COSTA, João Paulo Peixoto
*
RESUMO: Este artigo visa analisar a atuação
política indígena por meio da câmara de Monte-
mor Novo no contexto de intensas
transformações entre a crise do Antigo Regime e
a formação do Estado nacional brasileiro.
Pretende-se também destacar de que maneira os
índios da menor população indígena entre as vilas
de índios do Ceará se colocaram nesses eventos e
como seus espaços e prerrogativas foram
afetados na construção do novo país. A análise
dos registros permitiu perceber o traquejo
administrativo dos indígenas no espaço que lhes
era assegurado por lei, ainda que em
desvantagem numérica, convivendo com não-
índios em situações de equidade política. Foi
igualmente possível avaliar a gradativa perda de
suas garantias a partir da década de 1820 e a
atuação dos indígenas no nascente Estado nação,
até o fim da condição de vila de índios em 1830.
PALAVRAS-CHAVE: Índios; câmaras municipais;
política.
ABSTRACT: This article aims to analyze the
indigenous political performance through the
Monte-mor Novo city council in the context of
intense changes between the Ancien Régime crisis
and the formation of the Brazilian national state. It
is also intended to highlight how the Indians of the
smallest indigenous population among the
indigenous village in Ceará put themselves in these
events and how their spaces and prerogatives
were affected in the construction of the new
country. The analysis of the records made it
possible to perceive the administrative skills of the
indigenous people in the space that was
guaranteed by law, although at a numerical
disadvantage, living with non-Indians in situations
of political equity. It was also possible to assess
the gradual loss of its guarantees from the 1820s
and the performance of the indigenous people in
the nascent nation-state, until the end of the
condition of an Indian village in 1830.
KEYWORDS: Indians; city council; politics.
Recebido em: 13/03/2020
Aprovado em: 23/05/2020
* Doutor em História Social pela Unicamp, Campinas-SP, professor do Instituto Federal do Piauí, campus
Uruçuí, e do Mestrado Profissional em Ensino de História PROFHISTÓRIA da Universidade Estadual do
Piauí, Parnaíba, PI. E-mail: joao.peixoto@ifpi.edu.br. Este artigo contém trechos provenientes da tese de
Doutorado intitulada Na Lei e na Guerra: Políticas Indígenas e Indigenistas no Ceará (1798-1845)
Introdução
A vila de índios de Monte-mor o Novo da América
1
foi fundada em 1764 no maciço
de Baturité. Antiga aldeia da Palma, era formada por indígenas das nações jenipapo e
canindé e, por conta da elevação à categoria de vila em decorrência do Diretório,
recebeu também a etnia quixelô, vinda da aldeia de Telha, para dar conta do mínimo de
habitantes exigido (ALEMÃO, 1961 [1964], p. 338-339; STUDART FILHO, 1965, p. 137 e
140; CATÃO, 1937, p. 63; CASTRO, 1999, p. 35-40). Foi uma das cinco vilas de índios
criada pela citada legislação no Ceará, além de três povoações
2
. Marca da ação
indigenista do ministério do marquês de Pombal, sob o reinado de dom José I, visava a
integração da população indígena à sociedade colonial portuguesa por meio da mudança
dos costumes, pelo trabalho geralmente de aluguel a proprietários e pela condição de
igualdade aos demais súditos da monarquia lusitana. Entretanto, apesar desse último
aspecto, havia uma contradição: os índios eram considerados incapazes, e, por isso,
deveriam ser tutelados por um diretor leigo, substituto dos antigos religiosos (SILVA,
2005; MOREIRA, 2019, p. 137-205).
Um dos epicentros dessa condição indígena dúbia na legislação portuguesa talvez
tenham sido as câmaras municipais dessas novas vilas. Por um lado, aos índios se
reservava cargos nos senados, como na condição de vereadores e juízes (PORTUGAL,
1758, p. 4-6; 8-9); por outro, deveriam dividi-los com extranaturais, como eram
chamados todos os que não fossem índios. O Diretório estimulava a convivência com
extranaturais nas câmaras e na própria vila para que os indígenas fossem melhor
civilizados, mas destacava que suas prerrogativas, como terras e os cargos nos senados,
deveriam ser rigorosamente respeitadas (PORTUGAL, 1758, p. 34-36). No entanto, com a
coexistência, eram inevitáveis os conflitos por poder e os assédios ao patrimônio
fundiário indígena. As câmaras municipais, em si, eram motivo de indignação de muitos,
ou, no mínimo, de denúncia sobre suas inviabilidades, que os índios não teriam
capacidade para assumir tais cargos (MARCIS, 2004, p. 70; SILVA, 2005, p. 112-115;
COSTA, 2019, p. 42-43; MOREIRA, 2019, p. 279-282).
Ocupar a posição de vereador em uma vila na América portuguesa do Antigo
Regime dava ao indivíduo a condição de nobre da terra e cidadão, bem como o poder de
gerência de questões fundiárias, econômicas e comerciais do município (BICALHO, 1998,
p. 3-6). Ou seja, uma invejável posição social, política e econômica nessa sociedade tão
1
Atualmente é cidade homônima à serra de Baturité, localizada a cerca de 100km da capital do Ceará,
Fortaleza.
2
Além de Monte-mor Novo, as vilas eram Vila Viçosa, Soure, Arronches e Messejana. As povoações eram
Baepina, Almofala e Monte-mor Velho.
fortemente hierarquizada, que evidencia a razão da cobiça por esses cargos e a oposição
ao exercício indígena do governo. Mas o motivo principal de tanto incômodo era a
própria atuação política indígena nas câmaras municipais. Seja na condição de membros
do senado ou como súditos se utilizando das câmaras como ambiente de reivindicação,
os índios operacionalizavam seu poder administrativo ou suas prerrogativas legais e
nobiliárquicas para defender suas terras e lutar por condições dignas de trabalho, tanto a
serviço de outros quanto em suas roças (MARCIS, 2004, p. 56-84; REGO, 2013; COSTA,
2019; MOREIRA, 2019, p. 264-277).
Tensões que passavam pela câmara de Monte-mor Novo eclodiram a partir da
década de 1810, em uma conjuntura de transformações comum a outras pelo país. Na
crise do Antigo Regime português, os senados das vilas, até então ocupados
majoritariamente pela nobreza da terra proprietários descendentes de antigos
conquistadores e povoadores , passaram a contar com a presença de ricos
comerciantes vindos de outros lugares (BICALHO, 1998, p. 7-9; GOUVÊA, 2002, p. 129-
131). Nas vilas de índios não foi diferente, como observou Vânia Moreira para o Espírito
Santo, onde a hegemonia “[...] que os índios desfrutavam no poder local desde a fundação
da vila [de Benevente] começou a ser desmontada a partir da cada de 1790.” (2019, p.
279). Monte-mor Novo teve especial destaque nesse contexto, já que no início dos
oitocentos passou a ser a única vila de índios do Ceará que contava com uma majoritária
população de extranaturais (MAPA, 1813).
Desde muito antes, a diminuta povoação que precisou da população de outra
aldeia para ascender a vila sofria dificuldades financeiras, assim como as outras vilas
de índios da capitania do Ceará. No ano de 1786, em visita a Messejana, Soure, Arronches
e Monte-mor Novo, o ouvidor Manuel de Magalhães Pinto e Avelar descreveu suas
câmaras municipais como “tão pobres que nem ao menos possuíam em cofre” dinheiro
suficiente para pagar seus oficiais, e “se arruinavam as [...] casas de câmara sem haver
pecúlio de que se pudessem reparar” (DE MANOEL..., 1786). Em 1790, Monte-mor Novo
chegou ao ponto de arrematar a sua pelas condições precárias da edificação. Sofrendo
nos últimos anos dos setecentos com a queda da arrecadação, que provinha
principalmente dos foros patrimoniais (CATÃO, 1937, p. 95-96), a vila recebeu migrantes
fugidos da seca em busca do refrigério da serra e de terras. De acordo com Liberal de
Castro, a chegada dos extranaturais incentivou a dispersão da população indígena da
vila, também motivada pelas violências sofridas dos diretores (CASTRO, 1999, p. 62-63).
Monte-mor Novo passou a ser a única vila de índios em que a população indígena
era minoria nos oitocentos. Segundo João Antônio Rodrigues de Carvalho, escrevendo
em 1816, era “[...] quase toda habitada por extranaturais. Não tem casa de câmara, nem
cadeia, nem o conselho patrimonial. [...] A vila tem oitenta e quatro casas, muitas
arruinadas, muitas cobertas de palha, e todas insignificantes.” (CARVALHO, 1929, p. 28).
Aires de Casal se referiu a ela como vila medíocre” com “ricas plantações de mandioca,
e canas de açúcar”, mas sequer mencionou que era de índios (CASAL, 1817, p. 235). De
acordo com Freire Alemão, a partir de relatos que colheu em sua passagem pela região
em meados do século XIX, a agricultura do café cresceu nos oitocentos, e as terras que
antes eram dos índios foram, gradativamente, passadas para os extranaturais (ALEMÃO,
1961 [1964], p. 343-344).
Contudo, essa transferência foi concluída após anos de embates travados na
administração do município, onde os indígenas, ainda que em minoria, batalhavam pela
manutenção de suas prerrogativas. Não foi à toa que a luta das elites não-índias do Ceará
foi pela supressão dessa condição jurídica dos indígenas e de suas vilas, possibilitada
após a independência brasileira e com a consolidação dos preceitos liberais e
constitucionais do país, suplantando o antigo sistema corporativo do império português
(COSTA, 2018, p. 96-103)
3
. Excluídos das antigas prerrogativas políticas e sob novos
enquadramentos legais e sociais, os índios de Monte-mor Novo perderam gradualmente
seu poder de atuação por meio da câmara municipal a partir da década de 1820, tradição
que remetia a meados da centúria anterior.
Representação política e conflitos fundiários
bem poucos registros preservados da câmara de Monte-mor Novo do século
XVIII. Apesar dos termos de sua fundação em 1764 formarem “[...] um dos mais valiosos
conjuntos documentais relativos ao método lusitano de projetar vilas no território
brasileiro durante o século XVIII.(JUCÁ NETO, 2011, p. 2; CASTRO, 1999; SILVA, 2005,
p. 106-121; ARRAES, 2012, p. 412-418), depois disso, o pouco que se conhece é o que foi
transcrito por Pedro Catão em 1930 na Revista do Instituto do Ceará. Acerca da atuação
política indígena, o autor anotou que em 1765 o capitão-mor Miguel da Silva Cardoso
reclamou do “hábito de se darem vários meninos para os serviços de moradores sem a
faculdade do peticionário e com prejuízo das escolas”, despachada em Fortaleza em 13 de
dezembro de 1765 pelo governador da capitania Borges da Fonseca, “que mandou aplicar
dispositivos do Diretório” (CATÃO, 1937, p. 89).
3
A Carta Régia de 1798, que revogou o Diretório dos Índios, não teve efeito em boa parte do Brasil. No
Ceará, a lei pombalina permaneceu em vigor até a década de 1830, sendo reativada no curto período de
1843 a 1845, quando foi definitivamente substituída pelo Regimento das Missões (COSTA, 2018, p. 45-82;
96-118).
Segundo Carlos Studart Filho, Miguel da Silva Cardoso era índio “chefe dos
jenipapos”, nomeado capitão-mor em 30 de julho de 1764 (STUDART FILHO, 1965, p. 141).
Diante de uma câmara ainda bastante indígena, sua posição certamente influenciou o
acato da reclamação sobre um tema muito presente nos requerimentos dessa população
entre os séculos XVIII e XIX. O caso toca em várias questões ao mesmo tempo:
primeiramente, é fácil imaginar o sofrimento das famílias que viam seus filhos sendo
utilizados como mão de obra em propriedades muitas vezes distantes, longe de sua
proteção e provavelmente sofrendo diversas violências. Em segundo lugar, a justificativa
do prejuízo das escolas talvez fosse apenas um pretexto para endossar seus pedidos,
mas poderia ser bem mais do que isso. Com as crianças longe dos estudos, não se
desenvolveriam futuros membros letrados da comunidade a lutar por ela no exercício de
cargos de câmara. Por fim, a referência ao Diretório evidenciava que, apesar da exigência
de se dar índios ao trabalho de aluguel, também era obrigatório que se respeitassem a
educação dos meninos e as autoridades locais (PORTUGAL, 1758, p. 4-5), que, no caso
citado, sequer sabia da distribuição.
O registro também não esclarece se os moradores que recebiam as crianças eram
do termo da vila ou de fora. Fato é que não referências a conflitos entre índios e
proprietários até o século XIX, o que combina com o que foi dito por Freire Alemão e
Liberal de Castro acerca da chegada cada vez mais intensa de extranaturais em Monte-
mor Novo. Em 1809, o antigo escrivão Francisco Pereira Torres respondeu a um ofício da
câmara sobre questões tratadas na fundação da vila e que não estavam mais nos
registros. Entre elas, que nenhuma “[...] pessoa poderia trazer animal solto, e sim preso
em cordas ou cercados para não ofenderem as lavras dos índios e outras, e por serem as
terras deste continente destinadas a plantação, destinando-se o sítio Mucunã para
logradouro dos gados.” (CATÃO, 1938, p. 186-187). O interesse da câmara nessa questão
sinaliza para uma presença que já vinha se tornando crescente e incômoda para os
antigos moradores indígenas.
Segundo os relatos colhidos por Freire Alemão, até 1810 “havia então pouca gente
branca na vila” (ALEMÃO, 1961 [1964], p. 339), e de acordo com Luís Barba Alardo de
Menezes, que foi governador da capitania do Ceará até 1811, a pequena população de
Monte-mor Novo era quase toda composta de índios (MENEZES, 1997, p. 45). Após esse
período, o tema da posse de terras passa a ser evidente nos registros da câmara nos
anos seguintes. A vereação de 16 de março de 1816 registrou um
[...] requerimento do comandante dos índios pedindo para que se lhe
mandassem dar e aos seus dirigidos posse da lagoa da Forquilha, Mari e Jucá.
Acordarão em que no dia 20 se achassem para cumprir a convenção tratada
pelo seu diretor com o suplicado Alexandre Correia de Araújo. (CATÃO, 1938, p.
1991).
Esta é a primeira referência que encontrei a um conflito fundiário na vila
envolvendo indígenas e extranaturais. A rigor, não deveria haver confusão neste sentido,
que as terras foram rigorosamente demarcadas na fundação de Monte-mor Novo com
espaços para habitação e plantações de índios e não-índios (JUCÁ NETO, 2011, p. 10-11;
ARRAES, 2012, p. 415). Se a questão surgiu nesse momento, é de se supor que os
extranaturais passaram a invadir as terras indígenas outrora delimitadas e a ocupar cada
vez mais posições de poder econômico e político.
Este entendimento se reforça quando constatamos que a referência não foi
isolada, e o acordo feito entre os índios e Araújo não se sustentou por muito anos. Na
reunião da câmara de 7 de dezembro de 1821.
[...] apareceu o comandante dos índios desta vila Manoel Soares do Nascimento
com um requerimento despachado pelos senhores do governo provisório [da
província do Ceará] [rasgado] na câmara informar sobre uma questão que traz
os mesmos índios com Alexandre Correia de Araújo sobre a lagoa Forquilha, o
que acordaram em ser diferida dita informação para a futura vereação a fim de
poderem vir a conhecimento verdadeiro da sobredita matéria. (TERMO..., 1821,
p. 22-22V).
Pouco tempo depois, no dia 7 de janeiro de 1822, a junta governativa do Ceará
informou ao diretor dos índios de Monte-mor Novo, Manuel Moreira Barros, que
recebera o comandante Nascimento, dizendo que havia se ausentado "com receio que o
prendessem". Diante disso, o governo lhe ordenara que "voltasse ao seu distrito, e que
fosse viver em paz", e ao diretor, que o vigiasse "[...] sobre seu viver, para ser castigado
competentemente no caso de transgredir as ordens desta Junta e faltar ao que
prometeu." (DA JUNTA..., 1822, p. 122V)
4
.
Nascimento era o grande protagonista da luta indígena diante do governo da
província e da câmara municipal de sua vila. O medo do comandante, manifesto apenas
um mês após sua presença no senado de Monte-mor Novo, com novas reclamações
contra Araújo e levadas aos membros do governo do Ceará, pode ser um indício de que a
sua situação e a dos índios de sua povoação passou a ser não bastante desvantajosa,
mas também perigosa (COSTA, 2018, p. 146). Foi justamente pelo temor em relação à
própria vida que Nascimento se dirigiu novamente a Fortaleza para buscar o amparo das
4
A presença do comandante à sede do governo do Ceará foi contemporânea aos distúrbios ocorridos em
Maranguape, a cerca de 70km de Monte mor Novo, entre índios e extranaturais, no contexto de formação
do Estado nacional brasileiro, o que causou desconfiança aos membros da junta provisória (COSTA, 2018,
p. 143-157).
lideranças da província, uma vez que, possivelmente, o da câmara de sua vila não era
mais suficiente.
No dia 23 de janeiro uma solução foi tomada. A câmara notificou Araújo, o
capitão-mor Nascimento e o diretor Barros, para que assinassem um termo de
acomodação (CATÃO, 1938, p. 192). Na “[...] [casa] que interinamente ser[via] de câmara
e paços do conselho”, os envolvidos,
[...] perante a câmara, disseram de suas livres vontades, sem constrangimento
de [?] alguma, fariam acomodação, e não queriam mais em tempo algum
questionarem sobre dita terra e lagoa, a qual composição é repartindo a terra
que se achar da dita lagoa Forquilha até um riacho primeiro que se acha bojando
para a lagoa Jucá, que fica para a parte do sul, ficando repartida dita terra meio
a meio entre a lagoa e o dito riacho o que assim havendo-se por acomodados e
disseram perante a mesma que em tempo mais nenhum fugiriam do trato feito, e
logo à mesma câmara mandaram por mim escrivão fazer este termo de
acomodação no qual se assinaram com o diretor e os acomodados, assinado
pelos índios seu acomodante [sic]. (TERMO..., 1822, p. 33-36).
Além da celeuma com Araújo ter voltado à tona, provavelmente por ter invadido
terras que haviam sido acordadas como de posse dos índios, chama atenção o fato do
capitão-mor Nascimento ter tido que recorrer ao governo da então província do Ceará
para que alguma providência fosse tomada. Ainda que a sede do município também
tivesse competência judiciária até 1828, ela não foi satisfatória na tentativa de solucionar
o problema, tendo sido importante ao indígena o resguardo da autoridade do governo
provincial.
A câmara, que protelou a resolução do problema, talvez fosse composta nesse
tempo por uma maioria de representantes dos extranaturais. Quanto mais não-índios
houvesse nesse ambiente, mais teria força as percepções sobre a inferioridade indígena.
Além disso, a obrigatoriedade da presença do diretor no senado da vila para a assinatura
do termo acentuava a visão que se tinha dos índios enquanto incapazes. Ainda assim,
mesmo diante da ambiguidade de sua condição nesse contexto, os indígenas não
deixaram de se utilizar da câmara municipal, espaço que também era seu, como uma
ferramenta de administração de suas terras (MOREIRA, 2019, p. 186) e de luta política em
prol de suas prerrogativas, conseguindo, pelo menos, um acordo. Para isso, foi
fundamental a articulação do capitão-mor Nascimento em se dirigir diretamente ao
governo da província, aumentando a pressão sobre a câmara, mas também,
possivelmente, a atuação de algum vereador indígena que estivesse compondo o senado
da vila durante o imbróglio
5
. No dia 27 de janeiro, informaram os membros do governo
provisório sobre a acomodação feita entre os índios e Araújo “com a assistência do
diretor dos mesmos.” (TERMO..., 1822, p. 36-36V).
Formação do Estado e atuação política
Até o período que analisamos, os índios Monte-mor Novo conseguiram ter considerável
peso político na vila, apesar de sua diminuição percentual no número de habitantes e da
presença cada vez maior dos extranaturais. A câmara da vila poderia estar gradualmente
passando de um espaço de atuação administrativa indígena para um ambiente misto,
próximo daquilo que pretendia o Diretório ainda em vigor no Ceará. Entretanto, a lei
almejava que a convivência contribuísse com a civilização de uma população
temporariamente incapaz, mas igualmente digna de respeito e merecedora, inclusive, de
cargos públicos, status de nobreza da terra e de poder a nível municipal. O que se
deslindava em vilas como Monte-mor Novo era que ficava cada vez mais maciça a
presença dos extranaturais, que dificilmente se pensariam enquanto equivalentes aos
índios.
A situação tendeu a se acirrar com a independência do Brasil. Desde o contexto
constitucional português os índios do Ceará se imbuíram de antilusitanismo, iniciado
com boatos de ameaças à sua liberdade vinda das Cortes. Seu ódio culminou com as
violências sofridas por portugueses que compunham as juntas governativas provisórias e
do apoio destes aos que coagiram o rei dom João VI, visto pelos índios como um protetor,
a atravessar de volta o Atlântico
6
. Por isso, se posicionaram ao lado das forças políticas
do interior da província que, em oposição às elites de Fortaleza, alinharam-se ao projeto
do Rio de Janeiro encabeçado por dom Pedro I (COSTA, 2018, p. 137-157; 279-314). No
Ceará, as câmaras do interior, que haviam se posicionado contrárias à Constituição
portuguesa apoiada pelo senado de Fortaleza (FELIX, 2010, p. 83-87), derrubaram a
antiga junta governativa composta pela elite da capital, formaram uma nova e selaram a
fidelidade da província a dom Pedro I (FELIX, 2010, p. 88-91).
Na busca por apoio e unidade nacional, o novo rei do Brasil mobilizou com
especial atenção as câmaras municipais do interior do país (SOUZA, 1998, p. 2; NEVES,
2011, p. 100). A de Monte-mor Novo, por exemplo, chegou a receber exemplares “[...] dos
decretos e das proclamações de sua alteza real e da assembleia geral constituinte e
5
As assinaturas dos vereadores não vêm identificadas com sua nação (etnicidade) nos termos de
vereação.
6
O rei, por mais que fosse português, não se confundia com os portugueses. O antilusitanismo popular do
contexto da independência, portanto, se baseava na ação das Cortes de limitar o poder do monarca e de
levá-lo para longe do povo, de volta para Portugal.
legislativa” em agosto de 1822 (CATÃO, 1938, p. 192), o "[...] exemplar do manifesto de
S.A.R Constitucional e defensor perpétuo do reino do Brasil aos povos deste reino para
fazer ver aos mesmos povos" em setembro (TERMO..., 1822, p. 59V) e uma carta da Corte
“[...] sobre as novas armas da bandeira e [...] sobre o modelo do laço nacional que devem
todos trazerem” em dezembro (CATÃO, 1938, p. 192-193).
Tal unidade entre as províncias, no entanto, não implicava harmonia social e
étnica. Cada grupo desta sociedade ainda corporativa tinha uma noção própria do país
que compunha, de si e do conceito de liberdade, tão em voga em tempos de liberalismo e
no contexto da emancipação política brasileira. Os indígenas, por exemplo, viam nessa
conjuntura uma oportunidade para lutar por cada vez mais autonomia. Enquanto havia
exemplos de mobilização pela extinção do Diretório e da tutela nele prevista (COSTA,
2018, p. 124-137), também era comum a luta pela posse da terra garantida pela lei.
Os extranaturais em vilas de índios, por outro lado, percebiam nesse momento a
formação de uma esfera pública, ou seja, da liberdade de discussão política e de
ocupação de cargos administrativos (NEVES, 2011, p. 90-110; VILLALTA, 2016, p. 21-22;
ARAÚJO, 2018, p. 52-59). Não foi à toa que, no contexto constitucional e liberal na
América portuguesa, muitos tentaram extinguir as prerrogativas dos índios, oriundas
justamente das mercês da monarquia portuguesa que se entendia derrotada. Em
dezembro de 1821, por exemplo, os indígenas de Monte-mor Novo reclamaram à junta
provisória do Ceará do vigário José Francisco dos Santos, que queria “[...] botar os índios
para fora desta vila.” (TERMO..., 1821, p. 24V). Em resposta, a câmara alegou que “[...]
nada era verdade”, sendo provavelmente parte de um “[...] levante que pretendeu nesta
vila o padre José Monteiro de Palácios da Silva contra o vigário” (TERMO..., 1821).
Ainda que a história não passasse de um boato, tocava em algo melindroso para os
indígenas e que viria a se concretizar uma década depois. Se fossem realmente
despejados da vila, esta não deixaria de ser de índios, como estes perderiam suas
terras, seus cargos e o acesso a um espaço fundamental para a proteção de suas
garantias.
Para os extranaturais, introduzir-se em uma vila de índios no contexto do Antigo
Regime era uma chance de “andar na governança”, ou seja, ocupar um cargo em uma
câmara municipal; com a ascensão do liberalismo, tais oportunidades poderiam ser ainda
mais ampliadas. Para a manutenção e ampliação de suas “propriedades”, conceito
também em voga nesse momento, era fundamental o controle do senado da vila. Os
registros de vereação de Monte-mor Novo revelam a importância dessa discussão pelas
referências a questões de terra que aparecem no final de 1822. Na ata do dia 8 de
outubro, bastante rasgada, -se que foi levado à câmara um requerimento de um
comandante “[...] índio desta vila” para que “[...] concedessem 160 léguas de terra no
lugar Picada [...] pagando cada ano mil réis por ser [?] suas.” (TERMO..., 1822, p. 61). A
ocorrência de um pedido indígena por terra em uma vila de índios é indicativo de que
seu espaço e suas posses estavam em franca redução e cerceamento.
Isso se confirma com a volta dos problemas envolvendo os indígenas de Monte-
mor Novo e Alexandre Correia de Araújo. Desta vez, o acordo parece ter sido desfeito
pelos abusos de Araújo, e, diante disso, a câmara de Monte-mor Novo,
[...] à vista dos seus documentos e despacho do governo provisório e
provimento deixado pelo doutor ouvidor em que neles mandam que eles ditos
índios fiquem de posse da dita lagoa Forquilha, e o dito Alexandre Correia a
nada tem atendido, o que a vista de tudo mandasse por seu despacho que aquele
Alexandre não contendesse mais com eles índios, o que foi acordado que os
mesmos índios fossem conservados na posse em que se achavam da lagoa
Forquilha. (TERMO..., 1823, p. 71).
O antigo termo assinado, portanto, durou apenas um ano por conta da ganância
do proprietário, intensificada já no contexto de Brasil independente, mas com desfecho
favorável aos indígenas. Chama atenção que, mais uma vez, os índios tiveram que
recorrer ao governo da província para que a contenda tivesse uma resolução. É difícil
entender o papel que teve o senado da vila na situação: acolheu com cuidado a demanda
indígena ou foi apenas uma executora de ordens superiores? É de se questionar,
portanto, se os índios vereadores de Monte-mor Novo ainda tinham força política para
lutar pelos interesses de sua comunidade, e, por outro lado, o quanto os índios comuns
poderiam ver na câmara de sua vila um espaço seguro de sua atuação.
É instigante a este respeito a vereação da câmara de 20 de junho de 1824, quando
os senadores acordaram “[...] em mandarem que o procurador do conselho Francisco
Alves Marques mande consertar o tronco desta vila e juntamente em mandar fazer uma
polia para castigo dos homens índios, tudo a requerimento do diretor, o capitão Manoel
Moreira Barros.” (CATÃO, 1938, p. 193). O que havia sido o principal espaço de atuação
para a política indígena, preciosa mercê real e um dos seus mais importantes patrimônios
comunitários, se transformou em um agente repressor. Ordenando a reforma de uma
ferramenta de violência disciplinar em pleno contexto liberal, a câmara se coadunava
com o pensamento de muitos proprietários, que tratavam os índios semelhantes a
escravos, e não como concidadãos que eram.
Diante disso, qual era a importância política da câmara de Monte-mor Novo para
a população indígena da vila? Até a presente fase da pesquisa ainda não foi possível
identificar a etnicidade de todos os membros do senado, o que gera incerteza acerca do
poder de atuação dos oficiais camarários indígenas. Mas, ainda que estes fossem uma
minoria de mãos atadas diante dos poderosos extranaturais durante os oitocentos, as
fontes aqui analisadas revelam que nem assim a câmara pôde se abster da execução das
ordens dos governos do Ceará e, muito menos, do que era previsto pelo Diretório a
respeito das terras indígenas (PORTUGAL, 1758, p. 34-35). A vila de Monte-mor Novo
ainda era dos índios, e, mesmo que passados a minoria, não perderam de vista esta
prerrogativa. Recorriam aos governos da capitania e província, mas não deixaram de
comparecer na câmara quando era necessário, como no início das contendas com
Alexandre Correia de Araújo e na assinatura do termo de acomodação.
Além disso, chama atenção a presença quase constante do capitão-mor indígena
Manoel Soares do Nascimento nos documentos que se referem ao caso da lagoa
Forquilha, pois era sob sua liderança que os índios levaram suas demandas para os
governos do Ceará ou para as autoridades municipais. Segundo Freire Alemão, até o
início do século XIX os índios de Monte-mor Novo eram “particularmente governados
pelos seus capitães” (ALEMÃO, 1961 [1964], p. 313-314, p. 339). Pelo menos aqui é
possível visualizar alguma intervenção mais direta da câmara, já que eram seus membros
quem escolhiam e atestavam as patentes das lideranças militares. É possível supor,
portanto, que havia alguma articulação entre lideranças indígenas camarárias e militares
que, unidas, poderiam lutar mais fortalecidas pelas prerrogativas de sua comunidade
7
.
As reflexões sobre o poder de atuação política dos índios vereadores em Monte-
mor Novo também podem ser feitas sobre a adesão da vila à Confederação do Equador
(CATÃO, 1937, p. 63-65). No dia 20 de agosto de 1824, a câmara elegeu José Felix de
Freitas “[...] para procurador deste senado” no “[...] Grande Conselho” ocorrido em
Fortaleza em 26 de agosto de 1824 (CATÃO, 1938, p. 193), que reuniu representantes de
diversas instituições militares, provinciais e municipais do Ceará para, juntos, jurarem
fidelidade ao movimento liberal (COSTA, 2018, p. 342-343). Apenas no dia 10 de outubro
a câmara de Monte-mor Novo reuniu seus membros e diversas outras pessoas do
município para declarar apoio ao ato sufragado na capital. Entre as assinaturas, que não
traziam qualquer informação sobre ocupação profissional ou origem étnica, a única que
identifiquei ser de um indígena é a do sargento-mor Manoel José da Rocha
(NOMEAÇÃO..., 1799, p. 235). A ata da sessão não faz nenhuma referência ao fato de a
vila ser de índio (ATA..., 1824, p. 124-129V), talvez porque a maior parte da população de
Monte-mor Novo, bem como de sua câmara municipal, já era de extranaturais.
7
O Regimento dos Capitães-mores de 1570 estabelecia, em seu §1º, que a ocupação de cargos de oficiais de
ordenanças era feita a partir de eleições nos senados das vilas. O Diretório não trouxe alterações na forma
de escolha das autoridades de ordenanças indígenas. Mas, ao elevar as aldeias a vilas, criou novas formas
de distinção social por meio das câmaras e o vínculo entre oficiais militares e índios vereadores,
consolidando as hierarquias e as elites nativas nas comunidades.
Não é evidente, portanto, o quanto o juramento do sargento-mor Rocha
representava os anseios da maioria dos índios de Monte-mor Novo. Não temos acesso às
opiniões daqueles que não ocupavam postos militares ou de câmara, mas a presença de
um oficial índio em sessão de tal importância indica o direcionamento político das
lideranças indígenas. À frente de suas comunidades, posicionavam-se favoravelmente ao
grupo que, naquele momento, governava a província, por conta das perspectivas de
respeito às suas garantias. Pode-se afirmar o mesmo sobre a reação da câmara quando a
Confederação foi debelada no Ceará, sob comando de Thomas Alexander Cochrane, em
18 de outubro de 1824. No dia 3 de novembro, “[...] visto que as tropas se achavam
destroçando o povo e da mesma sorte derribando suas moradas”, os vereadores de
Monte-mor Novo juraram fidelidade ao imperador, constando também a assinatura do
sargento-mor indígena Manoel José da Rocha (ATA..., 1824, p. 124-129V).
Exclusão dos espaços políticos
A Confederação do Equador foi debelada, a integração do Estado nacional
brasileiro parecia momentaneamente consolidada e a situação política dos índios se
revelava cada vez mais instável. Dom Pedro I manifestava disposição a se mostrar aliado
dos indígenas, reconhecendo sua cidadania à luz da Constituição de 1824 e seus
direitos ancestrais (MOREIRA, 2011, p. 11-12). Já as elites político-fundiárias nas províncias
e vilas do país tendiam a interpretar a condição de cidadãos dos índios como
incompatíveis com suas antigas mercês (COSTA, 2018, p. 96-103).
Nesse contexto, as ameaças à integridade de seus territórios e às garantias
políticas avançavam. Por exemplo, no dia 04 de junho de 1825 foi entregue à câmara um
requerimento dos homens índios e do diretor capitão José Severino de Vasconcelos, “[...]
o qual se marcou o dia 7 deste corrente mês para se deferir, convidando-se” várias
autoridades, para “[...] verem os lugares [?] do quadro [?].” (TERMO..., 1825). A leitura do
registro, bastante danificado, permite pelo menos perceber que demandas relativas às
terras voltaram novamente à tona, o que mereceu mobilização da câmara e de suas
autoridades. Inclusive, foi a partir do ano 1825 quando, segundo Pedro Catão,
desenvolveu-se para a serra de Baturité “[...] intensa emigração e sequente devastação
de seus bosques, de modo insólito e imprevidente.” (CATÃO, 1937, p. 98). De acordo com
Freire Alemão, a brutal seca do mesmo ano
[...] causou grande dispersão e mortandade dos índios, e dos que escaparam
então, um grande número foi devorado por uma peste de bexigas horrível [...].
Com a destruição dos índios foi a vila, e lugares adjacentes, se povoando de
maior número de brancos, que hoje [1959] constituem a maioria dos habitantes
do lugar. (ALEMÃO, 1961 [1964], p. 339).
Com a destruição das matas do maciço, a chegada de mais extranaturais e a seca
mortífera de 1825, avançou a gradual conversão de Monte-mor Novo de uma vila de
índios para uma vila com índios, que eram poucos. A própria Constituição de 1824
indicava a possibilidade da extinção do estatuto especial das vilas indígenas pombalinas
quando, em seu artigo 169, estipulava que critérios de acesso aos cargos em câmara
municipal poderiam ser legislado posteriormente (BRASIL, 1824). A confirmação dessa
condição veio com a lei de de outubro de 1828, que se converteu em um grande
empecilho para muitos indígenas que não teriam um ganho mínimo anual necessário para
ocupar uma cadeira no senado de suas povoações
8
.
De acordo com Williams de Souza, a referida lei rompeu com “os padrões pouco
estruturantes do período colonial”, apresentando-se “como um modelo de racionalização
para a organização e o governo municipal” (SOUZA, 2016, p. 246) nesse novo contexto
de Brasil emancipado, liberal e constitucional. Seguindo à risca um ideário “pautado nas
divisões de poderes constituídos”, a norma também foi prejudicial aos índios porque
previu que “cumpria às câmaras o governo econômico, e não judicial”, o que abolia a
função de juízes que compunha os senados do Antigo Regime (SOUZA, 2016, p. 252-254).
Com isso, as lideranças indígenas perderam um cargo público que lhes era garantido
desde a promulgação do Diretório.
Mas a referida lei trazia um elemento ainda mais fulminante para os índios: em
seu artigo 90, revogava-se "[...] todas as leis, alvarás, decretos e mais resoluções que dão
às câmaras outras atribuições, ou lhes impõem obrigações diversas das declaradas na
presente lei, e todas as que estiverem em contradição à presente." (BRASIL, 1828). O
Diretório, que elevava as aldeias religiosas a vilas e regulamentava suas câmaras
constituídas pelos índios, seria, teoricamente, anulado por tal legislação, pelo menos no
que dizia respeito à administração municipal. A preferência que deveria ser dada aos
indígenas na escolha de cargos honoríficos prevista pela lei pombalina (PORTUGAL,
8
Os artigos e da lei de 11º de outubro de 1828 diziam: "Têm votos na eleição dos vereadores os que
têm voto na nomeação dos eleitores da paróquia na conformidade da constituição, art. 91 e 92", e "Podem
ser vereadores todos os que podem votar nas assembleias paroquiais, tendo dois anos de domicílio dentro
do termo", o que era definido pela renda de 100 mil réis por ano. Lei de de outubro de 1828. nova
forma às câmaras municipais, marca suas atribuições e o processo para sua eleição, e dos juízes de paz.
Disponível em: http://planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LIM/LIM-1-10-1828.htm. As fontes pesquisadas não
me permitem saber quantos índios possuíam tal patrimônio em 1828, e se, consequentemente, eram
eliminados dos papeis de eleitores e vereadores. É de se supor, entretanto, que muitos indígenas passavam
por dificuldades econômicas no período (Cf. COSTA, 2018, p. 94-95).
1758, p. 34) não seria mais considerada, principalmente pelos extranaturais, cuja
população aumentava nas vilas de índios nesse período.
Ainda que a decisão definitiva sobre a anulação do Diretório nos oitocentos, e da
condição política especial para os índios, pudesse vir de deliberações dos legislativos
provinciais, a promulgação da lei das câmaras municipais de 1828 pode ter dado início a
uma tendência para esta direção em muitos lugares. Na Bahia, os índios da vila de
Mirandela protestaram por escrito contra a instalação da câmara municipal e do juizado
de paz nos moldes da nova legislação, “[...] pois entendiam esta mudança como uma
forma de excluí-los de um instrumento de poder e uma porta de entrada para a perda de
direitos garantidos pela legislação do século XVIII, principalmente a terra” (REGO, 2013,
p. 136). Já em Pedra Branca, também na província baiana, uma revolta eclodiu contra “o
alijamento definitivo dos índios nos cargos oficiais da localidade.” (REGO, 2018, p. 49-
50). Como mostrou André Rego, nos dois casos, a promulgação da lei de 1º de outubro de
1828 teve como consequência a extinção das duas vilas e dos espaços de atuação política
municipal indígena.
Um indício dessa situação é a proposta apresentada pelo vereador João Bezerra
de Albuquerque na sessão de 25 de março de 1829, para que
[...] a cachaça que entra de fora em pipas pagar oito mil réis, e em cargas por
canada cem réis, o que sendo discutido em votos houve maioria de votos e foi
decidido que as aguardentes que fossem importadas vindas de fora pagassem o
imposto de 50 réis em canada para a receita deste conselho, ficando
primeiramente a postura dita da vinda de fora como aos do país os dois mil réis
impostos. (CATÃO, 1939, p. 156-157).
A decisão era flagrantemente contrária ao que dizia os artigos 40, 41 e 42 do
Diretório, que proibia o comércio de bebida alcoólica em vilas de índios (PORTUGAL,
1758, p. 18-19). Tanto que, em 1822, um memorial da câmara de outra vila de índios no
Ceará, a de Messejana, provavelmente foi sequer analisado pelo governo provisório da
província porque pedia a anulação da lei pombalina “[...] por resultar em benefício
público”, já que o comércio da povoação era impedido “[...] por não se poder vender nela
licores espirituosos.” (MEMORIAL..., 1822; COSTA, 2019, p. 51). Além disso, a lei ainda
vigorava no Ceará quando o senado de Monte-mor Novo regulamentou o comércio de
aguardente na vila, tanto que, nesse mesmo ano de 1829, uma proposta de posturas
apresentada também pela câmara de Messejana foi negada pelo governo do Ceará por
ser “contra as disposições do Diretório ainda em vigor”. Por isso, a câmara poderia se
dirigir ao poder legislativo provincial, “[...] expondo a necessidade da dispensa do
Diretório nesta parte [das posturas] por ter lugar o contrato de aguardente para
aumento de suas rendas.” (DE JOAQUIM..., 1829, p. 69-71; COSTA, 2018, p. 125-126).
O que foi exigido de uma câmara de vila de índios não tocava nem perto na de
outra. Os repúblicos de Monte-mor Novo sequer tiveram a preocupação de consultar o
governo da província acerca de sua decisão que, pelo menos para Messejana, feria a lei.
Segundo o que declararam nesse mesmo ano, era [...] nas serras, onde se fazem a
rapadura, e onde já se fabrica o açúcar, e se estila a aguardente, de cujo progressivo
andamento muito depende a prosperidade desta vila.” (1º OFÍCIO..., 1829. Grifo meu). A
citada atividade, proibida pelo Diretório ainda em vigor, pelo visto, já deveria ser
praticada havia algum tempo no seu termo.
A vila do maciço de Baturité era cada vez menos de índios, ainda mais excluídos
dos espaços políticos e tratados como cidadãos incapazes. Em resposta a um ofício do
presidente da província em 25 de junho de 1829, os vereadores da câmara reclamaram da
população da vila por sua “falta de atividade” e preguiça, além do “[...] costume herdado
dos índios de plantarem em aberto.” (OFÍCIO..., 1829). Em outro ofício da mesma data,
o senado se referiu aos índios como entes que saíram “[...] há pouco do estado da
natureza, do qual ainda conservam em boa parte.” ( OFÍCIO..., 1829). Em sua
perspectiva, os indígenas não eram cidadão equânimes. Era inconcebível que fossem
seus colegas na administração da vila, mesmo que suas lideranças tivessem ocupado
esses cargos desde 1764 e que a vila, a rigor, ainda fosse de índios.
A condição jurídica da vila se definiu no ano seguinte, a partir da comunicação
entre a câmara de Monte-mor Novo e o vigário da vila, Norberto Madeira Barros, no dia
6 de março de 1830. Informado da “[...] notícia que, por ordem de s. m. o imperador, se
retiravam os índios desta vila”, queria confirmar com os vereadores se realmente “[...]
tem deixado esta vila de pertencer aos índios, e, como sendo assim, deva em cobrar deles
os benesses assim como dos demais fregueses.” (DE NORBERTO..., 1830). A câmara
encaminhou a questão ao presidente da província, desejando “[...] ter os mesmos
esclarecimentos, tanto para poder responder ao dito vigário, como para melhormente
dirigir seus trabalhos.” (DA CÂMARA..., 1830). A resposta do governo do Ceará foi lida na
sessão da câmara do dia 29 de março: “[...] um ofício do presidente da província datado
de 17 do corrente participando a esta câmara ter deixado esta vila de ter o título de vila
de índios, mas que o reverendo vigário não poderia perceber dos índios mais do que era
de costume, e de tudo ficou esta câmara inteirada.” (CATÃO, 1939, p. 157).
O comunicado do presidente da província escancarou algo que estava definido
na prática. Se os indígenas não participavam das decisões administrativas e não
demoraria sua expulsão da vila, se o Diretório não era mais obedecido e se nem mesmo a
câmara tinha certeza sobre sua condição jurídica, tudo isso significava que os índios
perderam suas garantias políticas havia algum tempo. A recomendação de que o vigário
deveria cobrar menos dos índios da vila não se referia a um estatuto especial dessa
população, que remetia ao sistema colonial de sociedade corporativa, mas enquadrava-
os enquanto cidadãos subalternos, percepção típica do novo momento. Mesmo que ainda
estivessem lá, apenas eram dignos de caridade, não de cargos políticos.
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BRASIL. Lei de 1º de outubro de 1828. Disponível em: <
http://planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LIM/LIM-1-10-1828.htm >. Acesso em: 13 mar 2020.
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Pereira da Silva, 6 de março de 1830. APEC, CM, MN, caixa 24, pacotilha 1829-1831.
De Joaquim Pereira da Silva e Francisco Esteves de Almeida à câmara de Messejana.
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De Manoel de Magalhães Pinto e Avelar à rainha dona Maria I. Aquiraz, 1786. Arquivo
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De Norberto Madeira Barros à câmara de Monte-mor Novo, 6 de março de 1830. APEC,
CM, MN, caixa 24, pacotilha 1829-1831.
Mapa da população da capitania do Ceará extraído dos que deram os capitães-mores no
ano de 1813. BN, códice II-32, 23, 3.
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Nomeação de Manoel José da Rocha como sargento-mor de Monte-mor Novo. Fortaleza,
18 de junho de 1799. APEC, fundo Governo da Capitania, livro 65.
Termo de acomodação feito entre Alexandre Correia de Araújo com os índios desta vila
tudo como nela se declara. Anexo ao termo de vereação da câmara de Monte-mor Novo,
23 de janeiro de 1822. APEC, CM, MN, livro 54.
Termo de vereação da câmara de Monte-mor Novo, 22 de dezembro de 1821. APEC, CM,
MN, livro 54.
Termo de vereação da câmara de Monte-mor Novo, 26 de dezembro de 1821. APEC, CM,
MN, livro 54.
Termo de vereação da câmara de Monte-mor Novo, 7 de dezembro de 1821. APEC, CM,
MN, livro 54.
Termo de vereação da câmara de Monte-mor Novo, 8 de outubro de 1822. APEC, CM,
MN, livro 54.
Termo de vereação da câmara de Monte-mor Novo, 27 de janeiro de 1822. APEC, CM,
MN, livro 54.
Termo de vereação da câmara de Monte-mor Novo, 28 de setembro de 1822. APEC, CM,
MN, livro 54.
Termo de vereação da câmara de Monte-mor Novo, 28 de janeiro de 1823. APEC, CM,
MN, livro 54.
Termo de vereação da câmara de Monte-mor Novo, 4 de junho de 1825. APEC, CM, MN,
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