ALBUQUERQUE Jr, Durval Muniz de. O tecelão dos tempos: novos ensaios de teoria da
História. São Paulo: Intermeios, 2019. 276 p.
SOUZA, Vitória Diniz de
*
A historiografia está em constante transformação, por isso, certas tendências
foram sendo esquecidas com o tempo e outras surgiram para formular novas maneiras
de produzir história. O livro do historiador Durval Albuquerque Júnior, O Tecelão dos
Tempos, nos convida a refletir sobre a escrita da história e a inventar novos usos e
sentidos para o passado. Essa sua obra pode ser encarada como um manifesto para os
historiadores/as repensarem a sua prática e a abandonarem certos convencionalismos
que marcam a tradição historiográfica.
O Prefácio é escrito por Temístocles Cezar, que define o livro como uma
“constelação simultaneamente erudita e polêmica, ferina e generosa, que pode ser lida de
trás para frente, de frente para trás, com os pés descalços no presente, com olhos no
passado ou como projeto de uma história futura” (CEZAR, 2019, p. 12). Sendo essa uma
boa descrição de como esses textos se entrelaçam e convidam seus leitores a
mergulharem em polêmicas discussões sobre a história e o seu estatuto hoje. De fato, a
escolha do estilo ensaístico na escrita desse livro é ousada, principalmente, pela
liberdade que esse gênero possibilita para quem escreve. Estilo narrativo que foi
preterido pela historiografia por muito tempo, em especial, no Brasil. Nesse caso, o
ensaio é uma maneira interessante para se iniciar discussões, aprofundá-las, mas sem as
amarras conclusivas que certos textos exigem, como os artigos.
* Graduação em História pela UEPB, Guarabira-PB, mestranda do Programa de s-Graduação em
Educação UFRN, Natal-RN. Bolsista de Mestrado do CNPq. E-mail: vitoria4218@gmail.com.
Recebido em: 27/02/2020
Aprovado em: 11/03/2020
Essa obra está dividida em três partes, a escrita da história, usos do passado e o
ensino de história, que estão organizadas de maneira sistemática, a partir das temáticas
discutidas nos ensaios, articulando-se em uma diversidade de discussões que se
interligam em diferentes momentos. Causando uma sensação de fazerem parte de uma
mesma narrativa, com início, meio e fim, mesmo que não tenham sido escritas em ordem
cronológica, ou que não sejam lidas na ordem apresentada. Por outro lado, pela sua
heterogeneidade, cada capítulo inicia uma discussão independente das outras e rica em
si mesma. Na primeira parte, A escrita da história, inicia a discussão sobre o trabalho
do historiador e o estatuto da história enquanto disciplina, problematizando sobre o
lugar do arquivo e sobre a prática historiadora da análise documental ao seu processo
de escrita. Enquanto isso, em Usos do passado, propõe reflexões sobre passado,
memória, patrimônio, comemorações, traumas e esquecimentos. Dessa maneira, possui
um olhar criativo sobre esses conceitos tão caros a história, como também,
conceitualiza-os, explicitando seus significados e usos, e propondo uma (re)apropriação
deles. Na terceira parte do livro, O ensino de história, centraliza as discussões acerca
da disciplina histórica e o ensino da história na Educação Básica. Demonstrando que
além de um erudito e pesquisador, ele também é professor, defendendo a necessidade de
um ensino de história que se reinvente dada a situação atual da educação escolar.
Dando início, no capítulo que nome ao livro, O tecelão dos tempos: o
historiador como artesão das temporalidades, defende as razões para que o trabalho do
profissional da história seja considerado como de um artesão, pois
[...]a história nasce como este trabalho artesanal, paciente, meticuloso, diuturno,
solitário, infindável que se faz sobre os restos, sobre os rastros, sobre os
monumentos que nos legaram os homens que nos antecederam que, como
esfinges, pedem deciframento, solicitam compreensão e sentido
(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2019, p. 30).
As metáforas enriquecem o texto de maneira que o leitor pode compreender a
atividade do historiador a partir da comparação com outros ofícios. Mas também,
oferece ao profissional uma reflexão sobre a sua prática, principalmente, sobre a sua
escrita que, muitas vezes, se enrijecida por um texto acadêmico sem vivacidade. Em
certo momento, o autor compara o trabalho do historiador com o de um cozinheiro do
tempo “aquele que traz para nossos lábios a possibilidade de experimentarmos, mesmo
que diferencialmente, os sabores, saberes e odores de outras gentes, de outros lugares,
de outras formas de vida social e cultural” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2019, p. 32).
Em seguida, no capítulo O passado, como falo?: o corpo sensível como um
ausente na escrita da história, ele faz uma defesa da colocação do corpo, do sensível,
das dores, dos sofrimentos, dos afetos, dos sentimentos como lugares para a história. A
partir dessa perspectiva, ele aponta para a necessidade de se discutir novas maneiras de
expressar as sensibilidades na narrativa histórica, criando novas estratégias que possam
expressar na própria pele do texto essa presença, ignorada e mutilada das narrativas
acadêmicas. Um corpo que é erótico, que sente afetos, raiva, desejo, rompendo, dessa
maneira, com o pudor que cerca a historiografia.
As sensibilidades é um dos temas mais recorrentes ao longo dos capítulos, sendo
que em A poética do arquivo: as múltiplas camadas semiológicas e temporais implicadas
na prática da pesquisa histórica, Durval Albuquerque Júnior critica os historiadores e
sua técnica de análise, afirmando que na busca pela informação, o pesquisador pode até
se emocionar, pode até ser profundamente afetado pelo contato com a materialidade,
mas pouco o leva em conta na hora da sua análise. Essa repressão à dimensão artística
da pesquisa histórica leva a dificuldade que os profissionais da história têm de perceber,
de lidar, de incorporar, no momento da interpretação, os signos emitidos pela própria
escrita do documento. Em suma, a natureza da linguagem é ignorada, seus efeitos e
dimensões são apenas transformados em dados. Para o autor o “trabalho do historiador
é semiológico, ou seja, constitui-se na decifração, leitura e atribuição de sentido para os
signos que são emitidos por sua documentação” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2019, p. 64).
Sendo assim, é preciso enxergar no documento as camadas do tempo, suas marcas, sua
historicidade, sua materialidade, significados e sentidos que perpassem não apenas o
racional, mas também, o emocional, o artístico.
A questão da poética na escrita da história se destaca no capítulo Raros e rotos,
restos, rastros e rostos: os arquivos e documentos como condição de possibilidade do
discurso historiográfico, no qual Durval Albuquerque Júnior une dois campos diferentes
que causam polêmicas entre os historiadores, a ficção e a escrita da história. Inspirado
em uma pesquisa do biógrafo Guilherme de Castilho sobre o poeta Antônio Nobre, ele
cria um conto fictício no qual personifica os documentos como personagens da história.
Instigando o leitor a estar curioso sobre o destino das cartas e dos postais que esse
poeta enviou para o também escritor Alberto de Oliveira. O mais interessante é como
consegue articular questões teóricas e metodológicas da pesquisa histórica em uma
narrativa ficcional, provocando o leitor e sensibilizando-o a imaginar as fontes e sua
trajetória. Assim, a subversão do gênero que ele propõe ao construir um texto de história
por meio da ficção é uma das inovações mais interessantes desse livro.
A discussão sobre história e ficção é polêmica, tendo sido abordada por uma vasta
produção historiográfica. Nesse contexto, diferentes perspectivas acerca do estatuto da
história enquanto uma “verdade” entram em conflito. Como é o caso emblemático do
historiador Carlo Ginzburg com a historiografia considerada “pós-moderna”. No capítulo
O caçador de bruxas: Carlo Ginzburg e a análise historiográfica como inquisição e
suspeição do outro, Durval Albuquerque Júnior critica o posicionamento de Carlo
Ginzburg em relação as suas discordâncias no meio acadêmico. Visto que, Ginzburg é
considerado um dos maiores “inimigos” da historiografia “pós-moderna”, entrando em
conflito com nomes como os de Michel Foucault e Hayden White. Sendo que, o
historiador italiano chegava a transmitir, em certos momentos, xingamentos e ofensas
contra aqueles de quem discordava. Durval Albuquerque Júnior critica o seu
posicionamento e manifesta as razões pelas quais Carlo Ginzburg utiliza de um
procedimento retórico estratégico do discurso inquisitorial e judiciário: a submissão da
variedade de formas de pensar a um conceito, em um esquema explicativo, que
simplifica, caricaturiza e estereotipa aquelas que são consideradas diferentes.
Procedimento que o próprio Ginzburg criticou em seus trabalhos, como em Andarilhos
do Bem (1988), O Queijo e os Vermes (1987), entre outros. É preciso reconhecer que a
dita “historiografia pós-moderna” não se qualifica enquanto uma corrente de
pensamento homogênea e coerente, na verdade, ela se apresenta mais como uma
diversidade de perspectivas, todos e teorias divergentes entre si que se aproximam
menos pela uniformidade que pelo rompimento com a tradição moderna que marca a
história. Para Durval Albuquerque Júnior, Ginzburg utilizava essa estratégia para reduzir
em inimigo todos aqueles de quem discordava.
A seguir, as reflexões acerca do passado e da memória e de seus usos no presente
ganham forma na segunda parte do livro. Como é o caso do oitavo capítulo, As sombras
brancas: trauma, esquecimento e usos do passado, no qual o autor faz referência a
literatura luso-africana e algumas reflexões proporcionadas pelas obras dos autores José
Saramago, Eduardo Agualusa e José Gil em relação a memória, identidade e
esquecimento. Com efeito, Durval Albuquerque Júnior discute sobre a questão do trauma
na história portuguesa, que apesar de todo o processo de ser uma cidade histórica que
constantemente exibe os símbolos e marcas do passado, ao mesmo tempo, ignora ou
esquece dos traumas vivenciados, seja a experiência salazariana, como também, o
processo de colonização exploratória nos países africanos, asiáticos e americano, como
é o caso do Brasil. Para o autor, é função dos historiadores expor o sangue derramado e
o “cheiro de carne calcinada” e clamar por justiça. Sendo assim, a história deve ser o
trabalho com o trauma para que esse deixe de alimentar a paralisia e o branco psíquico e
histórico, em referência a cegueira branca do livro Ensaio sobre a Cegueira (1995), de
José Saramago.
Uma discussão semelhante se segue no nono capítulo, A necessária presença do
outro, mas qual outro?: reflexões acerca das relações entre história, memória e
comemoração, no qual Durval Albuquerque Júnior elabora acerca de como as
comemorações e datas históricas são encaradas pela historiografia hoje, sobre as quais
um consenso de que precisam ser problematizadas, sendo as versões oficiais alvo de
críticas que se transformaram em uma densa produção historiográfica. Ele conclui sobre
a importância de “fazer da comemoração profanação e não culto, fazer da comemoração
divertimento e não solenidade, fazer da comemoração momento de reinvenção do
passado e não de cristalização e de estereotipização do que se passou” (ALBUQUERQUE
JÚNIOR, 2019, p. 190). Seguindo essa perspectiva, no décimo capítulo, Entregar
(entregar-se ao) o passado de corpo e ngua: reflexões em torno do ofício do
historiador”, ele traz também para o debate a questão da “verdade” e do negacionismo
histórico que tem sido uma ferramenta recorrente dos grupos de extrema direita no
Brasil para desqualificar o conhecimento produzido pela história. Dessa maneira,
recomenda maneiras para combatê-lo, como, por exemplo, através do uso da imaginação,
da linguagem e da narrativa para emocionar, sensibilizar sobre os sofrimentos, corpos e
tragédias ocorridas no passado, como é o caso do Holocausto e da Escravidão. Para o
autor, esse é o meio mais eficaz para que as pessoas consigam ser afetadas pelo
conhecimento histórico e possam aprender com ele.
Na terceira parte do livro, o foco da discussão foi o ensino de história. Assim, no
capítulo Regimes de historicidade: como se alimentar de narrativas temporais através
do ensino de história, o historiador paraibano estabeleceu um paralelo em termos de
comparação entre regimes de historicidade e regimes alimentares. Levantando
questionamentos sobre a qualidade do que os alunos estão sendo alimentados nas aulas
de história e apontando para a necessidade de aulas mais atrativas, lúdicas, saborosas,
sem, no entanto, perder a qualidade, a crítica e a historicidade. Nesse sentido, defende
que os professores devem contar histórias que sejam realmente interessantes e que
afetem, de fato, os alunos. Sendo responsabilidade dos docentes, ensiná-los a terem uma
relação saudável com o tempo, com a diferença e com a alteridade. Nessa proposta de
um ensino mais criativo, no décimo segundo capítulo, Por um ensino que deforme: o
futuro da prática docente no campo da história, o autor provoca o leitor/professor a
desconstruir sua visão de escola e da atividade docente, proporcionando uma prática que
realmente revolucione. Ele discute sobre o estatuto da escola atualmente e sua “crise”
enquanto instituição formadora. Um ensino que deforme é aquele que “investe na
desconstrução do próprio ensino escolarizado, rotinizado, massificado, disciplinado, sem
criatividade, monótono” (ALBUQUERQUE, 2019, p. 240).
No último capítulo, De lagarta a borboleta: possíveis contribuições do
pensamento de Michel Foucault para a pesquisa no campo do ensino da história, tece
críticas acerca do uso da obra de Michel Foucault na área da educação que se
centralizam apenas na escola como instituição disciplinar e que não exploram outros
olhares sobre a suas obras. Dessa maneira, ele lista uma série de recomendações para os
pesquisadores na área de ensino de história para explorarem a obra de Michel Foucault
de outra maneira, uma pesquisa que não repita o que foi dito, mas que seja inventiva,
ousada, evitando assim, certo dogmatismo.
Durval Albuquerque Júnior é um crítico da historiografia e tem uma extensa
carreira. Em O Tecelão dos Tempos, ele reúne quatorze ensaios escritos ao longo dos
anos, o que explica a variedade de discussões. Esse é um livro instigante que considero a
melhor produção desse historiador ao momento. Ele possui uma escrita fluída, clara e
objetiva, sendo uma preocupação recorrente a explicitação sobre o significado de
conceitos e ideias discutidas, para assim evitar mal-entendidos. Esse livro deveria ser
lido acompanhado de outra obra desse autor, História: a arte de inventar o passado,
publicada em 2007, no qual ele faz outras duras críticas a produção histórica. Obra
polêmica que causou desconforto por parte dos pares acadêmicos, questão tocada por
ele na introdução.
Uma das marcas da sua escrita é a presença de inúmeros referenciais teóricos,
citados e retomados em diversos momentos do texto. Pela clareza do texto, é uma obra
tanto para os mais experientes em teoria da história, como também para os iniciantes.
Pelo fato de serem ensaios, as discussões não se encerram nos capítulos, sendo
interessante para o leitor procurar as obras citadas ao longo do texto e aprofundar esses
assuntos individualmente. Assim, esse exercício contribui para a melhor compreensão
dos assuntos abordados e para a visão de outras perspectivas.
De fato, o historiador é como um tecelão, que tece as tramas do tempo,
compondo um tecido que, nesse caso, é a narrativa histórica. Sendo também, inclusive,
cozinheiro, responsável por produzir sabores, delícias e dissabores no tempo. Portanto,
fica a recomendação dessa obra tão rica de discussões pertinentes aos amantes da
história e que também se dedicam a produzi-la. Durval Albuquerque Júnior além de
historiador, é um poeta, que apesar de não escrever poesias, escreve uma história
poética, sensível, afetiva, que emociona e nos faz relembrar dos prazeres de se produzir
história.
Referências
ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Ensaios de
teoria da História. Bauru: Edusc, 2007.
ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz de. O tecelão dos tempos: novos ensaios de teoria da
História. São Paulo: Intermeios, 2019.
CEZAR, Temístocles. Prefácio. In: ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz. O tecelão dos
tempos: novos ensaios de teoria da História. São Paulo: Intermeios, 2019, p. 09-12.
GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro
perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
GINZBURG, Carlo. Os Andarilhos do Bem: feitiçarias e cultos agrários nos séculos XVI e
XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.