DAMASCENO, Chrislaine J.
*
RESUMO: Este trabalho se propõe a analisar a
utilização das imagens de Theodor de Bry no
ensino de História da América do sétimo ano do
ensino fundamental. Considerando,
primeiramente, a utilização dessas imagens como
fonte histórica no livro didático e evidenciando as
abordagens presentes nesse material, em
diferentes períodos, o questionamento que se faz
é saber como estas imagens estão sendo
empregadas no estudo da História da América,
levando em conta as pesquisas atuais sobre o
tema, a busca por uma educação desvinculada da
narrativa que se configura sobre uma perspectiva
europeia - através dos documentos oficiais da
educação que regem a elaboração do material
didático- e a utilização de imagens como
ferramenta de ensino.
PALAVRAS-CHAVE: Ensino de História; Theodor
de Bry; Antropofagia.
ABSTRACT: This work aims to analyze the use of
images by Theodor de Bry in the teaching of
History of America in the seventh grade of
elementary school. Considering, first, the use of
these images as a historical source in the textbook.
Paying attention to the approaches present in this
material, in different periods, the question that is
asked is how these images are being used in the
study of the History of America, taking into
account the current research on the subject, the
search for an education unrelated to the narrative
which is configured on a European perspective -
through the official education documents that
govern the preparation of didactic material - and
the use of images as a teaching tool.
KEYWORDS: Teaching History; Theodor de Bry;
Anthropophagy.
Recebido em: 11/02/2020
Aprovado em: 11/05/2020
*Mestre em História pela Unesp, FrancaSP, doutoranda do Programa de Pós-Graduação da
Unesp/Franca, Franca, SP. Este artigo é uma versão adaptada de alguns trechos da dissertação de
mestrado intitulada Imagens do Novo Mundo: Theodor de Bry no ensino de História. E-mail:
chrisdamasceno@hotmail.com.
O uso de imagens no Ensino de História
Esse artigo busca dialogar sobre o uso de imagens no ensino de história,
pretendendo incitar a discussão do uso de fontes visuais como ferramenta da
aprendizagem.
As fontes visuais que privilegiamos neste trabalho encontram-se nos livros
didáticos de História do Ensino Fundamental. Pensar o livro didático como documento de
pesquisa nos permite refletir, primeiro sobre sua produção; [...] uma mercadoria, um
produto do mundo da edição que obedece à evolução das técnicas de fabricação e
comercialização[...]” (BITTENCOURT,1997, p. 72). Ou seja, é feito para atender às
especificidades definidas pela Base Nacional Curricular que por sua vez está inserida em
uma política nacional.
Alain Choppin aponta uma multiplicidade de abordagens para o estudo das
edições didáticas, destacamos a que problematiza a função do autor nessas obras:
[...] Os autores de livros didáticos não são simples espectadores de seu tempo:
eles reivindicam um outro status, o de agente. O livro didático não é um simples
espelho: ele modifica a realidade para educar as novas gerações, fornecendo
uma imagem deformada, esquematizada, modelada[...] (CHOPPIN, 2004, p. 557).
Outra possibilidade, acentuada por Circe Bittencourt e que buscamos privilegiar
neste artigo, é ser ele “[...] um importante veículo portador de um sistema de valores, de
uma ideologia, de uma cultura. Várias pesquisas demonstram como textos e ilustrações
de obras didáticas transmitem estereótipos e valores dos grupos dominantes,
generalizando temas, [...]”. (BITTENCOURT, 1997, p. 72-73).
Nosso trabalho, portanto, parte dessa ótica acentuada por Bittencourt e em
decorrência das exigências da Lei 10.639/03, alterada pela Lei 11.645/08, que tornaram
obrigatório o ensino da história e da cultura indígena, afro-brasileira e africana em todas
as escolas, públicas e particulares, do ensino fundamental até o médio. Obrigatoriedade
esta que nasceu das demandas organizadas de grupos da sociedade e da necessidade em
reconhecer as reivindicações das chamadas ‘minorias étnicas’
1
.
Esses avanços encontram-se, no presente momento, ameaçados por alterações
na Base Nacional Comum Curricular e pela reforma do Ensino Médio, aprovada por
Medida Provisória em fevereiro de 2017. Sendo de grande importância uma reflexão
1
O termo “minorias” foi utilizado por estar no texto dos documentos oficiais pesquisados, no entanto
deve-se atentar a esse conceito.
sobre a representação desses grupos que, fundamentais para a identidade e a cultura,
são muitas vezes marginalizados ou tratados de forma estereotipada ou condescendente.
No texto das propostas elaboradas nos Parâmetros Curriculares Nacionais que,
mesmo não sendo normativo insere-se no cotidiano escolar como instrumento legal
seguido por gestores e professores, a análise da imagem é fator preponderante no
aprendizado de História (BARROS,2007, p. 9-10). Segundo os PCNs, espera-se, no ensino
fundamental, que o aluno consiga “[...] dominar procedimentos de pesquisa escolar e de
produção de texto, aprendendo a observar e colher informações de diferentes paisagens
e registros escritos, iconográficos, sonoros e materiais” (BRASIL, 1998, p. 43).
Para a construção de problemáticas que levem à aprendizagem é necessário
compreender o papel da imagem na sociedade e, por conseguinte, da utilidade de sua
leitura crítica pelo ensino de modo geral e, particularmente, pelo ensino de história. A
discussão sobre a influência das imagens na cultura e a importância do entendimento
crítico dos jovens estudantes, não é uma questão atual, ela data de 1941 quando o
pesquisador Venâncio Filho, por exemplo, manifestou a importância de recursos
imagéticos na formação do professor utilizando imagens como técnicas de ensino,
tendência que marcou um longo período da educação brasileira (SCHMIDT, 2002, p. 14).
Ainda que a preocupação com a inserção da imagem no ensino seja antiga, a
compreensão da sua função no processo de aprendizagem é escassa. Dessa forma, é
necessário refletirmos sobre seu papel atual no ensino de História; as imagens são meros
recursos para motivar e ilustrar o curso de história? Como são feitas as leituras de
imagens no livro didático? As imagens são suportes para os textos ou destinam-se
apenas a tornar os livros mais atrativos? Essas questões serão aqui destacadas para que
possamos compreender como as imagens, sobre a América de Theodor De Bry,
selecionadas do livro didático do ano do ensino fundamental, podem ser trabalhadas
em sala de aula, contribuindo para uma leitura crítica dos alunos e não para a
subsistência de estereótipos. Demonstrando que uma análise criteriosa nos permite
educar o olhar de nossos estudantes e, desta maneira, fornecer novos horizontes e
novas perspectivas uma vez que:
A imagem oferece outros modos de pensar além do que já sabemos oriundo das
informações escritas. Isso torna a leitura de imagens significativa tanto para o
aprendizado escolar quanto para a própria vida dos alunos, uma vez que
enriquece o campo de análise e interpretação, e também pela riqueza da
singularidade de cada olhar para o mesmo artefato (FOCHESATTO, 2013, p.
162).
Isto posto, é premente estudar as imagens considerando o sujeito que as criou, no
seu tempo e espaço histórico. A leitura de imagens no ensino de História é “[...] relevante
para dar um novo, ou outro olhar sobre esses acontecimentos hisricos, sejam eles
mitológicos, simbólicos ou mais corriqueiros, como as práticas cotidianas e culturais de
determinadas sociedades, o modo de vida e etc. [...]” (FOCHESATTO, 2013, p. 162).
Para além das inúmeras benesses mencionadas, de se utilizar imagens no
ensino de História, esse recurso também promove a capacidade de questionar e de
estimular a imaginação do aluno, levando-o a um maior interesse e envolvimento no
processo de aprendizagem
2
.
Os povos indígenas nas ilustrações didáticas
A presença constante das ilustrações de Theodor de Bry retratando as
populações indígenas nos livros didáticos nos chamou atenção e despertou
questionamentos acerca das representações sobre essas populações no ensino de
História e sobre os métodos utilizados para associar texto e imagem, possibilitando,
assim, uma leitura crítica destas fontes visuais designadas para fins didáticos.
mais de três décadas os estudos sobre o “índio colonial” sofreram grandes
mudanças. Na esteira de Charles Gibson e Léon-Portilla, as novas pesquisas sobre a
América se deslocaram do colonizador para o colonizado, embasados por fontes e
documentos como as crônicas, registros territoriais, testamentos e processos de
inquisição para se tratar o assunto (MONTEIRO, 2001, p. 136).
As populações indígenas protagonizaram no século XIX um amplo debate que
marca o imaginário social até os dias atuais: a visão dos índios como primitivos e
isolados, o que obscurece nossa percepção dos processos de transformação étnica
desses povos, reforçado pelas primeiras ilustrações das populações indígenas que
surgiram nas décadas de 70 e 80 do século XIX nos livros didáticos escritos por Joaquim
Maria de Lacerda e Cônego Fernandes, ambos autores religiosos.
No livro de Joaquim Maria de Lacerda, Pequena História do Brasil, cuja primeira
edição é provavelmente do final de 1870, existem reproduções copiadas da obra de Jean
de Léry, Viagem à terra do Brasil, provavelmente da edição de 1878, e de Gaffarel de
2
Em pesquisa feita por Ricardo Barros para sua dissertação de mestrado, demonstrou que: “A maioria dos
entrevistados observou que os alunos têm um aprendizado mais significativo quando o professor utiliza
imagens no ensino. Os professores relataram que o aluno se sente mais identificado com essa linguagem,
pois o mundo dos estudantes é caracterizado por imagens, o que os leva a ter maior empatia para com
esse tipo de trabalho.” Ver BARROS, Ricardo. O uso da imagem nas aulas de História. 2007. Dissertação
(Mestrado em Educação). Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, 2007, p.11.
Jean Baptiste Debret, Viagem pitoresca e história ao Brasil, da edição francesa publicada
entre 1834 a 1839 (BITTENCOURT, 1997, p. 82).
Baseados nestas obras, foram feitos desenhos que representavam os grupos
indígenas “como ‘selvagens’, e as cenas escolhidas eram predominantemente de guerra e
rituais antropofágicos” (BITTENCOURT, 1997, p.82). As imagens mencionadas tornaram-
se referências para a documentação iconográfica dos estudantes brasileiros desde o final
do século XIX, sendo que os originais somente foram publicados no Brasil entre 1930 e
1940 (BITTENCOURT, 1997, p. 82).
Outra variante do livro didático produzida em 1900 foi a obra História do Brasil
das escolas primárias, de João Ribeiro, que trazia diferentes imagens dos índios. De
acordo com sua formação em antropologia, e ligação com a Escola do Recife, este autor
não suprimiu os conflitos causados pelas populações brancas, e evidenciou as
características culturais específicas dos índios, destacando a “[...] importância de se
entender as culturas indígenas em suas singularidades e evitar considerações genéricas,
tais como “povos selvagens”” (BITTENCOURT, 1997, p. 83).
No final do século XX, a produção historiográfica trouxe uma nova reflexão sobre
as populações indígenas. Os novos estudos passaram a entendê-lo como sujeito
histórico, diminuindo as concepções genéricas sobre as populações indígenas
ressaltando “[...]a política indígena, enfatizando o fato de aquelas populações possuírem
uma pauta, segundo a qual escolhas eram feitas, de modo que alianças, guerras, fugas,
migrações, etc., teriam correspondido a uma percepção do quê ocorria ao seu
redor”(COELHO, 2009, p. 268).
As novas perspectivas sobre a história das populações indígenas aproveitaram o
amplo acervo documental disponibilizado, sobretudo nos anos de 1980, pesquisando sua
organização social, material, religiosa e simbólica, e como estes processos foram
assimilados pelas populações nativas, revertendo uma historiografia baseada no discurso
do isolamento indígena e no seu futuro desaparecimento (MONTEIRO, 2001, p. 140).
Com a mudança no curso dos estudos históricos sobre essas populações, novas
abordagens foram introduzidas no ensino de História. Mas, ainda assim, os livros
didáticos do período de 1990 trazem poucas páginas sobre os povos indígenas, fato que
iria mudar apenas no início dos anos 2000, principalmente devido à implantação dos
novos documentos elaborados para a educação como os PCNs e a Lei 10.639/03. A
criação desses documentos estava alinhada às políticas desenvolvidas no programa
Nacional dos Direitos Humanos e com a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (BRASIL, 1996). A inclusão do tópico “Pluralidade Cultural” nos PCNs,
torna-se um marco ao inserir os chamados grupos minoritários na pauta educacional de
forma explícita, ao afirmar ser a sociedade brasileira constituída por diferentes etnias,
devendo-se respeitar os diferentes grupos e culturas que a constituem, combatendo o
preconceito e a discriminação (SILVA; PEREIRA, 2013, p. 130). Todas essas normativas
foram elaboradas no ambiente da educação pela tolerância, em favor dos direitos
humanos, e ordenaram a inclusão da experiência de grupos representados como
passivos e vítimas desde a colonização como atores no processo de formação da
identidade e da nação brasileira (FREITAS, 2013, p. 195).
Contudo, mesmo com essas deliberações e com o alargamento do conteúdo não
foram aplicadas novas abordagens bibliográficas. Uma das hipóteses para nossa análise é
que em muitos casos a ampliação visa apenas atender às novas leis educacionais
vigentes para a aprovação do livro didático, como sugere Coelho:
Nos processos históricos tratados pelos livros didáticos [...], as populações
indígenas são classificadas como sacrificadas, perdidas, massacradas e
submissas. As narrativas que os contêm concentram toda a ação nas mãos
europeias: são os europeus que obrigam os índios a trabalhar, que invadem suas
terras e ocasionam a mudança na vida das populações (como se essas
populações não tivessem vivido qualquer outro processo histórico anterior à
chegada dos europeus). Em algumas delas, não qualquer referência ao fato
de que o trabalho compulsório era praticado por sociedades indígenas antes
da chegada dos europeus, em outras, o princípio mesmo da disciplina é
desconsiderado por meio de afirmações de que a história das populações
indígenas tem sido a mesma 500 anos- violência e expropriação (COELHO,
2009, p. 275).
A fim de demonstrarmos como as imagens de Theodor de Bry estão sendo
empregadas no ensino de História da América, selecionamos todos os exemplares de
História do Ensino Fundamental aprovados pelo Programa Nacional do Livro Didático
(PNLD), e, elegemos os materiais do ano por tratarem do período da chegada dos
europeus à América e, consequentemente, da produção das imagens de Theodor de Bry,
séculos XV e XVI. Nestes, encontramos o total de 42 imagens.
Posteriormente, passamos para a classificação das imagens que são recorrentes
em todos os livros didáticos do 7° ano aprovados pelo PNLD, em que verificamos que das
42 encontradas, 24 eram distintas entre si. Chegando a este número, decidindo-nos,
assim, pela análise das obras que se repetem e tratam do tema da antropofagia, o que
possibilita um estudo mais preciso e, igualmente, comparativo das fontes.
O que constatamos na seleção de nossas fontes é o uso contínuo das imagens
produzidas nos séculos XV e XVI pelo editor europeu como ilustração nos livros
didáticos de História, relacionando a América pré-colombiana a um território a ser
conquistado, escravizado e colonizado, prevalecendo uma história das sociedades
indígenas centralizada no contato com o europeu (OLIVEIRA, 2011, p. 191).
Foi pensando nesta problemática do uso de fontes visuais como ferramenta da
aprendizagem que buscamos estudar a produção dessas gravuras e sua relação com o
conhecimento da América em seus diversos usos, buscando contribuir com uma leitura
crítica das imagens sobre o Novo Mundo na História.
Isto posto, pesquisar os caminhos em que essas fontes imagéticas estão sendo
trabalhadas nos permite identificar diferentes modos de percepção e significação do
passado, chamando a atenção de docentes e alunos para a “compreensão da
historicidade das interpretações e das relações da linguagem com a cultura e com o
poder” (OLIVEIRA, 2011, p. 200), levando-os a reconhecer as diferentes representações
acerca da América.
Para nós, historiadores, “o documento atinge valor pela teia social que o envolve e
pelo que revela de mais amplo de uma época e de uma sociedade” (KARNAL; TATSCH,
2009 p.58). Sustentamos nossa pesquisa sobre essa afirmação, uma vez que as imagens
disponíveis no material didático devem ser meios que permitam indagar sobre sua
produção, enxergando nelas características que levem a compreender a época, a
sociedade e as questões políticas em que estavam inseridas. Tais caminhos são, muitas
das vezes, complexos, como afirma Jacques Le Goff: “[...] as reais dificuldades de
adaptação às chamadas inteligências jovens, criaram um obstáculo, uma barreira, entre
investigação e ensino de história. É necessário abater essa barreira, adotando, no
entanto, todas as precauções que o caso exige.” (LE GOFF, 2010, p. 226).
Portanto, nossa investigação consiste em demonstrar como as imagens são
expressão de uma época, e que, portanto, devem ser analisadas de acordo com seu lugar
e sua função no sistema da sociedade, bem como em seu conjunto.
Desta forma, devemos nos perguntar: o que podemos aprender com as imagens
de Theodor de Bry? Temos que averiguar seus signos, cientes de que se trata da
construção de um Novo Mundo através do olhar de um artista europeu
3
, e, mesmo que
isso não invalide a sua utilização como fonte, é necessário “ler” as imagens sempre
atento a esta questão.
3
O estudo aprofundado sobre a bibliografia do editor e sua função no século XVI pode ser encontrada em:
DAMASCENO, Chrislaine J. Imagens do Novo Mundo: Theodor de Bry no ensino de
História.2018.Dissertação (Mestrado em História)- Faculdade de História, Direito e Serviço Social,
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2018.
Antropofagia
As cenas de canibalismo estão entre os temas que mais despertaram a curiosidade
do europeu e que preenchem várias páginas dos livros didáticos. Para este estudo
escolhemos as três imagens que mais se repetem nesses materiais, e que são utilizadas
para demonstrar aos alunos os “costumes” das populações indígenas nos séculos XV e
XVI. Tais gravuras se encontram, originalmente, na Americae Tertia Pars de Theodor de
Bry, que ilustra a “descoberta” do Brasil, e são acompanhadas dos textos de Jean de Léry
e Hans Staden, ambos viajantes que estiveram nestas terras.
Michel de Certeau (1982, p. 230) afirma que “o olho está a serviço de uma
‘descoberta do mundo”, e é por meio dele que aguçamos nossa curiosidade, constatação
que, no século XVI, possibilitou o sucesso das imagens sobre as populações ameríndias,
e é o que nos possibilita hoje encontrá-las para o apoio do ensino sobre a América.
Antes de nos aprofundarmos nas análises de cada uma das imagens selecionadas,
devemos chamar a atenção para como foi configurada a “produção/reprodução da
realidade” comum aos artistas dos séculos XVI e XVII e, consequentemente, ao nosso
produtor Theodor de Bry. Os corpos pintados em suas obras são semelhantes aos
padrões artísticos europeus do período. Uma vez que o editor não havia estado nas
terras que hoje chamamos Brasil, suas impressões baseavam-se em relatos de viajantes
e, mesmo que fosse ele também um viajante, as referências nas quais se embasava para
trazer o “novo para a Europa deveriam se apoiar no conhecimento que possuía,
juntamente a seus contemporâneos, sobre as imagens da Idade Dourada, das florestas
selvagens, de Adão e Eva, da mitologia e da antropofagia medieval,que para desvendar
o desconhecido há a necessidade de se partir do familiar (BAYONA, 2004, p. 323).
Outro ponto a ser destacado é que os textos de Jean de Léry e Hans Staden, no
qual as gravuras de DeBry se baseiam, demonstram a existência de um ritual de
execução, preparação e consumo da carne (BAYONA, 2004, p. 323).
Quando nos remetemos aos povos indígenas, pensamos em estereótipos e, muitos
deles, são internalizados através do primeiro contato que o livro didático oferece entre
seu público alvo, alunos de sétimo ano, e as imagens trabalhadas através das descrições
e títulos que as acompanham, como expressão da realidade nos primeiros séculos da
chegada do europeu à América. As imagens produzidas nesse período nos mostram o
índio maléfico, idólatra e canibal, exótico, selvagem e indomável, que não poderia ser
contido e por isso, necessitava da catequização para conferir-lhe civilidade.
A imagem que construímos do ingena vem, isto posto, sobretudo deste período,
e os livros atuais, ao oferecerem uma abordagem sem discussões, apenas como
ilustração da realidade, colaboram para que dada construção mental se perpetue, mesmo
cinco séculos depois. Devemos atentar que o objeto de estudo deste artigo se restringe à
análise das imagens no livro didático e das narrativas que as acompanham, não
mensuramos as diversas leituras possíveis que os professores e alunos podem fazer
deste documento. Tais interpretações extrapolam o exame a qual nos propomos.
As imagens, pois, integram uma percepção que se desvincula do imaginário sobre
a busca pelo paraíso perdido como explicação da realidade, e começam a reconhecer
uma diferença em relação ao seu referente europeu. A América se tornará o espaço
habitado pelo paganismo e pela idolatria, um novo local para a projeção dos “demônios”
do velho mundo, exercendo, assim, um papel na demonologia da Europa (SOUZA, 1993, p.
41).
Nesta pesquisa buscamos compreender como Theodor de Bry produziu suas
imagens para representar os habitantes da América. Para tanto, utilizamos o conceito de
“luta de representações” de Roger Chartier (2014, p. 8-9) demonstrando sua importância,
à medida que nos permite embasar como um grupo, nesse caso o europeu, impunha suas
concepções e valores como certos e únicos. Entendemos que as imagens que estudamos
foram desenvolvidas desta maneira, fixando o modelo dos habitantes do Novo Mundo.
Mas, e hoje, como elas são lidas pelos nossos estudantes?
É importante ressaltar que a curiosidade pela América fervilhava na Europa
seiscentista e, maior que o interesse pelas crônicas, era o entusiasmo pelas
representações iconográficas (ZIEBEL, 2002, p. 113). Theodor de Bry, um grande
conhecedor destes relatos, conseguiu produzir imagens detalhadas sobre o Novo Mundo
e elas representam “[...] os debates teológicos, as disputas religiosas e os estereótipos
[...]” (RAMINELLI, 1996, p. 123) que inseriram os tupinambás no imaginário europeu.
As imagens 1 e 2 trazem um ritual de pajés tupinambás, encontrada em dois livros:
História Sociedade e Cidadania, na unidade 3: A formação do Estado Moderno, no
capítulo 11: América: astecas, maias, incas e tupis, e no livro História nos dias de hoje, no
capítulo 9: O Brasil antes de Cabral.
Imagem 1: Representações dos pajés tupinambás em livros didáticos.
Fonte: DE BRY, Theodore, Instituto de Estudo Brasileiros da USP. In:BOULOS, Alfredo Junior.História,
sociedade e cidadania: 7ª ano. 3º edição- São Paulo: FTD, 2015, p. 240.
Imagem 2: Representação dos rituais de dança dos Tupinambás.
Fonte: DE BRY, Theodore. In: CAMPOS, Flávio de. História nos dias de hoje:7º ano. 2º Ed. São Paulo: Leya,
2015, p. 183.
As imagens acima mostram um ritual indígena. No centro da figura temos as
personagens que conduzem esse ritual, os chamados pajés. Eles vestem um manto que
aparece em destaque nas duas imagens, incentivando a compreensão da pintura como
um retrato da realidade. A cena mostra movimento, pois o nosso olhar é dirigido de
forma circular da direita para a esquerda. Os índios que compõem a roda não se diferem
entre si e a posição na qual se encontram revelam submissão aos pajés que estão no
centro e se destacam tanto pelos trajes quanto pelos movimentos. Através do texto de
Léry, do qual se originou a figura, podemos entendê-la como tentativa de mostrar ao
receptor uma hierarquia estabelecida pela “fé” existente entre esses povos.
A imagem 1 vem acompanhada de um texto, que a descreve como um ritual de
cura dos doentes. O segundo material, imagem 2, por sua vez, relaciona a prática à
antropofagia, mostrando os pajés dançando com instrumentos e vestimentas que, de
acordo com o livro, são característicos do ritual canibal. Como sabemos, as imagens
podem, e foram, utilizadas para representar vários episódios. No entanto, o que nos
chama atenção nelas é a forma como são empregadas ainda hoje.
O livro que relaciona a imagem à antropofagia, faz sob o título “Adivinha quem
vem para o jantar?”, o que denota um tom jocoso em relação ao ritual. O trecho que
acompanha a imagem não possui referência, não se sabe de onde foi extraído, apenas é
citado o relato segundo Jean de Léry. Mas quem é Léry? Por que ele se pronuncia sobre
o ritual de antropofagia, e qual sua relação com a imagem? Tais questões não podem ser
respondidas a partir do conteúdo oferecido pelo livro, pois este apenas traz uma página
com texto, gravura e curiosidades sobre a época.
Todas as imagens que elegemos para esse tópico expressam as inovações nas
técnicas de gravuras, que formam imagens com movimento, agrupadas, criando a
sensação de proximidade da realidade nos europeus (BELLUZZO, 1994, p. 40).
A outra gravura selecionada mostra o cozimento de partes humanas pelos
indígenas. Tal imagem foi encontrada em 3 livros: História nos dias de hoje, no capítulo 11
América: astecas, maias, incas e tupis, e no livro História nos dias de hoje,no capítulo 9:
O Brasil antes de Cabral.
Imagem 3: Representação do ritual canibal I.
Fonte: DE BRY, Theodor. In: CAMPOS, Flávio de. História nos dias de hoje: 7º ano. 2º Ed. São Paulo: Leya,
2015, p. 182.
A gravura mostra a cena de um moquém no qual os indígenas estão assando a
carne humana e comendo-a. Na imagem a presença de homens, mulheres e crianças.
O costume antropofágico foi relatado por diferentes cronistas da América. À medida que
o público leitor se sentia curioso por estas notícias de “homens selvagens que comiam
seus semelhantes” tais imagens tomam o lugar das gravuras da literatura fantástica e
tornam-se constantes e cada vez mais detalhadas é chamado de imagem teatralizada-
especialidade do nosso editor. O anseio pelas ilustrações explica o fato do livro de Hans
Staden, que foi aprisionado pelos tupinambás, ser tão impactante na Europa. As
xilogravuras do livro em questão foram feitas por ou sob a orientação de Staden. As
imagens cheias de detalhes foram refeitas por Theodor DeBry, que as converteu em
cenas mais impressionantes.
As imagens de DeBry enfatizam o canibalismo ritual, descrito por Léry e Staden,
exaltando a bravura dos guerreiros nativos. O editor evidencia a dramaticidade dos
rituais e “[...] acentua o caráter demoníaco da mutilação, carrega o tema de aspectos
aterrorizantes” (BELLUZZO, 1994, p.58). Mas, diferentemente do que aparece nas
gravuras, o texto de Staden e Léry enfatiza o ritual tanto no preparo como na ingestão da
carne. “Como é costume deles quando querem comer um homem, preparam uma bebida
de raízes que chamam de cauim. Somente depois da festa da bebida é que o matam”
(STADEN, 2010, p. 91), mostrando que não eram práticas corriqueiras e que elas
duravam, muitas vezes, meses. E complementam afirmando que “para um homem, a
honra máxima é capturar muitos inimigos e abatê-los, o que entre eles é muito comum.
Ele tem tantos nomes quanto inimigos tiver matado, e os mais nobres entre eles são os
que têm muitos nomes e que não fazem isto para saciar sua fome, mas por hostilidade e
muito ódio” (STADEN, 2010, p. 157), portanto, não pela gula.
Imagem 4: Representação do ritual canibal II
Fonte: DE BRY, Theodore. In: MOCELLIM, Renato. Projeto Apoema. História 7. 2º Ed. São Paulo.
Editora do Brasil, 2015, p.237
Imagem 5: Representação do ritual canibal III.
Fonte: De BRY, Theodor. In: AZEVEDO, Gislaine. Projeto Teláris: história: ensino fundamental 2. Ed. São
Paulo: Ática, 2015, p.166.
Nas imagens expostas, vemos que no centro estão as partes humanas sobre o
moquém. De um lado mulheres e, do outro, homens. no centro, mais ao fundo, Hans
Staden desaprovando a cena que testemunha. A figura feminina está presente em todas
as imagens de DeBry sobre o canibalismo, assim como nos relatos de Léry e Staden e
este fato chama a atenção dos estudiosos do tema. São elas que primeiro golpeiam o
inimigo, as que limpam e que têm partes específicas do corpo separadas para comerem.
Tal observação pode revelar muito a respeito da preponderância da mulher na
preparação da comida e de sua importância nos rituais da aldeia.
Porém, outras explicações sobre o aparecimento delas nos rituais são levantadas.
Segundo Ronald Raminelli (1996, p. 97) “a recorrência das mulheres nos festins canibais
de DeBry permite concluir pelo emprego de sua imagem como forma de materializar um
discurso ou uma visão de mundo”. Para ele, o feminino expressaria a alteridade do Novo
Mundo. Em síntese, o editor-desenhista concebeu as mulheres como expressão da
singularidade e “[...] simbolizam o afastamento do ameríndio da humanidade: as
idolatrias, a nudez e a antropofagia” (RAMINELLI, 1996, p. 97).
O que podemos perceber nas imagens é a crítica à decrepitude humana, que se
revela conforme a carne vai sendo ingerida. Vemos no primeiro plano uma mulher nova
com corpo em formas perfeitas, as seguintes vão se tornando cada vez mais velhas, com
os seios caídos e com uma quantidade maior de rugas no rosto. Este simbolismo também
pode ser percebido com os homens, posto que em primeiro plano uma criança. Estas
transformações biológicas são vistas por Maria de Moraes Belluzzo como “[...] a vitória
do feio sobre o belo, introduzida na imagem como princípios de valorização”
(BELLUZZO, 1994, p. 59).
Ao enfatizar a participação feminina em suas imagens, Raminelli (1996, p. 101)
acredita que De Bry estava influenciado pela “misoginia amplamente difundida no mundo
luterano”, segundo ele “O Malleus Maleficarum exerceu uma forte influência sobre o
pensamento europeu ao longo do século XVI” (RAMINELLI, 1996, p. 102), disseminando a
crença de que “[...] a perfídia é mais frequente entre as mulheres que entre os homens” e
que “toda índole nada vale quando comparada à malícia de uma mulher, sendo ela
inimiga da amizade” (RAMINELLI, 1996, p. 102). Consideremos, ainda, que havia uma
relação entre “[...] as nativas e as feiticeiras europeiasuma vez que, segundo ele, “as
mulheres canibais possuíam comportamentos e formas físicas semelhantes às das
enviadas de Satã” (RAMINELLI, 1996, p. 18).
Michel de Certeau (1982, p. 232) também relaciona as nativas às feiticeiras que
“[...] dançando e gritando de noite, ébrias de prazer eram devoradoras de crianças”.
Entre os prazeres marginalizados “o mundo selvagem, como o mundo diabólico, se torna
Mulher”, representação da maior parte das enfermidades e dos males sociais do período.
Desta relação podemos verificar como a história da América estava diretamente
ligada à da Europa. Desse modo, como aponta Laura de Mello e Souza (1993, p.43),
dois “[...] movimentos que, distintos na aparência, constituem, na verdade, um único
processo: por um lado, a absorção dos ritos e práticas mágicas americanas pela
demonologia europeia [...]”e “[...]a revivescência dos temas ligados ao canibalismo, que
jaziam como adormecidos no imaginário ocidental e que ressurgem em representações
iconográficas relacionadas à feitiçaria [...].”Novamente, nos deparamos com uma
transposição dos mitos e lendas do imaginário europeu para o universo americano.
Léry (1941, p. 181) diferencia em seu texto a atitude feminina da masculina no ritual
canibal. Segundo ele, os homens são movidos pela vingança, já, as mulheres velhas,
comem para satisfazer a gula e para obterem prazer, reforçando assim as possíveis
comparações entre as índias americanas e as feiticeiras europeias.
Ao retratar tais episódios, os europeus almejavam mostrar para a Europa o que
era o homem selvagem, ou o homem primitivo”. Demonstrando que o que é selvagem
não é o que está fora do alcance do homem, mas o que fica à margem da atividade
humana (LE GOFF, 2010, p.49), reproduzindo, pela imagem da ingestão de carne humana,
prática repudiada pelas doutrinas religiosas, que levam o espectador a entender, por
analogia, as imagens constituídas no seio do projeto missionário colonial (BELLUZZO,
1994, p. 39).
As gravuras estudadas pretendiam incidir sobre o pressuposto de que os
americanos eram atormentados pelos espíritos malignos e por isso fazia-se necessária a
crença no verdadeiro Deus. Sob essa ótica, os cronistas defendiam suas missões
catequizadoras, fossem elas reformadas ou não, como uma tentativa de controlar e
excluir os que oferecessem perigo à comunidade sagrada (LE GOFF, 2010, p. 172).
O grande sucesso editorial que as imagens sobre o canibalismo tivera no século
XVI perpetuaram nos séculos seguintes e, como constatamos, ainda hoje são as gravuras
mais utilizadas nos livros didáticos para demonstrar as populações nativas do Brasil. Tais
imagens provocaram grande comoção no europeu, que substituiu as figuras de monstros
e seres mitológicos por esse grande tema da antropofagia, fato este que não chamou
atenção somente pelo seu apelo agressivo, mas, sobretudo por seu valor social de
transgressão dos costumes e preceitos defendidos pela sociedade cristã.
Esta imagem clássica de De Bry acompanha uma série de outras sobre o mesmo
tema, que aludem ao sofrimento do corpo, servindo às discussões religiosas entre
católicos e reformados que a associam ao pecado, à ação demoníaca e ao purgatório, ou
seja, a imagem acaba ultrapassando o que os livros didáticos chamam de “costumes dos
nativos”. O que a gravura pretende expressar e discutir são as questões relevantes a seu
produtor, como a Reforma Protestante, seu exílio e a crueldade empregada nas guerras
religiosas que aconteciam na Europa. Ana Maria de Moraes Belluzzo observa que,
segundo os protestantes, “a parte simbólica de ingerir o corpo de Cristo para adquirir
poderes permite que se estabeleça um paralelo entre o canibalismo e a comunhão pela
Eucaristia, momento de renovação no cerimonial católico” (BELLUZZO, 1994, p. 58),
concluindo que “não se deve, portanto, excluir a metáfora, que tem origem no imaginário
religioso da época, nas interpretações e nos modos como essas imagens eram
vivenciadas”(BELLUZZO, 1994, p. 58), o que em nenhum momento é mencionado ou
abordado nos livros que estudamos.
As ilustrações, como vimos, representam muito mais o europeu, e não somente
em suas características físicas, mas principalmente nos assuntos que querem abordar.
Os grandes debates da época eram marcados pela comparação entre os atos dos nativos
e dos europeus, indagando quem eram, de fato, bárbaros:
[...] Mas nunca se encontrou nenhuma opinião tão desregrada que desculpasse a
traição, a deslealdade, a tirania, a crueldade, que são nossos erros habituais.
Portanto, podemos muito bem chamá-los de rbaros com relação às regras da
razão, mas não com relação a nós, que os ultrapassamos em toda espécie de
barbárie. A guerra deles é toda nobre e generosa e tem tanta desculpa e beleza
quanto possa permitir essa doença humana; não tem outro fundamento entre
eles além da busca da virtude [...] (MONTAIGNE, 2010, p. 151-152).
Ao promover diálogos sobre a contraposição entre europeus e americanos,
selvagens e civilizados as imagens assumem uma inversão de significado. Ao invés de
combaterem e denunciarem os costumes bárbaros da América, elas lançam luz sobre o
comportamento do europeu.
Pensando na catequização e na salvação das almas, os cronistas também
defenderam tais rituais e encontraram neles uma maneira de apontar as feridas que
muito incomodavam a Europa, como a questão da tolerância religiosa. Por isso, em seus
relatos, muitas vezes, argumentam sobre tais práticas, como faz Léry em sua História da
viagem à terra do Brasil, qualificando-as como não sendo piores que a usura que
“[sugam] o sangue e a medula, e por conseguinte comem vivos as viúvas, os órfãos e
outros infelizes. Seria melhor cortar-lhes a garganta de uma vez que abandoná-los a uma
morte lenta. Esses agiotas são, portanto, mais cruéis que os selvagens” (LÉRY, 1941, p.
324), ou ainda, alegando que, mesmo entre os civilizados, ele mesmo testemunhou uma
cena de canibalismo no cerco de Sancerre, quando os pais devoraram sua filha. Por
último, destaca que a prática de comer carne humana faz parte de um ritual, não
servindo somente para satisfazer a fome, demonstrando a superioridade sobre os
católicos. “Nisso os canibais brasileiros eram mais civilizados, porque para eles a
antropofagia também tinha um sentido alegórico, como para os calvinistas. O corpo
devorado não era um alimento, mas um signo: o canibalismo significava’ a vingança”
(LÉRY, 1941, p. 324), o que era visto com mais condescendência, assim como o
paganismo dos indígenas frente ao ateísmo dos europeus.
Na visão dos defensores católicos estas imagens eram usadas também de forma a
resguardar suas causas. Botero, por exemplo, “[...] sugere que a heresia européia é pior
do que o barbarismo americano, e que este, na verdade, deve ser matizado e visto de
forma diferente da que os europeus, até então, viam os alienígenas”(SOUZA, 1993, p.
62).Ele acrescenta que, mesmo dotados de cultura, alemães, ingleses e flamengos
comportavam-se como selvagens nas guerras que marcavam a Europa e que a
animalidade em comer carne humana não se diferenciava de comportamentos como a
heresia protestante.
Logo, percebemos que a grande questão não são os costumes dos selvagens, mas
sim o ataque ao comportamento europeu no que se refere às disputas religiosas, uma vez
que ambos os lados se serviram da mesma imagem para confrontar seus adversários.
Tanto católicos, como Botero e Montaigne, como reformados, como Staden e Léry, estão
imersos em seu universo europeu, não permitindo olhar para fora sem falar de si mesmo.
Segundo Léry, (1941, p. 185) “Não é preciso ir à América, nem mesmo sair de nosso país,
para ver coisas tão monstruosas”. Ao contrapor os costumes sociais e religiosos, os
cronistas usam o tema canibalismo para falar do outro criticando seus próprios
costumes morais.
Diversidade
O tema transversal do PCN Pluralidade Cultural destaca que não devemos separar
grupos culturais, mas incentivar a convivência entre diferentes tradições visando o
respeito e a tolerância, sendo esta a base para o convívio harmonioso entre as diferenças
(MATTOS; ABREU e SOIHET, 2003, p. 127).
As imagens estudadas nos livros didáticos nos mostram que o estudo da América
permanece sob uma perspectiva estritamente europeia, que oferece aos estudantes
gravuras e textos que contribuem para a consolidação de estereótipos como a do “bom
selvagem” ou do “índio canibal”. A partir do encontro entre europeus e ameríndios, entre
povos diferentes culturalmente, os autores não discutem de forma incisiva os processos
de dominação decorrentes da colonização. Aqui, questionamos como as imagens são
inseridas no processo de aprendizagem quando postas nos livros didáticos relacionadas
ao tema da antropofagia. Ao ignorar a menção de fatos importantes sobre o autor das
imagens, sobre como e porque elas foram produzidas, e por que foram escolhidas,
estamos revelando a crença na superioridade da cultura europeia, na construção do
nosso conhecimento, atestando como o ensino permanece distante da historiografia
recente e sem desenvolver, por meio dessas imagens, questões pertinentes ao ensino.
As ilustrações escolhidas não servem somente para o ensino da história da Idade
Moderna, elas nos falam do respeito pela diferença, uma vez que são os primeiros
registros sobre o outro ou o diferente. Comunicam-nos sobre a neutralização do
preconceito e mostram as nossas deficiências quando enxergamos nelas padrões de
comportamento que acreditamos terem sido naturalmente estabelecidos. Quando
olhamos uma imagem de DeBry e identificamos representações mais próximas aos
indígenas do que aos europeus, é porque o nosso conceito de indígena foi construído em
cima do estereótipo do homem nu, adornado com penas e próximo à natureza. Entender
que esse não é o indígena e que essas imagens não caracterizam seus costumes é um
objetivo urgente a ser alcançado.
Ao tratarmos do tema da diversidade no ensino, devemos abordar uma
heterogeneidade de civilizações com culturas, sistema políticos, econômicos e
organizações que vem se modificando desde 1500 e, não indagando se são inferiores ou
superiores, apenas entendendo-as como diferentes, para que os preconceitos e as
desinformações não sejam expressos diariamente pelas pessoas.
Por esta razão, a Lei 11.645 de março/08, que tornou obrigatório o ensino de
História e culturas indígenas nos currículos escolares no Brasil mesmo necessitando
ainda de maior definição e aplicação , contribui para o reconhecimento e para a
inclusão das diferenças étnicas dos povos indígenas e suas sociodiversidades. Sendo
assim, devemos garantir sua aplicação, para que se efetive mudanças nas práticas
pedagógicas atuais, tornando a escola um local de formação de cidadãos críticos, que
reconheçam as diferenças socioculturais. Portanto, mesmo que constituídas de formas e
conteúdos diversificados, as imagens escolhidas revelam a dependência aos padrões
europeus, ilustrando que os povos da América não foram os autores ou protagonistas do
Novo Mundo, mas que foram pensados e moldados, e que, mais do que isto, estas
imagens ainda forjam uma memória sobre o passado colonial que permeia nosso
inconsciente. Nosso desafio consiste em ultrapassar a narrativa histórica, vigente nos
livros didáticos que hierarquizam os continentes e a ação de suas populações como
agentes históricos através do uso das imagens de Theodor De Bry.
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