Pensar a autobiografia entre história,
identidade e narrativa
Think about the autobiography between
history, identity and narrative
EAKIN, Paul John. Vivendo autobiograficamente: a construção de nossa
identidade narrativa. São Paulo: Letra e Voz, 2019.
MOREIRA, Igor Lemos
*
As discussões a respeito das relações entre identidades e narrativas o
recorrentes nas Ciências Humanas e Sociais. Desde a virada linguística no século XX, os
estudos em diferentes áreas do conhecimento como a história, a crítica literária, a
psicanálise e a antropologia têm procurado compreender estruturas, práticas e
processos que envolvem o ato narrativo, destacando constantemente sua relação com a
formação de identidades/identificações e representações. Publicada em 2019, a obra
Vivendo autobiograficamente: A construção de nossa identidade narrativa, do
pesquisador estadunidense Paul John Eakin, contribui para o aperfeiçoamento das
discussões sobre identidades e narrativas em áreas de estudos como práticas
biográficas, cultura escrita e narrações contemporâneas.
Paul John Eakin é graduado em História e Literatura pela Universidade de
Harvard, onde também cursou seu mestrado e doutorado. Especialista na área de
autobiografias, é professor emérito da Indiana University, onde ocupou a cadeira Ruth N.
Halls de Inglês. A obra, publicada originalmente pela Cornell University, foi lançada no
Brasil pela editora Letra e Voz, sendo a primeira tradução para português de um trabalho
do autor. O livro está estruturado com uma introdução e quatro capítulos, apresentando
os seguintes eixos centrais: os processos de narrativa sobre si; a consciência
autobiográfica; a construção identitária por meio das narrativas; e autobiográfica,
memória e rememoração.
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Doutorando em História pelo programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de
Santa Catarina (PPGH-UDESC), na linha de pesquisa Linguagens e Identificações. Bolsista
PROMOP/UDESC, estado de Santa Catarina (SC), Brasil. Mestre e Graduado em História (Licenciatura)
pela mesma instituição. Integrante do Laboratório de Imagem e Som. E-mail: igorlemoreira@gmail.com.
Recebido em: 28/10/2019
Aprovado em: 02/11/2019
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O primeiro capítulo, “Falando sobre nós mesmos: as regras do jogo”, parte das
discussões sobre as narrativas de sina contemporaneidade, ao analisar articulações
analisando articulações entre autobiografias e mídias (com destaque a programas
televisivos como Oprah). Partindo de vasta revisão bibliográfica e passando por autores
como Oliver Sacks, Eakin discute e identifica alguns processos envolvidos nas narrativas
autorreferênciais construtivas de cada indivíduo. Entre os temas que gravitam este
capítulo estão: os efeitos/elaborações de acontecimentos atuantes na constituição das
subjetividades; as “regras” que constituem o ato narrativo e a identidade narrativa, que
para o autor é algo característico de todo sujeito; a ideia de efeito de verdade, permitindo
ao(a) leitor(a) observar um breve panorama da densidade de discussões que perpassam o
debate sobre autobiografias. Neste capítulo, a discussão realizada destaca que [...]
quando se trata de nossas identidades, a narrativa não é simplesmente sobre o eu, mas
sim de maneira profunda, parte constituinte do eu.” (EAKIN, 2019, p. 18, grifo do autor)
A respeito desta discussão é interessante apontar que, na perspectiva do autor, a
construção autobiográfica é um processo que lida com diferentes dimensões temporais
de passados e experiências vividas, para além de ser um ato sempre do “tempo
presente”, ou seja, do momento de elaboração da narrativa. Essa construção no presente
é o que manifesta, ou representa, as identidades dos sujeitos que a constituem a partir
de suas vivências, memórias, lembranças e projeções de futuro. Dentro desta chave é
possível aproximar os atos narrativos da elaboração de acontecimentos (narração de
fatos) que rompem com as temporalidades, sendo uma questão em comum entre o autor
e as discussões de François Dosse (2013). Para o historiador francês, a elaboração de um
acontecimento é sempre uma produção atual, do momento de comunicação, que articula
uma forma de significação acerca da experiência, sem a qual o evento não existiria.
Eakin (2019) aproxima-se dessa leitura ao considerar que esses processos, muitas
vezes, levam a incluir experiências coletivas, que nem sempre são frutos de vivências
pessoais. Para exemplificar, o autor destaca o 11 de setembro de 2001, uma vez que
inaugurou a possibilidade de ter civis como personagens do acontecimento, o que atesta
“o desejo de pessoas comuns enxergarem por si mesmas o que aconteceu naquele dia
(EAKIN, 2019, p. 20). Ao analisar esse evento, Dosse (2013) observa o papel das mídias
que fabricaram instantaneamente o acontecimento, ao mesmo tempo que o
historicizavam. Nesse caso, Dosse e Eakin concordam que um acontecimento
testemunhado, direta ou indiretamente, é fundamental na elaboração das identificações,
relação possível através das narrativas que permitem ao sujeito inserir-se em contextos
que não necessariamente tenha vivido ou experienciado diretamente.
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Outro elemento central no capítulo, e que perpassa o restante da obra, é a noção
de identidade narrativa e sua relação com a construção de histórias de vida e trajetórias.
Para o autor, a identidade, elaborada a partir de identificações, é fruto de constrões
narrativas entendidas [...] de um modo inescapável e profundo, elas são o que somos,
pelo menos enquanto atores posicionados dentro do sistema de identidade narrativa que
estrutura nossos arranjos sociais atuais.” (EAKIN, 2019, p. 10, grifo do autor). Nesta
interpretação, a identidade narrativa envolve a estruturação de uma forma de
construção autobiográfica que molda o sujeito, reestruturando o passado em uma
perspectiva linear e progressiva dos fatos.
A perspectiva do autor enquadra-se no fato de a identidade narrativa ser
acumuladora de mais elementos com o passar dos anos, resultado de uma construção da
história dos sujeitos, constantemente resignificada. Esse processo estrutura uma
narração intencionalmente progressiva sobre a trajetória do sujeito, sempre promovida
pelo individualismo. Eakin (2019) destaca que as falhas na memória, vistas como
esquecimentos, impactam diretamente na constituição dos relatos autobiográficos,
fragilizando a construção dessa identidade narrativa. Essa relação pode ser vista dentro
da noção de ipseidade de Paul Ricouer (1991), na qual os sujeitos moldam constantemente
o passado de acordo com aquilo que os jogos entre memória e esquecimento permitem e
não apenas o que a experiência vivida ou apreendida possibilita relatar
1
.
No capítulo seguinte, intitulado “Consciência autobiográfica: corpo, cérebro, eu e
narrativa”, o autor analisa produções literárias e autobiográficas nas últimas décadas,
discutindo como tem se elaborado diferentes formas de identidade narrativa no tempo.
Partindo da compreensão de que tais obras são consumidas constantemente, na medida
em que existe um desejo das sociedades contemporâneas pela identificação com um
outro e pelo consumo de memórias, o autor propõe entender o lugar da ficção e da
história no ato de relatar a si mesmo. Ao afirmar que “[...] a memória e a imaginação
conspiram para reconstruir a verdade do passado” (EAKIN, 2019, p. 76), Eakin destaca
que as memórias são perpassadas constantemente pela tensão entre ficção,
verossimilhança e “verdade”.
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Essa discussão encontra-se no texto de Pierre Bourdieu (2006) sobre a “Ilusão Biogfica”, conceito
mobilizado pelo sociólogo para alertar aos pesquisadores na área de biografias e trajetórias, assim como os
biógrafos, a respeito dos perigos da linearidade e das construções teleológicas da narrativa de vida de
sujeitos. Em função da proximidade com os indivíduos biografados, e o processo de pesquisa que permite
ao biógrafo conhecer na maioria dos casos o desfecho de sua obra antes mesmo de iniciar sua narrativa,
Bourdieu reafirma a necessidade de problematização das trajetórias, compreendendo os processos,
percursos e enfrentamentos que marcam a vida dos indivíduos.
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Nos estudos historiográficos sobre autobiografias
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é importante, muito mais que a
verdade dos fatos narrados, compreender os diferentes modos como indivíduos
pensaram e sentiram os fatos de suas vidas. Enquanto o historiador e/ou biógrafo finda
um compromisso com os fatos ocorridos ao narrar uma trajetória, o autobiógrafo tem
sua lealdade associada ao “eu”/sujeito construído. Deste modo, a autobiografia
apresenta-se como espaço de tenes e o historiador e/ou pesquisador dedicado ao seu
estudo necessita de atenção redobrada para observar que a principal relação não se dá
na verossimilhança, mas sim com o efeito da linguagem que representa um sujeito, que
almeja determinado fim. Um elemento central para compreender esse efeito de
linguagem é a noção de corpo, pois o somente é o espaço em que o “euhabita, como
também é o que permite o indivíduo sentir e experienciar a vida.
Nesse sentido, é posvel perceber que o principal argumento do autor centra-se
na ideia de que a autobiografia está necessariamente associada à espetaculização dos
indiduos, ou seja, seu local é não apenas o presente, mas também o seu destinatário, “o
outro”. Artiéres (1998), ao debater os processos de arquivamento do eu nas sociedades
contemporâneas por meio das práticas de guarda e constituição de acervos pessoais,
problematiza essa questão de maneira semelhante a Eakin. Ambos os autores, ao
discutirem os processos autobiográficos, tencionam as relações temporais para além
apenas de destacar o ato de escrita no presente ou sua intencionalidade futura. Dentro
dessa perspectiva, construir uma autobiografia é elaborar uma narrativa sobre si e sobre
um tempo não linear, apesar de sua sistematização geralmente ser, como forma de
orientação e constituição das identidades.
O terceiro capítulo, “Trabalho identitário: pessoas fabricando histórias”, inicia
uma segunda parte do livro no qual o autor procura construir breves relatos de estudos
de caso. É possível perceber que Eakin divide seus estudos de caso em torno de dois
grupos principais de documentações: (1) Obras autobiográficas e literárias de grande
recepção, publicadas na idade moderna e na contemporaneidade; (2) Relatos de vidas
cotidianas e de pessoas “ordinárias”. Para o primeiro caso de estudo, o autor retoma
relatos autobiográficos desde o século XVIII e XIX, como os depoimentos recolhidos por
Henry Mayhew (1881-1841), para debater as diferentes operações e processos que
envolvem as autobiografias nos culos XX e XXI.
Tomando o final da Idade Moderna francesa como ponto de partida, o autor
historiciza a emergência das práticas de relatar a si mesmo e das autobiografias. Para
Eakin (2019), apesar de os relatos escritos serem predominantemente ligados às elites,
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Vale destacar que nessa parte da obra, Eakin (2019) discute as autobiografias de ampla circulação e não
uma análise de produções acadêmicas.
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ainda assim é possível mapear a construção de narrativas autobiográficas através de
leituras a contrapelo, como fez Mayhew. Embrenhando-se pelo que pode ser
considerado um exercício de busca pela compreensão dos estratos de tempo
(KOSELLECK, 2014), apesar de essa dessa relação não ser mencionada, Paul Eakin
afirma que esse processo foi intensificado com a emergência dos meios digitais, criando
sociedades cada vez mais narradoras de si. Redes sociais, a exemplo do Facebook e o
MySpace foram fundamentais para lançar a centelha que favorece a alteração da
identidade, uma vez que propiciam a mudança não somente de construções narrativas,
mas também cria-se a necessidade constante do on-line, o que causa profunda sensação
de aceleração do tempo e a consequente efemeridade da elaboração de uma identidade
narrativa.
Nesse capítulo, o segundo conjunto de fontes utilizadas são os relatos do
cotidiano de sujeitos considerados, pelo autor, como “comuns” ou “ordinários”.
Diferentemente de uma análise exclusiva sobre como o cotidiano é narrado por esses
sujeitos a partir dos livros autobiográficos, Eakin (2019, p. 114) afirma que seu interesse é
compreender que a “atividade de construir eus e histórias de vida consiste ainda em mais
uma prática cotidiana”, perspectiva elaborada através dos estudos de Michel de Certeau.
Michel de Certeau (2009) entende que o cotidiano é constantemente elaborado
por meio de dinâmicas entre estruturas socioculturais e práticas individuais e
(re)inventivas. Eakin analisa de que modo as práticas de relatar o cotidiano são
elaboradas, dimensionando o consumo destas narrativas. Uma das ocorrências
analisadas, e talvez o mais intrigante dos estudos de caso, é o do próprio pai do
pesquisador, no qual, para além de pensar nos impactos da figura paterna na construção
da identidade narrativa, discute de que maneira ele o influenciou a se interessar por
autobiografias. Partindo dessa relação, o autor discute suas próprias narrativas
autobiográficas, interrogando-se sobre a maneira como “modelos” de histórias e os
relacionamentos interpessoais influenciam na constituição de identidades.
A discussão sobre o pai do autor prossegue no capítulo seguinte da obra, quando
Eakin passa a realizar um relato autobiográfico. Em “Vivendo autobiograficamente”,
capítulo que dá nome à obra, o autor mergulha em uma escrita autobiográfica sobre si e
sua identidade narrativa. Se a essa altura do livro houve a discussão dos aspectos
teóricos e metodológicos, bem como a realização de estudos de caso e a historicização
de algumas práticas, o último capítulo apresenta o autor problematizando seu exercício
cotidiano. Em sua leitura é posvel perceber uma provocação intencional a quem [...] se
propõe a usar esse material como fonte para uma análise social deve perguntar [...] de
onde é que provem o entendimento de um indivíduo acerca do eu e da história de vida”
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(EAKIN, 2019, p. 130). Nesse sentido, para analisar autobiografias, Eakin diz que a
experiência é fundamental para compreender suas práticas.
O autor utiliza a sua trajetória para refletir sobre o perfil adaptativo da história,
dependendo sempre do narrador/elaborador, seu contexto e sua intencionalidade.
Através dessa perspectiva, Eakin (2019, p. 158) defende que[...] o discurso
autobiográfico tem um papel decisivo no regime de responsabilização social que rege
nossas vidas, e, nesse sentido, pode-se dizer que nossas identidades são socialmente
construídas e reguladas”. Dentro dessa constatação é perceptível a centralidade do eu e
de suas intenções, em que se pode considerar a narrativa como instrumento de
legitimação de poder e de um determinado status ou lugar social no qual seu
comunicante se insere. Essa questão pode ser interpretada através de outras
perspectivas contemporâneas das ciências humanas que não citadas por Eakin, como,
por exemplo, os conceitos de cus de enuncião (GLISSANT, 2011). Nessa articulação,
não apenas o passado mobilizado no presente da narração, mas também a categoria e
diferentes noções de futuro são aspectos centrais.
É particularmente interessante observar que, ao chegar ao último capítulo da
obra, o(a) leitor(a) tenha sido conduzido a perceber a forma de organização dos temas
intensamente problematizados. Partindo inicialmente de uma discussão teórica sobre as
questões autobiogficas, o autor procurou definir seus conceitos norteadores,
abordando também suas historicidades, para aplicá-los em estudos de caso e, por fim,
produzir sua própria identidade narrativa. Tal estratégia cria um espaço para que o(a)
leitor(a) mobilize as discussões do próprio teórico, percebendo os processos apontados
e também sua tese principal: a de que é impossível fugir da narrativa, pois a elaboração
de identidades é um processo de construção de histórias no presente a partir de suas
relações com o tempo.
Referências
ARTIÈRES, Philippe. Arquivar a própria vida. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 11, n.
21, p. 9-34, jan./jun. 1998.
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Moraes (Org.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2006. p.
183-191.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer. 16. ed. Petrópolis: Vozes,
2009.
DOSSE, François. Renascimento do acontecimento. São Paulo: EdUNESP, 2013.
Faces da História, Assis/SP, v.6, nº2, p.566-572, jul./dez., 2019
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GLISSANT, Édouard. Teorias. In: GLISSANT, Édouard (Org.). Poética da relação.
Portugal: Porto Editora, 2011. p. 127-170.
KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo: estudos sobre a História. Rio de Janeiro:
Contraponto, Ed. PUC-RJ, 2014.
RICOEUR, Paul. O si-mesmo como um outro. Campinas: Papirus, 1991.