FONSECA, Sofia Theodoro Prevatto
*
MAZZA, Tayná Bomfim Mazzei
**
RESUMO: Este ensaio propõe apresentar a
guerra justa como modo estruturante do Império
português, indicando como esse ideal se
transforma na contingência dos acontecimentos
históricos, quando aplicado contra os conhecidos
nos documentos como “Cayapó” Meridionais,
povos ocupantes das regiões do Triângulo
Mineiro, norte de São Paulo e sul de Goiás nos
séculos XVIII e XIX. Por outro lado, a partir de
alguns documentos, lidos à luz da Etnologia,
busca-se demonstrar como a guerra foi o modo
estruturante dos “Cayapó” Meridionais em
contato com os agentes do poder colonial, prática
igualmente avaliada colocada à luz de novos
contextos, quando estes reavaliam suas políticas
de predação da alteridade, optando por alianças,
pactos, numa espécie de prolongamento da
guerra. Observando como em ambos os casos, se
passa de uma prática da estrutura, a uma
estrutura da prática.
PALAVRAS-CHAVE: Guerra Justa; Contato;
Império Português; “Cayapó” Meridionais.
ABSTRACT: This essay proposes to present the
just war as a structuring mode of the Portuguese
Empire, indicating how this ideal becomes the
contingency of historical events, when applied
against those known in the documents as
"Southern Cayapó", people occupying the regions
of Triângulo Mineiro, north of São Paulo and south
of Goiás in the 18th and 19th centuries. On the
other hand, from some documents, read in the
light of Ethnology, we seek to demonstrate how
war was the structuring way of the Southern
“Cayapó” in contact with the agents of colonial
power, an equally evaluated practice placed in the
light of new contexts , when they reassess their
policies of predation of otherness, opting for
alliances, pacts, in a kind of prolongation of the
war. Observing how in both cases, one moves from
a practice of the structure to a structure of
practice.
KEYWORDS: Just War; Contact; Portuguese
Empire; Southern “Cayapó”.
Recebido em: 07/03/2020
Aprovado em: 18/06/2020
* Mestre em História Social pela Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia MG, doutoranda no
Programa de Pós-graduação em História Unesp /Franca, Franca SP. E-mail: sofiaprevatto@yahoo.com.
** Mestre em Ciências Sociais com ênfase em Antropologia Social pela Universidade Federal de
Uberlândia, Uberlândia MG. Professora da Rede privada do estado de Minas Gerais. E-mail:
tayna_mazza@hotmail.com.
Este ensaio tem como proposta apresentar a guerra justa como modo
estruturante do Império ultramarino português, com o esforço de indicar, embasado nos
documentos históricos, como esse ideal se transforma na contingência dos
acontecimentos históricos, quando aplicado contra os conhecidos nos documentos como
“Cayapó”
1
Meridionais, povos ocupantes das regiões que hoje compreendem o Triângulo
Mineiro, norte de São Paulo e sul de Goiás dentre os séculos XVIII e XIX. Por outro lado,
a partir de ofícios, crônicas, memórias de viajantes, relatos, documentos oficiais, lidos à
luz da Etnologia, busca-se demonstrar como a guerra foi o modo estruturante dos
“Cayapó” Meridionais em contato com os agentes do poder colonial, prática igualmente
avaliada colocada à luz de novos contextos, quando estes reavaliam suas políticas de
predação da alteridade, optando por alianças, pactos, numa espécie de prolongamento da
guerra. Observando como em ambos os casos, se passa de uma prática da estrutura, a
uma estrutura da prática. (SAHLINS, 1990).
A partir dos pressupostos que tomamos de empréstimo de Sahlins (1990),
observa-se como as sociedades vivem num misto de estrutura e evento, de rupturas e
continuidades, ultrapassando a noção de estrutura apresentada pela antropologia
estrutural, enquanto modelo fixo e estático, para a incorporação da historicidade. Se
num primeiro momento os acontecimentos históricos são absorvidos por uma estrutura
pré-existente, quando a história é culturalmente ordenada; num segundo momento, os
acontecimentos históricos trazem novos significantes que possibilitam, na prática social,
que a cultura seja historicamente ordenada, isto é, a própria transformação da estrutura
por meio da ação histórica.
Nesse apanhado, com o diálogo entre a História e a Antropologia, procura-se
refletir sobre os aspectos pertinentes ao entendimento do conceito da guerra no Império
português, sabendo que foi um artifício de poder desenvolvido pela sociedade
portuguesa, pelos agentes coloniais, inserida na dimensão múltipla de circulação de
ideias, saberes e práticas culturais. Foram delimitados os pressupostos que contribuíram
para o uso desse recurso como constante na era moderna, evidenciando os rearranjos
que teceram a lógica da guerra e as teorizações políticas e religiosas que a envolviam,
sobretudo com o debate exercido pelas escolas ibéricas a respeito da reordenação da
guerra medieval em atualizações históricas com a América portuguesa.
1
Ao longo do trabalho este termo aparecerá com a letra C entre aspas: “Cayapó”; como também com a
letra K sem aspas: Kayapó. O primeiro é o seu modo de aparecimento na documentação histórica, e o
segundo é a normatização da ABA (Associação Brasileira de Antropologia), sendo o modo de aparecimento
na Etnografia.
Num segundo momento, em busca de compor um panorama histórico-etnográfico
das relações de contato que se deram no Triângulo Mineiro, norte de São Paulo e sul de
Goiás dentre os séculos XVIII e XIX, se faz uso de recentes pesquisas, que alinhadas à
leitura atenta de documentos históricos, tais como ofícios, crônicas, memórias de
viajantes, relatos, documentos oficiais, são fragmentos fundamentais para a construção
de quadros históricos mais abrangentes (embora parciais) a respeito da coexistência
interétnica e intertribal nesta região e período. Pesquisas que já apontam para indícios de
que o ideal da guerra justa foi aplicado contra os Cayapó” Meridionais, colaborando
para a elaboração das alegorias da colonização que iriam justificar o extermínio,
cristianização, escravização e apresamento desses grupos sociais.
Por fim, debruça-se sobre a noção da guerra sob o ponto de vista dos próprios “Cayapó”
Meridionais, ao demonstrar como a guerra se estabelece como política de predação da
alteridade, que serve como meio de estabelecer relações com o exterior e como elemento
crucial na construção de pessoas nessas sociedades. Apontando como em situações de
contato com os não-índios, os “Cayapó” foram capazes de atualizar seus mitos e feitios
guerreiros, numa incorporação do “outro” para construção do “nós”. Bem como esses
grupos foram capazes de reavaliar seu feitio guerreiro buscando outras formas de
estabelecer contato com a alteridade.
Os Pressupostos históricos da guerra e o modo estruturante do Império português
A experiência portuguesa na Ásia e na América marca, sobretudo, um painel
histórico de encontros com diferentes sociedades na era moderna. De um lado do globo,
encontraram hindus, mulçumanos, árabes, judeus, japoneses, e do outro, as múltiplas
populações indígenas da costa brasileira. A repercussão desse panorama fez com que o
“[...] país periférico, cristão e marítimo” (COSTA; RODRIGUES; OLIVEIRA, 2014, p. 19)
conquistasse fronteiras e sujeitos, a partir de uma lógica de dominação que aqui
entenderemos como modo estruturante da arquitetura imperial, pautado sobretudo no
dispositivo da guerra.
Este processo se instituiu com um império de dimensões globais a partir do
século XVI, mas necessitava de um suporte ideológico que justificasse a intervenção e os
limites morais e jurídicos diante da diversidade dos povos, culturas e etnias encontradas
no além-mar (MARCOCCI, 2012, p. 533). Por essa necessidade, considerou-se o ajuste de
bases jurídicas junto a reivindicação lusa pela ortodoxia católica, para desenvolver a
ideia de vocação imperial, e principalmente, a consciência de um império (MARCOCCI,
2012).
Com isso, a perspectiva intervencionista se pautou na aliança da cruz e da
espada, sobretudo com esquemas culturais e religiosos que se desdobravam pela
jurisdição moderna e ciência moral. Segundo Giuseppe Marcocci, a agressividade por
parte do império se deve aos resquícios trazidos da escravidão na antiguidade, e foram
redimensionados na perspectiva e na experiência moderna, e do que se construía em
situação histórica de contato. A doutrina da guerra justa, foi uma proposição
constantemente utilizada pelos letrados da península ibérica, e por meio dela
procuravam o fim maior de conquistar territorialmente e espiritualmente as populações
encontradas (MARCOCCI, 2012, p. 533). Por isso, a guerra justa vem ocupar um espaço
importantíssimo no modo como a experiência portuguesa se constituiu, ao passo que
caracterizou o reordenamento da jurisdição da guerra e a sequente prática imperial.
Desse cenário étnico-cultural tão amplo, o processo de criação da entidade
política recebeu influências plurais no jogo da ação (CARNEIRO DA CUNHA, 1994, p.
122). E por outro lado, há de se concordar que, na incorporação desses novos territórios,
usou-se de aquisições teóricas medievais da guerra, somado a identidade cristã,
elencando argumentação ao direito de conquista e à política instrutiva dos governos no
ultramar.
A historiadora Ângela Barreto Xavier relembra a influência de povos nativos da
Índia portuguesa, enquanto sujeitos históricos do aparelhamento político, e descreve a
aplicação cultural política “Quer isto dizer que o caráter tentativo, de improvisação, de
invenção da própria arquitetura imperial, o casuísmo inerente ao processo de
aprendizagem da colonização, não exclui a existência de uma prospectiva imaginação
imperial”. (XAVIER, 2015, p. 67). Portanto, por detrás da experiência asiática, existiu um
processo de reinvenção da dominação por parte das populações locais, onde o encontro
cultural altera, atualiza, repensa e reconfigura os agenciamentos, interesses e sujeitos na
história, interpretação de Xavier, muito inspirada na ideia de transformação histórica de
Marshall Sahlins (SAHLINS, 1990), e que também será associada nesta investigação.
Contudo, da mesma maneira que a pesquisadora enquadra a análise histórica de
sua pesquisa, é necessário que percebamos os pressupostos que nortearam a dimensão
do imaginário dos primeiros navegadores portugueses. Logo, por esse entendimento, ou
como Xavier comenta, nasceu a prospectiva da guerra, especialmente na égide da guerra
santa. Com isso, a coroa adquiriu um empreendimento necessário e essencial para a
efetivação da expansão, e guarda para si a aliança político-religiosa, caracterizando
justificativa inicial do poder imperial de declaração e uso da violência legítima. Veremos
alguns pontos que antecedem a própria utilização da guerra enquanto fenômeno
histórico, e que mais adiante, elencou a prática colonizadora nas terras da América do
Sul especialmente na experiência com os “Cayapó”.
A partir da rota do Cabo de Vasco da Gama para a Índia ou o novo caminho
aberto por Cabral que implantou a América portuguesa, a ação do Estado moderno
português utilizou de um projeto de conquista baseado, sobretudo, no seu apego à
ampliação dos domínios do cristianismo, verificado pelo espírito cruzadista - o ideal de
Reconquista datado no século XI. Entender esse elemento na conjuntura política dos
descobrimentos é perceber a influência estrutural da guerra santa na sua história,
portando-se como elemento constitutivo da identidade portuguesa, herança destacada
no emblemático episódio da Tomada de Ceuta no Marrocos em 1415. Esse foi um
momento em que os portugueses avançaram em direção às conquistas no continente
africano, e com êxito, marcou um lugar chave do início do expansionismo. (DORÉ, 2007,
p. 115).
O entusiasmo do Estado português com relação à Reconquista foi, conforme o
entendimento da historiadora Ludmila Santos Portela, um empreendimento que aliou a
concepção religiosa sustentada, sobretudo, pela concepção da cristandade permanente.
Um dos maiores contributos desse movimento era o de reconquistar os territórios
santos, especificamente de libertar Jerusalém, ocupados pelos muçulmanos. (PORTELA,
2017, p. 1).
Segundo a professora Andréa Dono trabalho sobre viajantes e mercadores do
Ocidente e Oriente nos séculos XIII-XVII, a primeira Cruzada foi a única que é
considerada como “aquela da fé”, e somente ela esteve ligada a esse exclusivo
sentimento religioso, como também o uso da violência a partir desse pressuposto
religioso (DORÉ, 2007, p. 109). A autora ainda salienta os objetivos de libertar a Terra
Santa, a primeira Cruzada datada de 1096-1099 era:
Ela não tinha nenhum objetivo além da conquista dos lugares santos e não
abrigava “nenhuma outra promessa além daquela de ganhar o céu combatendo
por Deus”. Os homens não sabiam o que iriam encontrar e entre as motivações
pessoais não estava o enriquecimento. (DORÉ, 2007, p. 109).
Tal explicação mostra que o empreendimento das Cruzadas até o século XIII, por
exceção dessa primeira, perderam seu maior sentido por conta dos empreendimentos
comerciais exercidos entre mercadores cristãos e árabes.
Entretanto, no pontificado de Inocêncio IV (1243-1254) a direção retomou o
objetivo inicial de construir a Cristiana Repubblica (DORÉ, 2007, p. 110) ou mesmo
civitas universal, termo para a concepção da humanidade universal cristã, elemento de
utilização teórica dos Estados nacionais na modernidade. Essa compreensão buscava o
processo de integração dos continentes de acordo com a noção estoica do cristianismo
primitivo (PANEGASSI, 2017, p. 30). A doutrina da guerra justa se dilui Cristiana
Repubblica a partir do instante em que se transforma como meio de instalação do
cristianismo universal pois “no âmbito das ideias, a violência estaria diluída na
perspectiva da conquista espiritual” (PANEGASSI, 2014, p. 1). Além disso, como aparato
político, foi intimamente ligada à essa fundamentação de vocação imperial e religiosa dos
portugueses, colocando-os como detentores dessa providência. Aliás, a relação da
civitas universal revelou-se como um importante papel histórico e moral para o
embasamento teórico para o império, orientada pelos primeiros pensadores do
Renascimento e Humanismo português.
Outro elemento que marcou o ambiente de debate político e da utilização da
guerra pela política imperial foi o sustentáculo teórico da Igreja, que por meio de
documentos emitidos pelo pontífice bulas reforçou a autorização e legitimação da
conquista e domínio em nome da fé. Promoveu a expectativa do avanço demográfico
sobre os territórios e a autorização para que se fizesse o uso da violência justificada,
fenômeno que enalteceu a concepção da Divina Providência no imaginário dos
portugueses. De fato, essa característica institucional também esteve presente na
assimilação da identidade guerreira e a ação proselitista que se associaram.
A atuação do papado é relevante com relação à essas premissas. Como exemplo,
Marcocci interpreta as bulas como elementos marcantes nos domínios ultramar pois
como híbrido jurídico exerceu influências nas exigências iniciais e no decorrer das
posses imperiais. (MARCOCCI, 2012, p.45). Por isso, o autor ênfase a função
estruturante da bula Dum diversas, com data de 1452 que “poderia ratificar um domínio
existente, como também garantir a legalidade de uma ocupação futura” (MARCOCCI,
2012, p. 42) e ainda “O legado imperial colhia com precisão os elementos constitutivos da
imagem oficial que viria a ter o império português nos documentos pontifícios, a partir
da Dum diversas(MARCOCCI, 2012, p. 61). com a bula Romanus Pontifex (1455) os
portugueses conseguiram a autorização de senhores da conquista e “reafirmou a
doutrina da potestade indireta do papa, declarava explicitamente que os poderes
outorgados aos reis de Portugal, instituía uma relação de continuidade entre as guerras
de cruzada e as expedições organizadas por D. Henrique”. (MARCOCCI, 2012, p. 62).
Tendo em vista os pressupostos da Reconquista, a projeção da Respublica
Christiana
2
, somado ao legado das bulas, desdobraram-se com um último “componente”
para o aparato ideológico necessário naquele momento de expansão. Assim, a guerra foi
utilizada como base teórica frente as concorrências das monarquias nacionais do século
XV-XVI e a diversidade dos povos encontrados através da compilação realizada pelos
primeiros letrados. Por estes funcionários, o uso da guerra absorveu das noções
projetadas na antiguidade clássica, e reformulou uma concepção de atuação do Estado
moderno frente às novas demandas da primeira globalização
3
.
Finalmente, a noção de guerra justa recebeu o zelo dos humanistas em razão da
construção de uma ideologia do Estado e da atuação frente aos mares e diversidade dos
grupos étnicos. A base teórica dimensionada pelos intelectuais também implicou no
desejo em conciliar os empreendimentos econômicos e políticos, para se combater as
controvérsias que surgiam com relação a supremacia dos mares e das especiarias. Desse
modo, Doindica que o Renascimento português teve uma dimensão muito pragmática
em relação às outras monarquias, e por isso soube interpretar da experiência dos
viajantes italianos para teorizar e adentrar o campo das disputas jurídicas e morais que
apareceram durante o século XVI. (DORÉ, 2007, p. 120). Por essas mesmas necessidades,
observaremos como essa foi uma apropriação redimensionada para validar o confronto
com os povos indígenas no Brasil colônia, compondo um processo colonizador e a práxis
imperial baseada nos princípios evangelizadores e civilizadores da cultura europeia.
Historicamente, o debate sobre a legalidade da guerra vem desde a antiguidade.
Um dos primeiros pensadores foi Cícero (4 a.C) que discutiu o uso da força para
solucionar os problemas da República, salientou a solução do barbarismo por meio da
guerra, mas procurou definir certos limites éticos e legais na condução de uma guerra
(PANEGASSI, 2017, p. 26). Com o cristianismo primitivo as ideias concebidas em cero
definidas pela Ius fetiale são aprimoradas por Santo Agostinho (354-430), e ele a
contemplou como tradição da guerra. Para o filósofo, ela é um fundamento ético e
pautado por boas intenções, e deve ser, sobretudo, uma disputa orientada pela busca da
paz. Além disso, Agostinho indicou a responsabilidade de condução por parte de uma
autoridade apropriada. (PANEGASSI, 2017, p. 29).
2
Respublica Christiana é uma concepção política medieval que abrangia todo o populus christianus numa
única entidade política conduzida pela autoridade religiosa, o Papa, e no âmbito temporal pelo Imperador.
Para Carl Schmitt a Respublica Christiana condicionou toda a apropriação de terra durante a Idade Média,
tornando todas as terras não-cristãs em “território missionário cristão (SANTOS, 2016. p. 8).
3
Termo utilizado por Andréa Dopara caracterizar o processo de expansionismo e descobrimentos da
Época Moderna. (DORÉ, 2007, p. 107).
Segundo Rubens Panegassi, em São Tomás de Aquino (1225-74), três ideias foram
essenciais e deveriam ser, obrigatoriamente, articuladas para a proclamação da guerra
justa: a primeira é a definição de uma autoridade legítima; a segunda verifica-se na causa
justa (Reconquista); e a terceira baseada na reta intenção. Deve-se observar que a
doutrina construída por Aquino é importantíssima para caracterizar o papel do soberano
como detentor do direito de declaração da guerra, pois estes, na lógica do direito divino
dos reis, teriam que se responsabilizar apenas à Deus. (PANEGASSI, 2017, p. 29)
4
.
Com base nessa unidade percebida pela compreensão da guerra medieval que o
processo colonizador se estabeleceu frente a diversidade dos povos originários na
América. Cabe lembrarmos que foi um império que abarcou inúmeros espaços humanos
e territoriais e, por isso, necessitou de um discurso que considerasse legítima a posse e o
contato com esses novos lugares e povoações, para justificar ideológica e
juridicamente o domínio pretendido pelo monarca e suas conexões para a manutenção
da ordem religiosa e política. Em consequência, o uso da força e da agressiva imposição
política também utilizou desse esquema discursivo frente ao confronto e a dominação.
Articulando um estreitamento cada vez maior entre os vértices da política e religião, os
portugueses se basearam na reivindicação da ortodoxia cristã e o exclusivo da guerra
justa. (PANEGASSI, 2017, p. 133)
5
.
Assim, a partir de documentos históricos busca-se demonstrar como a prática de
uma estrutura, a da guerra justa, passa a uma estrutura da prática, quando agenciada em
novos contextos, tais como contra os “Cayapó” Meridionais que habitavam dentre os
séculos XVIII e XIX as regiões que hoje compreendem o Triângulo Mineiro, norte de São
Paulo e sul de Goiás, buscando legitimar, neste caso, o combate, a cristianização e a
escravização indígena.
4
Não é de hoje que a discussão sobre a teorização da doutrina da guerra justa é amplamente debatida,
direta ou indiretamente nas análises do Império português. Contudo, seria pretensiosa de nossa parte,
querer abarcar toda essa produção. Mereceria um espaço maior e lego na análise. Portanto, o intuito foi
de nomear alguns importantes representantes da teorização e se debruçar na complexidade do fenômeno
no âmago do modo estruturante do império. Cf: (FREITAS, 2014); (DE SOUSA, 2017).
5
A doutrina da guerra justa veio a ser utilizada em diferentes circunstâncias na modernidade, recebendo
uma multiplicidade de tendências analítica sobre a compreensão da paz, da guerra e do direito de
intervenção. Exemplo disso, viu-se nos estudiosos da Universidade de Salamanca. O dominicano Francisco
Vitoria que entre os anos de 1537-1554, fez profundo debate sobre o uso da doutrina em função do
controle dos mares e o comércio de especiarias por parte da coroa portuguesa. Os dominicanos, com base
nas ações portuguesas e a utilização da guerra justa ilegítima, sustentaram as argumentações da segunda
Escolástica para que condenassem com “severidade uma prática que limitava o direito ao comércio e
constituía, por um consequente pecado mortal” (MARCOCCI, 2012, p. 300), baseando-se também, diversas
acusações de roubo e violência. Isso é importante exemplo de como a doutrina da guerra foi utilizada em
caráter político e de acordo com as ambições de quem objetivava o monopólio e a intervenção dos povos e
mares (MARCOCCI, 2012, p. 300).
Da estrutura ao evento: relações de contato e guerra com os “Cayapó” Meridionais
nos sertões brasileiros
Nos documentos históricos dos séculos XVIII e XIX encontra-se com frequência o
termo “Gentio Cayapó”, povos que parecem ter ocupado uma área, “[...] com certa
margem de segurança, como sendo formada pelo sul e sudoeste do estado de Goiás, o
atual Triângulo Mineiro, parte do norte de São Paulo, o leste do atual estado do Mato
Grosso e leste e sudeste do atual Mato Grosso do Sul (GIRALDIN, 1997, p. 57). Esse
termo foi utilizado pela primeira vez, como se depreende da documentação histórica, em
1723
6
, pelo sertanista Antônio Pires de Campos, indicando que “Este gentio é de aldêas, e
povoam muita terra por ser mui'a gente, cada aldêa com seu cacique, que é o mesmo que
governador” e “estes vivem de suas lavouras, e no que mais se fundam são batatas, milho
e outros legumes. [...]”. (CAMPOS, 1862, p. 437- 438).
Embora muito encontrado posteriormente em relatos de viajantes, cartas,
descrições, essa nomenclatura não nos esclarece de fato quem eram esses povos, que
o termo é de origem exógena, Tupi, e significa “como macaco” (TURNER, 1993), um dos
aspectos que demonstra como as menções nos documentos históricos a respeito dos
“Cayapó” foram construções do outro (seja dos agentes coloniais, seja dos Tupi em
situação de contato sob o domínio de bandeirantes). De acordo com os dados
documentais e a moderna etnologia, podemos considerar que “o termo ‘Cayapó’ é um
apelativo aplicado por um olhar estrangeiro a uma série de grupos provavelmente
associados aos Jê meridionais” (MANO, 2015, p. 520), que se sabe que este grupo
pertencia à família linguística Jê, derivada do tronco linguístico Macro-Jê, sendo que
algumas de suas características, tais como falar língua diversa do tupi e habitar aldeias
circulares derivam daí.
Com grande população e belicosidade, os “Cayapó” Meridionais foram vistos nos
séculos XVIII e XIX como um obstáculo ao avanço da “civilização”. Não fossem as
guerras intertribais empreendidas entre os “Cayapó”, Xerente, Xavante, os embates mais
conhecidos a partir desse momento foi entre o tal “Gentio Caiapó” contra os não-índios,
que avançavam cada vez mais sobre o território desses grupos. O local de maior contato
e conflito foi a estrada conhecida como “Caminho dos Goiases”, demarcado pela
Bandeira de Bartolomeu Bueno da Silva, também conhecido como Anhanguera, que
cortava a atual região do Triângulo Mineiro, um caminho estratégico para o escoamento
6
Embora a primeira menção direta aos Kayapó seja de 1723, alguns autores (MONTEIRO, 1994, p. 63)
levantaram a hipótese de no século XVI os Kayapó serem conhecidos como Bilreiros.
de ouro para São Paulo e Rio de Janeiro, e que ligava São Paulo até o arraial de Santa Ana,
posteriormente Vila Boa (Capitania de Goiás).
Segundo Neme (1969), a partir de documentos históricos, têm-se evidências de
que por um período o contato entre os “Cayapó” Meridionais com os não-índios foi
pacífico, com ocasiões para relações amistosas, trocas e negociações comerciais (NEME,
1969, p. 113), sendo que algumas aldeias indígenas serviram inclusive de ponto de parada
e reabastecimento das bandeiras paulistas que adentravam o Brasil Central.
O contato pacífico, muito embora, não tardou em desaparecer quando em meados
do século XVIII as atividades garimpeiras começam a apresentar sinais de esgotamento,
levando a economia da região a um estado de decadência. Com o declínio da mineração,
pelo esgotamento das minas e pelo crescente fiscalismo intervencionista imposto pela
metrópole, tanto em Minas Gerais como em Goiás, cresceram as atividades ligadas ao
campo, sobretudo a agricultura e a pecuária. Tais acontecimentos levaram as bandeiras
ao estabelecimento de uma relação de escravização com os povos indígenas com os
quais se deparavam, uma vez que o “bandeirismo” assinalava o seu motivo
fundamental: a necessidade crônica de mão de obra indígena para a manutenção da
agricultura paulista. (MONTEIRO, 1994, p. 57).
Em virtude dos inúmeros conflitos que se deram entre os “Cayapó” Meridionais e
os não-índios, as autoridades coloniais passaram a constituir uma imagem desses povos
enquanto bárbaros e selvagens, concorrendo para o desatino das “alegorias da
colonização”. Em guerra contra os “Cayapó” Meridionais, agentes coloniais teciam
comentários que serviriam para a criação das metáforas de selvageria com relação a
esses povos, tais como o de que “[...] tudo levam de traição e rapina”, ou mesmo que
“guerreiam com traição[...] e se sustentam de imundices do mato” (CAMPOS, 1862, p.
438). Seu poderio bélico também foi descrito em diversas ocasiões, quando afirma que:
As armas de que usam são arcos muito grandes e flechas muito compridas e
grossas, e também usam muito de garrotes, que são de páu de quatro ou cinco
palmos com uma grande cabeça bem feita, e tirada, com os quais fazem um tiro
em grande distância, e tão certo que nunca erram a cabeça; e é a arma de que
mais se fiam, e se prezam muito dela. (CAMPOS, 1862, p. 437)
7
.
Pelo estranhamento e o choque cultural que se sustentou desde o princípio da
colonização, os colonos em terras coloniais utilizavam de categorização etnocêntrica
para denominar aquilo que desconheciam, exemplo disso refere-se a assimilação de
7
A denominação Bilreiros se deve a semelhanças das bordunas dos “Cayapó” Meridionais com o Bilros,
instrumentos utilizados para a confecção de rendas, similares as armas dos Tupi conhecidas como
Ibirapema.
“bárbaro” para os costumes, rituais, e a cultura daqueles povos e diversidades: “A
denominação de bárbaro ia além do natural estranhamento e incompreensão causados
pelo choque da alteridade, e se encaixava num conveniente discurso legitimador da
opressão, escravidão e extermínio, e que era reforçado por uma cartografia que sempre
dava relevo ao seu caráter selvagem e antropófago”. (DIAS, 2002, p. 6).
Esses sentidos negativos ajudavam a justificar a ocupação de um lugar “sem
cultura”, além de sustentar a visão de uma local inóspito, cercado por infiéis e selvagens,
o que “Era o espaço do “outro” (entendido como inversão do “eu”, desfigurado e
fragmentado), da alteridade, logo seu sentido era político, social e cultural, e não
exclusivamente geográfico”. (ASNIS, 2019, p. 30). Por esta visão colonizadora, e com o
objetivo de conferir sentido a sociodiversidade nativa encontrada no território do Brasil,
uma série de cronistas, viajantes e memorialistas, como Fernão Cardim (1939 [1584]),
Soares de Souza (1938 [1587]) e Vasconcellos (1865) aplicaram o termo Tapuia a uma
variedade heterogênea de tribos que tinham somente uma coisa em comum: o fato de
não serem Tupi, colaborando com a criação de uma grande divisão mencionada entre
os Tupi costeiros plantadores de mandioca em comparação a uma série de povos ou
nações indígenas não-tupi do interior, embora muito diversificadas entre si. O sertanista
e senhor de engenho português Gabriel Soares de Souza foi um dos principais
personagens na elaboração da imagem do que seriam os povos indígenas no Brasil,
sendo um dos principais responsáveis pela disseminação dessa grande divisão
dicotômica entre Tupi e Tapuia, os primeiros considerados mansos, amigos,
catequizados; os segundos, à antítese dos primeiros, considerados bárbaros, selvagens,
incivilizáveis. Foi por intermédio deles, como agentes históricos que movimentaram
interesses, que se construíram uma série de exononímias para a classificação dos povos
indígenas, condicionando e determinando as próprias relações entre índios e não-índios
durante o período colonial.
Sendo a guerra consequentemente utilizada como maneira de intervir àqueles que
se recusavam ao processo civilizador e evangelizador:
No arrazoado da época, a liberdade indígena era garantida desde que os gentios
aceitassem abandonar seus costumes e modos de vida, transformando-se em
vassalos produtivos da empresa colonial. Para àqueles que se recusavam,
insistindo em permanecer como bárbaros, as guerras-justas e a escravidão
eram permitidas como forma de subjugá-los. (FREITAS, 2011, p. 130).
Portanto, as relações que se construíam a partir desses modelos criados pela
interpretação colonizadora, paralelamente, sustentavam-se na necessidade de mão de
obra e a erradicação desses costumes tidos como selvagens. Ou seja, nesse momento,
construía-se um sentido moral missionário e civilizador, que dialogava fortemente com a
doutrina da guerra justa. A atuação desses colonos foi possibilitada por uma legislação
indigenista bastante maleável e oscilante que, segundo Beatriz Perrone-Moisés
(PERRONE-MOISÉS, 1992), possuía características favoráveis aos desejos dos colonos,
mas também às demandas protetivas evidenciadas pelos discursos jesuítas
8
.
No ponto de vista do contexto do século XVI, um exemplo de utilização da
doutrina da guerra, observa-se a reparação do teórico Juan Ginés de Sepúlveda (1490-
1573), na defesa da legitimação da conquista e da escravidão dos índios por parte dos
espanhóis (SANTOS, 2016. p. 10). O conquistador utilizou de argumentos que conversam
com teorias aristotélicas, agostinianas e sobretudo de Aquino, na sua obra Demócrates
segundo, ou das causas justas da guerra contra os índios (1548). Elencou justificativas
sobre o trabalho forçado dos ameríndios e a submissão por meio da guerra justa,
considerou o índio um escravo natural, sem liberdade de ação, nem organização civil, e
seriam corrigidos pela presença da civilização europeia (PANEGASSI, 2017, p. 31 - 32).
Assim, esse é um exemplo de como a guerra se apresenta no plano do processo
civilizatório das políticas ultramar:
Acumulação primitiva também de capital simbólico: ao capturar as sociedades
indígenas nas fórmulas teológico-políticas que regulam a expansão colonial, os
textos quinhentistas as inscrevem numa memória europeia, com duração,
espaço e características específicas da “política católica” ibérica. (HANSEN,
1998, p. 1).
Segundo Hansen (1998) a guerra justa exercida em território americano reutilizou
das concepções medievais, regulando os mecanismos de sujeição a partir do ideal
teológico que nada tinham de antropológicas, e por base, dialogavam com as concepções
construídas na antiguidade (HANSEN, 1998). Por essa razão, os debates que envolviam
questões sobre a invasão territorial, a utilização de mão de obra indígena no território do
Brasil, tinham como pressupostos a disposição teológica sobre a liberdade da escolha do
Bem de Deus, ou sua recusa, legitimando assim, uma intervenção justa tradição da
prática colonizadora
Assim, no caso português, observa-se nela uma dupla reprodução, ou seja, uma
repetição ortodoxa, que preserva o passado da traditio das autoridades
canônicas, e uma repetição missionária. Que avança baseada
na traditio aplicada aos dados simbólicos preservados e adaptados às novas
8
Segundo Hansen os inacianos definem o índio como ser humano criado por Deus e dotado da luz
natural, mas concedem que é um homem desmemoriado da verdadeira lei, a lei eterna. Logo, defendem a
urgência de salvar-lhe a alma imortal, fornecendo-lhe a memória da justiça e do Bem por meio de leis
positivas justas” (HANSEN, 1998).
situações, conquistando o espaço, a oralidade, a falta de história e a
inconsciência dos selvagens com os processos do tempo teológico-político que
os hierarquiza (HANSEN, 1998, p. 1).
Utilizando-se da compreensão de Immanuel Wallerstein, foi na era moderna que a
invenção de um digo ideológico da guerra favoreceu moralmente a ascensão de
soberanias especificas em detrimento de outras (WALLERSTEIN, 2007). Apresentou
pressupostos ideologicamente universais, significantes para a obrigação política de
expandir universalmente o cristianismo e a conotação determinante que os discursos de
dominação exerceram em relação ao modo estruturante da política imperial portuguesa.
Assim, foi essa visão e esse modo estruturante que justificou no século XVIII as
guerras de extermínio contra esses grupos, sob a égide de guerra justa, acontecendo
“quando o inimigo (nesse caso os “Cayapó” Meridionais) recusa a conversão ou impede a
propagação da católica, praticando hostilidades contra os portugueses ou aliados ou,
então, rompendo algum pacto celebrado”, sendo que para aqueles sobreviventes “recaía
ainda a permissão da escravidão legal” (PERRONE-MOISÉS, 1992). Isto é, estavam
pautadas no “justo direito”, como explicitado na carta do padre Manoel Vieira Nunes
para o Conde de Valadares que Amantino (2014) consulta, ao apontar que “os
prisioneiros de justa guerra não sendo católicos têm por direito comum imperial a pena
de servidão perpétua.” (AMANTINO, 2014, p.100). De forma que estava claro desde o
século XVI que a intenção da guerra justa nas Américas tinha como objetivo exterminar
aqueles índios considerados hostis, a partir de um aparato que legitimasse e justificasse
suas ações, sendo que, “[...] com frequência, os inimigos mais indicados para uma guerra
justa foram os chamados Tapuias” (MONTEIRO, 1994, p. 52). Aqui percebemos como o
modo estruturante da guerra justa é aplicado, embora ganhando novos significados,
novas práticas e novos inimigos.
Tanto que em 1742, com a desculpa de manter a salvo a população de não-índios
ali existente devido aos inúmeros conflitos, o governador de São Paulo, Dom Luiz de
Mascarenhas dava instruções claras para a conquista, escravização e extermínio dos
“Cayapó”:
[...] não se rendendo os ditos Gentios, e sendo tomada as mãos na pelleja os
passarão a espada sem distinção ou differença algûa de sexo, só não executarão
a da pena de morte nos meninos e meninas de dês annos pa. baixo, porque estes
os conduzirão a esta Va. para delles se tirar o quinto de S. Mage. E os mais se
repartirem por quem tocar. (CARDOZO FILHO, 1913, p. 168 apud MANO, 2010,
p. 331).
Como exposto, apenas seriam poupadas as crianças com menos de dez anos, para
que fossem distribuídas entre os moradores a fim de administrá-las, isto é, de ensi-las
os preceitos da fé cristã católica e da língua portuguesa. Sendo que esse discurso da
coroa portuguesa nada mais era do que um disfarce para a escravidão indígena. (MORI,
2015, p. 36).
Essas campanhas de extermínio aos “Cayapó” Meridionais acabaram por trazer a
região, entre 1741 e 1775, uma série de povos indígenas transladados de suas terras,
enquanto tática de combate eficiente
9
contra os “Cayapó”; tais como os povos que
estavam sob o domínio do sertanista Antônio Pires de Campos. Esse sertanista e coronel
esteve antes, em 1718, juntamente com o seu pai, de mesmo nome, na região que
compreende hoje o atual Mato Grosso, em combate aos Bororo, tendo mantido como
cativos àqueles sobreviventes aos ataques. Com esse contingente sob seu domínio, em
1742, Antônio Pires de Campos “[...] transfere 120 Bororo de Cuiabá para Goiás
instaurando-os na aldeia de Santana do rio das Velhas” e mais tarde, em 1746, ele “[...]
assenta outros soldados Bororo no atual Triângulo Mineiro, à beira do caminho de
Goiás”. (MANO, 2010, p. 332).
A partir desse momento os aldeamentos
10
serviram como base para o exército de
Antônio Pires de Campos, que começou a lançar bandeiras contra os “Cayapó”
Meridionais. Sendo que essa estratégia empregada pelo sertanista “[...] tornou mais
praticável o caminho de São Paulo, fundando as aldeias Sant’Anna, Rio da Pedras e
Lanhoso que foram ao princípio povoadas por bororos”. (CARVALHO FRANCO, 1989, p.
104 apud MANO, 2010, p. 332). Embora diferentes documentos do século XVIII apontem
apenas para a fundação das aldeias Santa Ana do Rio das Velhas, Rio das Pedras e
Lanhoso, fontes posteriores indicam um número muito maior de aldeamentos que se
instaram nessa região e período, como as descrições de Saint’Hilaire quando visitava a
região em 1819, apontando para 18 aldeamentos constituídos. (SAINT’HILAIRE, 1937).
As políticas de aldeamento fizeram com que os indígenas fossem submetidos a inúmeros
prejuízos: eram sujeitados às regras portuguesas; ao trabalho compulsório; seu acesso à
9
Quanto a questão de utilização de índios para guerrear contra outros índios, “segundo os documentos
consultados, isso se deu em virtude do uso das armas indígenas confeccionadas com matéria-prima
encontrada nas matas e que não demandavam custos financeiros para sua aquisição, nem sofriam danos
na transposição de rios caudalosos. Outros fatores preponderantes eram o conhecimento do ambiente o
bioma Cerrado e a capacidade dos indígenas em conseguir produtos comestíveis por meio da caça, da
pesca, e coleta de plantas, (...) importantes para a sobrevivência das expedições guerreiras [...]” (MORI,
2015, p. 116).
10
Aroldo de Azevedo (1959, p. 23) diferencia duas categorias de habitações indígenas: a aldeia, “povoado
construído pelos próprios índios”, com recursos de sua técnica primitiva e de acordo com sua cultura, sem
a interferência de elementos da cultura dita civilizada”; e o aldeamento de índios, “de origem religiosa ou
leiga” que seria uma expressão utilizada para diferenciar os aglomerados “espontâneos”. (AZEVEDO, 1959,
p. 26).
terra era drasticamente reduzido; suas práticas sociais eram proibidas. No entanto,
apesar das inúmeras violências, os grupos indígenas fizeram as suas exigências mesmo
nas condições de aldeados: “[...] queriam garantir suas terras, queriam cargos, aumentos
de salários, ajuda de custo, destituição de autoridades não reconhecidas por eles, e
principalmente, recusavam a escravidão” (ALMEIDA, 2010. p. 80).
Depois de mais de um século de tentativas incessantes de cristianização e aldeamento de
povos indígenas no norte-nordeste do Planalto Meridional Brasileiro, pode-se afirmar
que ambas as empreitadas, embora os grandes esforços, foram frustradas e não surtiram
o efeito esperado. Sabe-se que os governos provinciais do século dezenove buscaram
renovar seus esforços em persuadir os indígenas de assentarem-se em missões,
trazendo missionários de origem italiana ou francesa (KARASCH, 2017, p. 36), no
entanto, a experiência negativa que esses povos tiveram com os não-índios
impossibilitaram novas tentativas. Doenças, fugas dos aldeamentos, ataques aos não-
índios, acentuaram-se pelo resto do século, asseverando o fracasso das violentas
políticas indigenistas.
Contudo, percebemos que em outros cenários e com relação a outros povos, o
Império ultramarino português escolheu uma estrutura pré-existente, a da guerra justa,
como meio de lidar com os “Cayapó” Meridionais na região em questão, enquanto
momento de prática da estrutura. Povos que deveriam ser combatidos e cristianizados
por serem creditados aspectos de barbárie e selvageria, criados pelas alegorias da
colonização como forma de justificar esses ataques. Mas colocados diante de novas
circunstâncias, da falibilidade dos regimes de guerra contra os “Cayapó”, optou-se por
realocar as fronteiras, ao estabelecer a criação de aldeamentos para aprisionamento
desses grupos indígenas, passando para um momento de estrutura da prática, quando os
significados são reavaliados quando realizados na prática e as estratégias cambiadas a
partir dos interesses e agentes envolvidos. E se o destino dos “Cayapó” Meridionais foi
relegado as crônicas do desparecimento, perpassada por esses processos de guerras,
“pacificação”, cristianização, assimilação, numa visão fatalista dos povos indígenas,
busca-se apresentar um contraponto a esta visão, apresentando uma teoria nativa da
guerra, demonstrando esses povos enquanto sujeitos históricos conscientes.
Os “Cayapó” Meridionais e a teoria nativa da guerra
Como meio de compreender a prática da guerra e o regime simbólico de predação
da alteridade entre os “Cayapó” Meridionais que ocupavam a região em foco dentre os
séculos XVIII e XIX, se utilizará dos grupos da etnia Panará e de grupos Kayapó
Mebengokrê como exemplos etnográficos interpretativos da sociocosmologia Jê, através
do método de projeção etnográfica, em decorrência da quantidade de informações
acumuladas a respeito desses grupos, que podem nos iluminar e dar pistas sobre a
sociocosmologia dos grupos pesquisados.
No contato com os não-índios, as descrições documentais indicam um mesmo
padrão de ataque dos “Cayapó” Meridionais: “[...] matavam todos, pilhavam bens que
podiam carregar e queimavam as casas.” (GIRALDIN, 2001, p. 63). Se por um lado, - o da
perspectiva dos agentes coloniais as guerras “Cayapó” serviram para criar as alegorias
da colonização, apresentando esses grupos como bárbaros e selvagens como justificativa
para uma guerra justa, e atualizando sua lógica cultural; de outro lado o dos “Cayapó”
Meridionais as guerras são políticas de predação da alteridade e meios de produção
ontológica, e as circunstâncias de guerra também forneceram possibilidades de
atualização de sua lógica cultural.
Um importante aspecto da cultura dos Panará, apresentado por Giraldin (2001, p.
64) demonstra como os inimigos (guerra) são temidos, tal como as feras (caça), muito
embora igualmente desejados em sua alteridade:
Segundo Heelas (1979, p. 64), os Panará concebem o mundo, como os demais
grupos Jê, de uma forma circular. Para eles este “disco” compõem-se de uma
“terra”, rodeada por “escuridão”. Verticalmente, divide-se em duas zonas
cosmológicas: acima um céu” e abaixo um “submundo”. Horizontalmente, a
“terra”, habitada por humanos que se dividem em duas categorias: Panará/
Kahen, segundo Heelas (1979, p. 74) ou Panará/ hi’pe conforme Schwartzman
(1987, p. 93). [...] Os inimigos (hi’pe) são criaturas revoltantes e guerreiras, mas
fonte de certos poderes e bens. O contato com os inimigos (hi’pe) torna um
homem “bravo” como os “inimigos”. (GIRALDIN, 2001, p. 64-65).
A partir do contato com o outro: inimigo pela guerra é que os Panará estabelecem
as suas cerimônias de furação de lábios, de orelhas, e realizam a escarificação do peito e
das costas que lhes conferem status e prestígio. Os ‘inimigos’ eram considerados,
tradicionalmente, fontes de bens de valor para os Panará, tal como algumas plantas,
como batatas e cará, as quais foram roubadas desses ‘inimigos’”. (GIRALDIN, 2001, p.
65). O que nos indica que o contato Panará com o exterior, e possivelmente dos
“Cayapó” com os não-índios, tinha por objetivo predar partes desses inimigos, que lhes
seriam importantes para o alimento de seu aparato cultural, crucial para a construção e
fortalecimento da identidade Panará, e para a realização dos rituais que têm como
objetivo a construção de pessoas nessas sociedades.
Importante notar que o termo kupen/ kuben/ hi’pe é encontrado em grande parte
dos grupos Jê, e veio a designar fundamentalmente o branco, o não-índio, o “civilizado”.
Nas narrativas, entretanto, “[...] designa os mais diversos tipos de forasteiros e inimigos,
e era seguramente empregado no passado com referência a outros povos e seres, ‘reais’
ou ‘imaginários’” (COELHO DE SOUZA, 2002, p. 400). O que nos indica que a categoria
de “outro” poderia designar diferentes “outros”, bem como poderia ocorrer a passagem
do ‘outro’, kupen/ kuben/ hi’pe, a ‘nós’, meh˜i˜i, a depender dos signos e dos interesses
colocados em jogo. Seja como for, esse outro é sempre desejado em sua alteridade, e
desejado por ser fonte de certos poderes e bens, que tomados, servem de comporto
elementar para a construção de pessoas nessas sociedades.
Vanessa Lea (2012) aponta com relação aos Kayapó Mebêngôkre que seu
interesse central gira em torno do conceito de riqueza, ou nekretx, que são bens,
industrializados ou não, que circulam nas aldeias, guardadas de ciúme, causando brigas e
roubos, sendo emprestadas e recuperadas. São bens materiais, “tudo aquilo que as
pessoas amontoam”, seus pertences, mas que incidem também como bens imateriais,
sob prerrogativas em papéis rituais, cânticos, privilégios de consumir certas partes dos
animais de caça, dentre outros.
Lea (2012) observa nas relações entre os Kayapó Mebêngokrê e as diferentes
alteridades com as quais entram em contato, que [...] desde os tempos míticos até o
presente, inovações no modo de vida Mebêngôkre são fruto de aquisições em terras
alheias entre outros grupos humanos, na aldeia dos mortos e nos reinos dos animais e
vegetais.” (LEA, 2012, p. 332). Isto se mostra nas relações entre os Mebengôkre e os
Kube não-índios, quando por vezes os nekretx são adquiridos. Vanessa Lea descreve
que quando os seringueiros começaram a adentrar o território desses povos no século
XIX, os Mebêngôkre entraram em regime de guerra, começando a atacá-los e matá-los
para obter armas de fogo que passaram a usar nas ofensivas contra seus inimigos:
Antigamente, os Mebêngôkre apropriavam a riqueza (nekretx) de outros povos
para incorporar o legado (nekretx) de suas Casas. Isso esclarece porque os bens
industrializados são designados nekretx, embora, hoje em dia, tais bens circulem
entre os Mebêngôkre de uma maneira distinta das riquezas tradicionais. (LEA,
2012, p. 376).
Nas palavras de Turner (1987),
Os Kayapó não consideravam a si mesmos como dotados de uma “cultura” nos
mesmos termos que estes povos inferiores (outras etnias), dos quais tomavam
emprestado livremente artefatos, canções e às vezes cerimônias inteiras, como
“objetos de valor”. Os Kayapó tinham uma concepção de suas próprias crenças
e instituições sociais como continuação direta daquelas estabelecidas em
tempos míticos pelos heróis da cultura, que estabeleceram o padrão de
humanidade e sociabilidade humana e diferenciaram-nos da natureza animal.
(TURNER, 1987, p. 24).
Lea (2012, p. 376) narra que quando os Mebêngôkre mataram seringueiros pela
primeira vez, um homem pegou um chapéu vermelho da cabeça de um kube morto como
troféu e tornou seu nekretx; desde então o direito de usar o chapéu vermelho foi
transmitido. Tal contrapartida nos remete a uma possível atualização do mito do Gavião-
Real gigante em seu momento histórico, quando:
Ngôkon-Kry foi fora, flechou-o e furou-o com sua lança. Depois bateu na
cabeça dele com sua borduna. [...] arrancou uma pena branca do gavião-real e
colocou-a na cabeça. Pintou-se de preto. [...] Os rapazes (mebengàdjyre)
arrancaram suas penas e jogaram-nas para cima dizendo: “Virem aves!”
Transformando-se em mutum. É por isso que, hoje em dia, espécies
diferentes de aves. (LEA, 2012, p. 34).
Um mito que se refere a incorporação de elementos do exterior como fonte de
renovação, de nomes e nekretx, pois nele os heróis adquiriram os adornos plumários, a
pintura corporal, conquistaram a criação de várias aves, bem como adquiriram a glória, o
prestígio guerreiro. O que nos indica como as aves e os nekretx foram adquiridos
externamente pelos heróis míticos, possibilitando, assim, a humanidade Kayapó
diferenciarem-se como verdadeiros humanos dos animais e dos outros homens de
diferentes origens e etnias.
Isto nos mostra como o pensamento mítico opera por meio de analogias, pois
“Todo mito coloca um problema e o trata mostrando que é análogo a outros problemas
simultaneamente mostrando que são análogos entre si”, o que nos informa que “[...] a
originalidade da reflexão mítica está, pois, em operar por meio de vários códigos” (LÉVI-
STRAUSS, 1985, p. 214-215), sendo que cada digo constitui uma chave de leitura
aplicada sobre um dado empírico. Cada mito, por assim dizer, extrai de um domínio da
experiência propriedades latentes que permitem compará-lo a outros domínios, bem
como traduzi-los uns para os outros. Assim, a partir do mito do Gavião Real, e das
práticas guerreiras empreendidas pelos Mebêngôkre com relação aos seringueiros, fica
evidente como, em diferentes oportunidades históricas, os Kayapó Mebêngôkre
atualizaram as ações de seus heróis míticos, mostrando, neste caso, como o mito se
apropria do evento, e como num jogo de espelhos e reflexos se pode traduzir os
acontecimentos históricos por meio das mitologias Jê.
Neste caso, o exemplo das relações dos “Cayapó” Meridionais com os não índios
pode ser ilustrativo. Em ofício ao secretário de Estado, o governador de Goiás escreve
em 1764 que: “O bárbaro Gentio Cayapó assaltou com sua costumada ferocidade algumas
rossas desta Capitania matando parte dos pretos q. a cultivavão, e dous brancos que
nelas assistião, e levando os despojos as reduzirão a cinzas foi tão grande o terror.”
11
.
No ano de 1774, em Ofício do juiz de Tocantins ao secretário de Estado, descreve-se que
esses povos “[...] invadiram o distrito [...], mataram um negro, roubaram ferramentas e
possibilitaram a fuga de escravos [...]”
12
(MANO, 2012, p. 145). Embora a terminologia
“bárbaro” utilizada seja fruto das crônicas da colonização, percebemos como os
“Cayapó” Meridionais, em todos os ataques, fizeram a captura de elementos do exterior,
que, a exemplo do mito e da história dos Kayapó, muito provavelmente serviram para
reinvestir de valor sua cultura.
Em outros relatos ainda, como os de Mary Karasch (1992), percebemos o mesmo
movimento. Quando essa autora indica as constantes fugas dos índios dos aldeamentos
instalados na região durante os séculos XVIII e XIX, ela menciona que os índios fugiam
levando consigo as espingardas que haviam aprendido a manejar. (KARASCH, 1992,
2017). Isto nos demonstra, numa relação entre estrutura, mito e práxis histórica, que os
indivíduos com os quais os “Cayapó” Meridionais entraram em contato forneceram
chances históricas de “[...] atualizarem as façanhas heroicas de seus heróis míticos
fundadores.” (MANO, 2012, p. 147).
Mostrando, assim, como se pode traduzir os acontecimentos históricos por meio
das mitologias Jê. E apontando, mais uma vez, que se a abertura para a alteridade e a
apropriação de bens externos coloca em prática uma estrutura original, as
circunstâncias contingentes da ação não se conformam necessariamente aos
significados que lhe são atribuídos (SAHLINS, 1990, p. 7). De forma que mesmo que a
ação seja realizada a partir de pressupostos culturais pré-existentes, a práxis, a ação
humana consciente, será capaz de movimentar essa estrutura, redefinindo-a e
atualizando-a constantemente, que a transformação de uma cultura é também modo
de sua reprodução.
A guerra Kayapó pode ser vista como resultado da sua sociocosmologia, dada por
uma estrutura que organiza a forma como devem ocorrer as relações de contato com os
outros, inimigos, mas também deve ser vista por uma clara atualização dos feitos de seus
heróis míticos que acabam por movimentar essa estrutura. Com as relações de contato
11
Ofício do [governador e capitão general de Goiás], João Manuel de Melo, ao secretário de Estado [da
Marinha e Ultramar] Francisco Xavier de Mendonça Furtado, sobre os novos ataques dos índios Caiapós e
Xavantes que se mantinham em boa vizinhança [...]. Vila Boa, 7/6/1764. Centro de Memória Digital da
UNB. AHUACL-CU-008, cx. 20, d. 1220. Acesso: 23/01/2020. Disponível em: www.cmd.unb.br/biblioteca.
12
Ofício do juiz ordinário do julgado do Tocantins, Mamede Mendes Ribeiro, ao [secretário de Estado da
Marinha e Ultramar] Martinho de Melo Castro sobre a bandeira formada para concluir ação contra os
insultos dos índios que invadiram o distrito de Amaro Leite […]. Traíras, 10/6/1774. Centro de Memória
Digital da UNB. AHU-ACL-CU-008, cx. 27, d. 1773. Acesso: 23/01/2020. Disponível em:
www.cmd.unb.br/biblioteca.
estabelecidas entre os “Cayapó” Meridionais com os agentes coloniais, percebemos que
a princípio o seu modo de lidar com a alteridade foi por meio da guerra, por meio do seu
feitio guerreiro que faz parte do modo de ser desses grupos. Longos anos de intensos
embates levaram os “Cayapó” Meridionais a mudar a sua política de predação da
alteridade. Se inicialmente proposta por uma estrutura sociocosmológica da guerra, a
história dos contatos e os processos vividos por esses grupos indicaram novas práticas e
agenciamentos dos processos, marcados agora por alianças, pactos, e suposta aceitação
de aldeamento, como estratégia mais adequadas para sua sobrevivência naquelas
situações. Isto nos indica que, colocados diante de novas circunstâncias, os homens
são capazes de repensar criativamente seus esquemas convencionais. Para além, muito
embora aldeados, estes povos escolheram, por vezes, o local de posicionamento destes
aldeamentos (SAINT-HILAIRE, 1937, p. 107), continuando a viver em casas a seu modo
estruturante. O que nos leva a compreender que as sociedades, bem como aqui os
grupos “Cayapó” Meridionais, vivem num processo histórico contínuo que opera um
misto de permanência e mudança, rupturas e continuidades, estrutura e evento.
Com o desenvolvimento do contato interétnico, os “Cayapó” Meridionais tiveram
que desenvolver novas formas de percepção, classificação e ação, os levando a se portar
enquanto agentes conscientes de um novo tempo que vivenciavam. Tem-se a partir
desse intenso contato, a passagem da guerra à paz, momento em que a guerra “Cayapó”
foi reavaliada como prática da estrutura diante das novas circunstâncias históricas. A
guerra passa a ser velada ou camuflada pelas relações de paz entre os “Cayapó” e os
não-índios. No entanto, por mais que as relações tenham mudado, “[...] o motor
alimentador das relações com o mundo exterior permanecia inalterado: a aquisição de
bens da cultura material dos não-índios”. (MANO, 2011, p. 205). Se num primeiro
momento a forma de predar a alteridade se dava por meio do saque e da guerra, agora
eles predavam por meio das trocas comerciais com os não-índios, o que nos leva a
pensar, por um momento, não nas estruturas culturais da história, mas a historicidade
das estruturas culturais.
Assim, percebemos como as guerras e as trocas intertribais e interétnicas são
elementos históricos de produção da coletividade dessas sociedades, num jogo curioso
entre tradição e mudança, num continuum que segue em transformações. Recorrendo a
Marshall Sahlins (1990), temos por certo o misto entre estrutura e evento, que vai da
estrutura a práxis histórica, pois os indivíduos agem e movimentam a história de acordo
com seus signos, interesses e circunstâncias. E mesmo que existam pressupostos
culturais que organizam as comunidades, a práxis, a ação humana, sobretudo em
situação de contato com diferentes alteridades, será capaz de movimentar essa
estrutura, numa incorporação e afinização, que leva alguns ao status de amigos, e outros
de inimigos, nos mostrando como a estrutura pode ser apreendida no campo de
interações entre diferentes níveis.
Contudo, diante das movimentações atestadas pelas práticas rituais desses
grupos se evidencia como através das malhas de contato com o exterior essas
populações foram capazes de movimentar a sua estrutura. Da mesma forma como
ocorre na aplicação da guerra justa pelo Império português, que se torna uma estrutura
da prática quando aplicada em novos contextos. Identificando que em ambos os casos
uma atualização da estrutura devido à situação histórica de contato, quando as agencias
são avaliadas a depender dos signos e interesses colocados em jogo.
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