Apresentação do Dossiê
Os estudos de Ásia e do Oriente no Brasil:
objetos, problemáticas e desafios
A proposta desse dossiê partiu de um desafio e da busca de respostas a uma
pergunta complexa: existem estudos de História da Ásia e do Oriente no Brasil? Se a
resposta a essa pergunta fosse positiva, outras perguntas desafiadoras surgiriam: quais
seriam os objetos, problemáticas e desafios enfrentados pelos pesquisadores de nossas
universidades que se aventuram em um campo de estudos que, à primeira vista, carece
de interlocutores, acesso às fontes, definição de temas e metodologias adequadas? Quais
seriam as concepções de Ásia e de Oriente dos possíveis pesquisadores dessas
temáticas? Em quais períodos essas pesquisas estariam centradas?
A repercussão positiva dessas perguntas desafiadoras veio com o grande número
de propostas para a composição desse dossiê, bem como a diversidade temática, espacial
e temporal das pesquisas realizadas por jovens pesquisadores de diferentes instituições
brasileiras. Ao mesmo tempo, outro desafio seria compreender como temas tão
diferentes dialogariam nesse dossiê, pois não poderiam ser agrupadas simplesmente pelo
componente geográfico (as subdivisões asiáticas) ou pelo componente cultural (o
Oriente e o orientalismo), nem simplesmente pelo recorte temporal (dos séculos XVI aos
temas contemporâneos).
Levando essas questões em consideração, os artigos foram agrupados em blocos
temáticos. O primeiro deles compreende quatro artigos referentes à Índia (Goa), ao
Ceilão e ao Japão a partir da presença das missões religiosas entre os séculos XV e XVI
como forma de reafirmação da presença portuguesa no Oriente, as reações contrárias e
as hibridizações possíveis.
No artigo “Para favorecer a cristandade: as iniciativas de coerção à conversão
dos órfãos em Goa (1540-1606)”, com autoria de Camila Domingos Anjos, foi analisada
uma coletânea de cartas e alvarás de reis de Portugal e de vice-reis do Estado da Índia,
reunidas e organizadas no Arquivo Português Oriental, referentes às legislações e às
estratégias dos agentes coloniais portugueses na catequização de jovens menores de 14
anos de idade, considerados passíveis de serem moldados, educados, disciplinados e
aperfeiçoados na fé católica.
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Já em “Um catolicismo possível: a Congregação do Oratório de Goa e sua inserção
no Ceilão holandês”, Ana Paula Sena Gomide acessou a documentação dessa instituição
religiosa para analisar a importância da ação dos oratorianos, formados por um clero
mestiço, na manutenção, revitalização e sobrevivência do catolicismo no Ceilão, que
passou do domínio português para o domínio holandês, calvinista e anticatólico.
Em outra vertente, Renata Cabral Bernabé, no artigo intitulado “A formulação do
discurso anticristão no Japão dos séculos XVI-XVII”, analisou a promulgação de éditos
anticristãos emitidos pelo governo japonês que tratavam da expulsão dos missionários e
da proibição da prática religiosa crisno território. Ainda que o cristianismo não tenha
desaparecido do Japão, tal legislação foi responsável pelo fim da atividade missionária
europeia assim como contribuiu para dificultar o intercâmbio com países ocidentais
católicos, numa clara relação com a centralização política do Japão iniciada em meados
do século XVI e consolidada no século XVII.
Finalizando esse bloco, o artigo de Laís Viena de Souza, “Os panditos e os
jesuítas. Indícios da medicina ayuvérdica nos colégios da Companhia de Jesus no Estado
da Índia (séculos XVI-XVIII)”, utiliza a documentação inaciana para discutir a presença
na ordem religiosa de médicos indianos vaidyas, chamados de panditos pelos jesuítas,
bem como tratar dos embates, das assimilações, da apropriação, e da hibridização da
medicina ayurvérdica com os preceitos hipocráticos-galênicos que circulou pelo Império
Português na era moderna.
O segundo bloco temático reúne mais quatro artigos cujo ponto em comum é a
abordagem da temática acerca do Oriente Médio, Norte da África e o Islamismo no Brasil
a partir de fontes documentais brasileiras. Frederico Antônio Ferreira em “Relações
entre o Brasil e o norte da África no século XIX: migração e comércio” acessou os
documentos da chancelaria brasileira custodiados pelo Arquivo Histórico do Itamaraty
no Rio de Janeiro, referentes às relações externas do então Império Brasileiro com países
do norte da África no contexto da proibição do tráfico de escravos, do incentivo à
imigração e do crescimento da economia cafeeira.
“Conexões Rio de Janeiro-Cairo: possibilidades analíticas acerca das relações
Brasil-Egito a partir da imprensa escrita (1950-1954)” de Mateus José da Silva Santos
mantém o olhar sob as relações diplomáticas entre o Brasil e o Egito no início dos anos
1950, analisando um conjunto de textos publicados no periódico baiano A Tarde para
tratar tanto do protagonismo dos dois países em seus respectivos continentes como para
compreender a intersecção de seus interesses na ordem econômica e política mundial
fora do eixo Europa, Estados Unidos e América Latina.
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Felipe Yera Barchi em seu artigo “Referências Bibliográficas sobre o Islã no
Brasil: um estudo de caso dos livros didáticos de Gilberto Cotrim e Cláudio Vicentino”
centra-se na análise da forma como o Islã, e temas relacionados ao país, são abordados
nos livros didáticos de História em nosso país e, entre suas conclusões, verifica-se uma
cristalização da história do Islã nos títulos didáticos analisados pelo autor, a despeito das
revisões feitas nas obras.
Por sua vez, Bruno Bartolo do Carmo, em “Memórias do Café Árabe: costumes,
ritos e modos de preparo em narrativas de sírios e libaneses em São Paulo (1970-2019)”,
oferece-nos as tradições e os rituais do preparo do café árabe pelas narrativas de
imigrantes e refugiados de origem árabe radicados no Brasil, como uma forma de
contribuir aos estudos sobre a imigração e sobre a própria história da bebida declarada
como patrimônio pela UNESCO.
A partir de temas ligados à memória, ao testemunho, identidade, resistência e
narrativas virtuais, o terceiro bloco agrega a Coreia do Sul, a Palestina e o Estado
Islâmico. Camila Regina Oliveira no artigo “Museu, memória, testemunho e a construção
do fato: um estudo do caso Seodaemun Prision History Hall, Seul-Coreia do Sul” toma
como objeto de análise a exposição permanente desse Museu para tratar das narrativas,
memórias e testemunhos sobre a colonização japonesa no país e, sobretudo, para
problematizar a questão da construção da identidade cultural sul-coreana, bem como a
concepção de uma consciência nacional.
É na perspectiva do debate sobre projeto nacional, identidade, resistência que
Carolina Ferreira de Figueiredo desenvolve seu texto “O local e o global em charges:
expressões de um artista palestino em Haifa nas décadas de 1970 e 1980”, analisando a
obra de Abed Abdi, publicada no periódico comunista Al-Ittihad, baseado na cidade de
Haifa. Usando a arte como expressão de um ativismo político, as charges abordam temas
relacionados ao imperialismo, colonialismo, intervencionismo e invasões que ainda
permanecem em terras palestinas, sem perder de vista as questões locais (o conflito) e
as globais (a “grande” política).
De outra perspectiva, Gilvan Figueiredo Gomes em “Califado Virtual: a Hisbah
como ferramenta de construção de um Estado Islâmico em Dabiq (2014-2016)” utiliza
como fonte de pesquisa as narrativas veiculadas pela revista do grupo jihadista para
analisar a ação midiática, os ambientes digitais e as redes sociais como meio de
expressão de organizações políticas dessa natureza. Além disso, o autor problematiza os
conceitos de Califado tanto do ponto de vista da disputa e da legitimidade do poder,
como do ponto de vista Virtual não apenas vinculado ao digital, mas também na
eminência do vir a ser, da possibilidade que se concretiza como fato.
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Finalmente, o quarto bloco concentra os textos que partem das questões acerca
do Orientalismo, tendo como referencial teórico a obra homônima de Edward Said. Paula
Carolina de Andrade Carvalho, em seu artigo “Orientalizar-se: as representações dos
‘orientais’ em Personal Narrative of a Pilgrimage to Al-Madinah & Meccah, de Richard
Francis Burton (1855-56)”, faz uma análise sobre as generalizações dos “orientais” feitas
pelo explorador britânico, que criou o disfarce de Shaykh Abdullah para realizar o ritual
sagrado do hajj permitido apenas aos muçulmanos. Ainda que Burton nunca tenha
deixado de seguir a cartilha do discurso do orientalismo, a autora aponta que as
representações dos “orientais” do autor estão pautadas muito mais pelas ambiguidades e
pelos paradoxos.
No artigo “O Orientalismo como prática discursiva hegemônica no auge da
expansão europeia”, Lucas Pereira Arruda realiza uma revisão bibliográfica de obras
inglesas de diferentes naturezas para compreender como os agentes coloniais tratavam
os povos nativos das colônias inglesas no final do século XIX, centrando sua análise em
Joseph Conrad e Rudyard Kipling para falar do papel do romance na construção
discursiva do outro.
Já em “Discursos Orientalistas sobre a dança: o caso de Almée, na egyptian
dancer, de Gunnar Berndtson” de Nina Ingrid Paschoal, uma fonte pictórica é analisada
para problematizar a pintura dita orientalista e seu papel na popularização da dança de
mulheres orientais eternizada no Ocidente como “dança do ventre”. Entre fantasia e
realidade, tais imagens contribuíram para uma construção sobre o Oriente atrelada aos
movimentos de colonização, ainda repercutindo na forma de representação dessas
mulheres. Por fim, Rafael dos Santos Pires, em seu artigo “O mito do Egito Eterno:
desenvolvimento acadêmico, impactos políticos”, parte da associação entre orientalismo,
mitos e elementos discursivos para compreender os impactos dos usos do passado no
mundo contemporâneo do Egito, na constituição do próprio Estado egípcio e na forma de
imaginar e escrever esse passado.
A escolha desses textos para encerrar o dossiê não foi fortuita. A proposta desse
dossiê foi elaborada considerando alguns marcos fundamentais do debate que ora se
discute: os 40 anos da primeira edição de Orientalismo: o Oriente como invenção do
Ocidente, os 30 anos da primeira edição brasileira e os 15 anos da morte de Edward Said.
A obra do escritor de origem palestina tornou-se um marco fundamental nos diversos
campos das humanidades, frente aos estudos que levariam o Oriente Médio e,
consequentemente, a história da Ásia para um patamar que nas últimas décadas ampliou-
se em problematizações que inauguraram os estudos pós-coloniais. Outrossim, as
inovações e as perspectivas teórico-metodológicas apontaram para revisionismos sobre
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leituras, interpretações e práticas interdisciplinares referentes ao sujeito histórico
“oriental”, ao mundo islâmico, às sociedades do sul e do sudeste asiático, além do
chamado “Extremo Oriente”.
Mas afinal, de qual Oriente e de qual Ásia estamos falando? Na perspectiva
saidiana, o Oriente foi compreendido no Ocidente como algo imaginário, distante,
misterioso e exótico, mas o que essas pesquisas têm demonstrado é a necessidade de
compreensão e apreensão da História da Ásia a partir de um ponto de vista que supere
as dicotomias oriental-ocidental e que faça prevalecer um olhar conectado entre passado
e presente, entre o local e o global, entre o real e o virtual, entre assimilação e
resistência. Não uma história do Oriente em oposição a uma história do Ocidente. Não
uma História da Ásia em oposição a uma História da Europa. O que se buscou nesse
dossiê foi analisar essas Histórias Conectadas, parafraseando Sanjay Subrahmanyam.
Por fim, nas entrevistas das professoras Mônica Muniz de Souza Simas e Marilia
Vieira Soares apresentam-se alguns dos resultados e tendências dos estudos orientais e
asiáticos no Brasil, no campo da Literatura e das Artes Cênicas, realizados em diferentes
laboratórios e instituições, como relevantes contributos em seus diálogos
interdisciplinares com a História da Ásia.
Gostaríamos de agradecer aos diversos autores que submeteram seus trabalhos
para nossa avaliação, aos pareceristas de diferentes áreas de conhecimento que
reforçaram essas conexões, e aos editores da Revista que acolheram essa proposta, bem
como tornaram todo esse trabalho possível.
Boa leitura!
Profa. Dra. Samira Adel Osman (UNIFESP)
Prof. Dr. Jorge Lúzio Matos Silva (UNIFESP)