De rainha amada à mulher estrangeira:
D. Leonor de Arao, a regente
maculada por meio do rumor
From beloved queen to foreign woman:
D. Leonor of Aragon, the regent
blemished by the rumor
DIAS, Gustavo Magave
*
LIMA, Douglas Mota Xavier de
*
RESUMO: O desenvolvimento das
monarquias em finais da Idade Média
envolveu inúmeros fatores, entre eles, o uso
da informação, que tem sido objeto de
crescentes investigações por parte da
historiografia. O reino de Portugal expressa
tal importância da informação e dos rumores
e o presente artigo discute o caso da
regência iniciada após a morte do rei D.
Duarte (1438) e a menoridade do príncipe
herdeiro. Considerando esse caso, o estudo
concentra-se na Chronica de El-Rei D.
Affonso V, de Rui de Pina, e analisa a
presença dos rumores no contexto das
disputas em torno da regência portuguesa,
problematizando como tais informações
contribuíram para macular a imagem da
rainha D. Leonor.
PALAVRAS-CHAVE:
Portugal medieval;
Rumor; Política de informação.
ABSTRACT: The development of
monarchies in the late Middle Ages involved
numerous factors, among them the use of
information has been the object of
increasing investigations of
historiography.The kingdom of Portugal
expresses such importance of information
and rumor
s and this article discusses the
case of the regency begun after the death of
King D. Duarte (1438) and the minority of
the crown prince. Considering this case, the
study focuses on the Chronica de El-Rei D.
Affonso V, by Rui de Pina, and analyzes the
pres
ence of rumors in the context of
disputes around of the Portuguese regency,
problematizing how such information
contributed to maculate the image of queen
D. Leonor.
KEYWORDS:
Medieval Portugal; Rumors;
Politics of Information.
Recebido em: 26/09/2019
Aprovado em: 01/12/2019
*
Graduando em História pela Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), bolsista PIBIC/UFOPA,
Santarém, estado do Pará (PA), Brasil. E-mail: gustavomagavedias@gmail.com.
*
Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor Adjunto da Universidade
Federal do Oeste do Pará (UFOPA), Santarém, estado do Pará (PA), Brasil. E-mail:
douglas.mxl@ufopa.edu.br
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Morre um rei, “nasce” uma querela
Em uma quinta feira, 09 de setembro de 1438, faleceu o segundo rei da dinastia de
Avis. D. Duarte, de acordo com as palavras do cronista Rui de Pina (1901), deixou
profunda tristeza em seus familiares. De ensimesmado à personagem político ativo da
dinastia, sabe-se que a morte do rei gerou mais do que abatimento no reino. Além do
sentimento de perda, o rei, conhecido como Eloquente, deixou um testamento com seus
últimos desejos, entre os quais dizia que sua esposa, a rainha D. Leonor, deveria reger
sozinha o reino de Portugal enquanto o príncipe D. Afonso não possuísse idade
suficiente para assumir o trono lusitano. Contudo, mais do que consternação, a morte de
D. Duarte e a abertura de seu testamento produziram uma disputa marcada, entre outros
aspectos, pelos usos políticos da informação.
Tendo em vista o cenário da regência portuguesa, este artigo tem como objetivo
discutir os aparentes usos da informação durante o conflito entre o infante D. Pedro e D.
Leonor, viúva do rei D. Duarte. A partir da concepção de que se utilizada a informação
pudesse contribuir na formulação de políticas em vários governos medievais, gerando
vantagens quando empregada de maneira qualitativa, a intenção do texto é perceber
como a circulação de rumores, incentivados por D. Pedro e/ou seus apoiadores,
contribuíram para a desqualificação da rainha Leonor como regente, ampliando a sua
rejeição por parte do povo.
Informação e política em finais da Idade Média
Ao trabalhar com informação, fica evidente a árdua tarefa que é conceituar um
termo tão polissêmico. Na língua portuguesa (MICHAELIS, 2019), por exemplo, refere-se
ao “ato ou efeito de informar (-se)”, ao “conjunto de conhecimentos acumulados sobre
certo tema por meio de pesquisa ou instrução”, à “notícia trazida ao conhecimento do
público pelos meios de comunicação”, a “relatório escrito”, a “informe”, tendo ainda
outras acepções. Não obstante, informação também constitui vocábulo de crescente
interesse e conceituação no meio acadêmico. Para Rafael Capurro e Birger Hjorland
(2007), por exemplo, informação é um conceito interdisciplinar e está presente nas mais
variadas áreas, como as Ciências Naturais, Humanas, Sociais e Exatas, recebendo
especial atenção do campo da Ciência da Informação.
A palavra informação tem raízes latinas e deriva do termo informatio. Na
antiguidade, foi usada de uma maneira tangível e intangível. Na primeira dimensão, o
termo estava associado ao uso pedagógico e moral, influenciado pelo cristianismo e pela
filosofia grega de Aristóteles e Platão. Na Idade Média o termo ainda manteve esse uso e,
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somente a partir do século XIV, é que se evidencia o uso com a ideia de moldar a mente,
além de adquirir, gradativamente, outros sentidos, em especial, a dimeno de algo que
foi ou é comunicado a alguém (CAPURRO, HJORLAND, 2007).
Entre os estudiosos do conceito de informação destaca-se o trabalho de Michael
Buckland (1991), que estabelece três significados mais utilizados para o termo: em
primeiro lugar, a informação como processo, expressando a comunicação de um
conhecimento, de algum evento, fato ou ocorrência; a informação como conhecimento,
no qual a informação é o próprio conhecimento que está sendo comunicado; a
informação como evidência, dimensão de sentido que acentua as características
tangíveis à informação. Segundo Buckland, para o conhecimento ser comunicado ele
precisa ser expresso de alguma forma física:
Conhecimento, convicção e opinião são atributos individuais, subjetivos e
conceituais. Entretanto, para comunicá-los, eles têm que ser expressos,
descritos ou representados de alguma maneira física, como um sinal, texto ou
comunicação. Qualquer expressão, descrição ou representação seria
informação-como-coisa (BUCKLAND, 1991, p. 2).
Outro aspecto a ser destacado é a informação-evidência
1
altera o que o sujeito
conhece, e isso não implica afirmar que a informação será útil ou pertinente para os
propósitos do sujeito, posto que ela depende de como será utilizada e do sentido que se
dará a ela. Deste modo, considerando o conceito dado por Buckland (1991) de informação
como coisa, a informação é passividade, ou seja, ela depende do sujeito para que tenha
sentido.
Cabe, no entanto, fazer ressalvas concernentes a ideia de informação como coisa,
aplicada à experiência do medievo. Tal acepção propõe que para a informação ser
comunicada é necessário que seja representada de alguma forma física, como através de
texto, por exemplo. Contudo, um aspecto que não deve ser negligenciado quando
estudamos o medievo é o papel da oralidade, mesmo em finais da Idade Média. A partir
disso, percebe-se nas fontes que a informação nem sempre foi repassada de forma
material como a informação como coisa propõe. Destarte, como interpretar as
informações repassadas durante o medievo por meio da oralidade? Considera-se que
elas são informação, a informação-processo, algo comunicado a alguém. Nesse sentido, a
1
Para Buckland (1991), evidência é a própria informação como processo, é a expressão do conhecimento
comunicado, o aspecto tangível. A informação como coisa está relacionada a esse aspecto material,
tangível, que para ele pode ser armazenado e recuperado em uma situação posterior, como qualquer
documento textual que pode ser armazenado e consultado no futuro, por isso o documento escrito é
informação como coisa ou uma evidência. Porém, para Buckland, pessoas e prédios históricos também
podem ser informativos, pois informam sobre alguma coisa, mesmo que não possam ser armazenados e
recuperados como uma fotografia ou um documento textual. Portanto, informação, em Buckland, é tudo
que pode ser informativo.
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noção de informação como coisa, como conhecimento e como processo permite pensar
uma série de documentos que circulam durante o medievo e, particularmente, no século
XV, como cartas e relatórios, uma informação materializada sobre acontecimentos, ao
passo que, os rumores, as especulações e as notícias repassadas de forma oral seriam
informação como coisa, pois são comunicadas a alguém.
No que concerne os estudos sobre informação na Idade Média, sabe-se que eles
se afirmam, sobretudo, em finais do século passado, apesar do pioneirismo de Yves
Renouard em trabalhos da primeira metade do século XX e, em especial, no capítulo
“Information et transmission des nouvelles” (1961). Num dos clássicos trabalhos que
expressam a renovação da história política da Idade Média, O Ocidente nos séculos XIV e
XV Os Estados, Bernard Guenée (1981) apresentou algumas considerações sobre o eixo
Poder e Informação no período. Dedicado a estudar a propaganda régia, Guenée
propunha que na Baixa Idade Média os governantes começaram a perceber que a
informação adquirida e veiculada de forma escrita poderia orientar a política e interferir
na opinião pública.
Essa via de investigação exemplificada por Guenée tem se ampliado e, no século
atual, vários trabalhos sobre informação estão surgindo na medievalística internacional e
brasileira. Dentre eles, cita-se a obra coletiva Information et Société em Occident à la fin
du Moyen Âge (2004), os estudos de Filippo de Vivo (2007), Emrah Gurkan (2012), Viana
Pinto (2015) e Isabella Lazzarini (2015) na historiografia internacional, e Marcela
Guimarães (2015) e Douglas Lima e Gustavo Dias (2017) em um plano nacional. Em meio
a tais investigações, o conceito de informação começa a se tornar mais claro. Para
Isabella Lazzarini, por exemplo, informação pode ser entendida como os rumores, novas
e notícias. Ela afirma que: "Notícias, rumores e especulações (nouvelle, avisi, voci,
rumori) ou seja, todo o espectro do que podemos definir como ‘informação eram
cada vez mais a moeda da diplomacia" (LAZZARINI, 2015, p. 70, tradução nossa)
2
. Tal
noção abrange aquilo que é repassado de forma oral e, nesse aspecto, pode-se observar
acréscimos à proposta de Bernard Guenée, visto que ele parece associar informação
àquilo que estava disponível apenas na escrita.
Desde os anos 1980, o problema específico do rumor também tem recebido a
atenção contínua do campo das Ciências Humanas e Sociais, sobretudo entre os
investigadores franceses. Entre os estudos medievais, a obra La rumeur au Moyen Âge.
Du mépris à la manipulation. Ve XVe siècle (2011) constitui a principal reflexão coletiva
2
[No original] “News, rumors, and speculations (nouvelle, avisi, voci, rumori)that is, the whole spectrum
of what we can generally define as 'information' were more and more the currency of diplomacy”
(LAZZARINI, 2015, p. 70).
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sobre a temática, definindo como eixo de investigação “[...] o fenômeno pelo qual uma
informação, uma notícia ou uma história pretensamente verdadeira e com valor de
divulgação se transmite dentro de um grupo por qualquer meio de comunicação oral ou
escrita, formal ou informal, identificável ou não [...]” (SORIA, 2011, p. 13, tradução nossa)
3
.
Notícia de origem e veracidade incerta que se espalha rapidamente, o rumor é
considerado a “mais velha mídia do mundo” e, como expõe Claude Gauvard (1994), ao fim
da Idade Média as autoridades políticas e religiosas empreenderam significativos
esforços para controlar a difusão de rumores, considerados como perigos potenciais.
Outrossim, Philippe Contamine (1994) lembra ao investigador contemporâneo que a
maior parte das notícias que circularam no período medieval nos escapam, posto que a
difusão ocorria, principalmente, através da oralidade, por capilaridade, pela proximidade
entre as pessoas, de forma espontânea e resultando, por vezes, de iniciativas individuais.
Deste modo, considerando o rumor como algo voluntário, espontâneo, informal,
difundido e coletivo, toma-se como ponto de partida a referência de que o rumor é,
sobretudo, uma informação transmitida oralmente, ainda que também seja possível
considerar o escrito igualmente como lugar de construção e transmissão dos rumores.
Em linhas gerais, pode-se afirmar que o uso político da informação trata-se de
prática conhecida por diversos poderes medievais e acentuada em finais da Idade Média
(LAZZARINI, 2015). O Portugal quatrocentista, em específico, possui um histórico de
uso/gestão da informação bastante significativo quando se pensa na formulação das
políticas régias, discussão que por décadas envolveu a tese da “política de sigilo nos
Descobrimentos” proposta por Jaime Cortesão (CORTESÃO, 1960). Apesar das críticas a
tal tese, é consensual que a preparação da campanha de Ceuta, finalizada em 1415 e
marcada pelo uso do rumor, da contrainformação e da espionagem, é exemplar no que se
refere ao segredo gerido por D. João I e sua corte (DUARTE, 2003). Sem a pretensão de
fazer análise minuciosa sobre a conquista desta praça marroquina, a referência é útil a
fim de demonstrar que a informação interfere diretamente na tomada de decisões de um
reino, podendo contribuir na construção de políticas, guerras ou acordos diplomáticos.
Um dos exemplos presentes em Ceuta encontra-se no beneficiamento de Portugal
com a circulação de rumores sobre o destino da armada lusitana, que até o ataque
permaneceu em sigilo. Incentivada por D. João I, a criação de rumores sobre qual cidade
seria atacada foi enorme. Evidência dessa política são os relatórios de Ruy Diaz, espião
do rei de Aragão, posto que informam sobre a preparação da armada portuguesa com
3
[No original]: “ce phénomène par lequel une information, une nouvelle ou une histoire prétendue vraie et
ayant valeur de révélation se trasmet au sein d’un groupe par tout moyen de communication oral ou écrit,
formel ou informel, indentifiable ou non” (SORIA, 2011, p. 13).
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detalhes impressionantes, apresentando diversos destinos posveis para a campanha, o
que expressa a eficácia das ações da realeza avisina no sentido de camuflar o destino da
armada
4
. As informações repassadas ao monarca aragonês, fruto de espionagem, tinham
como intenção auxiliar nos preparativos de defesa caso algumas das posses de D.
Fernando fossem atacadas pelos portugueses. Ao fim da campanha militar, sabe-se que a
política de segredo e os rumores proporcionaram a Portugal uma vantagem durante o
ataque a Ceuta (LIMA; DIAS, 2017; VENTURA, 2016).
Da morte do rei ao início da regência de d. Pedro
Como anteriormente citado, a morte do rei D. Duarte veio a somar-se a diversos
problemas que deixavam o reino português em alvoroço. As feridas deixadas pela derrota
em Tânger (1437) estavam abertas e D. Fernando, um dos ínclitos infantes, permanecia
cativo em posse dos infiéis. O óbito do rei foi devidamente seguido pelo levantamento do
sucessor, todavia, o cenário político do período inspirava apreensão com este
falecimento. Portugal não estava envolvido em guerras, a sucessão régia estava garantida
desde 1432 ano do nascimento de D. Afonso , mas a descendência trazia um
problema, a menoridade.
É interessante observar que na passagem do século XIV para o século XV, Castela
enfrentou o problema da menoridade duas vezes, com Enrique III e Juan II, sendo que as
principais dificuldades apareceram na longa menoridade do segundo cerca de 13 anos.
Em ambos os casos a solão encontrada foi a mesma, a regência (SREZ
FERNÁNDEZ, 1964). O recurso às regências não era novidade nos reinos da Cristandade
e menos ainda em Portugal, que no processo da Revolução de Avis enfrentara a regência
de D. Leonor Teles
5
. Mas, como argumenta Oliveira Marques (1987), a história das
menoridades régias estava repleta de casos de contestação às rainhas regentes e de
casos de mudanças nos regimentos dos reinos.
O cerne da questão que permite compreender os conflitos que ocorrem no reino
de Portugal entre finais da década de 1430 e a década de 1440 desloca-se, assim, da
4
Ruy Diaz de Vega atuou como embaixador e espião do rei de Aragão, D. Fernando de Antequera, durante
os preparativos da armada que atacou a cidade de Ceuta. Sob o argumento de que estava à espera de uma
carta que deveria ser entregue ao rei D. João, mas que havia sido perdida durante a sua viagem, o espião
aragonês conseguiu diversas informações acerca de tudo o que acontecia em Portugal durante a sua
estadia. Os relatórios do espião podem ser acessados na Monumenta Henricina (1960, Vol. I, doc. 49, doc.
57).
5
Citam-se brevemente alguns casos da história portuguesa anteriores a 1438. Por falecimento de D.
Afonso II, já viúvo, e com o filho menor, iniciou-se uma regência no reino, da qual se sabe que provocou
guerras civis. No entanto, o caso mais emblemático é de Leonor Teles, esposa do rei D. Fernando.
Levantando-se contra o que se tinha estabelecido em tratados anteriores, o mestre de Avis assumiu a
posição de defensor do reino e posteriormente de rei de Portugal, iniciando a dinastia de Avis e afastando
completamente a rainha (BARROS, 1885, p. 640-641).
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circunstância da morte do rei ou da existência ou não de sucessor, para a decisão acerca
de quem deveria reger o reino durante a menoridade. Sabe-se que o rei redigiu um
testamento antes de falecer, mas não se conhece quando o documento foi escrito e em
quais circunstâncias, elementos que se agravam pelo fato de nem mesmo uma cópia do
documento ter sido conservada. A única descrição coube a Rui de Pina, cronista régio do
período de D. Jo II e D. Manuel. Apesar disso, é possível inferir que a redação se deu
durante a doença, ou seja, nos dias derradeiros da vida de D. Duarte (DUARTE, 2007).
A existência do testamento poderia facilitar o processo de definição da regência,
contudo trouxe ainda mais problemas ao reino. O rei expressava que o regimento do
reino, assim como a tutoria dos filhos, caberia exclusivamente à D. Leonor, sua esposa.
Abriram-se, de imediato, inquietações com o desejo do Eloquente. Não se sabe ao certo
qual a participação e influência de D. Leonor na governação de D. Duarte, entretanto,
alguns apontamentos podem ser feitos a partir do estudo de Ana Maria Rodrigues.
De acordo com a autora, a participação direta de D. Leonor no governo de seu
marido parece ter sido mínima, principalmente devido às suas constantes gestações e a
sua condição feminina. Outrossim, pelo que se sabe, a sua presença na documentação
régia limita-se a casos específicos, restringindo-se às “[...] cartas de doação de bens da
Coroa ou de confirmação da transmissão desses bens a membros da fidalguia”
(RODRIGUES, 2012, p. 118). Nesse sentido, aparentemente, a rainha Leonoro
desempenhou a função de preponderância durante o reinado de seu marido. Contudo, a
rainha parece ter tido um papel importante no aconselhamento do reino. Por possuir
relação próxima e harmoniosa com D. Duarte, seus conselhos sempre eram bem
recebidos. De acordo com Rodrigues (2012, p. 121), “D. Duarte ouvia-a e prezava a sua
opinião”. As implicações dessa proximidade e influência foram várias, inclusive a de
cul-la pelo ataque malsucedido a Tânger como alguns cronistas relatam.
A escolha da rainha como regente, a priori, não explica por si só a tensão desse
contexto. Desta forma, o problema da decisão régia deve ser redirecionado para outros
fatores, os quais estão expressos na Chrónica de El- Rei D. Affonso V (1901). Segundo o
cronista, D. Leonor era mulher e estrangeira. Escreve Rui de Pina, expressando o
conselho que deu à rainha:
Senhora, o peso d’este cargo de reger, que assi soltamente tomaes, é mui
grande e tal, que muitos barões abastados de fortaleza de coração e de
prudência o recearam. E por serdes mulher e ainda estrangeira, como quer que
para isso haja em vós sã consciencia e conhecidas virtudes com mui santo
desejo, em caso que não houvesseis n’elle alguma contradicção, certo
duvidamos que o possaes soffrer; porque Vossa Senhoria ha-de considerar que
são n’este reino tres Infantes, grandes Principes, e de muita autoridade, e
naturaes da terra, que hão d’estimar por quebra e abatimento de seus estados
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serem regidos por mulher, especialmente não natural nem herdeira, comos
sois, e que o por suas bondades e assessego de todos quizessem consentir, não
falleceriam outros amigos de novidades, que lh’o fariam sentir e obrar por outra
maneira (PINA, 1901, p. 17-18).
Os acontecimentos ocorridos entre a abertura do testamento de D. Duarte e a
ocupação por D. Pedro do posto cimeiro da regência são motivos de longos debates
historiográficos. De qualquer forma, é consenso que o fato de D. Leonor ser mulher e,
principalmente, estrangeira, causou receio em diferentes grupos sociais, iniciando uma
série de debates sobre quem deveria reger o reino (RODRIGUES, 2016).
A ampliação de trabalhos relativos à história das mulheres, à história de gênero e,
principalmente, à história das rainhas medievais portuguesas, têm avançado em
demonstrar que as esferas do poder não estavam fechadas à participação das mulheres,
antes, por vezes estas apareciam no auxílio direto aos reis, como gestoras de
patrimônios, construtoras de alianças diplomáticas e em regências. Assim, mesmo com
uma série de condicionantes, tais mulheres tinham um significativo espaço para o
exercício do poder. Contudo, como argumenta Ana Maria Rodrigues: “[...] eram os
homens que determinavam por quanto tempo e em que termos esse poder era nelas
delegado, podendo revogá-lo quando tal lhes apetecesse, ou manobrar para obter essa
revogação” (2008, p. 232).
Para além do fato de ser mulher, D. Leonor foi vista com descrédito por não ser
natural do reino e sim uma estrangeira. Este aspecto, isto é, a distinção entre os naturais
e os não naturais da terra, foi um recurso frequente na prosa avisina, aparecendo de
forma singular nas crônicas quatrocentistas e quinhentistas, sendo a categoria acionada
como elemento que permite o acesso legítimo ao posto de regente. Tal circunstância
dava-se, em grande parte, pelos acontecimentos ocorridos em Castela, os quais
envolviam os irmãos de D. Leonor, os Infantes de Aragão.
A abertura do testamento de D. Duarte coincidiu com a retomada das disputas em
Castela entre o grupo dos Infantes de Aragão e de D. Álvaro de Luna, o que trouxe a
preocupação acerca do envolvimento de Portugal no conflito, ação que poderia perturbar
a paz assinada em 1431. Além disso, D. Leonor era uma peça importante da estratégia de
linhagem estruturada pelo pai, Fernando de Antequera, e seguida pelo irmão, D. Alfonso
V, rei de Aragão. Através do casamento da mesma com D. Duarte, os Trastâmaras de
Aragão passaram-se a relacionar-se diretamente a todas as casas reais ibéricas com
exceção de Granada , e isto colocava em perigo a autonomia conseguida pela dinastia
de Avis desde a batalha de Aljubarrota e os posteriores tratados de paz, afetando,
inclusive, o já difícil equilíbrio peninsular (LIMA, 2012).
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As Cortes de Torres Novas foram convocadas para resolver o impasse e aprovar
um Regimento para o reino. Rui de Pina, nos capítulos III e IV da Chrónica de El- Rei D.
Affonso V (1901), descreve o processo da abertura do testamento e da convocação das
Cortes, apresentando os argumentos de que cabia à instância decidir a regência do reino,
não se podendo pautar tal escolha simplesmente na vontade de D. Duarte. De acordo
com Luís Filipe Thomaz (1994), juridicamente a posição de D. Leonor era frágil, pois a
doutrina da origem contratual do poder régio negava ao rei o direito de dispor do reino
post mortem. O autor enfatiza que, implícita desde 1221, tal perspectiva tinha sido
parâmetro para as Cortes de Coimbra em 1385. Se o rei não podia escolher o seu
herdeiro por não ter o poder jure hereditario seguia-se, por analogia, que tão pouco
podia designar um administrador interino. Assim, apenas as Cortes poderiam decidir
sobre o assunto. Ademais, como ressalta Gama Barros (1885), havia pouco mais de meio
século que os Estados do reino, reunidos em Cortes, tinham exercido o direito de eleger
um rei, exatamente o rei fundador de Avis, e, assim, a recordação desse ato tão
significativo da história do reino estaria de certo guardado nas tradições do povo
.
Terminadas as atividades em Torres Novas, a rainha seguiu para Lisboa, onde se
encontrou com o infante D. João. À permanência da querela acerca do casamento do
jovem príncipe D. Afonso somou-se, como elemento capaz de impulsionar o conflito à
escala nacional, a nomeação, pela rainha, de um criado do arcebispo de Braga para
escrivão da Câmara do Porto, sendo que o titular do cargo fora nomeado em 1437 pelo
infante D. Pedro. O novo oficial não era oriundo do Porto, o que foi recebido como uma
violação dos privilégios mantidos pelos moradores da cidade. Em oposição à nomeação,
vereadores, cavaleiros, homens-bons, mesteres, entre outros, membros ou não das elites
urbanas, organizaram um amplo protesto criticando a rainha e encaminhando as queixas
a D. Pedro (SERRÃO, 1979). Eis, a primeira sublevação citadina decisiva no processo da
ascensão do Infante como regente. Contudo, foi Lisboa o palco das principais
articulações em prol de D. Pedro.
Em agosto de 1439, o duque de Coimbra aparece na cidade, onde fala à D. Álvaro
Vaz de Almada, capitão-mor do mar e com outros conselheiros, sobre a sua situação na
regência. Ao partir dessa reunião D. Pedro resolveu seguir ao encontro do irmão, D. João,
para com ele se aconselhar e decidir sobre o que fazer. Enquanto o Infante aguardava o
correr dos acontecimentos, D. Leonor tomou duas atitudes que marcaram o estopim da
sublevação lisboeta: por um lado, “lançou fora” certas donzelas, suspeitas de serem
próximas de D. Pedro; e, por outro, expediu carta em nome do rei, pela qual fazia mercê
a Nuno Martins da Silveira, seu aio, das penas dos varejos a que os mercadores de Lisboa
eram obrigados satisfazer a cada sete anos. A ação contra as donzelas de Lisboa ampliou
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a oposição da cidade à Rainha, visto que estas eram filhas de Pedro Gonçalves Malafaia,
que fora vedor da fazenda, com Isabel Gomes da Silva, irmã de Aires Gomes da Silva,
dedicado amigo de D. Pedro, e a outra, de João Vaz de Almada, sobrinha de Álvaro Vaz de
Almada, igualmente grande amigo do Duque de Coimbra (PINA, 1901, p. 48-49).
A situação em Lisboa agravou-se e contrária às atitudes do Arcebispo D. Pedro de
Lisboa, primo da rainha, a população lisboeta se revoltou, pressionando-o a sair da
cidade. As notícias da insurreão em Lisboa fizeram com que a rainha expedisse cartas
secretas convocando seus partidários para que viessem armados às Cortes. Contudo, o
segredo foi desfeito complicando a posição de D. Leonor. De alguma forma, as
informações foram reveladas ao Infante, que se apressou em mostrar a carta ao Conde
de Arraiolos, responsável pela justiça do reino. Este repreendeu a rainha, o que não foi
suficiente para que ela revogasse a convocação. Nessa conjuntura, a sublevação do povo
não amansou e, pelo contrário, cresceu, e D. Pedro aceitou a convocação do irmão, D.
João, para um encontro, onde este propôs que o Infante se autonomeasse “Regedor do
Reino yn solido”. Para isso, garantia-lhe o apoio do Conde de Ourém e da população de
Lisboa. D. Pedro, mais uma vez, aparece na crônica argumentando que qualquer decio
deveria ser tomada apenas pelas Cortes e, enquanto esta não começava os trabalhos,
tratou de comunicar a todos os lugares do reino acerca de qualquer emergência futura
(PINA, 1901).
Por volta de 16 de setembro de 1439 ocorre a ruptura definitiva entre os
cunhados, com a declaração do Infante afirmando que daquele momento em diante ele
agiria como bem achasse. Em meio a tantas agitações, os cidadãos lisboetas se reuniram
e elegeram D. Álvaro Vaz de Almada como alferes de Lisboa, além de deliberar que D.
Pedro fosse o único regedor e defensor do reino. Rapidamente a rainha foi informada do
Regimento definido na capital e, numa tentativa de remediar a situação, escreveu à
cidade dizendo-se vítima de falsidades e solicitando que, nas próximas Cortes, as
posições presentes no testamento de D. Duarte fossem acatadas. A recepção da carta
em Lisboa representou mais um ato da revolta citadina. Fixada na porta dapor Gomes
Borges, escrivão da chancelaria régia, este correu sérios riscos, escapando da morte com
dificuldades.
Nesse contexto efervescente volta à cena o infante D. João. Seguindo a crônica,
convidado para ir até Lisboa, o Condestável ofereceu apoio ao movimento insurgente
que, mais seguro na evolução favorável dos acontecimentos, decidiu promover uma
reunião na Câmara da cidade. Nesta reunião, o Dr. Diogo Afonso Mangancha apresentou
um discurso pautado no Direito Civil e Canônico, procurando provar os erros de um
Regimento público ser dado a uma mulher, concluindo que tal autoridade deveria ser
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oferecida a um varão virtuoso, requisitos estes encontrados em D. Pedro. A Câmara de
Lisboa decide então aprovar o acordo no qual o Infante deveria ser o único regente,
sendo esta decisão seguida pelas principais vilas e cidades do reino (PINA, 1901).
Em meados de outubro o Infante D. Pedro saiu de Coimbra e, por volta do dia 30,
encontrava-se nos arrabaldes de Lisboa acompanhado de uma horda composta de 1800
cavaleiros e 2600 peões. No dia 31 entrou na capital, sendo recebido pelo irmão D. João e
por outras pessoas de destaque da urbe. No primeiro dia de novembro assistiu à missa e
jurou, com as mãos sobre as do Bispo de Évora, defender o reino como regente.
As Cortes de Lisboa tiveram início em 10 de dezembro de 1439 e rapidamente
procederam à elaboração de um acordo, assinado por todos os presentes exceto o
Conde de Arraiolos , apoiando a causa de D. Pedro. Ao todo, setenta e duas cidades e
vilas portuguesas foram indexadas dando sustento à elevação do Infante ao posto de
único regente. Contudo, para a conclusão das atividades nas Cortes faltava ainda a
presença do rei e da rainha, que permaneciam em Alenquer. Após vários mensageiros
fracassarem no intuito de trazê-los à Lisboa, D. Henrique conseguiu o feito. À recepção
ao rei na cidade, seguiu-se o reicio das Cortes com a definição de D. Pedro para a
posição cimeira da regência. Antes de ser finalizado o expediente das Cortes, o escrivão
da câmara do Porto, João Gonçalves, manifestou-se em desacordo pela manutenção do
rei sob a tutela da rainha, argumentando que, em prol da devida criação e educação de D.
Afonso V, D. Pedro deveria assumir tal dever. Após muitas discussões e resistências de
D. Leonor, esta aceita entregar o rei, que segue juntamente com o irmão, D. Fernando,
para a companhia do Infante. Enfim, o duque de Coimbra ocupava a posição de único
regente e tutor do rei. Todavia, muitos problemas permaneciam por ser resolvidos, sendo
o principal a situação da rainha D. Leonor que partia do reino em busca de auxílio em
Castela.
Procurou-se, em linhas gerais, caracterizar o cenário político ibérico e, em
especial, português, entre a morte de D. Duarte e o início da regência de D. Pedro.
Destarte, cabe analisar, com pormenor, o papel da circulação de informações nesse
contexto de instabilidade potica e, particularmente, como a informação foi mobilizada
pelo infante D. Pedro no processo de ascensão ao posto de regente do reino.
Circulação dos rumores e instabilidade política
Ao analisar os conflitos em torno da regência, observa-se o importante papel
exercido pela circulação de informações, pelo envio de cartas secretas e, especialmente,
pelos rumores. Este tipo de informação caracteriza-se por não possuir um emissor claro,
entretanto, sabe-se que os rumores contribuíram para a ampliação do quadro de
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insatisfação e de aversão à rainha. A partir disso, faz-se menção a algumas
peculiaridades durante essa querela, principalmente relacionadas a circulação de
informação, as consequências do rumor e de outras notícias que circulavam por
Portugal.
Retomando o contexto que segue a morte de D. Duarte, ressaltam-se os
argumentos do cronista Rui de Pina:
[...] porque em fim todos, ou a mór parte hão de seguir a vontade dos Infantes,
qualquer que fôr quanto mais que já agora pelas praças se solta, que El-Rei
nosso Senhor, vosso marido, que santa gloria haja, vos não podia leixar este
cargo de reger: cá este poder deleger regedor do reino era sómente ao reino e
aos tres estados d'elle reservado (PINA, 1901, p. 17).
Torna-se premente notar a afirmação que o cronista faz a respeito das notícias
que já corriam pela cidade. Apesar de o testamento ter sido lido apenas para um número
reduzido de pessoas, logo após, a notícia de que D. Duarte deixara a regência nas mãos
da rainha corria pela cidade. Porém, essa não era a única questão difundida em Lisboa.
Rui de Pina diz que a notícia de que O Eloquente o poderia delegar regente ao reino,
função que caberia “somente ao reino e aos três estados” já era de circulação geral.
Portanto, pode-se afirmar que assim começavam os rumores e notícias sobre os
impasses da regência.
Fato importante neste caso é que durante o conflito entre D. Pedro e D. Leonor,
as ruas e as praças mostraram-se como os locais privilegiados para a circulão da
informação. No trecho da crônica o cronista afirma que se “solta pelas praças” os
rumores, não sendo a única vez que Rui de Pina faz menções nesse sentido. Desta forma,
as notícias e rumores tomaram as ruas e praças de Portugal, locais de intensa e fácil
circulação, sendo possível dizer que os rumores que corriam pela cidade influenciaram a
percepção e o entendimento das pessoas acerca do conflito entre D. Pedro e D. Leonor.
Se, por um lado, pode-se afirmar que a opinião pública foi influenciada por essa
publicização de fatos e eventos diretamente ligados à rainha, o mesmo não pode ser feito
para identificar os responsáveis por essa divulgação de notícias. Ou seja, desconhece-se
ao certo como e por quem essas informações eram publicizadas, porém, sabe-se que elas
contribuíram para que houvesse a desqualificação da imagem da rainha. Neste caso, seria
interessante conhecer este pormenor e compreender a forma como as informações
ultrapassaram o ambiente privado e se tornaram públicas. Rui de Pina não explica isso,
mas entende-se que constantemente essas informações que prejudicaram e
desestabilizaram a rainha eram conhecidas pelo povo com certa rapidez. Isto tornaria
muito mais sólida a afirmação de uma intencionalidade na obtenção de vantagens através
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do uso das notícias e rumores que corriam pela cidade, porém, analisando o contexto e a
forma como toda essa divulgação e circulação ocorre, parece plausível dizer que D.
Pedro e seus apoiadores tinham intenções com essa publicização.
Ademais, fazendo um adendo em relação ao que concerne à coleta de informação
e o controle sobre os canais de informação detidos por D. Pedro, o que se sabe é que o
Infante conseguiu interceptar uma carta destinada a D. Leonor, contudo, o mais
importante é perceber os meios pelo qual obtinha informação. Como argumenta Ana
Maria Rodrigues (2012), o duque de Coimbra possuía vários informantes, inclusive as
moças que foram expulsas pela rainha estariam transmitindo-lhe informações. Pode-se,
dessa forma, inferir que dentro do círculo de pessoas que estavam próximos a D. Leonor,
existiam informantes leais a D. Pedro. Com base nessas informações, torna-se coerente
dizer que a publicização poderia partir desse círculo ligado ao Duque de Coimbra.
Mas, afinal, quais rumores e notícias estavam sendo divulgados? A primeira delas,
de que o rei não poderia deixar o regimento do reino à rainha, foi apresentada acima e
gerou bastante burburinho, como mencionado. Contudo, Rui de Pina vai além e diz o
seguinte noutro trecho da crônica:
[...] que lhe parecia que se não devia antremeter no regimento do reino; e que
assi como esta havia de ser sua tenção, assi seria tambem que em todo o mais
sua honra, estado, acatamento e serviço se guardasse por todos o mais
inteiramente, do que se nunca guardára a outra Rainha; do que ella não foi
contente, e muito menos os da sua tenção, que eram presentes: e porque isto
foi dito de praça, logo o rumor d'isso sahiu pela cidade, com que os povos e a
gente d'ella principalmente começaram de se alvoroçar e praticar entre si
secretamente, como tirariam o Regimento à Rainha (PINA, 1901, p. 39-40).
De acordo com o cronista, logo após finalizada a conversa com D. João, irmão e
apoiador de D. Pedro, o conteúdo do que foi dito se tornou de conhecimento público,
sendo divulgado em praça. Essa divulgação permitiu que a cidade tomasse conhecimento
da postura adotada pela rainha, fato este que causou alvoroço entre o povo, visto que a
rainha se mostrava irredutível quanto ao conselho de deixar a regência. Rui de Pina
acrescenta que secretamente se pensava em alguma maneira de tirar a regência de D.
Leonor. Neste momento os rumores dão espaço para um plano que pretendia ser
efetivado na prática. Rui de Pina detalha mais:
[...] porque o lançar d'estas donzellas fez contra ella grande escandalo na cidade
de Lisboa, por serem dos naturaes e principaes d'ella, e assi por se declarar
imiga do Infante D. Pedro, que do povo era mui amado; porque até li sua
desavença d'ambos podia jazer em suas vontades; mas sua rotura não se dizia
nem mostrava tão depressa como se por isto mostrou (PINA, 1901, p. 48-49).
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Outra vez a cidade parece tomar conhecimento do que acontecia. O cronistao
utiliza o termo “rumor”, mas pelo que escreve entende-se que novamente as notícias
corriam pela cidade contra a rainha. Considerando a narrativa deixada por Rui de Pina,
D. Leonor teria expulsado duas moças que eram apoiadoras de D. Pedro, o que teria
gerado um alvoroço por conta da atitude da rainha.
Dentre os vários motivos pelo qual D. Leonor não era vista como uma boa opção
para regência, além da questão de ser mulher e estrangeira, o fato de ser irmã dos
Infantes de Aragão tornou-se um agravante, principalmente pelas constantes
intervenções políticas levado a cabo pelos infantes na Península Ibérica, como
explicitado anteriormente.
Processo construído aos poucos, mas com efeitos positivos para os opositores de
D. Leonor, a maculação de sua regência aconteceu tornando-se cada vez inviável
cumprir o que havia sido deixado em testamento por D. Duarte. Os rumores tiveram um
papel importante, pois contribuíram significativamente para que ela se tornasse
impopular e malvista. Ao lançar as duas moças para fora de casa, por serem apoiadoras
de D. Pedro, demonstrava possuir conflitos e desavenças com o Infante e como
consequência ainda tomava sobre si o descontentamento daqueles que viam na figura de
D. Pedro um bom príncipe.
Agravando a situação, o Conde de Arraiolos foi chamado para que apaziguasse os
ânimos na cidade de Lisboa. Como era um homem da lei e de respeito, pensava-se que
sua visita à cidade poderia trazer calmaria. Ao chegar em Lisboa, sabendo da situação
conflituosa, e após conversar com a rainha, decidiu interferir. Entretanto, de acordo com
Rui de Pina, alguns correligionários de D. Leonor se aproveitaram da sua presença na
cidade para afirmar que ele teria vindo com o objetivo de fazer justiça contra aqueles que
não aceitavam a regência dela. Essa atitude gerou mais desentendimentos e alvoroço na
cidade. De acordo com o cronista, conhecendo a situação desordeira em Lisboa, o conde
buscou ajuda para que remediasse o conflito:
Mas os do povo posposto todo o medo assi continuavam, e acrecentavam a
cada vez mais sua união, e com tanto rumor d'algum fim perigoso, que o conde
desesperado de com suas forças, nem da justiça poder assessegar o feito como
desejava, havido primeiro sobre isso conselho, tentou de o remedear com
prégações, palavras brandas, e de conciencia, que por algum bom e entendido
religioso em ajuntamentos publicos se dissessem (PINA, 1901, p. 52).
Não encontrando outra solução, “o remédio” para tranquilizar a cidade teria de vir
de um discurso religioso, brando e cuidadoso. Para isso foi convidado o frei Vasco da
Allagoa, que longe de promover a tranquilidade esperada provocou mais ira do povo:
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E estas palavras com algum rumor começaram ir de puridade em puridade pelas
orelhas de muitos do povo, os quaesassi como as ouviam assi volviam logo os
olhos de sanha contra o frade, e com mostranças de tanta indinação, que elle
sentindo seu alvoroço, por se não vêr em perigo, desamparou sem conclusão o
pulpito, e se acolheu ao mosteiro (PINA, 1901, p. 53-54).
Novamente o rumor produziu consequências danosas para a rainha e seus
apoiadores, como relatado por Rui de Pina. “De boca em boca” espalhava-se o
descontentamento e a raiva para com D. Leonor. As consequências desta pregação
poderiam constar em diversas citações acerca das revoltas urbanas ocorridas na
Cristandade nos séculos XIV e XV. As palavras geraram ódio e o povo perseguiu o frei
dentro do mosteiro, o qual conseguiu se salvar com uma fuga secreta. Segundo Rui de
Pina, o único capaz de acalmar as agitações foi D. Pedro. Este ouviu as agruras dos
cidadãos lisboetas, mas repreendeu os levantamentos e, sendo pressionado para que
assumisse imediatamente a regência, defendeu que o assunto fosse tratado nas Cortes
de Lisboa, marcadas para o mesmo ano. Neste sentido, tudo leva a crer que houve
vantagens adquiridas por D. Pedro a partir dos rumores que eram difundidos em Lisboa.
As praças e ruas da cidade foram locais de movimentação e agitação, circulação de
notícias e rumores, de raiva, descontentamento e do alvoroço de muitos.
Considerações finais
A partir do exposto, dúvidas e inquietações surgem, algumas ficando sem
respostas. O que pode ser afirmado é que o rumor teve um papel importante para que a
rainha perdesse a regência deixada em testamento. Em conjunto com D. Pedro e seus
apoiadores, a circulação de rumores e outras notícias causaram alvoroço entre a
sociedade de Lisboa, que descontente espalhou, por todo lugar, as atitudes de uma
regente que sempre pareceu ser e mal influenciada pelos seus apoiadores e
conselheiros, o que teria levado a retirada de todos os seus bens, inclusive da educação
de seu filho, D. Afonso.
Cabe ressaltar, de forma digressiva, como a rainha é apresentada na crônica. Não
era objetivo deste artigo investigar acerca da atuação da soberana, mas fica evidente que
Rui de Pina caracterizou-a como mulher estrangeira, influenciável e de fácil manipulação,
sendo enganada por diversas vezes. Outra dúvida que surge ao longo da análise da
narrativa sobre os conflitos entre D. Pedro e a rainha D. Leonor é: existiu ou não uma
intencionalidade na publicização e divulgação de notícias e rumores sobre a Rainha? Não
se sabe ao certo como as notícias e rumores tomaram as praças e ruas, nem por quem
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eram publicizadas. Entretanto, considerando que o conceito de poticas de informação
sinaliza para o uso político da informação visando adquirir vantagens sobre o outro, não
se descarta a possibilidade de esses rumores terem sido criados ou incentivados por
apoiadores de D. Pedro de forma a desestabilizar e colocar o povo contra a rainha.
Além do uso do rumor, pode ser citado o controle da informação exercido por D.
Pedro quando ele interceptou uma carta destinada a D. Henrique, característico de
poderes que se colocavam nesse jogo de controle ou de uso da informão. Nesse
sentido, a informação se tornou importante para muitos governantes no auxílio da
produção de políticas de governo ou em benefício próprio em detrimento do outro.
Todavia, independente da intencionalidade, D. Pedro saiu beneficiado, visto que a
reputação da rainha foi maculada com tudo o que aconteceu. Os motivos que levaram a
essa oposição e retirada de direitos deixados em testamentoo vários se for aceito o
que Rui de Pina narra. Entretanto, como apontado, além de ser mulher e estrangeira,
também se acrescenta o fato de os seus irmãos serem vistos com desconfiança, tendo
como base para isso a atuação deles em Aragão e Castela.
O que se iniciou com consternação e luto tornou-se rivalidade e
descontentamento, diante do jogo de interesses que se vivia em torno dos tronos
ibéricos e, especialmente, em Portugal. A disputa gradativamente opôs a rainha regente
ao duque de Coimbra. Uma das faces dessa disputa saiu vitoriosa. D. Pedro assumiu a
regência, a tutoria dos filhos de D. Duarte e D. Leonor e casou a sua filha, D. Isabel, com
o sobrinho e futuro rei D. Afonso V. Pereceu nos campos de Alfarrobeira, em 1449, num
conflito que, entre muitas motivações, recordava a crise regencial de finais da década de
1430. Todavia, sua memória, particularmente pela escrita de Rui de Pina e,
posteriormente, de Oliveira Martins, permanece exaltada. A outra face da disputa, D.
Leonor, passou de amada e prezada mulher à triste rainha, não angariou apoios no reino
e nem recebeu o suporte suficiente para garantir a defesa dos seus direitos em Portugal.
Precisou exilar-se e terminou por falecer em Castela. Ainda que a historiografia recente
busque reinterpretar a personagem, a memória sobre ela permanece a de triste rainha,
mulher e estrangeira que buscou interferir na independência do reino e sobrepor-se aos
ilustres infantes da Ínclita Geração. Afinal, os rumores sobre D. Leonor e as informações
que circularam desde a morte de D. Duarte foram capazes de cristalizar-se em memória.
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