senta, desolada, e à sua esquerda, uma família, com
uma criança assustada, que espreita, protegida pela barra da saia da mulher, toda a
realidade. Assim como seu pai, Abed Abdi nasceu em Haifa, na Palestina, em 1942. Estaria
ele mesmo se registrando na pintura na figura desta criança-testemunha?
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Imagem 1. Abed Abdi. My father, and in the background the plight of Palestinians from
Haifa on the 22nd April 1948 (Meu pai, e no fundo os palestinos em apuros em Haifa no
dia 22 de abril de 1948). 1988. Acrílico em Mazonite, 126 x 97 cm.
Fonte: ABDI, 2014a
Expulsa da cidade, a família se locomoveu até chegar ao Líbano, país em que se
instalaram provisoriamente em diferentes campos de refugiados, totalizando três anos
de impermanência, até uma autorização para o retorno à Haifa, que ocorreu no ano de
1951. A partir desta vivência, a temática dos refugiados se faz recorrente a Abed Abdi,
visto que traz à superfície a memória da situação vivida ainda quando era criança: “Eu
me sinto realmente ligado à minha experiência de infância nos campos de refugiados e
isto tem me acompanhado por muitos anos […] ser um refugiado significa sair de sua
terra natal e a esperaa de retorno permanece como um sonho” (PART of an interview
with Abed Abdi, 2014, tradução nossa).
2
Como testemunha, esta experiência
proporcionou ao artista uma série de produções acerca do sentimento de desamparo e
violência.
O enraizamento como sobrevivente ambienta, para além da identidade palestina, a
forte ligão de Abed Abdi com o local de origem, Haifa, onde sua família tem
antepassados traçados até a fundação da cidade, que remonta ao século XVIII (PART of
an interview with Abed Abdi, 2014). Assim, a ligação histórica faz parte do sentimento de
pertencimento de Abdi à cidade de Haifa, apesar das modificações ocorridas com o
2
[No original]: “I indeed feel attached to my childhood experience in the refugee camps and this has
accompanied me for many years (…) being a refugee means to leave a homeland and the hope to return
remains our dream” (PART of an interview with Abed Abdi, 2014).
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Estado de Israel. Sobre isso, o artista externaliza algumas reflexões em entrevista
realizada por Armon E. Azulay no ano de 2010:
Eu lido com o problema Judeu-Árabe como uma parte inseparável do cenário de
Haifa. Em termos municipais, o serviço civil é supostamente dado aos palestinos
residentes na cidade, mas em termos das políticas do país em relação a
populações mistas a situação me preocupa muito. Na realidade eu estou lidando
com isso como um palestino e estou tentando manejar com o outro por
solidariedade. Eu também não tenho outra terra natal (AZULAY, 2010, tradução
nossa)
3
.
Esta perspectiva exalta a preocupação com a população palestina residente em
Israel, uma vez que há uma série de dificuldades legais dentro país, sendo palestinos
normalmente considerados como cidadãos de “segunda classe”. Segundo o cientista
político As’ad Ghanem (2001, p. 159), a populão árabe dentro de Israel sofre
discriminações diárias, envolvendo tanto a esfera jurídica quanto alocação de terras,
bem como preconceitos de âmbito étnico, cultural e religioso. Para o teórico, uma
democracia como a de Israel “[…] não pode ser mais do que uma semidemocracia, porque
o estado é identificado com somente um grupo; isto é, oferece uma pátria para somente
um grupo étnico dentro da sociedade e oferece somente igualdade parcial para os
membros de outros grupos” (GHANEM, 2001, p. 7, tradução nossa).
4
Entretanto, cabe
destacar que aquela é uma fala de Abdi em 2010, portanto, deve-se considerar a sua
atualidade contextual. Suas percepções e lutas podem ter sido transformadas ao longo
das décadas, diferenciando, por exemplo, do engajamento proposto pelo artista nas
décadas de 1960 a 1980, como será apresentado mais adiante.
De todo modo, percebe-se que o desenvolvimento artístico de Abdi tem direta
relação com suas experiências individuais e coletivas e é atravessado pelo cenário da
Palestina no século XX. Assim, suas produções podem ser visualizadas como expressões
que lidam com os sentimentos do artista, que desde muito cedo foram externados por
essa linguagem visual, bem como uma arte de denúncia social e de resistência, como
poderá ser vislumbrado mais especificamente nas charges. A historiadora da arte Gannit
Ankori (2006), em Palestinian Art, apresenta, ainda na introdução do livro, um tipo de
sentimento semelhante, ao dimensionar que a visualidade se tornou a primeira linguagem
3
[No original]: “I deal with the Jewish-Arab issue as an inseparable part of the Haifa scenery. In municipal
Terms the civil service is supposedly given to the Palestinian residents of the city, but in terms of the
country's policy towards mixed populations the situation really worries me. In the reality I am dealing with
as Palestinian I'm trying to manage with the other out of solidarity. I also have no other homeland”
(AZULAY, 2010).
4
[No original]: “[…] can be no more than semidemocracy, because the state is identified with one group
only; that is, it offers a national home to only one of the ethnic groups within its society and offers only
partial equality to members of other groups” (GHANEM, 2001, p. 7).
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para o entendimento do mundo, em sua perspectiva (ANKORI, 2006, p. 9). Além disso, a
transformação da arte em engajamento é uma prática importante de Abdi, a qual atribui
como positiva em entrevista já citada (2014), uma vez que sua arte tem por objetivo tecer
críticas sociais e promover a paz (PART of an interview with Abed Abdi, 2014).
Sua formação artística ocorreu principalmente a partir da década de 1960, entre
cenários artísticos na Alemanha e em Israel. A partir de sua participação na Aliança da
Juventude Comunista em Haifa em 1962, na época com vinte anos, Abdi foi aceito como
membro da Associação de Artistas em Haifa, propiciando-o, dois anos depois, uma
oportunidade de bolsa para estudar design gráfico na Alemanha Oriental. Lá, frequentou
a Academia de Belas Artes de Dresden, cidade que foi sua residência durante sete anos.
Segundo Tal Ben Zvi, curadora da galeria Hagar, em Israel, e autora de um livro
biogfico de Abed Abdi, em seu período na Alemanha, o artista completou um mestrado
e uma especialização (ZVI, 2010, p. 222).
Esta trajetória biográfica de Abdi é particularmente importante, pois é a partir de
sua ligação à Associação de Artistas de Israel, que o mesmo pôde conhecer e encontrar
diversos artistas que faziam parte do cenário artístico em Israel, com membros como
Shmuel Hilsberg, Avraham Ofek, Ruth Schluss, Shimon Zabar e Naftali Bezem. O grupo,
nesse contexto, não se apresentava somente como um círculo artístico, mas
propriamente um círculo intelectual e ligado à política, especialmente sob o alinhamento
de esquerda a partir do Partido Comunista de Israel. Tal Ben Zvi (2010) aponta um
importante movimento que atingiu profundamente Abed Abdi em sua juventude, o
Realismo Social, já presente na arte em Israel, e que partilhava princípios de uma arte
engajada a qual o artista começou a sua vida praticando, e que foi intensificada pelo
contato com a Alemanha comunista neste mesmo período.
Acerca do círculo intelectual-artístico em Israel, Tal Ben Zvi (2010) insere em sua
pesquisa uma notícia do jornal Zu Haderekh, de 1974, que relata uma fala de Abdi no
painel de discussão em 1973 na Associação de Artistas de Haifa. Fica evidente seu ponto
de vista quanto à posição que um artista deve tomar: “Da mesma forma que um artista
vive os eventos do passado, presente e futuro […] E quando a sociedade e a humanidade
estão em crise, cabe ao artista se expressar harmoniosamente pelas formas artísticas ao
seu alcance [...]” (Abdi apud ZVI, 2010, p. 217, tradução nossa).
5
E segue dissertando
acerca do papel do artista, que em sua opinião é um reforço constante entre a sociedade
e ele mesmo: “Fui convocado a partir deste enfoque e, portanto, entendo a conexão
5
[No original]: “In the same way that an artist lives the events of the past, present and future (…) And when
society and humankind are in crisis, the artist is required to express himself harmoniously by means of the
artistic vehicle at his disposal […](Abdi apud ZVI, 2010, p. 217).
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entre meu trabalho artístico e o papel definido por Kokoschka,
6
que procurou remover a
máscara para todos aqueles que querem ver a realidade como ela é” (Abdi apud ZVI,
2010, p. 217, tradução nossa).
7
Esta fala ambienta um dos tópicos de discussão dentro da
esfera do país e de Haifa, a qual está articulada a um ambiente social internacionalista.
Inserido em uma rede dentro de Israel, Abed Abdi conta a experiência de estar no
Partido Comunista na época, em entrevista concedida a Samia Halabi (2013):
“Claramente minha situação era difícil, mas era mais fácil do que eu imaginava. Naqueles
anos iniciais, atenção à arte começou a acontecer [...] Eu retornei [de Dresden] em 1971 e
em 1972 eu estava empregado no Al Ittihad e Al Jadid [órgãos do Partido Comunista]
como designer e escritor na área de arte e história da arte” (HALABI, 2013, tradução
nossa).
8
E conclui, remetendo, novamente em sua fala, à característica de sua arte
engajada, que pôde ter espaço a partir das publicações de Al-Ittihad: “Este trabalho me
ajudou muito. Eu podia levar minha mensagem artística para as pessoas que estavam
sedentas por arte” (HALABI, 2013, tradução nossa).
9
O jornal em questão, chamado Al-Ittihad, que significa A União em árabe, foi
fundado em 1944, ainda antes da criação do Estado de Israel. Os fundadores foram Emile
Touma, Fu’ad Nassar e Emile Habibi, tendo, ao longo de sua história, contado com
colaboradores importantes, como o poeta palestino Mahmoud Darwish, assim como
Jabra Nicola, um renomado artista plástico palestino. O perdico Al-Ittihad vincula-se ao
Partido Comunista em 1948 quando o partido assume um novo nome, MAKI
(Hamiflagah Hakimunistit Hayisra’elit / Partido Comunista de Israel). O jornal era o único
periódico publicado em árabe em Israel, e começou com publicações semanais. Depois,
passou a publicar duas vezes por semana, e por fim, em 1983, tornou-se diário. O
periódico tinha como base de operações Haifa, local onde a maioria dos colaboradores se
baseava também, segundo dados apresentados por Joel Beinin (1990). Em 1965, há uma
nova ruptura, a partir de divergências internas quanto à relação de Israel com a potica
interna e externa, relacionada à União Soviética, como desenvolve Musa Budeiri (1979).
10
Apesar de Abed Abdi tornar-se colaborador somente a partir da década de 1970, o icio
e desenvolvimento do periódico fornecem informações relevantes e que contribuem para
6
Em referência ao pintor austríaco expressionista Oskar Kokoschka.
7
[No original]: “I was brought up according to this approach and thus I understand the connection between
my artistic work and the role defined by Kokoschka, who sought to remove the mask for all those who
want to see reality as it is (Abdi apud ZVI, 2010, p. 217).
8
[No original]: “Clearly my situation was difficult but it was easier than I had imagined. In those early
years, attention to art began to happen (...) I returned [from Dresden] in 1971 and by 1972 I was employed in
Al Ittihad and Al Jadid [organs of the CP] as a designer and writer in the area of art and art history”
(HALABI, 2013).
9
[No original]: “This job helped me a great deal. I could take my artistic message to the people who were
thirsty for art” (HALABI, 2013).
10
Sobre a criação do periódico, consultar a dissertação de mestrado de Figueiredo (2016).
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compreensão das alianças e alinhamentos ideológicos aos quais Al-Ittihad se filiou.
A partir das trajetórias de Abdi e do periódico Al-Ittihad, é possível apontar para a
importância da cidade de Haifa, palco de muitas reunes e formação de grupos, um
verdadeiro centro político dentro da região. Outros jornais também tiveram importância
e foram produzidos na cidade, como o próprio Jornal de Haifa (Haifa Journal) e Novo
Amanhecer (New Dawn), ambos das NLL, a Liga da Libertação Nacional (National
Liberation League). Assim, “Os intelectuais estavam organizados na Liga dos Árabes
Intelectuais, encabeçados por Bandak, Habibi, Tubi, e Emile Tuma, e em dois clubes de
Haifa, O Clube do Povo, liderado por Habibi e Sociedade dos Raios da Casa, liderados por
Farah e Tuma” (BUDEIRI, 1979, p. 42). Um território fértil, de efervescência potica, onde
Abed Abdi ingressou na década de 1960, e participou profundamente nos anos 1970 e 80.
Al-Ittihad em tempos de Abdi: charges que denunciam
Para tratar de uma publicação realizada periodicamente no jornal Al-Ittihad, é
necessário atentar-se para a análise desta fonte documental. As historiadoras Heloísa
Cruz e Maria da Cunha do Rosário Peixoto (2007), ao discutirem as relações entre
história e a imprensa, alertam para o fato de que para analisar qualquer fragmento
presente em um vculo de imprensa, faz-se necessário “[...] remetê-lo ao jornal ou à
revista que o publicou numa determinada conjuntura” (CRUZ; PEIXOTO, 2007, p. 260),
ou seja, inseri-lo dentro de um projeto editorial. Nesse sentido, a apresentação do
periódico é fundamental para melhor compreender as produções do próprio Abed Abdi.
Nesse âmbito, ainda é necessário “[…] articula[r] a análise de qualquer publicação ou
periódico ao campo de lutas sociais no interior do qual se constitui e atua” (CRUZ;
PEIXOTO, 2007, p. 257). Também, deve-se considerar a imprensa como um veículo que
agrega uma produção intelectual, e nesse sentido, a contribuição de Abed Abdi entre o
denominador artístico e o aspecto intelectual da produção. Para Mônica Velloso (2008),
que disserta sobre a relação do intelectual com os periódicos, ao perceber-se “[...] o
lugar estratégico dessas publicações na articulação de projetos potico-culturais, parte
expressiva da intelectualidade envolve-se na dinâmica do mercado editorial” (VELLOSO,
2008, p. 212). Assim, o estudo da imprensa e dos meios de comunicação promovem um
intenso diálogo entre o estudo da sociedade e da cultura.
As charges produzidas por Abdi estão inseridas dentro do contexto do jornal,
portanto, apresentam afinidade com o perdico, ainda que não se possa saber
definitivamente se o artista concordava com a tônica de todas as mensagens produzidas
por ele, ou se havia uma demanda editorial propriamente. Sobre as charges
especificamente, de acordo com o historiador da arte Ernest Gombrich (1999), estas
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adquirem a característica de “fornecer algum tipo de foco momentâneo” (GOMBRICH,
1999, p. 131), portanto, reúnem elementos capazes de “romper com a internalização dos
sentimentos, desejos e pulsões nos indivíduos frente ao controle e à regulação impostos
pela sociedade, provocando, então, momentos em que valores e atitudes estariam
confrontados” (PETRY, 2008, p. 49). Dimensão esta fundamental para se problematizar,
tendo em vista o espaço que o jornal Al-Ittihad ocupava desde a sua fundação e mais
especificamente no período de publicação de Abdi.
Além disso, é possível dimensionar o impacto do uso de charges como um veículo
de resistência na Palestina. O trabalho de Sandy Sufian (2008), por exemplo, analisa as
charges feitas por dois artistas de dois jornais diferentes, ainda no contexto de Mandato
Britânico, período que compreende 1920 a 1948, e conclui que as “imagens de charges
políticas ajudaram a guiar uma mensagem nacionalista para palestinos letrados e
iletrados [...]” (SUFIAN, 2008, p. 26, tradução nossa).
11
Nesse sentido, a “[...] imprensa
diária influenciou significativamente com queses consideradas importantes durante a
Revolta [de 1936 a 1939]” (SUFIAN, 2008, p. 26, tradução nossa).
12
Em outro contexto, o
cartunista Naji al-Ali também externa a importância da charge para se expor a Questão
Palestina, a partir da criação de um personagem, uma criança palestina chamada
Hanthala, que assume o papel de um observador de cada cena desenhada pelo cartunista.
Sobre esta produção, na introdução do livro de charges de Naji al-Ali, Joe Sacco afirma
que “Hanthala foi abraçado como um símbolo pelos palestinos mais pobres; ele
lembrava-os deles mesmos empobrecido, indesejado, os órfãos do Oriente Médio. Mas
Hanthala era algo mais também ele era conhecimento” (SACCO, 2009, p. viii, tradução
nossa).
13
As charges
14
produzidas por Abdi que compõem o jornal apresentam uma porção
de temáticas, mas que se relacionam ao falar das relações internas e externas, como
ações de Israel, colonialismo, Imperialismo e violência contra os palestinos; denotando
assim, eventos do cotidiano apresentados por uma perspectiva potica específica. As que
dissertam sobre as relações entre Palestina e Israel, tratam especialmente sob o viés das
11
[No original]: “visual images in political cartoons helped drive a nationalist message for both literate and
illeterate Palestinians [...]” (SUFIAN, 2008, p. 26).
12
[No original]: “[...] daily press significantly influenced with issues were deemed important during the
revolt” (SUFIAN, 2008, p. 26).
13
[No original]: “Hanthala was embraced as a symbol by the poorest Palestinians; he reminded them of
themselves impoverished, unwanted, the orphans of the Middle East. But Hanthala was something else,
too he was knowing” (SACCO, 2009, p. viii).
14
Duas questões devem ser destacadas. Em primeiro lugar, o conteúdo presente nas charges desta
pesquisa foi traduzido de forma livre (parcial ou integralmente) pelos/as tradutores/as Manhal Kasouha e
Dunia Bakri no ano de 2015. Em segundo lugar, esclarece-se que não foi possível ter acesso, no
desenvolvimento da pesquisa de mestrado, a todos os exemplares do Jornal Al-Ittihad. Uma vez que as
charges que foram obtidas não apresentavam datas específicas, apenas o período de publicação (1972-
1981), não foi possível precisar em qual momento específico as publicações de Abdi ocorriam.
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políticas empregadas por Israel e na contrapartida, a resistência e consequências desta
ocupação para os palestinos. No processo de pesquisa, foram localizadas sessenta e
quatro charges produzidas por Abdi, e a partir delas, foi realizada uma análise
iconográfica e um exercício de localização histórica, a partir dos personagens e cenários
envolvidos, além da própria tradução quando necessária. A partir disso, foi possível
traçar elementos recorrentes e temáticas mais mobilizadas pelo artista. Para este artigo,
foram selecionadas dez charges que tratam de dois grandes temas: em primeiro lugar, a
presença da política externa e o Imperialismo presente na região, denunciados pelo
jornal, através da presença da Europa e principalmente dos Estados Unidos. O segundo
tema trata das experiências e cotidianos da relão entre Palestina e Israel
especialmente no que tange à violência e à ocupação das terras.
As charges apresentam-se como uma forma que dialoga com o tempo presente,
ativando personagens e cenas reconhecíveis de acontecimentos diários, a partir de
traços que buscam a ironia de elementos, além de proporcionar críticas da relação entre
o público e o privado, ao questionar “[…] ideias e comportamentos que de maneira geral
partem da esfera pública da sociedade e alcançam significação no âmbito privado,
porque invocam posicionamentos e apreendem relações desenvolvidas em diferentes
cenários de um mesmo tempo, o presente” (PETRY, 2008, p. 28). Partindo deste
enquadramento, é pertinente ressaltar a relação do potico com a linguagem das
charges, muitas vezes atrelada ao humor, focada na rápida interpretação, por isso, com
características populares, simples e diretas. Além do riso, a exacerbação de traços é uma
característica das charges, e esta é utilizada por Abdi em sua produção, de modo a
contribuir para a rápida identificação do personagem, bem como instigar a uma crítica e
ironia ao que está sendo representado. Segundo Rodrigo Patto Sá Motta (2006), que
investigou a produção de charges no Brasil, a caricatura “[…] contribui para desmistificar
e dessacralizar o poder, mostrando líderes e chefes de Estado como seres humanos
falíveis e, eventualmente, ridículos. Ao mesmo tempo, torna os assuntos políticos menos
misteriosos e mais próximos do universo de compreensão do povo” (MOTTA, 2006, p.
18).
As charges a seguir demonstram presença estadunidense em Israel, visto que as
imagens demonstram um interesse explícito e uma manipulação política, militar e
econômica no Oriente Médio, denominada de Pax Americana por Ilan Pappe (2006, p.
205), para nomear o momento de hegemonia estadunidense, que assumiu (ainda que
discursivamente) uma versão pacificadora, uma “polícia” internacional, como por
exemplo, no seu relacionamento com a ONU. As charges que criticam essa face
Imperialista abordam os principais personagens do cenário, como o então Primeiro-
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Ministro de Israel, Yitzhak Rabin, que governou entre 1974 a 1977, além de Henry
Kissinger, membro do Conselho Nacional de Seguraa entre 1969 a 1975, e Secretário de
Estado dos Estados Unidos, entre 1973 a 1977.
Para a primeira charge (Imagem 2), em primeiro plano e centralizado, uma figura
identificada como o então primeiro-ministro Yitzhak Rabin escrito pelo próprio
chargista em sua roupa, trajando vestuário similar ao de um turista como a estampa da
camisa e da bermuda, o tipo de sandália, portando também uma mochila e uma máquina
fotográfica. Para o segundo plano da imagem, logo atrás do personagem principal da
charge, há um mural contendo muitas informações em árabe, separadas por setores. O
mural, “Quadro de anúncios Europeus”, frase em árabe na parte superior da imagem,
compõe-se junto ao quadro, com vários anúncios com menções de países acerca da
política de Israel, Henry Kissinger, menção da Síria e do Vaticano. Sua mochila carrega
os termos “Colinas de Golã, Cisjordânia e Sinai”, assim como em seu jornal está escrito
“regras da ocupação”. A partir destes elementos, é posvel inferir que Rabin (e por
consequência Israel) está sob posse dos territórios da mochila,
15
e que segue um
itinerário consultado por ele no jornal. O quadro de anúncio propõe tanto frases de
cautela como de aliança, o que pode indicar que ele está consultando países europeus
sobre como proceder com os territórios conquistados.
Imagem 2. Abed Abdi. Charge produzida para o jornal Al-Ittihad. 1972-1981.
Fonte: ABDI, 2014b
15
Se for retomado ao contexto histórico, é possível relacionar esta charge com a ocupação territorial
israelense no pós-1967. Isto porque, Israel, as a vitória da Guerra dos Seis Dias, em 1967, assume
controle das regiões citadas, sendo que o Sinai é devolvido em acordo com Egito em 1979, em 1973 foi
devolvido 5% dos territórios das Colinas de Golã e a Cisjordânia foi devolvida em 2005.
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A segunda charge (Imagem 3) pode remeter tanto a um acontecimento específico,
quanto versar sobre as relações internacionais de modo amplo. Em primeiro plano, há a
presença de uma figura masculina, possivelmente Rabin, trajando uma roupa preta, com
expressão de esforço reforçada pelo suor, e exacerbação de traços da testa,
sobrancelha, nariz e boca. Sua atitude corporal indica um esforço em afastar algo,
levando-nos assim para outro elemento central na imagem que tem formato retangular
com vários outros retângulos menores, indicando um prédio alto. A identificação deste
edifício em particular ocorre a partir do símbolo da ONU. No fundo, formam-se desenhos
que aludem à presença de outros prédios, remetendo ao local, possivelmente Nova
Iorque. Nesta imagem, o que Abdi parece retratar é o descontentamento de Israel com a
pauta da ONU, e Rabin, representando Israel, empurra, numa tentativa de desestabilizar
e/ou isolar a ONU. Considerando que se tratar de um evento específico, uma hipótese
pode ser atribuída à data de 10 de novembro de 1975, em que foi definido, a partir de uma
Assembleia Geral, a Resolução 3379, que diz: “[...] sionismo é uma forma de racismo e de
discriminação racial” (UN, 1975).
16
Imagem 3. Abed Abdi. Charge produzida para o jornal Al-Ittihad. 1972-1981.
Fonte: ABDI, 2014b
16
[No original]: “[...] zionism is a form of racism and racial discrimination” (UN, 1975).
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Outro personagem importante, presente na política externa dos Estados Unidos, e
o mais retratado por Abed Abdi, é Henry Kissinger, como é possível observar na charge a
seguir:
Imagem 4. Abed Abdi. Charge produzida para o jornal Al-Ittihad. 1972-1981.
Fonte: ABDI, 2014b
O membro do Conselho Nacional de Segurança dos Estados Unidos aparece “em
tentação” pelo maior interesse estadunidense, o petróleo do Oriente Médio. Na charge da
Imagem 4, Kissinger aparece diversas vezes, abrindo e fechando portas, como se fossem
escolhas, opções para ele. A escolha está no final, entre Genebra e o petróleo, assinalado
especificamente como o petróleo árabe. O último Kissinger está correndo diretamente
para o petróleo, o terno preto venceu o branco. Embora a charge ressalte esse interesse
e escolha, Kissinger esteve no Congresso de Genebra em 1973.
O cartunista Naji Al-Ali também retratou diversas vezes o interesse dos Estados
Unidos em relação ao petróleo, representando Kissinger como o principal mediador. Na
imagem, é possível observar a permanência das características exacerbadas, como o
queixo, cabelos e os olhos com óculos. Na charge (Imagem 5), Hanthala, o observador
palestino, testemunha uma conquista triunfante de Kissinger, metamorfoseado com um
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bico por onde sai petróleo, após ter diplomaticamente acabado com o embargo que se
iniciou em 1973.
Imagem 5. Naji Al-Ali. Charge sobre Henri Kissinger. 1974.
Fonte: AL-ALI, 2009.
De modo a pontuar e ressaltar as críticas às políticas sionistas, Abdi
constantemente representa o resultado do estabelecimento do Estado de Israel em
território palestino. Nas três charges a seguir, Abed Abdi retrata elementos de violência
física e simbólica do território:
Imagem 6. Abed Abdi. Charge produzida para o jornal Al-Ittihad. 1972-1981.
Fonte: ABDI, 2014b
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Imagem 7. Abed Abdi. Charge produzida para o jornal Al-Ittihad. 1972-1981.
Fonte: ABDI, 2014b
Imagem 8. Abed Abdi. Charge produzida para o jornal Al-Ittihad. 1972-1981.
Fonte: ABDI, 2014b
A charge (Imagem 6) apresenta um dos vieses de controle e poder sobre o
território, a alteração dos nomes das ruas, retirando-lhe o elemento árabe (o trabalho do
pintor em riscar com “x” o que seria palestino) e adicionando os mesmos significados,
mas sob posse judaica. Como o próprio poste sugere, a modificação de todas as placas,
que estão direcionadas para todos os lados, serve como metáfora para as muitas
ramificações deste poder, o que alude diretamente à perda de terras e dos direitos dos
palestinos a uma nação.
O tom da ocupação ainda é entoado por Abdi através das ações do então
primeiro-ministro de Israel, na charge (Imagem 7), criando uma dualidade: Rabin,
propriamente encarnado como Israel, e a árvore, uma oliveira, símbolo do território, a
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qual é fundida à Palestina. Israel é concebido pela perspectiva do chargista como um des-
enraizador da Palestina, assim tida como uma representação de bloqueio para a paz, e
possivelmente com um tom sádico, arrancando galhos um a um. Desta denúncia há um
direcionamento de Abdi para a relação íntima dos palestinos com o território. Dina Matar
(2011), ao recolher falas sobre palestinos, cita o relato de Sa´id Barghouti: “A terra era o
centro do nosso universo, o foco da nossa identificação (...) nosso jardim era abundante
com árvores que meu pai havia plantado em 1937, um ano antes de eu nascer” (MATAR,
2011, p. 32, tradução nossa).
17
Para a charge correspondente à Imagem 8, o protagonista novamente é Rabin,
dizendo “continuaremos expandindo as áreas dos assentamentos”. Há uma ideia objetiva
desenhada por Abdi retratando a ocupação como algo que passa por cima de tudo, em
um território em “branco”. Sobre esta dimensão, Edward Said (2012) relembra o
investimento político e o conjunto papel da mídia em criar uma invisibilidade dos
palestinos, sendo historicamente apagados, referindo-se muitas vezes à Palestina
enquanto um território vazio; ou submetidos a julgamentos como “bárbaros”,
“incivilizados”, “islâmicos”, termos generalizantes para árabes também, compondo um
Oriente exótico ao Ocidente (SAID, 2012, p. 29-34). Todas essas ideias parecem
aglutinadas sobre essa perspectiva de começar do zero, passar por cima de tudo, que
parece ser o que Rabin faz na charge.
As próximas charges continuam tratando do território, entretanto externalizando
o processo de colonialismo nas vilas e cidades, e a violência na proteção por Israel.
Imagem 9. Abed Abdi. Charge produzida para o jornal Al-Ittihad. 1972-1981.
Fonte: ABDI, 2014b
17
[No original]: “The land was the centre of our universe, the focus of our identification (...) our Garden was
abundant with tress that my father had planted himself in 1937, a year before my birth” (MATAR, 2011, p.
32).
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Imagem 10. Abed Abdi. Charge produzida para o jornal Al-Ittihad. 1972-1981.
Fonte: ABDI, 2014b
A primeira delas mostra o então primeiro-ministro Menachem Begin, que
governou Israel de 1977 a 1983, fechando uma cidade com cadeado, indicando proteção
máxima. Na segunda, a cidade também está cercada e protegida, e abaixo seguem os
termos: “Colonialismo” e “Processo de Assentamento”. Sob a perspectiva da história do
exílio do povo judeu, elaborou-se através da política sionista uma narrativa, a qual se
tornou um axioma histórico (SAND, 2014, p. 251). Ainda com Schlomo Sand, a gradativa
judaização do país fez com que, entre outras coisas, “a maioria dos kibutzim [se]
estabelec[essem] em zonas limítrofes ao longo das fronteiras a fim de impedir o
movimento trans-fronteiriço de refugiados árabes (a quem o jargão israelense do período
chamava de infiltrados)” (SAND, 2014, p. 288).
Deste processo, Abdi retrata, na charge a seguir, o resultado para a população
palestina, cuja mensagem é forte em relação à violência física. Há uma cerca, com
arames farpados, separando e segregando um grupo de pessoas, uma possível proibição
de retorno, com uma tônica visivelmente de ameaça, já que é visível que caso
ultrapassem essa fronteira, a brutalidade e violência aguardam esses sujeitos.
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Imagem 11. Abed Abdi. Charge produzida para o jornal Al-Ittihad. 1972-1981.
Fonte: ABDI, 2014b
A análise das charges permite estabelecer algumas considerações tanto no
sentido da produção quanto nas configurações apresentadas por Abed Abdi. O conteúdo
deste material direciona para um posicionamento do periódico e do artista quanto às
questões enfrentadas pela populão palestina, tanto sob viés da política externa e dos
atores envolvidos mundialmente em interesses no Oriente Médio, quanto sob um viés
mais interno que diz respeito às alterações do território palestino e à dissolução da
existência palestina através deste tipo de colonialismo, termo marcado na própria
charge. Nesse sentido, embora tratem de temáticas diferenciadas, todas as charges
compõem uma mesma preocupação, a de denúncia em relação à realidade vivida,
problematizando, assim, a Questão Palestina, um problema de nível identitário, nacional,
territorial e de existência e reconhecimento dos palestinos.
Ademais, ainda que todas foram apresentadas no contexto diário, portanto
reportando a alguma notícia ou demanda do cotidiano, as charges apresentam-se de
formas diferenciadas, de maneira que há algumas que dizem respeito a um fato
específico ou acontecimento momentâneo, e outras que parecem carregar um cunho
mais atemporal, especificamente aquelas que tratam do território e da população
palestina. Isto é relevante pois questiona-se a relação entre imediaticidade e construção
histórica, na medida em que se tensiona essas temporalidades para a execução da
charge, mesmo que esta esteja voltada mais para uma reação imediata do presente do
que uma análise estrutural do evento. Esta relação também pode revelar o processo de
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produção do jornal e das charges, visto que as edições eram vendidas duas vezes na
semana, o que poderia indicar que havia um planejamento mais longo sobre o tipo de
evento que se escolheria representar visualmente, portanto, não necessariamente de
maneira espontânea.
Em relação ao conteúdo imagético é possível notar que a presença de Rabin nas
charges está mais constantemente atrelada à política externa, especialmente com os
Estados Unidos, diferentemente da aparição de Begin, em que a charge demonstra uma
relação mais interna, na perspectiva pronunciada, na proteção a Israel e no embate
contra os palestinos. Nesse aspecto, se a charge tensiona a temporalidade, o conteúdo
dela também dimensiona a relão entre uma verdade histórica e/ou uma interpretação
apresentada por meio de uma imagem, e não no sentido de uma busca fiel pela realidade,
mas por que “a caricatura pode funcionar, simultaneamente, como crônica e
interpretação, poiso é fácil separar o ato de informar e a ação de interpretar os
eventos poticos” (MOTTA, 2008, p. 22). O que situa o cartunista como um comentador
de política sob um ponto de vista, como é percebido em certa medida por Abdi em suas
charges, dialogando propriamente com a linha proposta pelo jornal Al-Ittihad.
Considerações finais
Este artigo teve por objetivo apresentar parte da produção de charges do artista
palestino Abed Abdi, analisando as temáticas mobilizadas pelo artista para tratar da
realidade palestina da época, tanto no âmbito da política, quanto da cultura e cotidiano.
Assim, considerando que esta produção parte de um posicionamento específico, tratou-
se também de uma breve trajetória individual e intelectual de Abdi, propondo a
aproximação do viés político a partir do jornal Al-Ittihad. Nesse sentido, é posvel
refletir sobre a formação dessa sociedade palestino-israelense ao longo do século XX,
especialmente no período tratado no artigo, que abrange desde o nascimento do jornal,
na década de 1940, e com enfoque, na década de 1970 e 80, momento da produção de
Abdi. A existência de um jornal ligado às pautas comunistas e sua distribuição por dentro
dos espaços e territórios de Israel permite alçar voo para a diversidade e
particularidades deste novo país, e inclusive, problematizar sob que circunstâncias um
jornal árabe de oposição conseguiu sobreviver por tantos anos. Mais especificamente
sobre as charges, nota-se que Abdi mantém uma relação próxima entre o local e global, e
por vezes complexificando estas significações a partir da ideia de colonialismo e
ocupação, tratando a Questão Palestina como um processo de expulsão, violência e
política interna e externa. Nesse sentido, ao falar da violência cotidiana de
palestinos/as, necessariamente tem-se que se abordar a “grande” política, uma vez que,
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em larga medida, as relações exteriores financiam e prolongam esta realidade,
respaldada pela política de Estado de Israel.
A partir destes apontamentos, compreende-se que as charges são relevantes
expressões da cultura visual, especificamente no que se refere ao dinamismo entre o
histórico e a base política do jornal para com os conteúdos existentes nele, sendo as
produções de Abdi um exemplo de confluência da esfera político-midiática. Nesse
sentido, é possível pensar as charges por pelo menos dois vieses principais, que foram
desenvolvidos no presente artigo: primeiramente, as charges remetidas ao contexto da
época, em contato direto com o meio social, motivações e objetivos do periódico; e
também, mais específica à perspectiva da imagem, onde as charges possuem elementos
singulares que as caracterizam, como utilização de ironia, metáfora e a
complementaridade com o texto, além do caráter implícito das mensagens. Este último,
particularmente, enaltece a ação do artista, em sua relação com a intenção, além de
ressaltar o aspecto da cultura iconográfica, em que elementos historicamente
reconhecíveis, que são compreendidos por determinados grupos, são ativados.
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