MEDEIROS, Maria Alda Jana Dantas de
*
RESUMO: O presente artigo pretende discutir o
“desaparecimento” indígena na historiografia
sobre a Povoação do Jardim das Piranhas, gênese
do município de Jardim de Piranhas-RN, à luz de
documentações dos séculos XVIII e XIX. Posto o
diagnóstico da carência de estudos sobre tal
temática na historiografia local, intenta minorar
os lapsos ao analisar a questão indígena na
povoação. Tem como fonte cartas de sesmarias
concedidas pela Capitania da Paraíba e livros de
assentos religiosos da Freguesia da Gloriosa
Senhora de Santa Ana do Seridó, conservados na
Paróquia de Santa Ana de Caicó-RN. Partindo da
abordagem metodológica da História Quantitativa
e Serial, se alinha às considerações de Carlo
Ginzburg no trato com as fontes, no uso do
método onomástico e do paradigma indiciário.
Elucidou-se a inviabilidade de sustentar uma
narrativa pautada no “desaparecimento” dos
povos indígenas, haja visto que, mesmo com
esfarelamento do mundo nativo, indígenas e seus
remanescentes continuaram como personagens
na trama histórica, através de adaptações,
estratégias e resistências.
PALAVRAS-CHAVE: Povoação do Jardim das
Piranhas; Populações indígenas;
Desaparecimento.
ABSTRACT:The present article intends to discuss
the indigenous “disappearance” in the
historiography about the Povoação do Jardim das
Piranhas, genesis of the county of Jardim de
Piranhas-RN, in the light of documentation from
the 18th and 19th centuries. In front of the lack of
studies about this theme in local historiography, it
tries to reduce these lapses by analyzing the
indigenous issue in the village. It uses, as sources,
land concessions letters granted by the Capitania
da Paraíba and the religious notes of the Freguesia
da Gloriosa Senhora de Santa Ana do Seridó,
preserved at the Paróquia de Santana in Caicó-RN.
In the methodological approach of Quantitative
and Serial History, it aligns with Carlo Ginzburg's
considerations about dealing with the sources,
using the onomastic method and the indicative
paradigm. The study elucidated the impossibility of
sustaining a narrative based on the
“disappearance” of the indians, given that, even
with the crumbling of the native world, the
indigenous people and their remnants continued in
the historical plot, through adaptations, strategies
and resistance.
KEYWORDS: Povoação do Jardim das Piranhas;
Indians populations; Disappearance.
Recebido em: 28/02/2020
Aprovado em: 15/06/2020
* Graduada em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Centro de Ensino
Superior do Seridó (CERES), Caicó RN, mestranda do Programa de Pós-Graduação em História dos
Sertões do CERES-UFRN, Caicó, RN, sob orientação do Prof. Dr. Helder Alexandre Medeiros de Macedo.
E-mail: aldajanamedeiros@gmail.com.
Introdução
As águas que corriam e dividiam espaço com os peixes traiçoeiros, como rezam as
lendas, irrigavam parte do solo árido que, posteriormente, passaria a ser identificado
como seridoense nos sertões do atual Rio Grande do Norte. Este espaço, a partir da
segunda metade do século XVIII, foi cenário privilegiado para o semear de um Jardim, o
qual foi chamado “das Piranhas”, carregando o nome do rio que, em tempos difíceis de
estiagens, personificava a abastança e esperança na luta dos colonizadores em
desbravarem aqueles sertões. A pequena povoação carregava, com o mesmo peso, a
marca do criatório e elevação da fé, domada pelos vaqueiros e abençoada pela Virgem
dos Aflitos. Era concebida a gênese do território atualmente representado pelo município
de Jardim de Piranhas, cidade integrante ao Seridó norte-rio-grandense, porta principal
por onde rio Piranhas-Açu adentra no estado potiguar
1
.
O território que hoje corresponde ao município de Jardim de Piranhas era, por
ocasião do contato com os povos ditos “colonizadores”, vindos da Península Ibérica e da
própria América portuguesa, habitado por nativos chamados, nos documentos de época,
genericamente, de “tapuias”, termo utilizado para referir-se aos povos originários que
estavam nos sertões e que tinham rivalidades com os indígenas do litoral (PUNTONI,
2002). Olavo de Medeiros Filho, em estudo pioneiro sobre a presença nativa nos sertões
do Rio Grande, demonstrou que esses mesmos tapuias foram chamados, em meados do
século XVII, de Tarairiu, pelos holandeses, e, mais para o fim do século, em
documentos de origem portuguesa e luso-brasílica, foram tratados como diversos grupos
aparentados, cujos nomes eram um reflexo dos seus chefes: Janduí, Kanindé e Pega, por
exemplo (MEDEIROS FILHO, 1984; 2002). Tais estudos, corroborados por investigações
acadêmicas posteriores (MACEDO, 2007; SANTOS JÚNIOR, 2008), levantaram a
possibilidade de que a ribeira do rio Piranhas, onde está, hoje, o território de Jardim de
Piranhas, fosse habitado pelos Janduí, Kanindé e Pega, sobretudo, por estes últimos,
embora não seja prudente estabelecermos limites precisos para suas circunscrições, por
se tratarem de grupos seminômades.
Esses grupos indígenas entraram em contato com as frentes de expansão da
pecuária na segunda metade do século XVII, provenientes, seja da costa do Rio Grande,
seja da Paraíba, bem como de espaços sertanejos conhecidos pelos colonos. O choque
1
O surgimento do município de Jardim de Piranhas é explicado por um mito fundador, narrativa que foi
perpassada oralmente através de gerações. A lenda conta a trajetória de três vaqueiros que, ao se
afundarem nas águas do rio Piranhas, foram salvos das correntezas e das piranhas carnívoras pela graça
da Virgem dos Aflitos. Como retribuição e agradecimento ao milagre, conta-se que os vaqueiros
construíram um templo religioso dedicado ao culto de Nossa Senhora dos Aflitos, sendo a ereção desta
pequena capela o marco fundador do município.
entre os nativos e os colonos acarretou uma série de conflitos bélicos que opuseram os
grupos indígenas habitantes dos sertões do atual Nordeste contra as forças coloniais
brancos, mestiços, índios cristãos e negros , conhecidos, nos documentos da época,
como “Guerra dos Bárbaros”. Além da morte de milhares de nativos, é preciso ressaltar
que grande parte dos sobreviventes foram aldeados em missões religiosas, escravizados
pelo expediente jurídico da guerra justa ou fugiram para outras paragens (MEDEIROS,
2000; PUNTONI, 2002). Essa “guerra teve durações diferentes a depender da
espacialidade onde ocorreu e, no âmbito da Capitania do Rio Grande, segundo Olavo de
Medeiros Filho, teria se estendido desde os anos de 1680 até a década de 1720
(MEDEIROS FILHO, 1984). Posteriormente a esta última baliza temporal, segundo este
historiador, teria se dado o “povoamento” por parte dos brancos, portugueses e seus
filhos, levantando fazendas de criação de gado nos lugares onde os nativos residiam
anteriormente, perto das quais ergueram templos religiosos (capelas). Estes templos,
teriam dado origem a povoados, e estes, a núcleos urbanos, vilas, que, por sua vez,
originaram os atuais municípios do Seridó potiguar (MEDEIROS FILHO, 1981).
Durante muito tempo, na historiografia produzida no Rio Grande do Norte, se
falou de um “desaparecimento” dos índios após os eventos da “Guerra dos Bárbaros”
(CASCUDO, 1984). Estudos acadêmicos mais recentes demonstraram, todavia, que se
tratava de um encobrimento (MEDEIROS, 2000) ou de um ocultamento (LOPES, 1999;
2005), isto é, processos historicamente construídos de negação da identidade indígena
face à investida colonial. No caso específico dos Sertões do Seridó, os estudos de Helder
Macedo demonstraram, partindo dos assinalados anteriormente, que os nativos
sobreviveram após a “Guerra”, envolvidos pela dinâmica da cristianização, sendo
encontradas referências de suas passagens pelas serras, sítios, fazendas, povoados e
vilas em documentos da Igreja e da Justiça. Incluindo, aqui, a Povoação do Jardim das
Piranhas e a respetiva Capela de Nossa Senhora dos Aflitos (MACEDO, 2002; 2007).
Em relação aos estudos acerca da história local de Jardim de Piranhas,
encontramos uma primeira referência na obra Nomes da Terra, de Luís da mara
Cascudo (1968), todavia, com informações bastante restritas em relação ao processo
histórico que ocasionou o surgimento do município. O autor anotou, nesse sentido, que,
desde o começo do século XIX, houve a fazenda Jardim, sem maiores detalhes no que
tange à presença indígena. Em um livro produzido localmente, Jardim de Piranhas: ontem
e hoje, de autoria de Alcimar Araújo, Erivan Araújo e José Macário Medeiros (1994),
dispomos de um maior corpo de informações sobre a história de Jardim de Piranhas. O
pequeno livro, o único que trata, diretamente, da história local, esboçou um panorama
pouco denso sobre a história do município, numa compilação de fatos e relatos cujos
alicerces primordiais foram depoimentos de antigos moradores da região (ARAÚJO;
ARAÚJO; MEDEIROS, 1994). Alheio à documentação histórica, ou à citação desta, o
estudo deixou, irremediavelmente, significativos lapsos, os quais tentamos minimamente
diminuir em trabalhos anteriores. Tanto o primeiro, pois, quanto o segundo livro, são
obras que inspiram na perspectiva de um processo histórico focado nos ditos
“colonizadores”, procedentes de Portugal ou nascidos na América portuguesa,
denotando, pois, um silenciamento dos nativos na História, como apontado por Vânia
Moreira (MOREIRA, 2001).
Em oportunidade passadas, pudemos investigar o processo de territorialização
dado nas margens do rio Piranhas, durante os séculos XVIII e XIX, estudo respaldado nas
considerações de Claude Raffestin, geógrafo que assumiu a preexistência do espaço, o
qual transforma-se em território mediante a ação de um ator ou um grupo, o
territorializando por meio de uma apropriação (RAFFESTIN, 1993), e nos estudos de
Marcelo José Lopes de Souza, por onde compreendemos que o território é
“fundamentalmente um espaço definido e delimitado por e a partir de relações de poder”
(SOUZA, 1995, p. 80). Desse modo, observamos a gradual construção de um território
colonial na espacialidade estudada, culminado na formação de uma pequena comunidade
fixada às margens do Piranhas, alçada ao nível de povoação quando da ereção de uma
capela destinada ao culto de Nossa Senhora dos Aflitos, por volta de 1790, integrada ao
termo da Vila Nova do Príncipe, sede da Freguesia do Seridó, na Capitania do Rio Grande
(MEDEIROS, 2017)
2
.
Além disso, nos debruçamos sobre a narrativa mitográfica construída acerca do
surgimento do município, perpassada oralmente pelas gerações e a confrontamos com a
documentação histórica (MEDEIROS, 2018). Dentre outros desdobramentos, refletimos
também sobre o perfil demográfico da povoação, extraindo dos ritos de passagem de
seus moradores alguns indicadores sociais, culturais e econômicos, apreendidos através
da documentação eclesiástica (MEDEIROS, 2019). Infelizmente, não dispomos de
informações que nos permitam relacionar as crenças dos indígenas que habitavam a
ribeira do Piranhas, no momento do contato colonial, com a construção da narrativa
mitográfica, a posteriori, em torno da “fundação” do lugar a partir da agência de
Margarida Cardoso, senhora apontada na tradição oral como benfeitora da povoação.
2
Ressaltemos que nossas análises, realizadas à luz das fontes históricas, proporcionaram novas
interpretações sobre a historiografia do município de Jardim de Piranhas. Os estudos que compõem a
historiografia clássica do Seridó pouco se debruçaram sobre a história de Jardim de Piranhas. Dentre os
eruditos que analisamos, citamos a obra de José Adelino Dantas (2008), a qual indicou que a construção da
capela de Nossa Senhora dos Aflitos teria se dado por volta de 1710. Contudo, nos livros de assentos
religiosos da Freguesia da Gloriosa Senhora de Santa Ana do Seridó, os primeiros ritos consagrados na
capela do Jardim das Piranhas começam somente em 1790.
Esta última, por se tratar de uma narrativa cuja temática enaltece uma mulher que,
supostamente, construiu um templo católico no lugar atentamos, contudo, a julgar
pelas evidências encontradas, a necessidade de rever com tal narrativa com mais
atenção.
Embora cientes do não encerramento das discussões sobre a história do
município, reconhecíamos uma lacuna que permanecia sobremaneira expressiva. Ao
recuarmos no tempo histórico para examinar o processo de territorialização daquele
espaço, admitíamos, de antemão, a dificuldade de tal trama ter sido tecida num espaço
vazio, mas que grupos indígenas habitavam aquelas terras quando da chegada dos
colonizadores no sertão post bellum, isto é, posteriormente às Guerras dos Bárbaros.
Concordando com o enunciado anteriormente por Helder Macedo, o pressuposto é de
que o processo o qual estamos tratando é fruto do confronto entre duas
territorialidades, uma nativa, e outra colonial (MACEDO, 2007). Contudo, não existia
nenhuma menção à população indígena na historiografia do município, tampouco na
memória de seus habitantes.
Existia um cenário obscuro nas narrativas, um desaparecimento cabal dos povos
indígenas, como se estes não tivessem existido naquela espacialidade, vidas nativas
esquecidas em torno da Virgem dos Aflitos. Neste quadro de ausências de narrativas,
bem como de estudos que se destinem a entender a questão indígena no espaço que
atualmente corresponde ao município de Jardim de Piranhas, intentamos aqui investigar
como as documentações históricas se referem à presença indígena na Ribeira do
Piranhas
3
, durante os séculos XVIII e XIX.
Para isso, enveredamos, sobretudo, por dois corpos documentais, as fontes
sesmariais e as eclesiásticas. No tocante às primeiras, trabalhamos com cartas de
sesmarias concedidas pela Capitania da Paraíba, cujos manuscritos originais se
encontram nos livros do Instituto Histórico e Geográfico da Paraíba. Consultamos as
transcrições de tais documentos nos trabalhos de Lyra Tavares (1982), Medeiros Filho
(2002), e também na Plataforma SILB (Sesmarias do Império Luso-Brasileiro), base de
dados online que compila informações sobre as sesmarias concedidas pela Coroa no
mundo atlântico. As fontes eclesiásticas correspondem aos livros de assentos religiosos
mais antigos da Freguesia da Gloriosa Senhora de Santa Ana do Seridó, atualmente
conservados na Casa Paroquial São Joaquim, da Paróquia de Santa Ana de Cai-RN. O
3
Admitimos que as fronteiras indígenas não seguiam os limites administrativos instituídos nos dias
correntes, dessa forma, assumimos o recorte da Ribeira do Piranhas, na fração correspondente à Capitania
do Rio Grande, que poderia integrar, além do município de Jardim de Piranhas, também fragmentos dos
espaços que hoje se constituem enquanto os municípios potiguares de São Fernando, Jucuturu e Serra
Negra do Norte.
rol de documentação é composto por três livros de assentos de batismos (1803-1806,
1814-1818, 1818-1822), contendo, ao todo, 3012 registros; dois livros de casamentos (1788-
1809, 1809-1821), que somam o total de 1166 registros; e, por fim, dois livros de assentos
de enterros (1788-1811, 1812-1838) apresentam, juntos, 2249 sepultamentos registrados.
Tais dados estão concatenados em bancos de dados construídos no software Microsoft
Access, produtos das pesquisas dos historiadores seridoenses Muirakytan Macêdo,
Helder Macedo e suas equipes de pesquisa, além de se encontrarem parcialmente
digitalizados e transcritos.
Metodologicamente, partimos do ponto basilar da revisão bibliográfica, a partir do
estudo da historiografia local sobre o município de Jardim de Piranhas (ARAÚJO;
ARAÚJO; MEDEIROS, 1994), bem como de obras que já abordaram a questão indígena na
Ribeira do Seridó, no período colonial (MEDEIROS FILHO, 1984; MACEDO, 2002; 2007).
Firmamos, ademais, um diálogo duplo com a História Quantitativa e a História Serial, em
consonância aos escritos de Carlos Bacellar (2001). Através dessa abordagem
metodológica, consideramos que a realidade pode ser observada por meio da
quantificação de número e valores apreendidos das fontes históricas. Com isso, pontes
podem ser construídas com a Matemática, como, por exemplo, para elaboração de
gráficos e dados estatísticos. Contudo, esses pressupostos não dispensam, também, uma
análise qualitativa das informações.
No que concerne ao trato com a documentação histórica, entendemos sua
obscuridade por terem estas sido produzidas pelos colonizadores, fator que nos leva a
considerar indispensável o cruzamento intensivo e minucioso das informações. Dessa
forma, a partir das considerações Carlo Ginzburg sobre o paradigma indiciário, visamos
sustentar nossa investigação em dados aparentemente “desimportantes”, abraçando
pistas mudas e sutis presentes nas séries de eventos, as quais temos acesso a partir dos
documentos, além de guiarmos nossas buscas pelo nome, como pressupõe o método
onomástico, também do mesmo autor (GINZBURG, 1989; 1989). Amparados nestes
procedimentos, intentamos reconstituir as redes as quais os indígenas se inseriram na
Ribeira do Piranhas.
Firmamos nossas bases nos pressupostos teóricos da História Antropológica,
dimensão emergida quando da constatação que alguns estudos requeriam um diálogo
interdisciplinar entre os instrumentais teóricos e conceituais da História e da
Antropologia. Conforme aponta Maria Regina Celestino de Almeida (2010; 2012),
enquanto ainda presos e incomunicáveis em seus respectivos campos de estudos,
antropólogos e historiadores, direta ou indiretamente, contribuíram para a construção
do pensamento que os povos indígenas haviam passado por um processo de aculturação,
quando da sua integração à nova realidade estabelecida pela colonização europeia; isto é,
haviam se assimilado aos demais grupos étnicos envolvidos na nova sociedade que
surgia, ao ponto de perderem sua própria identidade étnica. De um lado, os
antropólogos, cativos na concepção que a cultura era fixa e imutável, buscavam alcançar
os então “povos primitivos” em sua originalidade e autenticidade, desconsiderando suas
trajetórias históricas. Do outro, os historiadores acreditavam que cabia à etnologia
apropriar-se dos índios como objeto de estudo, e mantiveram-se complacentes ao
restrito lugar que o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro destinara aos índios no
século XIX, entendendo-os tão somente como atores que existiram no passado. Neste
cenário, as interpretações sobre os povos indígenas sustentaram-se em dualismos rasos,
resultando em abordagens equivocadas e simplistas, nas quais os povos indígenas
ocuparam exclusivamente o papel de dominados, gerando um inevitável esvaziamento na
compreensão dos processos históricos.
A partir dos anos de 1970, historiadores e antropólogos começaram a se articular
em suas discussões, gerando uma flexibilização no seio de ambas as disciplinas no que
concerne aos seus aparelhamentos teórico-metodológicos. Tais mudanças foram
altamente influenciadas pelos movimentos indígenas do século XX, os quais
evidenciaram o engano das teorias do século XIX, que previam o completo
desaparecimento dos indígenas na sociedade. O crescimento exponencial de índios
registrados nos censos e dos povos que afirmavam suas identidades étnicas e lutavam
por seus direitos foi um claro sinal da necessidade de rearticular os instrumentos de
análise até então vigentes. O diálogo interdisciplinar entre historiadores e antropólogos
resultou num benefício mútuo, haja vista a abertura de frutíferas possibilidades e
abordagens para estudos sobre relações de alteridade, como as análises do contato entre
povos étnico e culturalmente distintos (ALMEIDA, 2010).
Na confluência desses dois horizontes, a Etno-História surge com uma ampliação
das possibilidades interpretativas dos processos históricos e das relações interétnicas,
fragilizando o repertório genérico, simplificador e, por vezes, preconceituoso, o qual foi
historicamente construído na sustentação de uma versão do passado em que grupos
indígenas foram vistos tão somente como vítimas de um sistema opressivo. De tal forma,
ao revisarmos tais discursos, nos deparamos não apenas com novas versões do passado,
como também visualizamos novos personagens sendo iluminados pelos holofotes da
história. As análises sobre o contato interétnico entre as populações nativas e o
elemento europeu não podem mais pautar na supressão e esvaziamento absoluto da
cultura indígena, mas encarar esses processos em seu dinamismo, possibilidades,
interesses e estratégias dos grupos indígenas, ainda que estes estivessem numa situação
de deliberada violência. A Etno-História no mostra, pois, que caminhos mais
cautelosos a serem seguidos, assumindo os grupos indígenas como agentes históricos e
políticos, os quais, ainda que imersos numa dinâmica imposta pela ocidentalização, se
apropriaram dos novos códigos e por vezes permaneceram agindo em função de seus
próprios interesses, em múltiplas formas de ação (ALMEIDA, 2012).
A discussão apresentada pelo antropólogo João Pacheco de Oliveira (2004) sobre
a noção de “índios misturados”, vinculada aos povos indígenas do atual Nordeste é
sobremaneira pertinente para a compreensão do contexto em análise. Seja em obras
intelectuais ou na própria documentação oficial, foi processado um paulatino
esfarelamento da ideia de povos e culturas indígenas em terras nordestinas, tendo em
vista que estes supostamente estavam altamente “mestiçados” à população sertaneja,
em se tratando dos que habitavam os sertões. Sendo apresentados, por vezes, apenas
como “resíduos”, os povos indígenas não eram assumidos como sujeitos históricos,
tampouco como atores sociais. Conforme o autor, este quadro foi a resultante de um
longo processo histórico, iniciado a partir da segunda metade do século XVII, com os
aldeamentos missionários. Naquele contexto, indígenas de diferentes línguas e culturas
passaram pelo processo de catequização e sedentarização e, por conveniência política e
econômica, casamentos interétnicos foram incentivados. Os índios “misturados”
surgiam, então, defronte a uma desqualificação em relação aos índios “puros”. Ao longo
dos séculos, outros processos de “misturas” aconteceram, até que, no final do XIX,
[...] não se falava mais em povos e culturas indígenas no Nordeste.
Destituídos de seus antigos territórios, não são mais reconhecidos como
coletividades, mas referidos individualmente como “remanescentes” ou
“descendentes”. São os “índios misturados” de que falam as autoridades, a
população regional e eles próprios, os registros de suas festas e crenças sendo
realizados sob o título de "tradições populares”. (OLIVEIRA, 2004, p. 26).
Neste panorama, dialogamos com a discussão acerca do “desaparecimento” dos
povos nativos, concepção concebida e reforçada nas mais diversas esferas, seja na
própria narrativa historiográfica ou, inclusive, nas tradições orais. Fátima Martins Lopes
(2005), ao investigar as populações indígenas na Capitania do Rio Grande, afirma que a
ideia de "desaparecimento" indígena perpassava não apenas a questão da insuficiência de
informações sobre esses povos na documentação histórica como, também, o próprio
consenso de que não existiam índios nos espaços que atualmente correspondem Rio
Grande do Norte.
O profundo ocultamento dos grupos indígenas na historiografia é uma questão
também discutida por Vânia Maria Losada Moreira (2001), historiadora que voltou seus
estudos para o Espírito Santo, mas cujas considerações são pertinentes para todo o
contexto da história atual do país. O debate provocado por Moreira aponta que a
presença indígena não teve representação ou teve representação mínima e insuficiente
na historiografia, não somente no âmbito da academia, como, inclusive, na própria
educação perpassada nas instituições de ensino básico do Brasil. Compreendendo que os
indígenas ficaram margem da História", a autora percebe um rculo vicioso nessa
situação, no qual os sujeitos indígenas ocupam uma posição subalterna na sociedade
atual, gerando uma invisibilidade histórica, ao mesmo que tempo em que este
ocultamento historiográfico acaba por reforçar a subalternidade social desses sujeitos.
Ao discutir as raízes do "desaparecimento" indígena, Moreira argumenta também ser um
reflexo de vícios teóricos e metodológicos que permeiam a própria forma de construir a
narrativa histórica sobre o período colonial, haja vista que, desde muito cedo, os espaços
habitados por grupos indígenas eram relatados nas documentações como "vazios
demográficos" (MOREIRA, 2001).
Nos rastros das ausências
É pertinente partirmos de como conseguimos chegar ao diagnóstico do
“desaparecimento” indígena que desponta na historiografia sobre o município de Jardim
de Piranhas. Para os sertões da Capitania do Rio Grande, de modo geral, foram
construídas narrativas históricas sustentadas em densas camadas de silêncios em que
indígenas, mestiços, mulheres e, dentre tantos outros emudecidos, escravos ficaram
afastados do palco central da trama histórica. A “historiografia clássica” do Rio Grande
do Norte, durante o século XX, elaborou estudos firmados sobretudo na condecoração
de elementos luso-brasílicos, a partir do enaltecimento de grandes colonos e fazendeiros
setecentistas, os ditos primeiros povoadores que fundaram os atuais municípios do
Seridó e que foram os patriarcas de tradicionais famílias sertanejas, que geralmente ou
eram portugueses, ou tinham ascendência intimamente ligada ao elemento lusitano.
Podemos ver essas características manifestadas, em maior ou menor medida, variando
entre cada intelectual, nas obras de José Adelino Dantas (2008), José Augusto Bezerra de
Medeiros (1980), Manoel Dantas (2001) e Olavo de Medeiros Filho (1981; 1983), todos
autores germinados em solo seridoense.
Dos intelectuais citados, podemos destacar Olavo de Medeiros Filho, pois, ainda
que em suas primeiras obras o erudito tenha dado vida a um Seridó mormente luso-
brasílico, sua atenção também se voltou para a questão indígena no livro Índios do Açu e
Seridó, de 1984. Além disso, em Cronologia Seridoense, obra de 2002, Medeiros Filho
apontou a presença de índios, pretos, pardos e mulatos na Freguesia do Seridó, com base
nos levantamentos realizados pelo padre Francisco de Brito Guerra, no início do século
XIX (MEDEIROS FILHO, 1984; 2002).
Olavo de Medeiros Filho, ao dissertar sobre as Guerras dos Bárbaros, conflitos
bélicos travados entre indígenas e colonizadores durante os séculos XVII e XVIII, nos
informou da construção de duas fortificações nos sertões do Rio Grande, edificações que
visavam a proteção dos colonos dos ataques dos nativos. A primeira tratava-se da Casa-
forte do Cuó, construída por volta de 1683, num espaço hoje pertencente ao município de
Caicó, a qual abrigou diversas tropas militares, como as do coronel Antonio de
Albuquerque da Câmara, as do Mestre-de-campo do Terço dos Paulistas, Domingos
Jorge Velho e, dentre outras, as do capitão-mor Afonso de Albuquerque Maranhão, todas
destinadas aos embates contra os “tapuias revoltados” (MACEDO, 2007).
Além desta, teria existido uma segunda fortificação, edificada no encontro do rio
Espinharas com o rio Piranhas, onde “ficou alojado o mestre-de-campo Domingos Jorge
Velho. Pela correspondência oficial, tem-se certeza que o acampamento do paulista
ficava na Ribeira das Piranhas, em território rio-grandense, fronteiras com a Paraíba [...]”
(MEDEIROS FILHO, 1984, p. 121), lugar que atualmente diz respeito à divisa entre os
municípios de Serra Negra do Norte e Jardim de Piranhas. Contudo, estudos posteriores,
realizados por Valdeci dos Santos Júnior e pela equipe do Núcleo de Estudos
Arqueológicos da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (NEA-UERN), não
conseguiram estabelecer um diálogo harmônico com essas constatações, uma vez que
não foram encontrados vestígios arqueológicos que pudessem comprovar a construção
da casa-forte na Ribeira do Piranhas (SANTOS JÚNIOR, 2008).
As espacialidades banhadas pelo rio Piranhas foram objetos de estudos em
pesquisas de pós-graduação como, por exemplo, nos trabalhos de Ana Paula da Cruz
Pereira de Moraes. A dissertação (2009) e a tese (2015) partilharam o mesmo recorte
espacial, o “sertão do rio Piranhas”. Destacamos a última produção, sobretudo, onde a
autora analisou o referido espaço no momento de chegada dos colonizadores
portugueses aos sertões da América lusa, após a expulsão dos neerlandeses, discutindo
os jogos de poder entre conquistadores e nações indígenas. Todavia, apesar dos diálogos
estabelecidos com a Ribeira do Seridó, o estudo investigou como este processo
desenrolou-se na Capitania da Paraíba do Norte, não chegando a mencionar a povoação
do Jardim das Piranhas (MORAES, 2015).
Para explorarmos a questão indígena no espaço que hoje compreende-se como
Seridó, recorremos às reflexões sobre as populações nativas contidas nas produções de
Helder Alexandre Medeiros de Macedo. Refutando o suposto desaparecimento indígena
da Ribeira do Seridó após a chegada dos colonizadores, o autor apontou em sua
monografia e, posteriormente, também na dissertação que, apesar do processo de
ocidentalização ter implicado no extermínio de expressiva parcela das populações
indígenas, partes sobreviveram e seus remanescentes se fizeram presentes na freguesia,
convivendo com brancos, negros e mestiços (MACEDO, 2002; 2007).
Ressaltamos também o estudo mencionado de Fátima Martins Lopes, autora
que desarticulou o argumento do “desaparecimento” indígena na Capitania do Rio
Grande, evidenciando em seus estudos a presença de habitantes indígenas no que hoje é
o território circunscrito aos limites do estado potiguar. Esses sujeitos, mesmo após
conflitos amplamente violentos, continuaram vivos e resistindo durante o período
colonial. Todavia, o "desaparecimento" indígena foi a versão do passado construída pela
historiografia clássica do Rio Grande do Norte, a qual defendia que a colonização
lusitana foi integralmente efetiva em seu povoamento, resultando na extinção completa
dos povos indígenas. O discurso do desaparecimento, vago e genérico, foi fundamentado
em três interpretações principais: ou os indígenas foram extintos pelas guerras e
epidemias; ou foram assimilados pelas Vilas, "deixando de ser índios"; ou, ainda, voltaram
à "vida errante", incapazes, pois, de sobreviverem (LOPES, 2005). Todas essas versões
nos mostram que os grupos indígenas eram vistos como sujeitos incapacitados de se
articularem e agirem de acordo com seus interesses.
Desse modo, procuramos superar essa narrativa do “desaparecimento”,
compreendendo a construção da ideia de desaparecimento” em diferentes níveis: um
primeiro, da dominação dos colonizadores e do processo de ocidentalização que
esfarelou o mundo nativo; um segundo, das documentações históricas que conceberam
uma versão do passado condicionada pelos interesses luso-brasílicos; e, por fim, um
último nível, o do desaparecimento no relato histórico, que toca, por sua vez, a própria
memória coletiva. Quando em contato com as fontes e respaldados pelos fundamentos
das nossas abordagens teórico-metodológicas tentamos suprir, ainda que minimamente,
essa história tão lacunar.
Da terra usurpada se fez um Jardim
Em estudos anteriores, tivemos a oportunidade de investigar a territorialização
que se deu nas margens do rio Piranhas, durantes os séculos XVIII e XIX, percebendo
que tal processo de instalação de poderes foi culminado quando do surgimento de uma
povoação denominada “Jardim das Piranhas”, gênese do atual município de Jardim de
Piranhas. A comunidade constituída pelas famílias fixadas ao redor do rio Piranhas foi
alçada ao nível de povoação quando do surgimento de uma capela erguida na chamada
fazenda Jardim, no século XVIII. Sob o culto de Nossa Senhora dos Aflitos, o pequeno
templo religioso marcou a representação de um núcleo urbano, administrativo e
espiritual, instituição onde os moradores puderam consagrar seus ritos de passagem. A
princípio, a povoação era vinculada à Capitania da Paraíba do Norte, como termo da
Povoação de Nossa Senhora do Bom Sucesso do Piancó, todavia, se integrou às
circunscrições da Capitania do Rio Grande em 1788, quando passou a ser integrante do
termo da Vila Nova do Príncipe, sede da Freguesia do Seridó (MEDEIROS, 2017). Trata-se
de uma povoação laica, vez que não era oriunda de aldeamento missionário, como
aquelas do litoral do Rio Grande, estudadas por Fátima Lopes (1999). É preciso ressaltar,
todavia, que, conforme a investigação de Maria Simone Morais Soares (2012), houve
quatro aldeamentos nos sertões das Piranhas e Piancó no século XVIII: dos Kurema, dos
Panati, dos Ikó e dos Pega; este último, relativamente próximo ao que hoje é o território
de Jardim de Piranhas. Contudo, os estudos feitos a propósito da territorialização do
Seridó e que enfocaram a sua dimensão religiosa (MORAIS, 2005; MACÊDO, 1998; 2007;
MACEDO, 2007; 2013), bem como, a documentação que analisamos, não nos permitem,
ainda, fazer correlações entre o aldeamento dos Pega e a presença indígena no que hoje
é o território de Jardim de Piranhas.
Para compreendermos a chegada dos colonizadores no sertão do Piranhas,
recorremos às cartas de sesmarias concedidas nesta espacialidade, haja vista que o
sistema sesmarial foi um dos principais veículos de obtenção de terras na América lusa,
principalmente quando no contexto da interiorização da ocupação colonial, cujo
sustentáculo foi o criatório de gado. A princípio, imensas datas de terra foram
concedidas aos suplicantes, uma vez que a “criação extensiva, em zonas distantes,
infestadas de índio brabo, de animais ferozes, terras que não despertavam interesse,
cobiçadas de poucos, muito mais que na região dos canaviais se fazia maior a
generosidade das autoridades distribuidoras” (PORTO, 1965, p. 81). Outrossim, o próprio
desígnio de “limpar” as terras da presença de povos indígenas foi, também, uma
justificava para que colonos requisitassem grandes porções de terra (PORTO, 1965).
Em se tratando da Ribeira do Seridó, o interesse dos sesmeiros tornou-se
expressivo principalmente a partir do século XVII, após a expulsão dos neerlandeses.
Eram requeridas datas de terras que geralmente acompanhavam algum percurso d’água,
cuja posse era justificada, majoritariamente, pelo criatório de gados e, em menor medida,
pelo plantio de lavouras (MORAIS, 2005; MACÊDO, 2007).
Ao cruzarmos a nomenclatura dos sítios que compõem a atual zona rural do
município de Jardim de Piranhas com as informações expressas nos títulos de sesmarias
concedidos às margens do rio Piranhas, pudemos listar algumas das fazendas nas quais
surgiram os primeiros circuitos de ocupação, no século XVIII. Citamos algumas, como a
fazenda Batalha, Cais, Caiçara, Barra de Baixo (ou somente Barra), Jardim e Lagoa
Rachada.
Encontramos um número relativamente diminuto de datas de terras concedidas
dentro da espacialidade que hoje representa o município de Jardim de Piranhas. Supomos
que nem todos os requerimentos de terras tenham chegado aos dias atuais, ou, para além
dos pedidos oficiais, as terras teriam sido ocupadas sem o trâmite oficial da doação em
sesmaria. A burocratização exacerbada que o sistema sesmarial ganhou, no decorrer do
tempo, fez com que muitos colonos se esquivassem desses processos legais do
requerimento e passassem a ocupar as terras mesmo o domínio legal. Eram estes
chamados de posseiros, e compunham o quadro fundiário da América lusa junto com os
sesmeiros legítimos.
Das seis sesmarias que localizamos, nenhuma fez menção à presença de grupos
indígenas naquelas terras. A maioria dos pedidos tinham o fito de confirmar a posse de
terras, nas quais os sesmeiros argumentavam que tinham o direito por herança
4
, ou para
asseverar uma compra
5
. Outros justificavam o pedido pela pecuária, declarando que
precisavam de terras para criação de seus gados ou plantio de lavouras
6
. No
requerimento mais antigo
7
, datado de 1752, o suplicante justificou o pedido com o
argumento que no “sertão das Piranhas uma sobra de terras que estão devolutas e
desaproveitadas” (TAVARES, 1982, p. 26).
Por meio das análises dessas fontes, involuntariamente somos guiados a deduzir
que se tratava de uma espacialidade erma, inabitada, como se a chegada dos colonos nas
terras, seja por meio do instituto sesmarial ou pela posse espontânea, tivesse ocorrido
4
São os casos dos suplicantes da família Rocha Pita, grande latifundiário do Alto Sertão da Bahia, no
século XVIII, como constata Erivaldo Fagundes Neves (2008). Em 1753, Simão da Fonseca Pita Deus-Dará
pede, por carta de sesmaria, a confirmação da posse de dois sítios de criar gado no sertão das Piranhas,
que tinha por herança de seu pai, Antônio da Rocha Pita (TAVARES, 1982, p. 232). Os sítios eram Batalha e
Cais, confrontados pelos sítios Caiçara e Sant’Ana. Anos depois, em 1771, Cristóvão da Rocha Pita, sobrinho
do dito Simão da Fonseca, relatou que sua carta de sesmaria havia sido perdida em um incêndio no
caminho do Conselho Ultramarino, e por isso solicitava reforma de seu pedido de um sítio de criar gados
(TAVARES, 1982, p. 349-50). O fundamento do direito por herança também esteve presente no
requerimento de Manoel Alves Rabelo, filho de Manoel Gonçalves Rabelo, que em 1786 pediu terras para
anexação no “Jardim das Piranhas”, que tinha por herança de seu pai (TAVARES, 1982, p. 411).
5
Em 1789, a carta de sesmaria do ajudante Vicente Borges Gurjão, morador do Recife, visava garantir a
compra de uma sorte de terras na fazenda Barra de Baixo, Ribeira das Piranhas (TAVARES, 1982, p. 447-8).
6
Os irmãos Antônio Pereira Monteiro e Manuel Pereira Monteiro pediram, em 1762, uma sesmaria no
riacho Timbaúba, entre as fazendas Barra e Jardim, pois buscavam terras para criar seus gados (TAVARES,
1982, p. 308).
7
Carta de sesmaria feita pelo capitão Francisco da Rocha Oliveira, em 1752. O sesmeiro solicitava terras
devolutas no riacho da Timbaúba, no sertão das Piranhas, para criação de seus gados e plantio de suas
lavouras (TAVARES, 1982, p. 226).
sem conflitos e a questão indígena já tivesse sido superada. Contudo, devemos ter
cautela para evitarmos conclusões precipitadas, haja vista que a presença indígena era
entendida como obstáculo para a fixação da pecuária no sertão, assim, conforme Macedo
(2007), muitos sesmeiros evidenciavam a credibilidade que tinham por terem descoberto
terras inabitadas, ou somente “povoadas de índios”, as quais queriam posse para dar
aproveitamento econômico no solo. Assim,
As sesmarias doadas nessas ribeiras [Piranhas, Espiranhas, Sabugi e Acauã],
principalmente, a duas grandes famílias a dos Oliveira Lêdo e a dos
Albuquerque da Câmara , em seus textos de solicitação, remeteram a um
sertão hostil, inóspito, ermo e ignoto, paradoxalmente recheado de “tapuias” ou
de índios Janduí e Canindé (MACEDO, 2007, p. 173).
Para elucidar essa discussão, vejamos que, em 1818, o sesmeiro Joaquim José
Vianna solicitou terras ao sul do rio Piranhas, no dito Poço do Sédro, “onde se encontram
ainda Tapuios selvagens” (TAVARES, 1982, p. 525). Desse modo, ainda que nas cartas de
sesmarias as referências da presença nativa sejam sucintas, isso não implica
necessariamente numa ausência absoluta de indígenas habitando as terras às margens
do rio Piranhas.
Partimos, como ressaltamos, do reconhecimento de fontes talhadas unicamente
pelos colonos luso-brasílicos, indivíduos imersos num jogo de poderes e num contexto
de ainda conquista das terras, dos corpos e das almas. Desse modo, como apontado por
Macedo (2007), quando em contato com os documentos dos conquistadores, esbarramos
com a ideia de “sua superioridade cultural frente aos nativos encontrados no sertão do
Rio Grande, nominados nesses mesmos registros apenas quando se fazia referência a
seu modo de vida bárbaro, à sua gentilidade [...]” (MACEDO, 2007, p. 269). Isso posto,
não surpreende a ausência de referência às populações indígenas, ou a indicação de sua
selvageria, quando citados. Era, pois, momento de esfarelamento dos antigos territórios
indígenas.
Quando não documentados como bárbaros e errantes, isto é, um empecilho ao
projeto colonial, os índios aparecem nas fontes também quando já incorporados no
mundo forjado pela ocidentalização como, por exemplo, na cristandade, conduzidos pela
cruz, mas, também, pela espada
8
. É o que veremos a seguir.
8
Metáfora utilizada por Helder Macedo para analisar os índios sobreviventes das guerras que se inseriram
nas dinâmicas impostas pela ocidentalização, na Freguesia de Santa Ana do Seridó (MACEDO, 2007).
Os ritos dos aflitos
A conquista do Novo Mundo pelas potências europeias, a partir do final do século
XV, esteve intimamente vinculada ao fenômeno que o historiador francês Serge
Gruzinski chamou de “ocidentalização, isto é, o processo pelo qual foram instauradas
nas colônias dos Impérios Ultramarinos referências políticas, religiosas e institucionais
vindas do Velho Mundo, no propósito de duplicar as instituições, representações e
imaginários europeus, resultando na expansão/imposição da cultura ocidental e, em
decorrência, na conquista das almas, corpos e territórios do Novo Mundo (GRUZINSKI,
2001).
Ao dissertar sobre como a ocidentalização se procedeu na Capitania do Rio
Grande, Helder Macedo destacou o choque entre diferentes territorialidades, algumas
dos europeus e outras dos nativos. Neste choque, despontaram territórios coloniais e
mestiços, haja vista que da ocidentalização também surgiram as mestiçagens entre
diferentes pessoas, imaginários e formas de vida. Desse modo, a construção do Ocidente
nas terras do ultramar se sucedeu também pelas mestiçagens provindas de encontros
interculturais diversos, nos séculos XVI, XVII e XVIII (MACEDO, 2007).
A conquista colocou as populações indígenas frente a circunstâncias, mormente
fatais, como a exposição a doenças e as bárbaras guerras. Contudo, isso não implicou
num extermínio absoluto da população nativa e parcela dos índios sobreviventes se
inseriram nas dinâmicas que surgiram no novo mundo imposto pelos conquistadores.
Como a cristianização era um elo fundamental na ocidentalização (GRUZINSKI, 2001),
alguns índios que habitavam a Freguesia do Seridó se embrenharam no cristianismo,
consagrando ritos da vida privada nos templos, fenômenos que ficaram registrados nos
livros de assentamentos religiosos.
No Velho Mundo, o registro de sacramentos em livros de assentos adquiriu
natureza universal e padronizada a partir das normas estabelecidas no Concílio de
Trento (1545-1563) (LUCA, PINSKY; 2009). O referido concílio ecumênico foi convocado
num quadro de vulnerabilidade da cristandade, encadeada pela Reforma Protestante,
movimento que evidenciou para a Igreja Católica a necessidade de conhecer e controlar
seus fiéis. Como instrumento para tal controle, a prática de registrar individualmente
cada católico passou a ser obrigatória e padronizada, materializada nos livros de
assentamentos das Curas. O ciclo da vida cristã passou, então, a ser documentado a
partir dos registros de seus principais ritos de passagem: batizado, casamento e enterro
(MARCÍLIO, 2004).
As Constituições de Coimbra instauraram os registros paroquiais em Portugal em
1591, práticas reproduzidas nos domínios da Coroa no Novo Mundo. O instituto do
Padroado Régio na América lusa outorgou às instâncias eclesiásticas funções que
excederam o caráter exclusivamente religioso, de modo a contemplar também as esferas
políticos-administrativas. Responsável por registrar todos os indivíduos nascidos,
casados e falecidos na colônia, a Igreja conseguiu atingir uma cobertura quase universal
de toda a população. A partir de 1707, quando da criação das Constituições Primeiras do
Arcebispado da Bahia, os registros ganharam uma regulamentação local, cujas normas
seguiam as determinações estabelecidas no Concílio de Trento (MARCÍLIO, 2004).
Também inspiradas em antigas experiências lusas, as freguesias da América portuguesa
atuavam como instrumentos burocráticos; cuidavam das almas, e, outrossim, se
encarregavam dos corpos (MACEDO, 2007).
Dentro do expressivo número de registros de sacramentos referentes à Freguesia
de Santa Ana do Seridó, buscamos aqueles correspondentes à povoação do Jardim das
Piranhas, isto é, os ritos que foram consagrados na Capela de Nossa Senhora dos Aflitos,
durante os anos de 1790 a 1838. Trabalhamos, desse modo, com 189 registros de
assentamento de batismos, 42 registros de matrimônio e 113 registros de enterros. Por
meio do levantamento, leitura e análise quanti-qualitativa dessa documentação,
buscamos destrinchar o que as fontes poderiam nos informar acerca da população
indígena da povoação.
Iniciando pelos livros de registros de batismos, ressaltamos o lugar significativo
da cerimônia batismal na cristandade, haja vista que simboliza a passagem da vida pagã
para a cristã, a partir do recebimento dos santos óleos. O batizado, primeiro rito da vida
cristã, para além da importância espiritual, também era influente nas tramas sociais, no
tocante às relações com os padrinhos, por exemplo. Enfrentamos certo lapso nos livros
de batismos da Freguesia de Santa Ana, uma vez que estes só começam no século XIX e,
assim, não temos informações sobre os ritos consagrados no século anterior.
Nos documentos referentes à povoação do Jardim das Piranhas, ao observamos as
averbações dos sacerdotes, podemos encontrar informações acercas das “qualidades”
dos que estavam consagrando os ritos de passagem, conceito este trabalhado em diálogo
com as considerações de Eduardo Paiva. Na ibero-América, a partir do século XVI, num
contexto de intensas mesclas biológicas e culturais (violentas-não violentas, forçadas-
voluntárias), um extenso léxico foi construído para nomear, qualificar, diferenciar e
hierarquizar os produtos desses intercursos culturais e sexuais das dinâmicas de
mestiçagem. Nesse novo cenário, o termo “qualidade”, que no Velho Mundo era um
atributo de “homens bons” (isto é, brancos, sem sangue infecto, um marcador de
diferença para mouros, judeus, negros e mestiços), passou a abranger diversas
“qualidades”, as quais classificavam e hierarquizavam os indivíduos, a partir de
elementos como origem, fenótipo e ascendência. Podemos citar, a título de exemplo,
“qualidades” como “cabra”, “mulato”, “pardo”, “caboclo” e, dentre outras categorias
utilizadas para nomear as dinâmicas de mestiçagem biológicas e culturais procedidas na
América portuguesa, “mameluco”
9
(PAIVA, 2015).
Um número considerável das atas, contudo, não expressam nitidamente as
“qualidades” dos sujeitos, apresentando somente siglas que nos dão margens para
cautelosamente refletirmos sobre as possibilidades. São os casos dos batizandos que
receberam a “qualidade” “P”, a qual cogitamos se tratar das “qualidades” “preto” ou
“pardo”
10
; a “qualidade” “NC”, que supomos ser “negro cativo” ou “nação Congo”; para
sigla “PC”, levantamos as possibilidades de ser uma referência a “pardo cativo” ou “preto
cativo”; e, por fim, “B”, a qual reconhecemos ser um indicativo para a “qualidade”
“branco”, a qual soma o maior número de ocorrências nos três livros de registros de
batismos, num total de 85 registros
11
.
Dos 189 registros de assentamento de batismos referentes à povoação do Jardim
das Piranhas, encontramos somente um no qual um índio recebe tal sacramento. Em
1804, o índio chamado Lino recebera os santos óleos na Capela de Nossa Senhora dos
Aflitos, filho de Miguel Corrêa, natural de Vila Flor, e Teresa de Jesus, natural da
Freguesia do Açu (FGSSAS, LB nº 1, 1803-1806, f. 38v).
O número reduzido de batismos de índios já havia sido constatado por Helder
Macedo, em ocasião de sua dissertação, estudo no qual o historiador contemplou toda a
Freguesia de Santa Ana como recorte espacial. Dos 685 registros investigados, do
período de 1803 a 1806, 73,28% dos batizandos são designados como brancos, 16,20%
como negros, 9,24% como pardos e somente 1,16% como índios. O caso do índio Lino,
batizado na Capela do Jardim das Piranhas, é um dos oito batismos de índios que foram
realizados na Freguesia do Seridó durante o período supracitado (MACEDO, 2007).
9
No que concerne às mesclas biológicas envolvendo índios e brancos, inicialmente foram estes chamados
de “mestiços”, contudo, esse termo posteriormente foi aplicado para genericamente qualificar filhos de
uniões mistas. Sendo assim, “mameluco” (ou “mamaluco”), “curiboca” e “caboclo” eram as “qualidades”
mais costumeiramente empregadas para designar os descendentes de índios e brancos. Para os filhos de
índios e africanos, atribuía-se à “qualidade” “cabra” (PAIVA, 2015).
10
Suspeitamos que é mais provável que seja um indicativo para a “qualidade” “pardo”, dada a
superioridade numérica dos pardos nos livros de assentos da Freguesia do Seridó. Segundo Macedo, dos
1.064 batizados registrados no Seridó entre 1803 e 1818, 41,92% eram de pardos, frente a 39,94% de
brancos (MACEDO, 2013). Ressaltamos, ainda, conforme Paiva, que a partir do século XVI, “pardo” foi
usualmente um indicativo de “qualidade” que denotava alguma mistura com negros, crioulos, mulatos ou
zambos, que poderia ter ocorrido com brancos ou índios, principalmente” (PAIVA, 2015, p. 234), apesar de
variar de acordo com a época e região.
11
Além desses, há 33 registros nos quais a “qualidade” não é informada, mas que possivelmente também se
tratem de indivíduos com a “qualidade” “branco”. Conforme Helder Macedo (2007), é possível deduzir tal
fator com base na preponderância de brancos na Freguesia do Seridó, não sendo, assim, necessariamente
obrigatório sua distinção nos assentos religiosos.
Passemos, então, para o segundo importante rito da vida privada cristã, o qual
marcava o início da vida adulta. O matrimônio era igualmente documentado em um livro
específico, seguindo as normas postuladas no Concílio de Trento. Em algumas atas, nos
deparamos com uma fartura maior de informações, como o nome das testemunhas e as
“qualidades” e condições dos nubentes. No que concerne à povoação do Jardim das
Piranhas, trabalhamos com 42 uniões sacramentais realizadas no período de 1790 a 1821,
na capela da povoação.
Durante o período de 1788 a 1809, dos 537 matrimônios celebrados na Freguesia
de Santa Ana, 91,79% envolviam nubentes do mesmo grupo social, enquanto 8,21% das
uniões eram firmadas entre indivíduos de grupos distintos. Neste mesmo universo, 463
dos casamentos envolviam pessoas brancas (MACEDO, 2007). Na povoação do Jardim
das Piranhas, também encontramos maior recorrência de casamentos entre sujeitos
brancos, configurando um total de 17 uniões, seguido das uniões entre pardos, com 7
casos
12
.
Constatamos também que alguns registros indicavam a “qualidade” tão somente
de um dos nubentes. É o caso do matrimônio celebrado na Capela do Jardim, em 1799,
entre José Nicácio Pereira, índio, vindo do Acaracu (Capitania do Ceará) e Ana Maria, da
Freguesia do Pombal, cuja “qualidade” desconhecemos (FGSSAS, LC 1, 1788-1809, f.
57). No que concerne às relações de ameríndios na Ribeira do Seridó, “a maioria dos
casamentos se dava entre os próprios indígenas (34%), seguidos das uniões entre índios
e mestiços (31%) e aqueles em que um dos nubentes era negro (17%)” (MACEDO, 2013, p.
136).
Além deste caso, apontamos também o matrimônio entre Manuel dos Santos e
Joaquina Maria da Conceição, consagrado na Capela de Nossa Senhora dos Aflitos, em
1820 (FGSSAS, LC 2, 1809-1821, f. 166-166v). Ambos os nubentes foram designados
pela “qualidade” “P”, a qual assumimos ser “pardo”. Contudo, Joaquina Maria da
Conceição é indicada como “filha de índio”, “qualidade” de seu pai, Tomé Gonçalves da
Silva.
Por último, podemos averiguar o livro de assentamentos de enterros. O último
sopro de vida sublinhava talvez uma das maiores preocupações cristãs, a passagem da
vida para a morte, a imersão no além. Para compreendermos o temor que a morte
despertava nos indivíduos, basta considerarmos que ela antecedia a justiça divina,
momento em que a alma seria encaminhada para a danação eterna do inferno, para a
12
Em 12 uniões, não foram indicadas as “qualidades” de nenhum dos nubentes. Estes podem ser, contudo,
indivíduos brancos.
alegria paradisíaca ou para a estadia transitória no purgatório. Já no século XI, a
dualidade e as incertezas do além influenciavam diretamente o comportamento dos
cristãos, dilatando as práticas e as ritualizações que envolviam os mortos, no intuito de
salvar suas almas (BASCHET, 2009). Assim, os ritos de sepultamentos eram uma chave
incontornável para alcançar a beatitude do céu. Para se ter uma “boa morte”, era preciso
investir num processo dispendioso de preparação, uma considerável quantidade de
missas, a cerimônia de enterramento, o local da sepultura, as vestes funerárias e, dentre
outros elementos, a encomendação da alma ao Pai Eterno.
Entre 1790 e 1838, 113 cerimônias funerárias foram realizadas na Capela do Jardim
das Piranhas. Nestas, também prevalecem os casos de indivíduos brancos consagrando
tal rito, num total de 45 registros
13
. Temos apenas um caso de sepultamento de índio, o
óbito precoce de João, falecido aos quatro meses de vida, filho dos índios Brás Martinho
e Ana Maria Gonçalves, registrado em 1798 (FGSSAS, LO 1, 1788-1811, f. 56v). João fora
sepultado em hábito branco, cor esta que, além de ser a cor funerária em várias nações
africanas, detém também forte simbologia no cristianismo, principalmente por sua
relação com o pano branco que envolveu o corpo de Jesus Cristo, após sua morte. Para
os cristãos, se espelhar em Cristo excitava a da salvação, haja vista a crença de que a
vestimenta do corpo influenciava o destino do espírito. As mortalhas, pois, cumpriam a
missão de proteger a alma na viagem para o além (REIS, 1991).
Na ata, consta que o lugar da sepultura de João foi “das grades para baixo”, dentro
da capela, pois o enterro geralmente era feito no próprio espaço sagrado. Sendo a igreja
a morada do Senhor, o corpo desfalecido se aproximava fisicamente das entidades
divinas, além de preservar uma conexão com os vivos, garantindo seu espaço na
memória e nas orações dos que permaneceram no mundo terrestre. Por trás do
enterramento dos defuntos, existia uma lógica classificatória sobre o lugar da sepultura,
o que João José Reis concebe como uma “geografia da morte”:
De um modo geral, pessoas de qualquer condição social podiam ser enterradas
nas igrejas, mas havia uma hierarquia do local e do tipo de sepultura. Uma
primeira divisão se fazia entre o corpo, parte interna do edifício, e o adro, a área
a sua volta. A cova do adro era tão desprestigiada que podia ser obtida
gratuitamente. Ali se enterravam escravos e pessoas livres muito pobres. [...]
sob o chão das igrejas os mortos se dividiam de maneira que refletia a
organização social dos vivos (REIS, 1991, p. 175-176).
13
Além destes, conforme argumento que apresentamos, os 31 casos em que os indivíduos não
receberam nenhum indicativo de “qualidade” possivelmente eram, também, brancos.
A localização da sepultura retratava, pois, o local social e econômico ocupado
pelo defunto enquanto vivo. O “corpo” da igreja correspondia à nave central do templo,
local o qual abarcava a maioria da população, pessoas menos abastadas. O altar, o
cruzeiro e a capela-mor eram os lugares mais valorizados da igreja, separados do corpo
pelo arco, espaço que separava as pessoas de patrimônio mais opulento das menos
privilegiadas. Em toda a Freguesia de Santana, somente 40 pessoas brancas (das 545
sepultadas entre 1789 e 1811) conseguiram pagar para serem sepultadas no cruzeiro
(MACÊDO, 2007). Na cartografia da morte, as expressões “acima” e “abaixo” indicavam
a proximidade da sepultura com o altar. Logo, quanto mais acima, mais prestigiado o
falecido e maiores suas chances de salvação, pois consequentemente também se estava
mais próximo do Santíssimo (SANTOS, 2005). Desse modo, vemos que o índio João,
sepultado “das grades para baixo”, não ocupou uma posição muito privilegiada neste
tabuleiro da morte.
Percebemos, nos casos explorados, que todos os índios que apareceram na
documentação estavam com nomes portugueses, consagrando ritos que não
pertenciam nem apeteciam ao mundo nativo, mas, na nova dinâmica trazida pela
ocidentalização, passaram a ser do cotidiano de muitos. Ressaltamos, mesmo nos casos
referentes à povoação do Jardim das Piranhas, nos quais todos os índios tenham
recebido os sacramentos, houve ocasiões, na Ribeira do Seridó, em que constatamos
indígenas se negando a tal, como elucidou Helder Macedo, em seus estudos.
Sobre o número pouco expressivo de índios nos registros de assentos religiosos,
destacamos
essas populações passaram por terríveis processos de envolvimento nas
guerras de conquista, de exposição a doenças, de escravização e de redução em
aldeamentos missionários. Reduzidas a pedaços, portanto, pelos agentes da
ocidentalização, não se torna difícil entender, dessa maneira, o fato dos
registros escritos posteriores às guerras de conquista serem tão lacunosos, ora
caracterizando um indivíduo como índio, ora como pardo e, em algumas vezes,
simplesmente omitindo o designativo de sua origem étnica ou social (MACEDO,
2007, p. 272).
Ainda assim, a presença de indígenas nessas documentações é um vestígio que
não podemos mais deixar nos bastidores da historiografia local. Incorporadas, pela
ocidentalização, ao cristianismo, as populações ameríndias viveram conjuntamente com
brancos, negros e “mestiços” (MACEDO, 2007), em um novo mundo ao qual tiveram que
se inserir, adaptar e resistir.
Superando o lugar de vítima que por muito tempo foi reservado aos povos
indígenas, é importante reforçarmos seus papéis também como agentes ativos nos
processos históricos. No novo contexto colonial, a incorporação de elementos da cultura
ocidental era uma forma de obter ganhos associados a interesses próprios. Conforme
Almeida, em diálogo com Steve Stern, muitos índios atuaram por meio de uma
“resistência adaptativa”, assimilando as novas práticas culturais visando sobrevivência
ou garantia de melhores condições de vida (ALMEIDA, 2010).
Considerações finais
A historiografia construída sobre o município potiguar de Jardim de Piranhas esbarra em
lacunas incontornáveis, advindas sobretudo da ausência de diálogos com as
documentações históricas. Contudo, uma questão particularmente mais nebulosa que
marca esse rio de ausências que banhou o nascimento do Jardim, a negativa consensual
de que populações indígenas não haviam cruzado aquele passado pouco explorado.
Ainda que suas heranças estejam vastamente presente no cotidiano coletivo como, por
exemplo, na própria toponímia, a questão indígena é um tópico alheio e distante, tanto
nas narrativas históricas que foram elaboradas para o município, como na identidade e
memória de seus habitantes.
A noção de um “desaparecimento” indígena se repete por toda a historiografia norte-rio-
grandense, particularmente nos sertões. Todavia, como evidenciaram novos estudos
acadêmicos, o ocultamento dos povos indígenas foi resultado mais de discursos
conduzidos por interesses de elites do que precisamente pela extinção de tais
segmentos, haja vista que houve sobreviventes e remanescentes indígenas, mesmo após
bárbaras guerras.
Partindo da ressalva que são documentos cunhados pelas mãos austeras da
ocidentalização, as fontes históricas trabalhadas, instituídas nos âmbitos da Justiça e da
Igreja, durante os séculos XVIII e XIX, nos permitiram observar escassas menções aos
indígenas nas documentações referentes à povoação do Jardim das Piranhas, gênese do
município de Jardim de Piranhas. Tais referências ilustram o esfacelamento do mundo
nativo, haja vista que os indígenas ou foram retratados como obstáculos para o curso da
colonização, como selvagens ocupando terras que deveriam ser ressignificadas para o
criatório, ou apareceram consagrando ritos cristãos, apropriando-se dos novos códigos e
dinâmicas sobrepostos nos trópicos. Devemos ressaltar, também, que para além das
imposições dos colonizadores, não dispensamos as possibilidades de muitos terem se
articulado ainda em benefício de seus próprios interesses, por meio de estratégias,
adaptação e, também, resistências.
Entre brancos, negros e “mestiços”, os ameríndios persistiram na Ribeira do Seridó e,
também, na povoação do Jardim das Piranhas, recebendo nomes cunhados pelo clero e o
castigo da civilização. Buscamos minorar esses níveis múltiplos nos quais se sustentam a
ideia de “desaparecimento” indígena, entendendo tal tentativa como uma reparação
mínima do nosso ofício. É possível nos aprofundarmos mais neste exercício, ampliando,
por exemplo, nosso corpo documental e tecendo novas análises, pois esta é uma questão
que está longe de ser encerrada. Coloquemos, enfim, um lugar justo na história para
todos aqueles que foram personagens do semear deste Jardim.
Referências
Fontes
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Livro de Batismos nº 2, 1814-1818
Livro de Batismos nº 3, 1818-1822
Livro de Casamentos nº 1, 1788-1809
Livro de Casamentos nº 2, 1809-1821
Livro de Óbitos nº 1, 1788-1811
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