)
CONCEIÇÃO, Karen Cristina Costa
*
NAVARRO, Alexandre Guida
**
RESUMO: O presente artigo resultou da análise
de duas crônicas coloniais redigidas por
missionários franceses envolvidos no projeto
colonial francês para o Maranhão nos primeiros
anos do século XVII. Esta documentação, além de
referir-se à experiência francesa de colonização,
contém informações sobre os papéis sociais e
religiosos assumidos pelas mulheres indígenas
nas suas interfaces com o trabalho agrícola, os
rituais simbólicos e participação política das
índias nas aldeias Tupinambá. Nessas crônicas
coloniais podemos perceber indícios de
valorização da mulher indígena, principalmente
pelo fato de ser ela a guardiã da cultura e do
conhecimento de sobrevivência naquelas terras.
Mesmo que houvesse assimetria entre os
gêneros, as mulheres eram educadas desde a
infância para assumir funções que asseguravam
um papel central na economia, e em todo o
conjunto de valores a elas associados que
proferem uma representação da identidade
feminina.
PALAVRAS-CHAVE: Crônicas coloniais; Mulheres
indígenas; Maranhão.
ABSTRACT: This article resulted from the analysis
of two colonial chronicles written by French
missionaries involved in the French colonial
project for Maranhão in the early years of the 17th
century. This publication, in addition to referring
to the French experience of colonization, contains
information on the social and religious roles
assumed by indigenous women and their
interfaces with agricultural work, symbolic rituals
and the political participation of the Tupinambá
indigenous communities. In these chronicles, we
can see signs of appreciation of indigenous
women, mainly because she is the guardian of
culture and knowledge of survival in these lands.
Even if there was an asymmetry between genders,
as women were educated since childhood to
perform functions that ensured a central role in
the economy, and in the whole set of values
associated with them that express a
representation of female identity.
KEYWORDS: Colonial Chronicles; Indigenous
Women; Maranhão.
Recebido em: 31/01/2020
Aprovado em: 01/06/2020
* Mestre em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal
do Maranhão. São Luís, MA, Brasil. E-mail: karencristinacosta@outlook.com. Ressalta - se que as
conclusões apresentadas neste artigo são oriundas da dissertação De feiticeiras diabólicas a auxiliares na
empresa missionaria: as atuações das mulheres Tupinambá no Maranhão franco-ameríndio (1594-1615).
** Doutor em Antropologia pela Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM), Cidade do México,
México. Professor Associado I do Departamento de História e Programa de Pós-Graduação em História
Social da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), São Luís, Maranhão (MA). Coordenador do
Laboratório de Arqueologia (LARQ-UFMA). Bolsista de produtividade do CNPq nível 2. E-mail:
altardesacrificio@yahoo.com.br.
Introdução
Este artigo é fruto de uma parte da dissertação de mestrado intitulada De
Feiticeiras diabólicas a auxiliares na empresa missionária: as atuações das mulheres
Tupinambá no Maranhão franco-ameríndio (1594-1615), que analisa os indícios de
valorização da mulher indígena na sociedade Tupinambá nas crônicas coloniais redigidas
pelos padres franceses Claude D’Abbeville e Yves D' Évreux, ambos membros da
expedição liderada por Daniel de La Touche ao Maranhão (CONCEIÇÃO, 2019). O
objetivo central deste artigo foi explorar, nessa mesma documentação, informações
sobre os papéis assumidos pelas mulheres dessas populações ameríndias, a partir de um
diálogo com o campo da Antropologia das Mulheres.
Realizamos brevemente uma abordagem, não exaustiva, a respeito da organização
social dos Tupinambá, visto que alguns aspectos culturais são fundamentais para a
compreensão das atuações das índias, que permitem contrastar com os estereótipos de
gênero existentes na sociedade ocidental e, ainda, o enriquecimento da percepção das
mulheres exercendo papéis políticos e religiosos, que em uma perspectiva androcêntrica
consideraria “masculina”. Quatro aspectos do papel social das mulheres indígenas, que
constituem em esferas de autonomia e poder, serão aqui considerados: (1) a contribuição
econômica, (2) a influência no casamento e presença nas reuniões políticas, (3) um papel
significativo em rituais e, (4) na produção da cerâmica. A forma como as mulheres foram
incorporadas nessas esferas é uma dimensão importante do seu papel na sociedade
Tupinambá
1
.
O caso da inexpressiva produção acadêmica a respeito das mulheres índias está
ligado à invisibilidade dos grupos indígenas na memória nacional, a qual se acrescenta
ainda a hegemonia da perspectiva masculina, em diversas áreas: História, Antropologia,
Arqueologia e Filosofia. Os anos de 1980 marcam o esforço crescente de valorizar as
mulheres enquanto sujeitos históricos, esforço esse estimulado pelo movimento
feminista. A antropóloga Peggy Sanday (1993, p. 87), discutindo a constância daquilo que
ela chama de “modelo patriarcal” de análise antropológica, aponta que o caminho para
superar o quadro é a construção de produções centradas em registrar detalhes da vida
das mulheres, evitando explicar essas experiências em termos universais.
1
Optamos por utilizar inicial maiúscula e não flexionar gênero e número dos nomes de sociedades
indígenas em respeito à Convenção para a grafia de nomes indígenas assinada durante a 1ª Reunião
Brasileira de Antropologia, em 1953 (REVISTA DE ANTROPOLOGIA, 1954). É importante ressaltar que
utilizaremos a palavra Tupinambá quando nos referirmos aos diversos grupos Tupi da documentação
colonial consultada, pois assim foram tratados pelos cronistas.
Antropologia das Mulheres
O campo da Antropologia das Mulheres surgiu quando muitas antropólogas, entre
elas a citada Sanday, observaram que os estudos antropológicos estavam voltados,
quase que exclusivamente, sobre o que os homens realizavam, e uma evidente tendência
a ver os trabalhos femininos através dos valores e atividades masculinas
2
. Esta
unilateralidade provém da insuficiência de registros sobre as atividades das mulheres, o
que, como assinala Annette Weiner (1984, p. 28), acaba por “circunscrever os estudos
das mulheres à periferia das produções acadêmicas sobre a sociedade”. O “tradicional
uso das teorias fundadas sobre um modelo masculino resulta em aceitar a dominação
masculina como um fato universal.
Foi a partir da publicação de alguns trabalhos que as teorias constituídas pelo viés
masculino começaram a ser desestabilizadas. Nessas publicações, buscou-se apresentar
os diversos papéis e experiências sociais femininas e uma compreensão de como se a
construção de gênero nos diferentes sistemas. Foi desta maneira que alguns estudos
confrontaram o ideal de gênero ocidental presente nos estudos antropológicos, ao
apresentarem fatos etnográficos, através dos quais os autores demonstraram a
fragilidade da premissa que associava mulher e natureza de um lado, homem e cultura de
outro, presente em muitos clássicos antropológicos (LASMAR, 1999).
Os estudos dos antropólogos Carol MacCormack e Marilyn Strathern, em Nature,
Culture e Gender, Jean H. Bloch e Maurice Bloch, em Woman and the Dialectics of
Nature in Eighteenth Century Thought e Ludmilla Jordanova, em Natural Facts: a
Historical Perspective on Science and Sexuality, todos publicados em 1980, criticaram a
tendência dos estudos antropológicos em ver os homens associados à cultura e as
mulheres como próximas da natureza. Essa relação estrutural teria sido arquitetada e
articulada desde Claude Lévi-Strauss, pois é a partir de seus estudos que o domínio
doméstico é visto como um espaço inferior, marginal, e o domínio público como uma
rede de alianças, de poder político, e das negociações
3
. De acordo com Collier e
Yanagisako (1987), em Gender and Kinship, essa associação mulher/natureza X
homem/cultura de Claude Lévi-Strauss estaria na base teórica do parentesco de muitos
estudos, principalmente os das décadas de 1950 e 1960
4
. Essas antropólogas vêm
2
O aparecimento destes estudos que buscam revisar os trabalhos antropológicos construídos com base
em teorias masculinas está intimamente ligado às lutas feministas dos anos sessenta, quando muitas
mulheres procuraram na antropologia explicações para as desigualdades e a assimetria sexual.
3
O domínio público nos estudos antropológicos inclui o espaço dos rituais.
4
O termo troca de mulheres” de Claude Lévi-Strauss descrito em As Estruturas Elementares do
Parentesco (1949) especifica que os homens têm direito sobre sua parentela feminina, sem que as
mulheres tenham os mesmos direitos sobre si mesmas ou sobre sua parentela. Este pensamento contribuiu
argumentando que havia diferenças entre as experiências femininas e masculinas dentro
da esfera doméstica, assim como na pública, e que estas diferenças se relacionavam com
as diversas formas de organização cultural, política e econômica e concluem
esclarecendo que não devemos tomar a diferença (entre homens e mulheres), assim
como, os espaços (doméstico e público) como um dado universal (COLLIER;
YANAGISAKO, 1987).
Annette Weiner (1984), em Sexualite chez les Anthropologues, Reproducion chez
les Informateurs, propõe que analisar o cotidiano das experiências femininas seria uma
das formas de questionar o viés masculino, uma vez que grande parte das sociedades
indígenas concebe mulheres e homens como duas entidades distintas, visível durante os
rituais e na divisão sexual do trabalho. Em grande parte das sociedades indígenas das
terras baixas sul-americanas e das terras altas andinas, principalmente em sociedades
agricultoras, algumas mulheres gozavam de expressiva participação econômica e
política. Algumas eram influentes no seio familiar, no casamento, além da autoridade que
possuíam na casa e fora dela. Esta autoridade da mulher, decorrente da sua ação
fundamental como provedora do sustento familiar, estendia-se também a outras
posições sociais da comunidade (PICCHI, 2003; SANDAY, 1993).
Lux Vidal, em Morte e Vida de Uma Sociedade Indígena Brasileira: os Kaya-
Xikrin do Rio Cateté (1977), ao focar nas relações cotidianas, verificou que entre os
Kaiapó-Xkrin a relação entre os gêneros era de oposição e complementariedade, através
de atividades econômicas femininas e masculinas. Na sociedade Mebengokre (Kaiapó),
Vanessa Lea, em seu artigo Gênero feminino Mébengokre: desvelando representações
desgastadas (1994), evidencia que a relação entre os sexos é assimétrica, mas com
conotações de complementariedade. Esta complementariedade pode ser vista nas
atividades econômicas, em que as mulheres oferecem os tubérculos e os homens a
carne.
Juracilda Veiga, em Organização Social e Cosmovisão Kaingang: uma introdução
ao parentesco, casamento e nominação em uma sociedade Jê Meridional (1994), verificou
que entre os Kaiapó e os Bororo existia a Casa dos Homens no centro administrativo da
aldeia para realizarem suas reuniões políticas, onde a participação das mulheres é
fundamental (VEIGA, 1994). As constatações da participação das mulheres nas decisões
políticas nas aldeias, de acordo com Juracilda Veiga (1994), questionam o modelo de
oposição entre centro/periferia e masculino/feminino. Ledson Kurtz de Almeida, em sua
para o apagamento das experiências femininas, por ver as mulheres como “objetos de troca”. Entre alguns
estudos, destacamos os trabalhos de Radcliffe-Brown sobre os aborígines australianos, e a abordagem
feita por Malinowski a respeito do parentesco entre os trobriandeses.
dissertação intitulada Dinâmica Religiosa entre os Kaingang do Posto Indígena Xapecó
SC, entre os Kaingang, as mulheres participavam das reuniões políticas, assim como
dos rituais (ALMEIDA, 1998).
Entre os Tupinambá, no século XVII, como veremos nos próximos tópicos deste
artigo, as mulheres anciãs participavam das decisões políticas na Casa dos Homens e
dos rituais (ÉVREUX, 2007, p. 84). É nesta perspectiva que se inscreve a nossa análise a
respeito das mulheres indígenas veiculadas nos relatos coloniais, seguindo o caminho
proposto por Peggy Sanday, de nos voltarmos aos detalhes do cotidiano feminino
distanciando-nos das interpretações universais. Começaremos pela análise do
parentesco e do casamento que são importantes janelas que dão acesso ao entendimento
do papel social das mulheres indígenas e suas relações com os homens.
As índias Tupinambá no centro dos arranjos familiares
Sobre as regras de matrimônio o padre Claude D'Abbeville informou que a idade
que os índios contraiam o casamento variava entre os gêneros, os homens não tomavam
mulheres antes dos 25 anos e a moça, ainda muito jovem, a partir dos 15 anos poderia
casar-se. O matrimônio era realizado sem equiparação de idade, entre um homem mais
velho com uma mulher jovem, “são prometidas ainda crianças aos índios principais”,
casam-se geralmente “com homens mais velhos” (ABBEVILLE, 1975, p. 143). As moças
“preferem esposar um velho, especialmente quando é Principal” e que “muitas jovens de
quinze a dezesseis anos”, eram casadas com velhos (ÉVREUX: 2007, p. 43). Nesses
trechos, uma possível constatação, de que as jovens não eram agentes inertes neste
processo matrimonial, poderiam interferir na escolha do futuro esposo.
Os pais não poderiam possuir suas filhas, nem os irmãos as suas irmãs; nenhum
outro grau de consanguinidade os impede de se casar, e de tomar o número de mulheres
que desejem. Havia entre eles, a possibilidade de dissolução dos casamentos, tanto o
homem quanto a mulher poderiam encontrar novos pares, “e como o casamento é fácil,
igualmente fácil é desmanchá-lo, bastando para tal a vontade recíproca dos cônjuges”. Se
um homem deseja tomar esposa, depois de comunicá-lo à interessada, consulta seus pais
ou irmãos sobre se consentem. Respeitam, portanto, os pais e parentes próximos. O
marido pode expulsar a mulher; e se a mulher se sente farta do marido, e lhe diz não mais
querê-lo ou desejar outro, responde-lhe: Eccoin, isto é, para onde quiser”
(ABBEVILLE, 1975, p. 223).
O padrão de residência entre os Tupinambá era uxorilocal. Os diversos autores
que trataram do tema, principalmente Florestan Fernandes, Carlos Fausto e mais
recentemente o historiador João Azevedo Fernandes, transcreveram como regra o tipo
de residência matrilocal o novo casal passaria a morar na família da mulher. O padre
Yves D’Évreux aponta que o genro deveria acompanhar e servir o sogro em uma
passagem ressaltou que uma índia chamada Ana, filha do principal Japiaçu, advertiu seu
esposo a respeito do compromisso que ele possuía com seu pai: “não sabes que se ele me
deu a ti foi com a obrigação de os auxiliares na velhice?” (ÉVREUX, 2007, p. 315).
O modo de residência matrilocal institui uma reciprocidade entre as parentas
consanguíneas, neste sistema, as mulheres permaneceriam como membros efetivos de
sua própria linhagem após o casamento, continuariam residindo com seus pais, sendo o
cônjuge obrigado a mudar-se para sua residência possibilitando espaços para o
exercício do poder feminino, em que com o grande conjunto familiar, composto de filhas,
netas, desempenhavam diversas funções, governadas pelas mais velhas (COLLIER, 1988;
MARTIN; VOORHIES, 1975). Era no âmbito familiar que as mulheres desenvolviam as
atividades produtivas, ofertavam os rituais, entre eles os maiores festins para consumo
de bebidas fermentadas (SOUZA, 2002).
No modo de residência matrilocal, portanto, o papel das mulheres torna-se
destacado, são elas que detêm os saberes da agricultura, da produção dos alimentos, da
fermentação das bebidas, o que influencia a economia geral da sociedade. Uma exceção
ao caso da regra uxorilocal seria o casamento poligâmico, neste a mulher muda-se para a
casa do marido. A poligamia é uma das práticas indígenas, que, sem dúvida, exigiram
atenção por parte dos missionários enviados a América, na medida em que índios e índias
recusavam-se a abrir mão desses arranjos familiares, por serem a base sobre a qual se
sustentavam seu poder e prestígio.
Ao implantarem o projeto colonial francês no Maranhão, os administradores e os
missionários Claude D’Abbeville e Yves D’Évreux se defrontaram com este costume e,
apesar de reconhecerem a centralidade da prática na cultura Tupinambá, empenharam-
se em diluir esses arranjos, e em fazer com que os índios entendessem que era cito ter
apenas uma mulher. Alguns trechos dos relatos dão subsídio de que o status entre os
índios esteve diretamente relacionado à constituição de grandes famílias por meio da
poligamia, o missionário Abbeville ao observar que: “a pluralidade de mulheres” era
permitida; e que podiam “ter quantas desejem”, e que alguns praticavam a monogamia,
destacou que “[...] somente a fim de ganhar certo prestígio tomam muitas mulheres; são
nesse caso julgados grandes homens e se tornam os principais das aldeias [...]”
(ABBEVILE, 1975, p. 222).
Para os indígenas, a manutenção da prática parecia ser importante por viabilizar
as suas formações sociais percebendo os padres e demais conquistadores que era por
meio dos casamentos nativos que os índios reafirmavam seus costumes, logo,
orientaram-se para modificá-los, especialmente aquelas práticas culturais que se
mostravam conflitantes com a religião cristã. Em relação à intervenção missionária,
Claude D’Abbeville registrou o discurso do senhor de Rasilly ao líder indígena Japiaçu e
aos demais índios presentes: Se algum de vós deseja ser filho de Tupã e receber o santo
batismo, é preciso que se resolva a deixar a pluralidade de mulheres permitida entre vós.
A vós cabe decidir (ABBEVILLE, 1975, p. 64).
A proibição da poligamia pelos padres levou muitos índios a esconderem e a negar
que tivessem muitas esposas. Foi narrado pelo padre a execução de uma índia que havia
cometido adultério a mando de Japiaçu, esta provavelmente era uma de suas esposas que
havia sido desposada (ABBEVILLE, 1975, p. 132). A execução ocorreu logo após o
estabelecimento das leis de França naquela tribo e é possível que a decisão do índio
tenha sido resultado da interação com os europeus que afetaram algumas de suas
tradições, incluindo as relações entre os gêneros.
Os indícios do matrimônio poligâmico estariam relacionados com o tipo de
moradia comunal. “Constroem quatro grandes habitações em forma claustro”, são
“compridas e largas”, essas “grandes cabanas não têm separação alguma”, em cada
“cabana vive cada chefe de família com suas mulheres, seus filhos, seus escravos e seus
móveis” (ABBEVILLE, 1975, p. 222). A relação entre a existência de casas comunais e o
casamento poligâmico foi apontada por alguns pesquisadores como uma das
características dos povos Tupinambá. O arqueólogo José Proenza Brochado, destacou
que: “Uma casa grande comunal que abrigava dezenas e mesmo centenas de pessoas,
com chefia patrilinear. Os chefes exerciam um poder muito variável sobre o grupo loca.
As aldeias às vezes se confederavam debaixo de um único chefe sobre grandes áreas [...]”
(BROCHADO, 1984, p. 78).
Florestan Fernandes (1970) referiu-se às grandes famílias organizadas dentro de
uma aldeia em casas ou malocas, sem nenhuma divisão interna, as quais eram espaços
sociais formados por aglomerados de pessoas ligadas por laços de parentesco. Essas
extensas famílias habitando as grandes casas comunais, constituíam “matrizes que
asseguravam a transmissão de uma parte essencial da vida sociale estiveram baseadas
nas “relações de descendência” (CLAVAL, 1999, p. 119-120). O historiador e arqueólogo
Francisco Noelli, em seu artigo A ocupação humana na região sul do Brasil: Arqueologia,
debates e perspectivas, destacou que essas famílias numerosas eram reunidas em torno
de uma liderança política e/ou religiosa, a partir de laços de parentesco que poderiam ser
tanto sanguíneos, quanto políticos:
Nem a matrilocalidade nem a patrilocalidade funcionavam como fator
agregador, mas sim o prestígio de um líder com capacidade de organizar grupos
guerreiros ou de trabalho, com qualidades de bom orador, guerreiro, agricultor,
caçador, articulista político e provedor de grandes festas [...] (NOELLI, 1999-
2000, p. 248).
No escrito De Cunha a Mameluca: a mulher Tupinambá e o nascimento do Brasil,
publicada em 2003 por João Azevedo Fernandes, além de destacar a formação de
extensas famílias, sugere que os Tupinambá eram uma sociedade que não se estratificam
em classes socioeconômicas e o sistema de relações sociais e a organização de direitos e
deveres individuais se expressa em maior ou menor grau através de práticas apoiadas em
terminologias e laços de parentesco e afinidade. Neste modelo de sociedade, seria o
casamento o responsável por regular privilégios, hierarquias e desigualdades.
A poligamia, para muitos autores, era um direito dos velhos, privilégios dos
principais, guerreiros valentes que formavam o conselho de anciãos, estes eram
responsáveis pela guarda das culturas, leis, tradições e religiosidades, em torno deles
que eram reunidas as falias numerosas (FERNANDES, 2003; FERNANDES, 1963;
NOELLI, 1999). Florestan Fernandes, partindo da ideia da existência de uma
gerontocracia masculina entre os Tupinambá, destacou a importância dos homens
velhos, que detinham prestígio social por serem feiticeiros, guerreiros, chefes e, assim,
tinham acesso a um maior número de mulheres. Para este autor, são as relações com as
mulheres que determinavam o lugar social e as oportunidades que os homens teriam no
grupo (FERNANDES, 1963).
O antropólogo Carlos Fausto, em seu capítulo intitulado Fragmentos de História e
Cultura Tupinambá, publicado em 1992 no livro História dos Índios no Brasil, organizado
por Manuela Carneiro da Cunha, aponta que o acesso à chefia e seu exercício dependiam
da constituição das unidades domésticas e das estratégias matrimoniais, deste modo, era
exigido de um homem, nesta linha interpretativa, a “capacidade em articular uma extensa
parentela” (FAUSTO, 1992, p. 383-386). A fuga da dívida ao sogro, associada à
uxorilocalidade era possível somente através de proezas guerreiras”, ou seja,
participação em guerras e execução de inimigos em grandes rituais (FERNANDES, 2003,
p. 36).
Estas interpretações centradas nos homens anciãos são, por certo, uma
abordagem provocada pela perspectiva masculina na Antropologia, e também em outros
campos de produção do conhecimento, como a Arqueologia. Concentradas em temas
como liderança, poder, guerra, troca de mulheres, evidenciaram uma supremacia
masculina. E as mulheres apareceram, muitas vezes, nestes trabalhos, como personagens
subordinadas. A organização social entre os índios são bem mais complexas do que pode
parecer se nos vincularmos exclusivamente à compreensão patriarcal.
Em cada sociedade, a prática poligâmica possuía um sentido e significado, e entre
os Tupinambá, podemos destacar obtenção de grande família que possibilitaria muitas
lavouras, abundância de alimentos e bebidas fermentadas, conferindo assim, status
social, visto que a agricultura era o principal apoio alimentar destes índios, a base da
economia vinha desta atividade e o labor agrícola era um saber dominado pelas mulheres.
Nas aldeias, as unidades de produção constituíam-se em torno de um grupo de parentes,
as mulheres possuíam uma relação direta com a terra, sendo elas de fundamental
importância para a manutenção da família, da linhagem, tendo como papel principal
cuidar das lavouras, produzir e distribuir os alimentos necessários ao grupo. As fontes
dão indícios de que a mulher era um símbolo de riqueza/prosperidade e poder que podia
ser representativo tanto para ela quanto para os homens de seu grupo familiar, marido,
pai, irmão e filhos. Esta concepção pode explicar o fato de serem ofertadas aos aliados
políticos, não como algo que as declinassem ou desvalorizassem, pelo contrário, com
teor valoroso.
Claude D’Abbeville registra que dão com muita facilidade o que mais prezam,
suas filhas e suas mulheres” e ainda, que era comum “entre eles prometerem suas filhas
ainda crianças aos principais da tribo, ou aos que tem em amizade”. O mesmo religioso
narrou a ida dos índios Tupinambá para estabelecer relações amistosas com outros
índios que habitavam as margens do rio Mearim. Nesta oportunidade, pediram as filhas e
mulheres dos principais “[...] que obtiveram, junto com muitos outros enfeites, que
estes povos faziam muito caros e preciosos” (ÉVREUX, 2007, p. 43).
Entre os índios, por exemplo, parecem não compactuar com a possibilidade de
viverem distante delas. Em uma passagem do relato de Claude D’Abbeville descreveu que
um índio chamado Tecüare Ubuih havia manifestado o desejo de viver como os padres.
Ao anunciar sua aspiração, uma criança indígena chamada Acaiuy-Mirim reforça a quase
impossibilidade de viver sem as mulheres em sua sociedade:
Eu, (disse o índio Tecüare Ubuih), d’ora em diante desejo viver como os Padres,
trazer um vestido pardo como elles, possuir o mesmo que elles tem, andar
com a cabeça baixa e olhando para o chão, como elles, não quero mais saber
nem de raparigas e nem de mulheres, nem namorar com ellas, enfim quero viver
e proceder como elle. Achava-se presente o menino Acaiuy-Mirim (de quem
falamos), e ouvindo estas palavras, atilado e com gravidade ou modéstia
ordinária, disse imediatamente a Tecüare Ubuih: Dizes, que querer viver como
os Padres, e que não cuidas mais de mulheres, como elles o fazem, porém não
cumprirás tua palavra. Tu as deixarás por uma ou duas luas, mas quando ficares
angayuar, (quer dizer- magro: não moléstia que elles mais temam do que o
emagrecimento), irás logo procurai-as como fazia antes (ABBEVILLE, 1975, p.
86).
As mulheres não eram agentes passivos neste processo matrimonial, referindo-se
à poligamia, a pesquisa de João Azevedo Fernandes (2003), corrobora a premissa de que
o status das mulheres era expressivo e que o viés masculino dos cronistas, e de alguns
antropólogos, subestimaram suas atuações. Sobre os casamentos poligâmicos, ressaltou
ser um privilégio feminino e não somente masculino, pois a entrada de outras mulheres
no grupo familiar, na condição de esposas, gerava uma hierarquia entre elas, a mais velha
e primeira esposa, exercia poder. Desse modo, o casamento poligâmico, conferia
privilégios e autoridade a mais velha delas, a liderança era de alguma forma, cumprida
pelas mulheres (FERNANDES, 2003).
Em uma leitura cuidadosa das narrativas, é possível notar que a mais velha delas
possuía privilégios a partir da entrada de outras mulheres no grupo familiar. “Viviam
todas em boa paz, sem ciúmes, nem brigas, sem disputas, sem dissenções de qualquer
espécie”, vivem sossegados o marido e suas mulheres, e demostram “grande amizade, a
ponto de jamais se ouvir discussões, nem recriminações ou do marido ou das mulheres”.
Uma é sempre mais querida, por isso, “governa as outras como uma senhora às suas
servas” (ABBEVILLE, 1975, p. 223). Embora apareçam trechos em que os padres
desprestigiam as velhas, como tentativa de desvalorizá-las, estes notaram que elas eram
respeitadas por seu marido, seus filhos e pelas mulheres mais novas de seu núcleo
familiar. As jovens eram governadas por elas nas residências, assim como na execução
dos rituais, o que aponta para a existência de uma hierarquia entre elas, evidenciando
uma gerontocracia.
A historiadora Elisa Fhauf Garcia, em Conquista, Sexo y Esclavitud en la
Cuenca del Río de la Plata: Asuncíon y São Vicente a Mediados del Siglo XVI, publicado
em 2015, aponta para outros significados do matrimônio entre os indígenas e a
importância política das mulheres nesta instituição. Conforme a autora, o casamento
poderia constituir a afirmação de alianças entre diferentes grupos para a ampliação da
área de influência (GARCIA, 2015). São inúmeras as passagens nos relatos que elucidam
que a relação com as mulheres poderia ser sinal da aliança entre grupos étnicos
diferentes. Nesse sentido, a influência dos homens dependia das redes de parentesco em
que as mulheres estivessem inseridas e da habilidade delas para usar a seu favor
(ALMEIDA, 2003; GARCIA, 2015).
A instituição matrimonial da poligamia esteve estreitamente vinculada à
instituição política do poder: a existência de várias esposas pode garantir e reforçar a
posição política do marido, assim como a entrada de outras mulheres na estrutura
familiar, podendo garantir posição política e maior prestígio à primeira e mais velha
esposa, visto que, a autoridade doméstica confunde-se com a autoridade política. A
poligamia seria, ainda, uma forma de perpetuar a gerontocracia não apenas masculina
como pensada por Florestan Fernandes e outros antropólogos, mas também feminina. As
jovens mulheres e os rapazes deveriam submeter-se à autoridade não somente do
marido, como da mulher mais velha dentro do grupo doméstico.
As relações familiares, econômicas e religiosas não eram apartadas umas das
outras. O poder econômico das mulheres é certamente um dos enigmas para a
compreensão dos casamentos, especialmente o poligâmico, entre os índios Tupinambá. O
papel de produtoras e fornecedoras de alimentos se dava a partir do matrimônio, no qual
as relações de dependência dos homens sobre as mulheres se consolidavam
(FERNANDES, 2003; GARCIA, 2015).
O trabalho feminino na reprodução social (nutricional e simbólica)
No tópico anterior observamos alguns aspectos da organização dos Tupinambá
quanto às uniões matrimoniais. Conforme a antropóloga Gayle Rubin (1975), as relações
matrimoniais estão arraigadas aos arranjos políticos e econômicos em várias sociedades,
entre elas a Tupinambá. Muito além da questão sexual, a procura pelos enlaces
matrimoniais com mais de uma mulher possibilitava ao homem o acesso ao trabalho
gerado por elas, as principais responsáveis pela produção, preparo e distribuição dos
alimentos. Isto garantia às índias um significativo poder político, pois os recursos
produzidos eram essenciais para manter as relações de reciprocidade com os
“principais” e com os adventícios europeus (FERNANDES, 2003; GARCIA, 2015).
A atuação das mulheres índias em esferas domésticas e a segregação sexual dos
espaços, de acordo com Cristina Lasmar (1999) em seu artigo Mulheres Indígenas:
representações resultou na falta de interesse dos estudos antropológicos por um longo
período, até aproximadamente 1980, dando um pressuposto implícito de desvalorização
universal ao domínio doméstico. A historiadora Susane Rodrigues discute essa questão,
apontando que o preparo e distribuição dos alimentos, considerados tarefas
desprivilegiadas para a sociedade ocidental, eram atividades respeitadas e sagradas entre
os Incas, por exemplo (OLIVEIRA, 2012).
Os subsídios fornecidos pelos cronistas, aliados aqui aos dados antropológicos e
arqueológicos, permite-nos distanciar da habitual imagem de “passivas bestas de carga”,
legado tanto da misoginia dos cronistas, quanto pela perspectiva masculina de algumas
reconstruções históricas. É no labor agrícola e em outras atividades arroladas que
permitem as mulheres participarem da reprodução das relações sociais Tupinambá.
Nesse sentido, começaremos destacando alguns elementos culturais, que, a nosso ver,
apontam para a valorização das mulheres e constituem, ainda, no exercício do poder
feminino (SOCOLOW, 2007).
A questão da organização do trabalho é de fundamental importância no
entendimento da posição da mulher nas sociedades Tupinambá. Não iremos aqui apenas
delimitar a contribuição feminina na economia da sociedade, mas o quanto as mulheres
estão envolvidas em atividades além do domínio doméstico. A divisão das tarefas é
estabelecida por ordem do sexo e faixas etárias, homens e mulheres têm suas funções
bem definidas e demarcadas pelas relações de gênero. As mulheres, desde cedo, são
encarregadas das tarefas necessárias para a reprodução social e cultural do seu grupo.
Exerciam tarefas agrícolas e em vários rituais, entre eles o de consumo de bebidas
fermentadas, a fabricação da cerâmica e o ritual antropofágico, que abordaremos mais
adiante.
Analisando as informações cedidas pelo padre Évreux (2007, p. 73-84), podemos
vislumbrar o panorama das relações entre os gêneros, e os papéis sociais reservados a
homens e mulheres na sociedade indígena Tupinambá. De acordo com o missionário, o
recém-nascido homem e mulher eram chamados de peitan, nesta fase são cuidados pelas
mães que os carregam sempre e os levam para as roças, além do leite materno são
alimentados por grãos de milhos amassados em forma de caldo. O segundo grau
compreende os sete primeiros anos e a moça se chama Kugnantin-myri. Reside com a
mãe, se emprega em imitar algumas atividades, fiar o algodão, e amassar o barro para
fazer os vasos. O terceiro grau, dos sete até aos quinze anos, as meninas se chamam
Kugnantin, nesta fase aprendem todos os deveres de uma mulher: fiam algodão, tecem
redes, trabalham com embiras, semeiam e plantam nas roças, fabricam farinha, fazem
vinhos, preparam as carnes, guardam completo silêncio como os outros jovens nas
reuniões na Casa dos Homens
5
. O quarto grau, dos quinze aos vinte e cinco, chama-se
Kugnammucu, são elas que cuidam da casa, tratam das coisas necessárias à vida da
família, continuam fazendo as mesmas atividades/trabalho presentes na fase anterior.
Algumas são destinadas a se casarem com índios escolhidos ou com algum francês.
Quando grávidas, não deixam de trabalhar. No quinto grau, dos vinte e cinco aos
quarenta anos, recebem o nome de Kugnam, que significa “uma mulher que ensina”, pois
nesta fase ensinam as mais novas os saberes agrícolas, dos rituais, da fermentação da
bebida, entre outros.
5
Tratava-se de um local no centro da aldeia, na qual os chefes e o conselho de anciãos debatiam assuntos
de interesses da comunidade.
O sexto grau é o último que vai dos quarenta até o resto da vida, passam a serem
chamadas Uainuy, gozam do privilégio de ser chefe de família, presidem rituais, entre
eles o fabrico de todas as bebidas fermentadas. Eram líderes na Casa dos Homens, onde
discursavam, recepcionavam os escravos e participavam de todas as etapas do ritual
antropofágico e eram incumbidas de recolher e dividir o corpo, cozinhar algumas partes
em grandes panelas de barro. Em alguns rituais, as Uainuy produzem e as mais jovens
são incumbidas de distribuírem/servirem, como o caso do mingau feito com as vísceras e
as bebidas. São elas que ornamentam os corpos dos escravos, assim como preparam os
mortos para serem sepultados. Iniciam os choros tanto ao receberem um cativo de
guerra, quanto ao recepcionarem um estrangeiro. E ainda atuam na formação das moças,
ensinando-lhes o que aprenderam até chegar na categoria de Uainuy. São veneradas e
respeitadas pelos maridos e filhos, especialmente pelas moças.
Os filhos permaneciam aos cuidados direto das mães durante os primeiros anos
de vida, ao atingirem por volta de cinco anos, as narrativas asseguram que as meninas
acompanhavam as mães em suas tarefas e os meninos seguiam os pais, embora
apareçam as mães agindo e intervindo sobre a prole, a exemplo das índias proibindo sua
cria de irem residir com os padres, elas [...] não consentiam que seus maridos
trouxessem consigo filhos para ver os padres e as Capelas de Deus” (ÉVREUX, 2007, p.
115). A ligação da filha com a mãe é mais consistente do que entre o pai e o filho e nota-se
também que a filha após o casamento se torna economicamente mais próxima da família.
Este aspecto que liga a moça com a família de seus pais é mais duradouro. Para as
meninas, as diferentes fases da vida representam um processo de aprendizagem de
habilidades/saberes manuais, numa espécie de escola de economia doméstica.
São inúmeras as passagens nos relatos que demonstram a predominância do
trabalho feminino. O padre Abbeville registrou que as mulheres “têm maior número de
ocupações”, cuidam da casa, “plantam batatas, ervilhas, favas, toda espécie de raízes,
legumes e ervas. Semeiam o milho, ou avati; o seu trabalho consiste, “em fincar o grão na
terra dentro de buracos feitos com um pau”, “não se ocupam os homens de modo
algum”, somente limpam as roças e queimam para o plantio
6
. Colhem o algodão que
desencaroçam e preparam para fiar, preparar as redes e faixas que carregam os filhos no
pescoço. Carregavam a água necessária para as residências, preparam a alimentação,
produziam o azeite de coco, colhiam o urucu que transformavam em massa para ser
6
Também conhecida por agricultura de corte e queima, a coivara é caracterizada pela derrubada e queima
da matéria vegetal da floresta como forma de aproveitar os nutrientes disponibilizados ao solo na forma de
cinzas, uma adaptação a solos relativamente pobres das áreas florestais. Depois do período de repouso, o
solo volta mais favorável ao plantio. Além da preferência por cultivar mandioca, batata-doce e milho
(FAUSTO, 2010, p. 69).
usado como tinta. As mulheres fabricavam também muitos vasilhames de barro de todos
os formatos, ovais ou quadrados; “uns semelhantes a vasos, outros a pratos, outros de
feitio de terrinas, todos muito lisos e polidos, principalmente por dentro”. Empregavam
resinas “brancas e negras para vidrá-los por dentro e os enfeitam com figuras segundo a
sua fantasia”. Essas são as diversas “ocupações diárias e domésticas das maranhenses,
em geral mais ativas do que os homens”. Plantavam diferentes qualidades de mandioca,
depois de quatro meses colhiam. A mandioca era o principal gênero plantado e a base da
alimentação dos índios (ABBEVILLE, 1975, p. 242).
Por meio dos trabalhos das mulheres é possível verificar os alimentos produzidos
a partir da mandioca. Sobre os hábitos nutricionais, parecia ser muito diversificado e
composto por farinhas, cujo modo de preparo dependia da finalidade (LÉRY, 1961, p. 140):
uma menos cozida e macia -púb |Ouy-pou| “farinha mole”, consumida no dia-a-dia e
u-íatã |Ouy-entan| “farinha dura”, conhecida como farinha de guerra, consumida nas
longas viagens às guerras. Com uma maneira particular de preparar os alimentos desse
tubérculo, as mulheres aproveitavam praticamente tudo, produziam farinha, mingaus,
pães, bolos e bebidas.
Para preparar os alimentos usavam as mulheres, grandes e amplas panelas de
barro, confeccionadas por elas, ralavam as raízes, espremiam entre as mãos: as raspas
de raízes são “espremidas com as mãos dentro de um grande vasilhame de barro”. Com
esse bagaço assim obtido “fazem enormes bolas que deitam a secar ao sol”. “Pilam-no
então e o cozinham noutra panela de barro, remexendo sem cessar até que se
transforme em pequeninos grumos”. Estes, bem cozidos, “parecem miolos de pão
grosseiro. É um alimento muito bom, estomacal, nutritivo e de fácil digestão. Dão a essa
farinha o nome de Uí” (ABBEVILLE, 1975, p. 323).
Alguns alimentos específicos eram produzidos para serem consumidos nas
expedições guerreiras, eram diferentes das comidas habituais. Em uma passagem do
relato de Yves d’Évreux, descreveu os preparativos de uma expedição militar,
demonstrando a importância da alimentação para o sucesso da empreitada e a
participação da mulher na preparação para a execução da guerra:
Em primeiro lugar, as mulheres e suas filhas preparam a farinha de munição, e
em abundância, por saberem, naturalmente, que um soldado bem nutrido vale
por dois, que a fome é a coisa mais perigosa para um exército, por transformar
os mais valentes em covardes e fracos, os quais em vez de atacarem o inimigo
buscam meios de viver [...] (D’ÉVREUX, 2007, p. 25).
Convém destacar que as atividades agrícolas e de produção dos alimentos,
predominantemente oriundos da mandioca, carregavam consigo uma ampla gama de
saberes e técnicas que permeavam o cotidiano feminino, que ao seguir os vestígios
presentes nas narrativas eram imprescindíveis na estruturação da vida econômica e
religiosa indígena. Estes trabalhos estiveram atravessados por um conjunto de
conhecimentos de propriedade feminina, que garantiam a elas poderes, desde novas são
ensinadas pelas mães e avós a dominarem tais tarefas.
Os saberes femininos da fermentação e da produção das cerâmicas
No campo simbólico, a preparação das bebidas e produção das cerâmicas
atravessam a vida das índias, desde a infância. Essas duas atividades se articulavam no
complexo conjunto cultural dos Tupinambá e são esferas de ação feminina
(FERNANDES, 2003). O preparo das bebidas e seu consumo era um ritual que possuía
múltiplos significados. A prática exercia um importante papel dentro da estrutura social
de diferentes sociedades indígenas das terras baixas sul-americanas e das terras altas
andinas, a ingestão da bebida proporcionava momentos sociais que oportunizavam a
conservação da memória do grupo, ademais, a perpetuação da cultura Tupinambá, já que
nas ocasiões reuniam-se jovens, homens e mulheres que rememoravam os feitos
passados (SZTUTMAN, 2012).
O padre Yves D’Évreux registrou o apreço dos indígenas pela bebida fermentada
cauim: “gostam tanto de vinho a ponto de a embriaguez ser considerada por eles, e até
mesmo pelas mulheres, uma grande honra” (ÉVREUX, 2007, p. 70). O consumo era
coletivo, chamavam parentes e os amigos de outras aldeias, a beberagem durava dias, até
se esgotar o estoque da bebida, e servia para cumprir rituais bem marcados. O consumo
de bebidas fermentadas acontecia por ocasião da colheita, guerras, ritos de nascimento,
de passagem, cerimônias fúnebres e outras celebrações. “Os índios cauinam bebem
excessivamente, saltam, dançam e cantam por espaço de dois ou três dias [...]”
(ABBEVILLE, 1975, p. 339).
A preparação do cauim era marcada por atividades ritualísticas, havia uma divisão
por classe de idade, apenas as mais velhas (a partir dos 40 anos), conhecidas Uainuy,
eram as que presidiam as atividades e confeccionavam e decoravam os grandes vasos de
barro para receber a bebida, as jovens Kugnammucu (15 a 25 anos) mascavam os
vegetais, procedimento para fermentar a bebida, e servem primeiro aos anciãos
presentes no ritual. As jovens que mascam e servem são parentes dos que oferecem o
festim (ÉVREUX, 2007, p. 82).
Claude D’Abbeville descreveu com riqueza de detalhes os procedimentos para
fabricação do cauim entre os Tupinambá, que poderiam ser feita de frutos ou raízes, na
época dos cajus que durava de quatro a cinco meses confeccionavam do sumo dessa
fruta, que chamavam caju-cauim; branco e excelente, forte como os vinhos regionais de
França”. Após fabricarem, colocam dentro de grandes vasos de barro confeccionados
para a solenidade, “cheios os recipientes, bebem sem cessar até esvazia-los”. Produziam
também da mandioca que são colocadas para ferver, depois de cozidas, “juntam as
mulheres em torno dos recipientes, tomam as raízes e as mastigam para cuspi-las”
depois dentro de outros vasos. “Cobrem os vasilhames e guardam-nos até que se reúnam
todos para cauinar” (ABBEVILLE, 1975, p. 321).
O cauim, ou melhor, a festa, constituía acontecimentos que permitiam
recordações, um lugar de encontros, de relações sociais, um lugar de troca de ideias,
pois o momento reunia jovens e anciãos, homens e mulheres, “depois de aceso um
grande fogo, utilizado à guisa de candeia e para fumar, armam suas redes de algodão e,
deitados, cada qual com seu cachimbo na mão, principiam a discursar”, comentam o que
se passou durante o dia e “lembrando o que lhes cabe fazer no dia seguinte a favor da
paz ou da guerra, para receber seus amigos ou ir ao encontro dos inimigos, ou para
qualquer outro negócio urgente [...]” (ABBEVILLE, 1975, p. 346).
As descrições da produção e consumo das bebidas e de outros alimentos trazem à
tona a existência da confecção dos utensílios cerâmicos e usos que são dados. A
elaboração das cerâmicas é uma atividade adulta e das mulheres casadas. Os mitos de
muitos grupos indígenas da América do Sul reforçam a relação das mulheres com os
vasos cerâmicos e a produção das bebidas. Entre os Tacana na Bolívia, os Tainimuka ou
Ofaina, tinham em comum em seus mitos o culto a uma divindade representada em
algumas culturas pela serpente que dominava também as técnicas da agricultura (VI-
STRAUSS, 1985).
As crônicas que utilizamos como fontes não forneceram informações que
pudessem complexificar a produção da cerâmica, não sabemos, por exemplo, quais eram
as figuras pintadas na superfície dos vasos. Ponderando as variações entre as narrativas
míticas dos grupos de índios, um importante caminho vem dos escritos do padre Fernão
Cardim, que esteve em convívio com grupos Tupinambá na Bahia, em 1583. Nas suas
observações, refere-se a uma cobra chamada pelos índios de Manina, a pele desta cobra
motivavam as pinturas indígenas: “[...] a cobra anda sempre na água, é ainda maior que a
sobredita [Sucurijuba], e muito pintada, e de suas pinturas tomaram os gentios deste
Brasil, pintaram-se; tem-se por bem-aventurado o índio a que ela se amostra” (CARDIM,
1980, p. 88). Esse fragmento pode ser uma alusão importante para pensarmos um ponto
de vista sobre a cosmologia dos Tupinambá. Vários grupos indígenas remetem seus
grafismos, cores, padrões a espécies da flora e da fauna, geralmente a pele de cobras, ou
a escamas de peixe, aplicando-os a superfícies de objetos, tais como a cerâmica, assim
como aplicado ao corpo humano (NAVARRO, 2016).
Os estudos produzidos pelos arqueólogos André Prous, José Brochado e
Francisco Noelli são importantes por evidenciar a complexa tecnologia empregada no
fabrico e a decoração utilizada na superfície dos vasos que no geral apresentam um
elaborado padrão decorativo, fundo/engobo branco, grafismo nas cores preto e
vermelho semelhantes (PROUS, 1992, 2006; BROCHADO, 1984). A presença de um
padrão decorativo nas cerâmicas traz à tona o papel da produção feminina na
perpetuação da cultura indígena, visto que esses objetos são portadores de uma
significação social de uma locução das mulheres sobre a sua sociedade. A cerâmica,
assim como a bebida fermentada tinham papéis fundamentais no conjunto da cultura
Tupinambá e ocupavam lugar central na vida cerimonial.
As índias nas guerras e nos repastos antropofágicos
Com o intuito de estabelecer novos olhares sobre a guerra e o repasto
antropofágico, as fontes apontam que as mulheres exerciam um papel ativo nos
procedimentos que antecediam a prática da guerra e nos rituais posteriores. A
participação feminina é demonstrada principalmente como guerreira no preparo e no
carregamento dos alimentos. As características bélicas das índias foram a condição para
a construção da alteridade do feminino selvagem e da representação da desordem social
que se fizeram presentes nos enunciados dos cronistas coloniais
7
.
O antigo mito greco-romano das mulheres amazonas ganhou vida na América. Ao
longo do século XVI são várias as representações textuais e até iconográficas que
empregam essas características místicas às índias. Colombo, Vespúcio, Carvajal, e
mesmo o padre Yves D’Évreux descreveram a respeito da presença das Amazonas no
Novo Mundo. Com a chegada dos europeus, essa representação se estendeu as índias
envolvidas em expedições guerreiras, hábeis no manejo com as flechas (NAVARRO-
SWAIN, 1999, 2014; OLIVEIRA, 2012).
7
Conforme a historiadora Tânia Navarro-Swain: “A imagem das Amazonas assombra o imaginário social
em sua negação absoluta da norma e incorporação progressiva ao domínio do ilusório e do mítico assegura
cada vez mais uma ordem patriarcal, masculina e heterossexual, onde os valores e as qualificações do
feminino se centralizam a reprodução, logo, a maternidade. A exclusão das Amazonas do campo do
racional e do conhecimento retira do imaginário sua existência enquanto brecha na ordem do falo e da
dominação masculina contribui, desta forma, à instauração de práticas normativas e institucionais de
polarização de gênero, baseadas no conceito “natural”, do biológico determinante [...]” (NAVARRO-SWAIN,
1999, p. 117-133).
O padre Évreux (2007, p. 29) referiu que as Amazonas habitavam numa ilha muito
grande, “cercada pelo grande rio do Maranhão, ou das Amazonas, que está em uma foz
de 50 léguas de largura e que essas amazonas eram no passado mulheres e filhas dos
tupinambá”, que se retiraram da companhia e do domínio deles “seduzidas e guiadas por
uma delas”; que, internando-se por aquelas terras ao longo deste rio, descobriram afinal
uma linda ilha, onde se reconheceram, e em certas épocas do ano “aceitam por
companheiros os Acaiús, os homens das habitações mais próximas”. Se tiver um menino,
ele pertence ao pai, que cuida dele logo depois de desmamados; se, porém, é menina, fica
com a mãe em casa. “Eis a voz geral comum”. Este trecho se assemelha as descrições das
Amazonas da antiguidade grega, a existência de lugares longínquos e imprecisos, onde
existiam grupos de mulheres autossuficientes que rejeitaram as convenções femininas
tradicionais, elas eram hostis, viviam isoladas dos homens (embora elas os usassem para
ter filhos), elas mostravam uma reputação militar e habilidades físicas masculinas.
Conforme o padre, o termo Amazonas foi imposto por alguns portugueses e
franceses a algumas índias “devido à semelhança que elas tinham com as antigas
amazonas por causa de sua separação dos homens”. Porém, alerta que existem algumas
diferenças, “não cortam a mama direita”, mas vivem como todas as outras indígenas,
“ágeis e destras no manejo do arco, e nuas se defendem dos seus inimigos como podem”
(ÉVREUX, 2007, p. 29).
O atributo guerreiro dos índios é considerado a força determinante mais
expressiva de sua cultura responsável por moldar inclusive as relações entre os gêneros.
Vários cronistas destacaram o costume, entre eles Abbeville (1975, p. 229) informa que
“não existe debaixo do céu nação mais bárbara e cruel que a dos índios do Maranhão e
circunvizinhanças”. Évreux (2007, p. 24) afirma que “não há nação alguma mais inclinada
à guerra e a viagens pelo desconhecido como estes selvagens. Quatrocentas ou
quinhentas léguas nada são para eles quando vão atacar os inimigos e fazê-los escravos”.
Ao analisar a função social da guerra entre os Tupinambá, Florestan Fernandes
(1970), o considerou elemento básico na reprodução social do grupo. Dava sentido e
coesão social: a preparação e o ritual antropofágico envolviam não apenas os membros
da aldeia, como também os aliados. Era por meio dela que homens e mulheres
confirmavam seus prestígios no grupo.
As guerras eram a base das relações entre os grupos indígenas, e se decidiam
pelos conselhos que reuniam os anciãos. “Em todos os seus empreendimentos guiam-se
pelos conselhos dos velhos que em seu tempo mostraram-se valentes na guerra”. Nas
reuniões, primeiro “preparam o cauim e fumam à vontade”. Depois, escutam os anciãos e
“aceitam sem discussão tudo o que os velhos resolvem a favor da paz ou da guerra”.
Escolhem um chefe para comandar a expedição, o escolhido “vai de cabana a cabana
exortando homens e, com grandes gritos, dizendo-lhes como se devem preparar para a
guerra” (ABBEVILLE, 1975, p. 229). Posteriormente iniciavam os preparativos para a
guerra. O padre Yves D’Évreux demonstrou a importância dos saberes femininos,
principalmente os nutricionais para o sucesso do empreendimento:
Em primeiro lugar, as mulheres e suas filhas preparam a farinha de munição, e
em abundância, por saberem, naturalmente, que um soldado bem nutrido vale
por dois, que a fome é a coisa mais perigosa para um exército, por transformar
os mais valentes em covardes e fracos, os quais em vez de atacarem o inimigo
buscam meios de viver [...] (ÉVREUX, 2007, p. 25).
As índias eram capazes de construir grandes quantidades de alimentos
transportáveis e duráveis, visto que os indígenas não podiam passar longos períodos da
guerra sem se alimentarem, podendo comprometer o resultado final do confronto. A
guerra, assim como todo o modo de vida desse povo, repousava no trabalho feminino, o
que poderia elevar o status delas no grupo (CAIRES, 2012). Em outras passagens, elas
ainda surgem como as incentivadoras da guerra e do rito antropofágico. No capítulo
intitulado Da vinda dos Tremembés, como foram perseguidos, suas habitações e seus
procedimentos, o padre Évreux descreveu o confronto dos Tupinambá com os
Tremembé que moravam no litoral maranhense. Na ocasião as índias se engajaram,
principalmente as “mães e mulheres que insistiam pela vingança”, se organizaram e
fizeram um acampamento para aguardar o melhor momento para atacar, nesse intervalo
elas levaram água, providenciaram o fogo e prepararam comidas (ÉVREUX, 2007, p. 147).
As fontes informam que a principal motivação para a guerra era o ritual da
vingança, que implicavam na captura de inimigos e a execução. “Não fazem guerra para
conservar ou estender os limites de seus pais” nem para enriquecer, “mas, unicamente
pela honra e pela vingança”. Sempre que são ofendidos pelos grupos inimigos ou
“sempre que se recordam dos seus antepassados ou amigos aprisionados e comidos
pelos seus inimigos”, a fim de “vingar a morte de seus semelhantes” (ABBEVILLE, 1975,
p. 229).
Ainda que questionada a existência da prática de repastos antropofágicos,
diversas passagens das narrativas descrevem as atuações das mulheres no ritual o que
merece destaque neste estudo. Em relação às referências à prática antropofágica nas
narrativas no artigo Imagens de índios do Brasil no século XVI, a antropóloga Manuela
Carneiro da Cunha ressaltou que decorreriam de uma construção tramada ao longo do
século XVI. Para a autora as menções da prática foram arquitetadas pelo imaginário da
Idade Média dos cronistas, não sendo esse costume existente entre os índios.
O historiador Ronald Raminelli abordou as primeiras impressões acerca das
mulheres ingenas na América portuguesa, tendo como fontes relatos de
conquistadores e missionários. Ao analisar gravuras dos ritos antropofágicos em fontes
do século XVI e XVII, percebeu nas representações de rituais a forte presença feminina,
principalmente das mais velhas, no entanto acredita que o destaque dado às mulheres
estaria mais para um indício da misoginia europeia e cristã do que a realização dessa
expressão sociocultural indígena (RAMINELLI, 1994).
O historiador João Azevedo Fernandes em De Cunha a Mameluca: a mulher
Tupinambá e o nascimento do Brasil, publicada em 2003, ao analisar as fontes
quinhentistas a respeito dos Tupinambá, destacou a participação da mulher,
principalmente as anciãs. Porém, contesta as conclusões de Raminelli no que concerne
ao destaque dado às mulheres no ritual antropofágico sejam fruto dos olhares misóginos.
Tais imagens contrariam o predomínio masculino nas guerras de vinganças, declarando
que os historiadores que defendem o ponto de vista lançado por Raminelli, “ainda não
lançaram um olhar crítico sobre as reconstruções “androcêntricas” da sociedade
Tupinambá” e ainda “considerar que os cronistas mentiram a respeito da antropofagia é
um ato claramente etnocêntrico” (FERNANDES, 2003, p. 47).
Com ponderações, vale repensar a afirmação de João Azevedo Fernandes de que
as práticas revelam a forte participação das mulheres no ritual antropofágico. Após a
captura, uma série de procedimentos são tomadas pelos membros da aldeia até o dia que
o corpo será sacrificado e comido por todos (com exceção do seu executor), em uma
celebração “eucarística”, com o ato, a unidade do grupo era preservada (NAVARRO;
LIMA, 2012, p. 143).
Os inimigos capturados no confronto eram levados em triunfo para a aldeia,
“onde as mulheres, e principalmente as velhas, os recebem com imensa alegria, batendo
com a mão na boca e dando gritos”. Se entre os prisioneiros jovens, “libertam-nos e os
alimentam muito bem para que engordem; e dão-lhes suas filhas e irmãs por mulheres”
(ABBEVILLE, 1975, p. 230). E assim vive até o dia em que deve ser morto e comido
(ÉVREUX, 2007, p. 46).
Quando chegava o dia de execução do cativo, homens e mulheres cumpriam suas
funções na trama da vingança, os homens “enfeitam-se com penas e outros adornos
feitos de penas vermelhas, azuis, verdes, amarelas e de diversas cores vivas que sabem
admiravelmente combinar”, enfeitam a cabeça e colocam seus colares de plumas. As
moças usam ligas, “sem penas”, com fios de algodão retorcido, “de um dedo de
comprimento, ligando certos frutos do tamanho de nozes”. Costumavam esvaziar esses
frutos e encher com pequenas pedras, de modo que assim se tornam barulhentos
(ABBEVILLE, 1975, p. 219).
As mulheres pintavam o corpo do prisioneiro todo com variedades cores e o
enfeitam de penas. “Para não serem julgados cruéis, dão-lhe então comida e bebidas à
vontade. Passeiam-no em seguida pelas casas, choram-no e fazem-no dançar e saltar até
fartar-se”. Enquanto isso, os índios bebem, dançam e cantam por espaço de dois a três
dias, depois as índias conduzem o prisioneiro, sempre amarrado pelo ventre, até o local
em que deve ser massacrado (ABBEVILLE, 1975, p. 231). O índio que havia capturado o
prisioneiro era o responsável por sacrificá-lo, após entoar um longo discurso “dá-lhe
finalmente uma ou duas cacetadas atrás da orelha e quebra-lhe a cabeça, fazendo cair os
miolos no chão”. Aproximam-se então às mulheres, “agarram o cadáver e lançam-no ao
fogo até queimarem-se todos os pelos”. Depois de bem limpo, “abrem-lhe o ventre e
retiram-lhe as entranhas. Cortam-no em seguida em pedaços e moqueiam ou assam-no”.
Para isso usam uma espécie de grelha de madeira a que dão o nome de bucan, moquém.
Deitam fogo embaixo da grelha sobre a qual colocam todos “[...] os pedaços do pobre
corpo estraçalhado: cabeça, tronco, braços e coxas, sem esquecer pernas, mãos, pés,
inclusive entranhas ou parte delas, ficando constantemente os pedaços para bem assá-
los”. Tudo bem cozido e assado, comem “os bárbaros essa carne humana com incrível
apetite. Os homens parecem esfomeados como lobos e as mulheres mais ainda. Quanto
às velhas, se pudessem se embriagar de carne humana de bom grado o fariam”
(ABBEVILLE, 1975, p. 233).
Após a execução, os índios faziam escoriações em seus corpos, com a diferença
única de que os homens se cortam por todo o corpo, e as mulheres se cortam do umbigo
até as coxas, que fazem com um dente de cutia, muito agudo, e uma espécie de goma
queimada, reduzida a carvão, aplicada sobre a chaga; e essas incisões nunca se apagam.
As incisões representavam o protesto de vingança, sinal de força e valentia, quanto mais
estigmatizados mais valentes e corajosos são reputados, no que também são imitados
pelas mulheres de iguais qualidades (ÉVREUX, 2007, p. 45).
As descrições do ritual demonstram uma forte confirmação do prestígio de
homens e mulheres junto ao grupo. Ambos têm seu valor inegável, e uma consciência
clara de que todo o grupo necessitava das atividades desenvolvidas por homens quanto
por mulheres indígenas. ainda, a sugestão de que as velhas, as Uainuy, por meio do
domínio de alguns saberes, possuíam um desempenho essencial, sobretudo na relação
com o “inimigo”. A passagem por descrições, do preparo e consumo do cauim, da
produção da cerâmica, da guerra e ritual antropofágico revelam o papel central que elas
possuíam ao comandarem esses rituais.
Considerações finais
O principal objetivo do artigo foi trazer à tona os indícios que despontam que os
Tupinambá guardavam em sua sociedade (religião, cosmologia etc.), outras significações
para o universo feminino, que não coincidem com os estereótipos forjados pelos
europeus. Ainda que nem sempre seja possível identificar todos os papéis exercidos
pelas indígenas, é possível perceber que o corpo biológico e a suposta fragilidade
feminina não impediram que elas exercessem diferentes funções, muitas dessas
prestigiosas e indispensáveis para os membros de seu grupo (JULIO, 2017). O que
sugerimos era que havia capacidades e modos de poderes e agências especificamente
masculinos e femininos nas sociedades indígenas. Mesmo que houvesse assimetria entre
os gêneros, as índias eram educadas desde a infância para cumprir funções que
asseguravam um papel central na economia, e em todo o conjunto de valores a elas
associados que proferem uma representação da identidade feminina.
Sem dúvidas que a relação com o Velho Mundo, através dos projetos coloniais
resultou em profundas mudanças nos papéis de gênero, as funções passaram a ser
rigidamente definidas e as mulheres foram sendo relegadas a um papel subalterno. As
esferas que antes conferiam relevância a elas foram atingidas, entre outras razões, pela
transformação na organização do espaço ocasionada pelo contato com a cultura cristã
ocidental, embora as mulheres indígenas tenham adaptado suas próprias tradições
culturais para resistir à imposição dos europeus.
Referências
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