PINTO, Marcelo Felício Martins
*
RESUMO: Diante dos graves problemas
econômicos, sociais e políticos enfrentados pelo
México, este país viu surgir, na década de 1990, o
Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN).
Os rebeldes defendiam, sobretudo, as causas
indígenas, reivindicavam o fim da hegemonia
política do Partido Revolucionário Institucional
(PRI) e lutavam contra o neoliberalismo. Ao
mesmo tempo, afastando-se do cenário político
institucional mexicano, o EZLN auxiliou diversas
comunidades indígenas da região da Selva
Lacandona, em Chiapas, a se organizarem de
modo com que estas conseguissem se
autogovernar, independente do Estado. Neste
sentido, o presente trabalho pretende analisar a
experiência de autogoverno indígena zapatista,
através dos municípios autônomos, dos
Aguascalientes e dos Caracoles localizados na
região da Selva Lacandona, em Chiapas.
PALAVRAS-CHAVE: EZLN; autonomia; MAREZ;
democracia; indígenas.
ABSTRACT: Faced with the serious economic,
social and political problems faced by Mexico, this
country saw the Zapatista National Liberation
Army (EZLN appear in the 1990s). The rebels
defended, above all, the indigenous causes,
claimed the end of the political hegemony of the
Institutional Revolutionary Party (PRI) and fought
against neoliberalism. At the same time, moving
away from the Mexican institutional political
scene, EZLN assisted several indigenous
communities in the Region of Selva Lacandona,
Chiapas, to organize themselves so that they could
self-govern themselves, regardless of the state. In
this sense, the present work intends to analyze the
experience of zapatista indigenous self-
government, through the autonomous
municipalities, Aguascalientes and Caracoles
located in the Region of Selva Lacandona, in
Chiapas.
KEYWORDS: EZLN; autonomy; MAREZ;
democracy; indigenous.
Recebido em: 29/02/2020
Aprovado em: 11/05/2020
* Licenciado e Bacharel em História pela UFV, Viçosa, MG. Especialista em História das Revoluções e dos
Movimentos Sociais pela UEM, Maringá, PR; e em História e Cultura no Brasil Contemporâneo UFJF - Juiz
de Fora, MG. Mestrando em Educação pela Universidade Federal de Ouro Preto, Mariana, MG. Professor
da Rede Pública do Estado de Minas Gerais. E-mail: marcelofeliciomartins@hotmail.com. Este artigo é
fruto das pesquisas desenvolvidas ao longo da graduação cursada na UFV e da especialização concluída na
UEM. Meus sinceros agradecimentos às professoras Priscila Ribeiro Dorella (UFV) e Natally Vieira Dias
(UEM), que me orientaram nesse processo.
Introdução
Em 1994, o Exército Zapatista de Libertação Nacional protagonizou um levante
que procurava defender as parcelas marginalizadas do México (sobretudo os grupos
indígenas), reivindicava o fim da hegemonia do Partido Revolucionário Institucional, o fim
do Tratado de Livre Comércio da América do Norte e propunha melhorias nas condições
socioeconômicas de diversos grupos sociais mexicanos. Os insurgentes tomaram o poder
de algumas cidades chiapanecas, formando os territórios autônomos zapatistas.
A partir deste mesmo ano, os insurgentes começaram a se afastar gradativamente
do cenário político institucional do México, ao mesmo tempo em que fortaleciam as
comunidades autônomas zapatistas na região da Selva Lacandona, em Chiapas. Isto
culminou, em 2003, nos Caracoles e nas Juntas de Bom Governo, grupo de membros
eleitos democraticamente nas comunidades zapatistas para administrá-las, reafirmando
a ideologia adotada pelo Exército Zapatista de Libertação Nacional: para que a
democracia fosse de fato legítima, a sociedade civil deveria ser a principal personagem
do cenário político, e não os governantes.
Contrapunham-se, assim, à política neoliberal e globalizante colocada em prática
pelo governo mexicano (principalmente após a assinatura do Tratado de Livre Comércio
da América do Norte), tendo em vista que a instituição dos municípios autônomos teria o
intuito de permitir às comunidades chiapanecas, sobretudo aos grupos indígenas,
gerenciarem suas próprias demandas sociais, políticas e econômicas.
Constata-se que o distanciamento entre o EZLN e a política institucional
mexicana se relaciona diretamente à perda de credibilidade de parte das instituições
democráticas na América Latina, especialmente no que diz respeito aos partidos
políticos. Neste sentido, é possível perceber que o apartidarismo do Exército Zapatista
de Libertação Nacional e o progressivo fortalecimento das comunidades autônomas
zapatistas - com a consequente formação de uma dinâmica democrática própria - são
fatores interligados.
Deste modo, através das análises dos comunicados zapatistas disseminados entre
1994 e 2005 (principalmente as chamadas Declarações da Selva Lacandona), este
trabalho busca compreender o funcionamento dos municípios autônomos zapatistas,
emblemáticos no que se refere às novas práticas políticas e às novas formas de exercício
da democracia presentes na atualidade.
A pesquisa se baseou na análise dos pronunciamentos zapatistas entre 1994 (ano
do início do levante) e 2005 (quando foi divulgada a Sexta e última Declaração da Selva
Lacandona), disponíveis no site do movimento, bem como em ampla bibliografia
existente acerca deste tema.
Panoramas sociopolítico e econômico do México no início da década de 1990
O México enfrentava conturbados cenários social, econômico e político no início
da década de 1990. Segundo os pesquisadores Fernando Cortéz e Orlandina de Oliveira
(2010), a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) inseriu o país
no grupo de nações com maiores índices de desigualdade social do mundo, conjunto
formado por Nicarágua, Paraguai, Chile, Guatemala e Argentina. Dados coletados pela
Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), mencionados
por Clara Jusidiman (2009), confirmam isso: a renda média, por domicílio, de 10% da
população mais ricos do México era cerca de trinta e cinco vezes maior que a renda
média, por domicílio, de 10% mais pobres.
Os índices de disparidade social no México se agravavam ainda mais quando eram
analisadas as condições de vida dos povos indígenas, que correspondiam, em 2005, a
9,54% da população do país. Segundo Federico Navarrete Linares (2008), 23,9% da
população indígena mexicana entre 15 e 64 anos (cerca de 1.351.897 pessoas) eram
analfabetos, enquanto apenas 7,6% da população nacional se encontravam nas mesmas
condições. Tal déficit educacional se refletia nas condições socioeconômicas desta
parcela da sociedade mexicana: de acordo com os dados analisados pelo autor sobre o
ano 2000, 53,5% da população indígena ocupada recebiam menos de dois salários
mínimos mensalmente, ao mesmo tempo em que 23,4% dos indígenas não recebiam
nenhum rendimento. Em Chiapas, dos 716.012 indígenas, cerca de 26,4% da população do
estado (dados de 1990), somente 45,6% eram alfabetizados, contrastando com os 69,6%
não-indígenas na mesma situação (INEGI, 2001).
É fundamental compreender que as relações políticas entre o Estado e as
comunidades indígenas não eram amistosas, na maior parte das vezes, o que fomentava
o anseio por autonomia. Federico Navarrete Linares (2008) afirma que, ao longo do
século XX, os governantes mexicanos se utilizaram de vários instrumentos estatais,
entre os quais encontrava-se o Instituto Nacional Indígena (INI), criado em 1948, com o
objetivo de asfixiar muitos dos valores tradicionais indígenas em prol da construção de
uma cultura nacional, de uma cultura mestiça. Para o autor, tal atitude teria dificultado o
acesso à educação por parte das comunidades indígenas, uma vez que o espanhol era a
língua utilizada no sistema de ensino-aprendizagem, em detrimento dos idiomas
indígenas, inviabilizando a existência de um sistema educacional verdadeiramente eficaz,
tendo como consequência a marginalização socioeconômica desta parcela da população.
Tal panorama problemático alimentava anseio por autonomia nas comunidades indígenas
mexicanas. Nessa mesma perspectiva, Cassio Brancaleone afirma que
[...] a consciência da situação de profunda marginalização sob a qual estavam (e
ainda estão) submetidas estas populações, assim como a constante ameaça aos
seus territórios e modos de vida, deve ser tomada em conta para a
compreensão do conteúdo e forma de suas reivindicações. Assim, as demandas
progressivamente passaram a incorporar a ideia não apenas de ter acesso aos
benefícios materiais daquilo que é socialmente produzido em seus países (em
especial, as riquezas produzidas a partir da exploração dos recursos naturais
das regiões onde eles habitam), mas também requerer o controle das condições
sociais, econômicas e políticas de sua reprodução como comunidade étnica,
mediante a retomada da gestão territorial e tudo que isso signifique em termos
da realização social de autogovernos.
Podemos considerar então que, nos fins dos anos 1980, a luta pela autonomia
passou a ser uma das principais bandeiras das mobilizações indígenas em nível
continental. (BRANCALEONE, 2015, p. 227, grifo do autor).
As desigualdades regionais também eram alarmantes. Carlos Vilalta (2010) afirma
que, em 1993, enquanto o estado de Chiapas, localizado no sul do país, possuía uma
renda per capta de 6.169 pesos mexicanos, o Distrito Federal contava com uma renda
per capta de 32.773 pesos. Ademais, Nora Claudia Lustig e Miguel Székely (1997)
constatam que, até a década de 1970, apenas 9% dos nascimentos em Chiapas recebiam
atenção médica, contrastando com os 70% de nascimentos na mesma situação no estado
de Nuevo Léon e no Distrito Federal. As taxas de analfabetismo no território chiapaneco,
referentes às pessoas maiores de quinze anos também eram altas, sendo quatro vezes
maior que os índices de analfabetismo em Nuevo Léon.
O panorama político mexicano era igualmente caótico. As instituições
democráticas do país ainda eram muito frágeis, o que dificultava a existência de um
cenário eleitoral realmente competitivo. Como consequência, o Partido Revolucionário
Institucional (PRI) conseguiu manter-se no poder presidencial por setenta e um anos
(1929-2000) utilizando-se, muitas vezes, de fraudes eleitorais e cooptação de servidores
públicos. Sobre a hegemonia do Partido Revolucionário Institucional, Enrique Krauze
afirma que não existia no México dos anos 1990 “[...] um verdadeiro regime republicano,
representativo, democrático, federal como o que anuncia a Constituição, mas sim uma
espécie de monarquia absoluta e centralista com roupagens republicanas.” (KRAUZE,
1994, p. 10).
Manuel Castells (2008) constata que Carlos Salinas, enquanto presidente do
México (1988-1994), reduziu o salário dos trabalhadores mexicanos, diminuindo
consequentemente as condições socioeconômicas de grande parte da população.
Segundo Asa Cristina Laurell, apesar das diversas mobilizações populares motivadas
pelos problemas sociais enfrentados pelo xico e pela fragilidade das instituições
democráticas do país, o governo priista negava-se a atender grande parte das
reivindicações da sociedade. Nesse sentido, “[...] o governo rompe o pacto social ao
deixar de incorporar a representação subordinada dos interesses populares.” (LAURREL,
1991).
Além disso, o México passava por uma grave crise econômica desde a década de
1980. De acordo com o site Trading Economics
1
, o país possuía uma dívida pública, em
1990, que correspondia a 37,2% do seu Produto Interno Bruto (PIB). Tal panorama era
consequência da queda dos preços do petróleo nas décadas anteriores
2
. De acordo com
Orion Siufi Noda,
[...] a enorme dívida contraída somada à repentina fuga de capitais
desestabilizou a economia mexicana. Em agosto de 1982, o país declarou a
moratória da dívida e, objetivando conseguir um empréstimo no Fundo
Monetário Internacional (FMI), foi coagido a fazer concessões, como redução
drástica dos gastos públicos e serviços governamentais. A partir de então, o
México passou por um período delicado, com a estagnação da economia nos
anos 1980 e um lento processo de recuperação. (NODA, 2014).
Nesse sentido, desde meados da década de 1980, o governo mexicano iniciou uma
série de reformas econômicas visando solucionar a crise instaurada, por meio da
diminuição dos gastos públicos, da liberalização da economia e da diminuição do papel do
Estado no cenário econômico do país. Deste modo, o México tornou-se uma das
economias mais abertas do mundo, firmando, em 1994, o Tratado de Livre Comércio da
América do Norte (NAFTA) com os Estados Unidos e o Canadá. O NAFTA afetou
diretamente as comunidades indígenas mexicanas, uma vez que, para a inserção no
acordo, o México deveria extinguir as terras comunais indígenas, os ejidos, asseguradas
na Constituição dos Estados Unidos Mexicanos desde 1917, transformando-as em
mercadoria. Isso impactou profundamente as comunidades indígenas, uma vez que
grande parte de seus rendimentos era proveniente da agricultura familiar, sobretudo do
cultivo de milho. Ademais, a mercantilização dos ejidos transformaria radicalmente o
modo de vida dessas comunidades, uma vez que, de acordo com Federico Navarrete,
1
O Trading Economics foi fundado em 2008 por Anna Fedec (mestre em Economia e Relações
Internacionais) e Antônio Souza (possui MBA em Finanças e em Economia) e tem como objetivo oferecer
aos usuários informações para 196 países, incluindo números para mais de 30.000 indicadores
econômicos, taxas de câmbio, índices do mercado de ações, rendimentos dos títulos de governo e preços
de mercadorias. Informações retiradas do site www.TrandingEconomics.com. Acesso em 6 abr. de 2015.
2
De acordo com Orion Siufi Noda (2014), nos últimos anos da década de 1970, o então presidente da
república José Lopez Portillo recorreu a empréstimos internacionais para explorar recém-descobertas
jazidas petrolíferas no país, cujos rendimentos seriam injetados na economia mexicana e destinados para
programas sociais e para o desenvolvimento industrial. Contudo, os preços do petróleo, outrora elevados,
caíram muito, o que fez com que o México adquirisse uma dívida externa no valor aproximado de 85
bilhões de dólares.
[...] existem povos, como o tzotzil de Chiapas, que creem que seus antepassados
vivem nas montanhas que rodeiam suas comunidades, desde onde protegem e
vigiam seus descendentes. Outros povos concebem seu território como uma
herança recebida dos antepassados que o conseguiram e o defenderiam e
também como um legado que deverão deixar a seus descendentes [...]
Por todas essas razões, para as comunidades indígenas o território não é
somente um cenário vazio onde vivem e produzem nem uma natureza outra que
devem dominar e transformar, muito menos uma mercadoria que possa ser
vendida ou comprada, mas sim constitui uma parte essencial da sua história, sua
identidade e sua própria vida, um elemento essencial e inalienável de sua
comunidade. (NAVARRETE LINARES, 2008, p. 52).
Além disso, até 1991, segundo Cassio Brancaleone, grande parte 245 mil ejidos
criados no estado de Chiapas estava localizada em solos pouco férteis para as produções
agrícolas. Ao mesmo tempo, apenas 57.695 unidades de produção rural abrangiam cerca
de 1.839.005,985 hectares, enquanto as 245.576 propriedades ejidales correspondiam a
apenas 241.267,523 hectares. Tais dados demonstram a concentração fundiária em
Chiapas, tendo em vista que “[...] quase metade das áreas agricultáveis do estado estava
em mãos de pouco mais de 6 mil famílias de proprietários privados.” (BRANCALEONE,
2015, p. 232).
Por outro lado, é importante destacar que os grupos indígenas de Chiapas se
encontravam mobilizados contra sua situação de marginalização sociopolítica pelo
menos desde a década de 1970. Igor Luis Andreo (2010) afirma que missionários católicos
adeptos da Teologia da Libertação estiveram em contato com as comunidades indígenas
chiapanecas, incentivando o engajamento sociopolítico desta parcela da população
contra a opressão política e econômica exercida pelo Estado e pelos capitais nacional e
estrangeiro. Segundo o autor, Samuel Ruiz Garcia, bispo de San Cristóbal de Las Casas,
fomentou o desenvolvimento da chamada “catequese do êxodo”, na qual as passagens
bíblicas que relatavam a fuga dos escravos hebreus do Egito eram associadas às
condições de marginalização social enfrentada pela etnia tzeltal, que havia migrado para
a região da Selva Lacandona, bem como conscientizavam os indígenas envolvidos com os
teólogos da libertação sobre a necessidade de assumirem o protagonismo na luta contra
o sistema político e econômico repressor. Neste sentido,
[...] foi realizado um paralelo entre a caminhada efetuada pelo povo judeu para
escapar da escravidão e a migração do “povo Tzeltalaté a Selva Lacandona,
rumo à libertação de sua situação de opressão.
O título dado à catequese do Êxodo é revelador: “Los tzeltales de la selva
anuncian la buena nueva”, ou seja, eles anunciam e não recebem, se
apresentam como sujeitos ativos da pregação do evangelho. Outra questão
relevante é a busca de Deus não apenas através da palavra escrita da Bíblia,
mas também da vida da própria comunidade. Juntos, a Bíblia e a comunidade
revelam a boa nova, isto é, a vontade de Deus para que os tzeltales se (auto)
libertem de qualquer forma de opressão e caminhem como os judeus
caminharam para construir um povo novo em uma nova terra, onde haja
justiça. (ANDREO, 2010, p. 90).
Em 1974, a Igreja Católica, juntamente com o governo de Chiapas, organizou o
Primeiro Congresso Indígena em San Cristobal de las Casas. Embora as autoridades
governamentais tivessem tentado impedir a existência de discussões de cunho político
no evento, Cassio Brancaleone e Igor Luis Andreo constatam que ao fim do Congresso
foi elaborado um documento no qual constavam denúncias contra as invasões de terras
pertencentes às comunidades indígenas protagonizadas por rancheros e finqueros, bem
como reivindicações sobre maior acesso dos grupos indígenas a melhores condições de
trabalho, de educação, a execução da reforma agrária e o respeito às suas tradições.
Neste sentido, o Congresso foi “[...] um marco fundamental para analisarmos aspectos do
longo processo de recomposição comunitária e étnica das populações indígenas, assim
como a reemergência de seu protagonismo como ator político e social organizado na
região.” (BRANCALEONE, 2015, p. 257).
Ao mesmo tempo, Antônio Carlos Amador Gil (2011) afirma que rebeldes
pertencentes à Força de Liberação Nacional (FLN), fundada em 1969, de orientação
revolucionária cubana, instalaram-se, na década de 1980, na região da Selva Lacandona.
Sobre a FLN, Alexandre Peixoto Faria Nogueira afirma que esta organização possuía
raízes no extinto Exército Insurgente Mexicano, e que seus objetivos,
[...] a longo prazo, eram derrotar política e militarmente a burguesia e
estabelecer um sistema socialista que, mediante a propriedade social dos meios
de produção, suprimisse a exploração do homem pelo homem. A curto prazo, o
objetivo era integrar as lutas do proletariado urbano à dos camponeses e
indígenas e formar o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN).
(NOGUEIRA, s/d, p. 15).
Neste sentido, é factível a presença de influências revolucionárias latino-
americanas nas ações e ideologias do EZLN, sobretudo no que diz respeito às táticas de
luta guerrilheira. Tais perspectivas também estavam presentes nas ideias e ações
colocadas em prática pelo Subcomandante Marcos, principal porta-voz do Exército
Zapatista de Libertação Nacional, em especial quando se investiga suas ligações com os
revolucionários cubanos. Segundo Enrique Krauze (2011),
[...] um importante funcionário cubano, após conhecê-lo [Marcos] em Havana
em 1982, observou que “este é um novo Che”. Na verdade, quando chegou à
Selva Lacandona, em 1983, [Rafael] Guillén (que provavelmente já tinha adotado
o nome de Marcos em homenagem ao guerrilheiro caído em batalha que lhe
havia ensinado a história mexicana) usava a boina do Che, fumava um cachimbo,
disse aos índios que era médico e distribuía remédios. Sua inspiração em
Guevara foi além do mimetismo, era a própria essência do movimento
guerrilheiro que ele fundou em Chiapas. (KRAUZE 2011, p. 511).
Diante do que foi exposto, é possível compreender o conturbado México da
década de 1990, cujos problemas sociais, políticos e econômicos foram se agravando,
principalmente, a partir da segunda metade do século XX. Neste sentido, as
desigualdades sociais, a marginalização dos grupos indígenas e as crises política e
econômica fomentaram as ações de grupos guerrilheiros e a mobilização indígena,
aliados aos teólogos da libertação, que desenvolveram uma política de resistência ao
Estado e ao capital. Neste contexto, em 1994, eclodiu o levante zapatista.
O levante Zapatista
O Exército Zapatista de Libertação Nacional liderou um levante que eclodiu em
primeiro de janeiro de 1994 na região da Selva Lacandona, em Chiapas, no México, no
mesmo dia em que entrou em vigor o Tratado de Livre Comércio da América do Norte
(NAFTA). Influenciados pelos movimentos guerrilheiros da América Latina, sobretudo a
guerrilha cubana e o zapatismo da Revolução Mexicana, os zapatistas, na maior parte
indígenas, tendo como principal mensageiro o Subcomandante Marcos
3
, tomaram o
poder de algumas cidades chiapanecas, entrando em conflito direto com o exército
mexicano.
Em seus comunicados disseminados pelos meios de comunicação (sobretudo
através da Internet e das frequências de rádio insurgentes), o EZLN afirmava que tinha
como objetivo tomar o poder no México e destituir o governo vigente, considerado por
eles ilegítimo e corrupto. As principais reivindicações deste movimento estavam
relacionadas a melhorias nas condições de vida dos mexicanos socialmente
marginalizados (EZLN, 1994), principalmente da parcela indígena mexicana
4
; ao mesmo
tempo em que exigia o fim da hegemonia do Partido Revolucionário Institucional (que se
encontrava no poder presidencial desde 1929) e das políticas econômicas neoliberais
adotadas pelo México desde a década de 1980, que culminaram no NAFTA.
Na Primeira Declaração da Selva Lacandona, divulgada em 1994, os insurgentes
afirmaram que a marginalização socioeconômica das comunidades indígenas mexicanas
era histórica, fruto da hegemonia política do PRI e da exploração econômica
3
Existem muitas dúvidas sobre a verdadeira identidade do Subcomandante Marcos. Segundo Alexander M.
Hilsenbeck (2008), uma das versões mais aceitas é a de que seu nome verdadeiro é Rafael Guillén Vicente,
nascido em Tampico no ano de 1957, membro de uma católica família de empresários do setor imobiliário e
ex-estudante de Filosofia da Universidade Nacional Autônoma do México.
4
Embora Enrique Krauze afirme que as comunidades indígenas não se encontravam na agenda zapatista
ao menos no início do levante, é necessário reconhecer que a defesa desses povos, sobretudo os indígenas
residentes em Chiapas, constituíram-se enquanto ponto central das demandas da organização.
desencadeada pelos países ricos, tendo suas origens na conquista espanhola ocorrida no
século XVI:
[...] somos os herdeiros dos verdadeiros forjadores da nossa nacionalidade,
somos milhões de despossuídos e chamamos todos nossos irmãos que se
juntem a este chamado como o único caminho para não morrer de fome ante a
ambição insaciável de uma ditadura de mais de setenta anos, encabeçada por
uma panelinha de traidores que representam os grupos mais conservadores e
“vende-pátrias” [...]
Os ditadores estão aplicando uma guerra genocida não declarada contra nossos
povos desde muitos anos, por isso pedimos sua participação decidida, apoiando
este plano do povo mexicano que luta por trabalho, terra, alimentação, saúde,
educação, independência, liberdade, democracia, justiça e paz. (EZLN, 1994,
tradução nossa, grifos do autor)
5
.
Ao mesmo tempo, os insurgentes zapatistas consideravam-se porta-vozes de
todas as parcelas marginalizadas do México. Embora destacassem as demandas
indígenas, buscavam apoio popular, almejando alcançar legitimidade em meio à
sociedade civil mexicana. Na Segunda Declaração da Selva Lacandona, em 1994, os
insurgentes chamaram
[...] todos os nossos irmãos indígenas mexicanos que resistam conosco.
Chamamos os camponeses, os trabalhadores, os empregados, os colonos, as
donas de casa, os estudantes, os professores, os que fazem do pensamento e da
palavra sua vida. Todos os que possuem dignidade e orgulho, chamamos a
todos, que conosco resistam, pois deseja o mau governo que não haja
democracia em nossas terras. (EZLN, 1994, tradução nossa)
6
.
Ainda na Primeira Declaração da Selva Lacandona, os insurgentes do EZLN
afirmaram o anseio por destituir o governo vigente, então encabeçado pelo PRI,
considerado ilegítimo e corrupto. A partir disto, o poder seria entregue à sociedade civil,
cabendo ao Exército Zapatista de Libertação Nacional somente auxiliar no processo.
Assim, os rebeldes destacaram uma lista de ações revolucionárias a serem realizadas
durante o levante:
5
[No original: “[...] somos los herederos de los verdaderos forjadores de nuestra nacionalidad, los
desposeídos somos millones y llamamos a todos nuestros hermanos a que se sumen a este llamado como el
único camino para no morir de hambre ante la ambición insaciable de una dictadura de más de 70 años
encabezada por una camarilla de traidores que representan a los grupos más conservadores y
vendepatrias [...]Los dictadores están aplicando una guerra genocida no declarada contra nuestros pueblos
desde hace muchos años, por lo que pedimos tu participación decidida apoyando este plan del pueblo
mexicano que lucha por trabajo, tierra, techo,alimentación, salud, educación, independencia, libertad,
democracia, justicia y paz.”] (EZLN, 1994)
6
[No original: “[...] llamamos a todos nuestros hermanos indígenas mexicanos a que resistan con nosotros.
Llamamos a los campesinos todos a que resistan con nosotros, a los obreros, a los empleados, a los
colonos, a las amas de casa, a los estudiantes, a los maestros, a los que hacen del pensamiento y la palabra
su vida. A todos los que dignidad y vergüenza tengan, a todos llamamos a que con nosotros resistan, pues
quiere el mal gobierno que no haya democracia en nuestros suelos”.] (EZLN, 1994).
[...] primeiro: avançar até a capital do país vencendo o ercito mexicano,
protegendo em seu avanço libertador a população civil e permitindo aos povos
libertados eleger, livre e democraticamente, suas próprias autoridades
administrativas. Segundo: respeitar a vida dos prisioneiros e entregar os feridos
à Cruz Vermelha Internacional para os atendimentos médicos. Terceiro: iniciar
os julgamentos sumários contra o exército federal mexicano e a polícia política
[...]. Quarto: formar novas fileiras com todos aqueles mexicanos que queiram
somar-se à nossa luta justa, incluindo aqueles que, sendo soldados inimigos, se
entreguem sem combater às nossas forças e jurem responder às ordens deste
Comando Geral do EXÉRCITO ZAPATISTA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL.
Quinto: pedir rendição incondicional dos quartéis inimigos antes de encerrar os
combates. Sexto: suspender o saque de nossas riquezas naturais nos lugares
controlados pelo EZLN (EZLN, 1994, tradução nossa)
7
.
No entanto, se no início do levante o EZLN desejava destituir do poder os
governantes considerados corruptos e ilegítimos, após alguns anos de conflitos os
insurgentes transformaram suas táticas. Buscavam, pressionando os agentes políticos
mexicanos, conseguir melhorias sociais para os grupos marginalizados do país,
principalmente para a parcela indígena. Neste sentido, de acordo com o geógrafo Fábio
Márcio Alkmin, “[...] a questão que se colocava não era a tomada de poder do Estado,
em um sentido leninista, mas sim a diluição deste poder, isto é, o empoderamento das
próprias comunidades indígenas frente ao Estado.” (ALKMIN, 2015, p. 126).
Aos violentos conflitos em Chiapas, a sociedade civil respondeu, em 12 de janeiro
de 1994, com a “Marcha pela Paz” até a Praça da Constituição, na Cidade do México, em
prol do cessar fogo na região. Sobre este aspecto, é preciso compreender que no
contexto sociopolítico da década de 1990, após a derrocada da URSS e o fim da Guerra
Fria, a luta armada não era mais vista com bons olhos por grande parte da sociedade
civil. Nesse sentido, embora as demandas do EZLN fossem consideradas importantes, a
violência não encontrava grande legitimidade social.
Assim sendo, uma vez superada a experiência da esquerda radical de meados do
século XX e constatado o grande número de mortes resultantes desta, a maior parte da
sociedade civil na década de 1990 buscava soluções democráticas e pacíficas para as
demandas sociopolíticas da contemporaneidade. Neste sentido, os zapatistas precisaram
se adequar aos novos tempos, uma vez que a esquerda se encontrava desacreditada
devido à derrocada da URSS e aos resultados sangrentos das guerrilhas na América
7
[No original: “Primero. Avanzar hacia la capital del país venciendo al ejército federal mexicano,
protegiendo en su avance liberador a la población civil y permitiendo a los pueblos liberados elegir, libre y
democráticamente, a sus propias autoridades administrativas. Segundo. Respetar la vida de los prisioneros
y entregar a los heridos a la Cruz Roja Internacional para su atención médica. Tercero. Iniciar juicios
sumarios contra los soldados del ejército federal mexicano y la policía política [...] Cuarto. Formar nuevas
filas con todos aquellos mexicanos que manifiesten sumarse a nuestra justa lucha, incluidos aquellos que,
siendo soldados enemigos, se entreguen sin combatir a nuestras fuerzas y juren responder a las órdenes
de esta Comandancia General del EJÉRCITO ZAPATISTA DE LIBERACIÓN NACIONAL. Quinto. Pedir la
rendición incondicional de los cuarteles enemigos antes de entablar los combates. Sexto. Suspender el
saqueo de nuestras riquezas naturales en los lugares controlados por el EZLN.”]. (EZLN, 1994).
Latina nas décadas anteriores. Para o historiador Luis Fernando Ayerbe, “[...]
efetivamente, no lado da esquerda, verifica-se um refluxo das estratégias que descartam
a via institucional, predominando nitidamente a valorização da democracia
representativa como principal marco regulador da diversidade política e ideológica.”
(AYERBE, 2004, p. 114).
Os meios de comunicação tornaram-se, então, uma arma estratégica para a
continuidade da luta do movimento. Sobretudo o site da organização e as frequências de
rádio insurgentes atuaram numa via de mão dupla: proporcionaram uma maior
disseminação das mensagens do Exército Zapatista de Libertação Nacional, ao mesmo
tempo em que permitiram que diversos atores sociais acompanhassem a evolução dos
conflitos na Selva Lacandona, as ações de resistência e as perspectivas sociopolíticas
construídas pelo EZLN. Neste sentido, os rebeldes afirmaram que os ataques
governamentais não obtiveram êxito porque “[...] resistimos bem e muita gente se
mobilizou. E então os maus governos pensaram que muita gente está vendo o que
acontece com o EZLN.” (EZLN, 2005, tradução nossa)
8
. De acordo com o sociólogo
Manuel Castells,
[...] desprovidos de um meio de comunicação capaz de fazê-los atingir as
populações urbanas do México e de todo o mundo em tempo real, os zapatistas
provavelmente estariam fadados à condição de guerrilha isolada e local, a
exemplo de várias ainda travando lutas na América Latina. (CASTELS, 2008, p.
134).
Antônio Carlos Amador Gil constata que “[...] a histórica marcha de janeiro de
1994 demonstrou aos revolucionários que a sociedade civil era uma aliada, mas se
recusava a se comprometer com a via insurrecional.” (GIL, 2011, p. 42). Na Segunda
Declaração da Selva Lacandona, os rebeldes afirmaram que “[...] durou 12 dias este
pesadelo [os conflitos armados], pois outra força superior a qualquer poder político ou
militar se impôs às partes em conflito. A Sociedade Civil, assumiu o dever de preservar a
nossa pátria, manifestou seu desacordo com o massacre e obrigou as partes a
dialogarem.” (EZLN, 1994, tradução nossa)
9
.
No entanto, os conflitos não findaram por completo, uma vez que grupos
paramilitares, supostamente ligados ao governo mexicano, protagonizaram ataques às
8
[No original: “[...] resistimos bien y mucha gente en todo el mundo se movilizó. Y entonces los malos
gobiernos se pensaron que el problema es que mucha gente está viendo lo que pasa con el EZLN.”]. (EZLN,
2005).
9
[No original: “[...] sólo duró 12 días esta pesadilla, pues otra fuerza superior a cualquier poder político o
militar se impuso a las partes en conflicto. La Sociedad Civil asumió el deber de preservar a nuestra patria,
ella manifestó su desacuerdo con la masacre y obligó a dialogar.”]. (EZLN, 1994).
comunidades indígenas ligadas aos zapatistas tal como o Massacre de Acteal
10
, e
tendo em vista o fato de que o EZLN, embora tenha se afastado da luta armada, nunca
abandonou suas origens guerrilheiras. Segundo Alexander M. Hilsenbeck, “[...] em
nenhum momento o EZLN realmente abandonou suas armas nem o nome de Exército
, sendo elas de fundamental importância para a resistência do movimento, pois, como
ressaltamos, vive-se em Chiapas uma situação de paz armada’, ou ‘guerra de baixa
intensidade’.” (HILSENBECK, 2009). Sobre este aspecto, Cassio Brancaleone afirma que
“[...] a GBI [Guerra de Baixa Intensidade] é a guerra dilatada, lenta e progressiva, que
busca desencadear fundamentalmente o terror psicológico nas populações civis para
afastar possíveis simpatizantes e aumentar o ‘custo social’ das autonomias indígenas.”
(BRANCALEONE, 2015, p. 279).
Diante dos fracassos dos acordos com o governo mexicano, os líderes do Exército
Zapatista de Libertação Nacional começaram a se afastar do cenário político
institucional do México e a exercer uma estratégia de organização democrática própria,
por meio dos municípios autônomos. O fortalecimento desses municípios demonstra o
intuito dos insurgentes em construir organizações democráticas locais, juntamente às
comunidades indígenas da Selva Lacandona, de forma independente da política
institucional mexicana.
A construção da autonomia indígena Zapatista
Cassio Brancaleone afirma que o desenvolvimento da autonomia das
comunidades indígenas da Selva Lacandona fundamentou-se, a princípio, nas chamadas
leis revolucionárias criadas pelo Exército Zapatista de Libertação Nacional ainda em
janeiro de 1994. Entre outros pontos: decidiam a existência de eleições livres para
representantes da sociedade civil, buscando a construção de uma democracia legítima
que se contrapusesse à política institucional mexicana considerada corrupta e viciada;
determinavam que os impostos de guerra seriam facultativos aos trabalhadores e aos
desprovidos de bens materiais, ao mesmo tempo em que eram obrigatórios aos
10
O Massacre de Acteal tornou-se emblemático no que diz respeito às ofensivas governamentais contra
os insurgentes do EZLN. De acordo com Antônio Carlos Amador Gil, “[...] no dia 22 de dezembro de 1997,
um grupo paramilitar invadiu Acteal e iniciou uma matança contra os membros da Sociedade Civil Las
Abejas e simpatizante do EZLN. Quarenta e cinco membros desta sociedade foram mortos barbaramente
enquanto rezavam numa igreja, mulheres e crianças em sua maioria [...]. Las Abejas é uma sociedade
católica que luta pela paz pregando a libertação através da erradicação da opressão e dominação e a
reconciliação através da restauração da dignidade rejeitando, porém, a violência, a vingança e o ódio [...].
Vicente Ruiz, um dos membros de Las Abejas entrevistado pela antropóloga Christine Kovic, explica que a
proposta de Las Abejas é a mesma do EZLN, mas com caminhos diferentes.” (GIL, 2011, p. 51-52).
exploradores da força de trabalho; estabeleciam direitos iguais sem distinções étnicas,
políticas ou religiosas; afirmavam que o EZLN deveria respeitar as ações do governo
revolucionário; expropriavam terras improdutivas com mais de 100 hectares ou
produtivas com mais de 50 hectares, destinando parte destas às famílias dos rebeldes
mortos em conflito com o exército mexicano.
Em agosto de 1994, o Exército Zapatista de Libertação Nacional fundou o primeiro
Aguascalientes em localidade próxima ao povoado de Guadalupe Tepeyac. Segundo
Cassio Brancaleone, os Aguascalientes eram espaços construídos pelos insurgentes com
a finalidade de estabelecer contatos com a sociedade civil, buscando apoio à luta travada
contra o Estado - uma das estratégias centrais adotadas pelos zapatistas. Desse modo,
[...] utilizaram a inauguração do mesmo para sediar a realização da Convenção
Nacional Democrática, na qual o EZLN almejava consolidar seus contatos com
outras organizações sociais do campo da esquerda nacional e apoiadores
internacionais. Foi também uma oportunidade para o EZLN se aproximar dos
setores mais progressistas do Partido da Revolução Democrática (PRD),
especialmente aqueles ligados ao então candidato à presidência Cuauhtemóc
rdenas (filho do ex-presidente Cárdenas). (BRANCALEONE, 2015, p. 275).
A partir de dezembro de 1994, os insurgentes zapatistas começaram a organizar
as cidades chiapanecas conquistadas durante o levante, de modo com que estas se
tornassem autônomas em relação ao Estado. Assim, é possível perceber que a luta
armada foi deixada em segundo plano pelos rebeldes, ao mesmo tempo em que se
fomentou o desenvolvimento da autonomia de algumas comunidades indígenas
localizadas na Selva Lacandona. Antônio Carlos Amador Gil constata que
[...] ao se afastarem do objetivo da conquista do poder através da luta armada,
os zapatistas privilegiam a construção de uma verdadeira democracia que possa
dar conta de exigências éticas e as afirmações de identidade e que também leve
em conta a construção de um poder comunitário condizente com a trajetória de
história de vida das comunidades indígenas. Eles procuram as vias de invenção
de uma democracia aberta aos atores sociais. (GIL, 2011, p. 33).
Em 8 de dezembro de 1994, teve início a Campanha pela Paz, Justiça e Dignidade
para os Povos Indígenas e, segundo Raúl Ornelas, “[...] protegidos pelas tropas
zapatistas, os povoadores de cada localidade declaram a existência de trinta novos
municípios autônomos que agrupam as zonas de influência do EZLN.” (ORNELAS, 2005,
p. 131). Nesse sentido, muitas cidades chiapanecas tiveram seus limites territoriais
modificados, tendo em vista que a lógica de organização territorial indígena e insurgente,
baseada em afinidades étnicas e históricas, diferia-se da forma organizacional
implementada pelo Estado.
Para o autor, “[...] essas iniciativas têm um caráter de reagrupamento territorial a
partir de vários tipos de nexos históricos: o pertencimento a uma etnia, os trabalhos em
comum, a situação geográfica, as relações de intercâmbio.” (ORNELAS, 2005, p. 134).
Júlia Cruz afirma que as novas divisões municipais desafiavam as perspectivas
territoriais e políticas adotadas pelas autoridades governamentais, pois, para os
zapatistas, aquelas deveriam refletir a afinidade étnica entre os habitantes, possibilitando
aos insurgentes e às comunidades indígenas realizarem “[...] um intenso reordenamento
territorial e uma reapropriação do espaço público, de acordo com suas próprias
necessidades e vontades.” (CRUZ, 2017, p. 183).
Isto, segundo a análise de Fábio Márcio Alkmin (2015), possibilitou “[...] o
fortalecimento de uma identidade territorial, contribuindo portanto a um sentimento de
pertencimento ao município autônomo em questão (sem orientações separatistas, fique
claro).” (ALKMIN, 2015, p. 136). Entre os municípios autônomos, destacam-se “Libertad
de los Povos Mayas” e “Ernesto Che Guevara” (divisões do município de Ocosigno), “San
Pedro de Michoácan” (antigo município de Las Margaritas), “Tierra y Liberdad” (junção
dos municípios de Las Margaritas, Independencia e Trinitaria) e “17 de Novembre”
(junção dos municípios de Altamirano e Chalan).
Ernesto Zedillo, candidato à presidência pelo Partido Revolucionário Institucional,
venceu a corrida eleitoral de 1995. Em fevereiro deste mesmo ano, Zedillo ordenou uma
ofensiva contra o EZLN, que aniquilou o Aguascalientes de Guadalupe Tepeyac e tentou
prender alguns porta-vozes insurgentes. Diante da insatisfação pública em relação aos
ataques do governo mexicano, aprovou-se em março a “Lei para o Diálogo, a Conciliação
e a Paz Digna em Chiapas”, que conferiu legalidade ao Exército Zapatista de Libertação
Nacional e propiciou a ocorrência de outra tentativa de negociações entre rebeldes e
Estado, o “Diálogos de San Andrés” que aconteceu entre outubro de 1995 e janeiro de
1996 na cidade de San Andrés Larráinzar. Segundo Carlos Durand Alcántara, Miguel
Sámano e Gerardo González, os Acordos de San Andrés, firmados em 1996 e mediados
pela Comissão de Concórdia e Pacificação (COCOPA)
11
foram importantes para que as
demandas zapatistas alcançassem repercussão nacional. Neste sentido, teoricamente, o
governo mexicano afirmava a legitimidade das reivindicações das comunidades indígenas
por autonomia.
No entanto, as negociações entre rebeldes e Estado mostraram-se infrutíferas,
tendo em vista que o governo mexicano descumpriu grande parte dos acordos
11
Resultante da Lei para o Diálogo e a Reconciliação em Chiapas (1995), a Comissão de Concórdia e
Pacificação (COCOPA) foi criada pelo governo mexicano para mediar os conflitos com os insurgentes em
Chiapas.
estabelecidos com o EZLN em San Andrés. Deste modo, os zapatistas aprofundaram seu
afastamento em relação à política institucional mexicana e procuraram fortalecer as
organizações democráticas dentro das comunidades autônomas zapatistas. Na Terceira
Declaração da Selva Lacandona, divulgada em 1995, anterior aos Acordos de San Andrés,
os insurgentes já contestavam a legitimidade das eleições que haviam levado Ernesto
Zedillo ao poder, ao mesmo tempo em que reafirmavam a descrença, por parte do EZLN,
em relação à democracia mexicana e às tentativas de diálogo com o Estado:
[...] o processo pré-eleitoral de agosto de 1994 trouxe a esperança, em amplos
setores do país, de que o trânsito para a democracia seria possível pela via
eleitoral [...]. O EZLN empenhou sua palavra e seu esforço, então na busca da
mudança pacífica para a democracia [...] Um processo eleitoral viciado, imoral,
desigual e ilegítimo culminou numa nova zombaria à boa vontade dos cidadãos.
O sistema de partido de Estado reafirmou sua vocação antidemocrática e impôs,
em todas as partes e a todos os níveis, sua vontade soberba. Frente a uma
votação sem precedentes, o sistema político mexicano optou pela imposição e
cortou, assim, as esperanças na via eleitoral. Relatório da Convenção Nacional
Democrática, Aliança Civil e à Comissão Nacional da Verdade trouxeram à luz o
que ocultavam, com vergonhosa cumplicidade, os grandes meios de
comunicação: uma fraude gigantesca. A grande quantidade de irregularidades, a
desigualdade, a corrupção, a chantagem, a intimidação, o roubo e a falsificação,
foram os marcos em que se deram as eleições mais sujas da história do México
[...] O processo eleitoral de agosto de 1994 é um crime de Estado. (EZLN, 1995,
tradução nossa)
12
.
É importante, assim, compreender a ligação entre o fortalecimento dos
municípios autônomos e a perda de legitimidade que as instituições democráticas
mexicanas sofriam, sobretudo os partidos políticos. Em 2003, o Exército Zapatista de
Libertação Nacional deu fim aos espaços conhecidos como Aguascalientes e fez surgir
os Caracoles, importantes para a consolidação da experiência democrática insurgente e
que, segundo Cassio Brancaleone, foi “[...] um marco importante no processo de
construção da autonomia indígena zapatista pelas vias de fato.(BRANCALEONE, 2015,
p. 282). Para o autor, esta nova organização dos territórios autônomos zapatistas
[...] além de acentuar as funções dos MAREZ [municípios autônomos rebeldes]
na condução da administração da justiça, da saúde comunitária, da educação, da
12
[No original: “[...] el proceso preelectoral de agosto de 1994 trajo la esperanza, en amplios sectores del
país, de que el tránsito a la democracia era posible por la vía electoral [...]Un proceso electoral viciado,
inmoral, inequitativo e ilegítimo culminó en una nueva burla a la buena voluntad de los ciudadanos. El
sistema de partido de Estado reafirmó su vocación antidemocrática e impuso, en todas partes y a todos los
niveles, su voluntad soberbia. Frente a una votación sin precedentes, el sistema político mexicano optó por
la imposición y cortó, así, las esperanzas en la vía electoral. Informes de la Convención Nacional
Democrática, Alianza Cívica y la Comisión de la Verdad sacaron a la luz lo que ocultaban, con vergonzosa
complicidad, los grandes medios de comunicación: un fraude gigantesco. La multitud de irregularidades, la
inequidad, la corrupción, el chantaje, la intimidación, el hurto y la falsificación, fueron el marco en el que se
dieron las elecciones más sucias de la historia de México [...] El proceso electoral de agosto de 1994 es un
crimen de Estado.]. (EZLN, 1995).
habitação, da terra, do trabalho, da informação e da cultura, da produção, do
comércio e do trânsito local, possibilitou a edificação de uma instância de
articulação regional. (BRANCALEONE, 2015, p. 283).
Diferente dos Aguascalientes, que se constituíam apenas enquanto espaços de
diálogo entre as comunidades indígenas e outras parcelas sociais do México e do mundo,
os Caracoles buscavam estabelecer as relações entre as instâncias civis e miliares dos
municípios autônomos, bem como definiam as Juntas de Bom Governo (grupos de
membros eleitos democraticamente nas comunidades zapatistas para administrá-las)
enquanto protagonistas no exercício da democracia. Ademais, os Caracoles constituíam-
se enquanto regiões administrativas formadas por agrupamentos de municípios
autônomos, importantes para a gestão das comunidades e para que estas pudessem
comunicar-se entre si. Neste sentido, os rebeldes reafirmavam a ideologia adotada pelo
Exército Zapatista de Libertação Nacional: para que a democracia fosse de fato legítima,
a sociedade civil deveria ser a principal personagem do cenário político, e não os
governantes, constituindo o que os insurgentes chamaram de “mandar obedecendo”.
Segundo os insurgentes:
[...] o Caracol significa um meio de comunicação para comunicar a nossas bases
de apoio, mas também para comunicar-nos com todas as organizações de
diferentes estados do país sobre todos os indígenas do México e também serve
para comunicar-nos com todas as organizações de diferentes países do mundo.
Este centro é uma coisa muito importante dentro dessa luta zapatista [...]
Porque este centro, esse Caracol, é um centro de encontro político, social e
cultural com todas as pessoas e com todas as organizações que desejam visitar,
que desejam compartilhar experiências. (EZLN, entrevista, 2004, tradução
nossa)
13
.
Sobre a instituição dos Caracoles e das Juntas de Bom Governo, o EZLN relatou
na Sexta Declaração da Selva Lacandona, em 2005:
[...] começamos então a implantar os municípios autônomos rebeldes zapatistas,
que é como se organizaram os povoados para governar e governar-se, para
tornarem-se mais fortes [...] Ou seja, não que venha alguém de fora governar,
mas que os próprios povoados decidam, entre eles, quem e como governar, se
este não obedece então o tiram [...]
13
[No original: “[...] el Caracol significa un medio de comunicación para comunicarse con nuestras bases
de apoyo, pero también para comunicarse con todas las organizaciones de diferentes estados del país
sobre todos los pueblos indígenas de México y también sirve para comunicarse con todas las
organizaciones de diferentes países del mundo. Este centro es algo muy importante dentro de esta lucha
zapatista [...] Porque este centro, este Caracol, es un centro de encuentro político, social y cultural con
todas las personas y con todas las organizaciones que deseen compartir experiencias.”] (EZLN, entrevista,
2004).
Foi assim que, em agosto de 2003 nasceram as Juntas do Bom Governo, e com
elas se continuou a aprendizagem do ‘mandar obedecendo’. (EZLN. 2005,
tradução nossa)
14
.
A autogestão dos municípios autônomos diferia do modo como estes foram
administrados pelo governo mexicano anteriormente. Raul Ornelas constata que,
buscando retomar as formas comunitárias tradicionais de vida em sociedade, “[...]
especialmente as reuniões de toda a comunidade, os Municípios Autônomos têm nas
comunidades (casarios, povoados) suas unidades básicas, que se agrupam em conselhos
de representantes até alcançar a escala municipal.” (ORNELAS, 2005, p. 134). Além disso,
os cargos administrativos municipais poderiam ser ocupados por todos os indivíduos,
gradativamente, de maneira rotativa, sem que estes tivessem direito à remuneração. O
autor explica como funcionam as instituições democráticas no interior dos municípios
autônomos:
[...] com base nas reuniões da comunidade, instâncias fortemente marcadas pelo
que na teoria política se conhece como democracia direta, é erigido um sistema
de representações que viabiliza as tarefas coletivas. O pertencimento a um
Município Autônomo é competência exclusiva da reunião de cada comunidade.
A instância seguinte é o Conselho Municipal, formado pelos representantes de
cada comunidade que faz parte do município. Estes representantes participam
em alguma dascomissões’ ou ‘comitês encarregados de tarefas específicas:
justiça, assuntos agrários, saúde, educação, cultura, produção, entre as mais
comuns. Além destas instâncias, o conselho conta com: presidente, vice-
presidente, secretário e tesoureiro, encarregados pela coordenação do
conselho. (ORNELAS, 2005, p. 136).
Cassio Brancaleone afirma que as comunidades sedes dos municípios autônomos
possuíam infraestrutura para abrigar os Conselhos responveis pela administração
municipal. Os MAREZ eram compostos de comissões, tais como a de educação, saúde,
justiça, responsáveis por solucionar as demandas dos munícipes em suas respectivas
áreas de atuação.
De acordo com o cientista social, os educadores e agentes de saúde atuantes nos
territórios zapatistas eram provenientes de famílias camponesas indígenas e não
recebiam remuneração, sendo sustentados pelas comunidades nas quais trabalhavam. No
entanto, segundo o autor, os profissionais da saúde ainda não se encontravam presentes
na maior parte das comunidades zapatistas, pelo contrário, a maioria dos médicos e dos
14
[No original: “[...] empezamos entonces a echarle ganas a los municipios autónomos rebeldes zapatistas,
que es como se organizaron los pueblos para gobernar y gobernarse, para hacerlos más flertes [...] O sea
que no es que viene alguien de afuera a gobernar, sino que los mismos pueblos deciden, de entre ellos,
quién y cómo gobierna, y si no obedece pues lo quitan [...] Así fue como se nacieron las Juntas de Buen
Gobierno, en agosto de 2003, y con ellas se continuó con el autoaprendizaje y ejercicio del ‘mandar
obedeciendo’.”] (EZLN, 2005).
postos de saúde existentes localizavam-se, sobretudo, nas sedes dos Caracoles.
Ademais, “[...] a infraestrutura das clínicas também é bem precária e a não existência de
serviços de eletricidade em muitas comunidades dificulta a instalação de equipamentos,
particularmente aqueles destinados a conservar vacinas e outros medicamentos de trato
delicado.” (BRANCALEONE, 2015, p. 310).
Por outro lado, o sistema educacional primário dos municípios autônomos era
mais desenvolvido do que o oferecido pelo Estado. Segundo Brancaleone, [...] a
educação autônoma encontra-se mais disseminada no primeiro nível, baseado na
alfabetização bilíngue e no domínio de operações matemáticas elementares. Todos as
comunidades que conheci possuíam seus promotores de educação.” (BRANCALEONE,
2015, p. 311). Compreende-se, desse modo, a importância de existir um processo de
ensino-aprendizagem que valorize as tradições das comunidades indígenas zapatistas e
que auxilie na construção do conhecimento a partir dos contextos sociais e econômicos
locais, potencializando a experiência de autonomia zapatista a partir do momento em que
permite ao educando atuar para melhorar a vida da comunidade na qual está inserido.
Cassio Brancaleone constata que, para os insurgentes, ao contrário da “má educação”
fornecida pelo governo,
[...] os zapatistas se esforçam por colocar em prática não apenas uma
“pedagogia da libertação”, fulcrada em seus princípios éticos e políticos, mas
também uma pedagogia e uma educação que respondam às necessidades de
reprodução da vida comunitária e indígena.
Os estudantes formados nas CCETAZ [Centros Culturais de Educação
Tecnológica Autônoma Zapatista], portanto, devem ser capazes de dar
continuidade e aprimorar a experiência de autogoverno zapatista, atuando
também como promotores, assessores, gestores, administradores,
organizadores de grupos culturais, de coletivos para produção e
comercialização, etc., ou seja, ampliando as capacidades e possibilidades de
auto-organização das comunidades. (BRANCALEONE, 2015, p. 313).
É possível perceber as influências da Revolução Mexicana sobre os insurgentes
do Exército Zapatista de Libertação Nacional. Antônio Carlos Amador Gil constata que
os membros do EZLN acreditavam dar continuidade ao projeto sociopolítico inacabado
do revolucionário Emiliano Zapata. Neste sentido, os comunicados mencionaram, de
maneira sistemática, a Revolução Mexicana, alguns de seus personagens revolucionários
e as heranças deixadas por estes à posteridade, relacionando as lutas passadas às
demandas da atualidade por justiça social. É importante lembrar que o próprio termo
“zapatista” é uma referência a Emiliano Zapata, um dos principais líderes da Revolução
Mexicana do início do século XX, e aos seus aliados, na maior parte camponeses
indígenas e mestiços habitantes da região do Sul do México.
Grande parte das raízes ideológicas do Exército Zapatista de Libertação Nacional
se encontra no projeto sociopolítico desenvolvido pelo revolucionário Emiliano Zapata
no início do século XX. O problema agrário constituiu-se, desta forma, em um dos eixos
centrais para os zapatistas da Revolução Mexicana
15
e para o EZLN, bem como a
marginalização sociopolítica enfrentada pela população camponesa e indígena do sul do
México e a construção de um país cujos governantes se atentassem para as minorias
sociais. Na Primeira Declaração da Selva Lacandona, em 1994, os insurgentes afirmaram
que
[...] somos produto de 500 anos de lutas, primeiro contra a escravidão, na
guerra de Independência contra a Espanha, encabeçada pelos insurgentes;
depois para evitar ser absorvidos pelo expansionismo norte-americano; a seguir
por promulgar nossa Constituição e expulsar o Império Francês do nosso solo;
depois a ditadura porfirista nos negou a aplicação justa das leis da Reforma e o
povo se rebelou, formando seus próprios líderes, seguindo Villa e Zapata,
homens pobres como nós, a quem foi negada uma preparação básica para
utilizar-nos como bucha de canhão e saquear as riquezas de nossa pátria, sem
importar-lhes que estejamos morrendo de fome e enfermidades curáveis, sem
importar-lhes que não tenhamos nada, absolutamente nada, nenhum teto digno,
nem terra, nem trabalho, nem saúde, nem alimentação, nem educação, sem ter
direito a eleger livre e democraticamente nossas autoridades, sem
independência dos estrangeiros, sem paz nem justiça para nós e nossos filhos.
(EZLN, 1994, tradução nossa)
16
.
Embora tanto os zapatistas liderados por Emiliano Zapata quanto os insurgentes
pertencentes ao EZLN tenham elaborado propostas de cunho sociopolítico a serem
colocadas em prática em âmbito nacional (reforma agrária, melhorias nas condições
socioeconômicas dos camponeses e indígenas mexicanos etc.), também desenvolveram
projetos autonômicos construídos em esfera regional. Segundo a historiadora Júlia Melo
15
Os zapatista elaboraram, em 1911, o Plano de Ayala. Além de não reconhecer o então presidente
Francisco Madero como líder do processo revolucionário e chefe de governo no México, “[...] era o
programa por excelência da revolta camponesa e da luta agrária no México. Estipulava que aldeias e
cidadãos que tivessem sido despojados de terras, montes e água recuperariam imediatamente a
propriedade desses bens, ‘mantendo a qualquer custo e de armas na mão, sua posse’. Definia como
obrigação dos usurpadores e não dos camponeses ocupantes a necessidade de demonstrar, perante os
tribunais, seus direitos de propriedade. Um terço das terras, montes e água seriam expropriados, já que na
ocasião estavam sendo usados somente por proprietários ociosos que monopolizavam a terra, e se
nacionalizaria a totalidade de bens ‘latifundiários, científicos ou caciques’ que se opusessem ao Plano de
Ayala.” (AGUILAR CAMÍN; MEYER, 2000, p. 44).
16
[No original: “somos producto de 500 años de luchas: primero contra la esclavitud, en la guerra de
Independencia contra España encabezada por los insurgentes, después por evitar ser absorbidos por el
expansionismo norteamericano, luego por promulgar nuestra Constitución y expulsar al Imperio Francés
de nuestro suelo, después la dictadura porfirista nos negó la aplicación justa de leyes de Reforma y el
pueblo se rebeló formando sus propios líderes, surgieron Villa y Zapata, hombres pobres como nosotros a
los que se nos ha negado la preparación más elemental para así poder utilizarnos como carne de cañón y
saquear las riquezas de nuestra patria sin importarles que estemos muriendo de hambre y enfermedades
curables, sin inmortales que no tengamos nada, absolutamente nada, ni un techo digno, ni tierra, ni trabajo,
ni salud, ni alimentación, ni educación, sin tener derecho a elegir libre y democráticamente a nuestras
autoridades, sin independencia de los extranjeros, sin paz ni justicia para nosotros y nuestros hijos.”].
(EZLN, 1994).
Azevedo Cruz, retomando as afirmações de John Womack, em 1916, os zapatistas da
Revolução Mexicana decretaram a Lei Geral sobre Liberdades Municipais, rompendo
com o controle federal e estadual sobre os municípios do Estado de Morelos,
determinando a formação de assembleias populares e defendendo que “[...] as questões
municipais mais importantes deveriam ser submetidas ao controle dos cidadãos e
declarou que os cidadãos residentes na comunidade podiam votar ou deter cargos
públicos.” (CRUZ, 2017, p. 53). Tal estratégia autonômica influenciou a formação e
consolidação dos municípios autônomos zapatistas em Chiapas em meados da década de
1990, como já foi visto.
As lutas do zapatismo atuante durante a Revolução Mexicana e do Exército
Zapatista de Libertação Nacional alcançaram importantes conquistas sociopolíticas em
seus respectivos períodos de existência, sobretudo no que diz respeito aos direitos dos
camponeses indígenas mexicanos. As ações do EZLN fomentaram o debate em âmbito
nacional acerca da reforma agrária, da autonomia indígena e contra a extinção dos ejidos
após as tentativas de diálogos com o governo federal e, principalmente, depois da
instituição e consolidação dos municípios autônomos em Chiapas. Por sua vez, Emiliano
Zapata e seus aliados, apesar das divergências em relação às perspectivas sociopolíticas
existentes entre outros atores da Revolução Mexicana, conseguiram que as demandas
campesinas fossem incorporadas à Constituição Mexicana de 1917, na qual se
estabeleceu a legitimidade das terras comunais indígenas.
Reflexões sobre a experiência autônoma Zapatista
São diversas as análises existentes acerca da experiência política insurgente
zapatista e suas possíveis implicações sobre o futuro do EZLN e das comunidades
indígenas autônomas. Para Enrique Krauze, a não inserção do EZLN na política
institucional do México seria uma das grandes limitações do movimento. Segundo o
autor, o Subcomandante Marcos, um dos líderes zapatistas, seria capaz de se
transformar em um importante personagem político da esquerda mexicana. Assim, “[...]
nesse papel teria condições de pressionar por uma política econômica que se dirigisse
aos pobres, e, sobretudo aos mais pobres, os índios do México.” (KRAUZE, 2011, p. 521).
Ademais, Krauze afirma que, quando o Subcomandante Marcos se recusou a
apoiar o candidato do PRD Andrés Manuel Lopéz Obrador, grande parte da esquerda se
afastou do Exército Zapatista de Libertação Nacional. Assim, os zapatistas teriam
percebido que a sociedade civil, “[...] nos primeiros anos do novo século, estava se
cansando deles. E como a democracia no México continuou seu processo de
consolidação, o movimento tornou-se cada vez mais isolado.” (KRAUZE, 2011, p. 522).
Neste sentido, de acordo com o historiador, tal posicionamento adotado pelos
insurgentes em relação ao sistema político mexicano faria com que o movimento se
dissipasse ou até mesmo desaparecesse.
Geoffrey Pleyers segue esta mesma linha de raciocínio e reafirma as limitações de
movimentos sociais que refutam a participação no cenário político institucional,
constatando que “[...] a multiplicação de espaços modestos nos quais se desenvolvem
práticas alternativas não conduz necessariamente a uma transformação global na
sociedade.” (PLEYERS, 2010, p. 387). O autor afirma que tal perspectiva poderia permitir
que outras instituições e personagens políticas conquistassem mais espaço na sociedade,
em detrimento dos movimentos sociais. Ainda de acordo com Pleyers,
[...] essa cultura antipolítica corre o risco de minar os processos democráticos
ou de favorecer a eleição de candidatos mais adversos aos movimentos sociais,
quando os ativistas não expressam seu voto. Também pode convergir
paradoxalmente com a ideologia neoliberal em seu antiestatismo. (PLEYERES,
2010, p. 387).
María Fernanda Somuano acredita ser importante a aproximação de movimentos
sociais (como o movimento zapatista) do cenário político institucional. Para a autora,
“[...] as vantagens de se aproximar da política institucionalizada via partidos políticos
podem pensar-se em termos do aumento de suas possibilidades reais de ascender ao
poder.” (SOMUANO, 2010, p. 261). Dessa forma, as demandas das organizações sociais
poderiam ser solucionadas. No entanto, Somuano afirma que a inserção dessas
organizações no meio partidário poderia fazer com que estas abrissem o de suas
demandas particulares em prol dos interesses do partido. Ao contrário, “[...] a
independência dos movimentos e suas organizações centra a atenção de seus membros
nas demandas específicas daquele, enfatizando sua importância.” (SOMUANO, 2010, p.
270).
Por outro lado, Willibald Sonnleitner, afirma a descrença existente por parte dos
rebeldes zapatistas, sobre a política institucional mexicana. Neste sentido, “[...] a partir
de 1995, os rebeldes se retiraram do jogo eleitoral e promoveram o abstencionismo entre
suas bases, boicotando ativamente o processo eleitoral de 1997 e debilitando a frágil
oposição partidária local.” (SONNLEITNER, 2010, p. 384). O movimento zapatista afirma,
deste modo, repudiar ações dos partidos políticos mexicanos, inclusive os à esquerda,
uma vez que, segundo os insurgentes, estes não estariam de fato preocupados com as
demandas sociais, mas apenas com a conquista do poder político. Assim, é possível
compreender que, diante de um cenário político “viciado” e “fraudulento” (como descrito
pelo EZLN), a permanência de perspectivas políticas e econômicas consideradas
prejudiciais, embora acompanhada de alternância no poder entre os partidos, é um
motivo de frustração para os revoltosos. Na Segunda Declaração da Selva Lacandona, o
Exército Zapatista de Libertação Nacional afirma que
[...] em suma, o cumprimento dos compromissos implica, necessariamente, a
morte do sistema de partido de Estado. Por suicídio ou fuzilamento, a morte do
atual sistema político mexicano é a condição necessária, embora insuficiente, do
trânsito à democracia no nosso país. Chiapas não terá solução real se não se
solucionar o México. (EZLN, 1994, tradução nossa)
17
.
Assim, considera-se fundamental perceber a experiência autônoma zapatista
segundo a perspectiva analítica de Cassio Brancaleone, que afirma que a democracia não
deve ser percebida apenas no que tange à sua organização em nível estatal, nas
organizações do Estado, na política institucional. Ao contrário, para o cientista social, as
relações entre as instituições estatais e o capital são fortes, o que fomentaria a
existência das disparidades socioeconômicas, principalmente no que diz respeito à
distinção existente entre governantes e governados. Para o autor,
[...] a consolidação da forma-Estado como modelo de relações sociais que
organiza e legitima as estruturas de hierarquias sociais vigentes nas modernas
sociedades de classe converte, alimenta e se retroalimenta das desigualdades
socioeconômicas reproduzidas e necessárias para a reprodução da forma-
capital. (BRANCALEONE, 2015, p. 73).
Brancaleone procura, deste modo, rediscutir o tema “democracia”, afirmando que
esta não se encontra presente exclusivamente no cenário estatal. Buscando o que
chamou deleitura libertária da questão democrática moderna e contemporânea”, o
cientista social afirmou que “[...] a democracia [...] pode ser localizada em distintas
regiões da vida social, e a política, ou mais precisamente o Estado perde o monopólio de
sua manifestação e significação.” (BRANCALEONE, 2015, p. 83). Neste sentido, é possível
compreender que organizações políticas distintas das instituições estatais, tais como os
municípios autônomos zapatistas, são legítimas e podem ser capazes de conferir às
parcelas marginalizadas neste caso, os grupos indígenas da Selva Lacandona
controle sobre suas instituições sociais e políticas.
Compreende-se, assim, que é fundamental ampliar o que se entende por
democracia e participação política para entender o desenvolvimento de projetos
17
[No original: “[...] en suma: el cumplimiento de los compromisos implica, necesariamente, la muerte del
sistema de partido de Estado. Por suicidio o por fusilamiento, la muerte del actual sistema político
mexicano es condición necesaria, aunque no suficiente, del tránsito a la democracia en nuestro país.
Chiapas no tendrá solución real si no se soluciona México.”] (EZLN, 1994).
autonômicos protagonizados por minorias sociais. Embora se considere que a política
institucional e a democracia representativa sejam importantes para a consolidação das
experiências democráticas, não podem ser encaradas como as únicas formas de se fazer
política. Deste modo, é possível perceber que os municípios autônomos zapatistas,
através de suas instituições que fomentam a participação popular direta, constituem-se
enquanto meios legítimos para a construção de um sistema político verdadeiramente
inclusivo, que busca sanar os problemas socioeconômicos vivenciados pelos grupos
indígenas em Chiapas ao longo de séculos.
Considerações Finais
Diante do que foi exposto, é possível compreender que as estratégias de
resistência adotadas pelo Exército Zapatista de Libertação Nacional foram
gradativamente construídas. Ao considerar que as instituições políticas mexicanas eram
ilegítimas e corruptas, os insurgentes zapatistas aos poucos se afastaram do cenário
político institucional, embora ainda buscassem dialogar com o governo a fim de terem
sanadas suas demandas. A construção dos municípios autônomos zapatistas refletem
esta postura política, uma vez que possibilitava a autogestão às comunidades indígenas.
Neste sentido, refutavam as ações do Estado que, ao longo do século XX, negligenciaram
as demandas socioculturais indígenas, o que teve como consequência a marginalização
socioeconômica desta parcela da população.
Ademais, percebe-se que o engajamento político dos grupos indígenas em Chiapas
teve como aliados a ação dos teólogos da libertação na região da Selva Lacandona e a
mobilização de integrantes da Força de Libertação Nacional (FLN). Ao mesmo tempo, o
EZLN recuperou e incorporou muitas perspectivas político-ideológicas do movimento
zapatista atuante durante a Revolução Mexicana, que aconteceu nas primeiras décadas
do século XX, sobretudo no que diz respeito à instituição de um governo local autônomo,
ao anseio por uma reforma agrária e à construção de uma democracia inclusiva, que
levasse em consideração demandas por melhorias nas condições de vida das parcelas
marginalizadas do país.
Por fim, considera-se fundamental compreender que a resistência protagonizada
pelo Exército Zapatista de Libertação Nacional e pelos grupos indígenas chiapanecos não
permaneceu restrita a âmbito local. Por meio da disseminação de comunicados e de
outros documentos elaborados pelo EZLN através dos meios de comunicação, os
insurgentes zapatistas conseguiram apoio de amplos setores da sociedade civil no
México e em outras partes do mundo. Além disso, a partir das ações dos insurgentes
zapatistas, fomentou-se o aprofundamento das discussões, em nível nacional, acerca da
implementação de uma efetiva reforma agrária, do direito à autonomia indígena e da
construção de instituições políticas verdadeiramente democráticas.
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