SANTOS, Gabriel Percegona
*
https://orcid.org/0000-0002-4589-2925
RESUMO: A investigação se constrói a partir
do diálogo entre a história social do humor no
Brasil, entre os anos de 1964 e 1985, e sua
expressão musical, o que se fará a partir do
levantamento dos fonogramas dessa verve,
lançados nesse período. Após abordar os
instrumentos de censura adotados pela
ditadura, discorre-se sobre a construção de
uma indústria fonográfica do humor no Brasil,
a partir da década de 1960. Posteriormente,
reflete-se sobre os “humoristas-cantores, a
partir das obras de Ary Toledo, Paulo Silvino,
Chico Anísio e Arnaud Rodrigues (como
“Baiano & Novos Caetanos”), lançadas no
Brasil, durante o período da ditadura civil-
militar. Aborda-se, então, a relação dessas
obras com a censura vigente e, em que medida
as canções apresentadas por esses
personagens revelam, igualmente, uma crítica
contundente e explícita ao período histórico
vivenciado e aos costumes sociais vigentes,
sem que a censura as reprimisse, permitindo
sem maiores dificuldades sua publicização.
PALAVRAS-CHAVE: Censura; Ditadura;
Humor Musical; Música Popular Brasileira.
ABSTRACT: The investigation is built from the
dialogue between the social history of humor
in Brazil, between the years 1964 and 1985, and
its musical expression, which will be done by
surveying the phonograms of this verve,
launched during this period. After addressing
the censorship instruments adopted by the
dictatorship, the study discusses the
construction of a phonographic industry of
humor in Brazil, starting in the 1960s.
Subsequently, it reflects on the “comedian-
singers”, from the works of Ary Toledo, Paulo
Silvino, Chico Anísio and Arnaud Rodrigues (as
“Baiano & Novos Caetanos”), launched in
Brazil during the period of the civil-military
dictatorship. It then addresses the relationship
of these works with the censorship in effect at
the time and to what extent the songs
presented by these characters also reveal a
strong and explicit criticism of their historical
period and social customs, without being
repressed by the censorship, and allowing its
publication without major difficulties.
KEYWORDS: Censorship; Dictatorship;
Musical Humor; Popular Brazilian Music.
Recebido em: 28/07/2020
Aprovado em: 10/11/2020
* Bacharel em Direito pela UFPR, Curitiba/PR, mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito da
UFPR, Curitiba, PR. Assessor Jurídico. E-mail: gabriel_percegona@hotmail.com.
Este é um artigo de acesso livre distribuído sob licença dos termos da Creative Commons Attribution License.
Introdução
O riso e a música são algumas das primeiras experiências sensoriais humanas,
desempenhando relevantes funções individuais e coletivas. Em dadas circunstâncias da
história, a comicidade passou a se expressar por meio da música. Nesse sentido, são
fartos os relatos sobre as cantigas de escárnio e maldizer, embebidas de sátiras a figuras
oficiais e personagens importantes da Idade Média, numa mais evidente aproximação
entre essas experiências. nesse momento, o humor por meio de canções era
instrumento de crítica e insurgência.
No Brasil, em que a tradição marcada pela oralidade ganha fecundo terreno na
música pela própria facilidade que se tem em memorizar uma canção o humor
encontra, nesse meio, relevante mecanismo para sua difusão. São inúmeros os exemplos
dessa associação: as marchinhas de carnaval, as músicas dos repentistas nordestinos, os
cocos e carimbós, entre outras manifestações musicais regionalizadas. Além desses, e
mais estudado, é o samba, em suas várias vertentes, tendo-se por exemplo Noel Rosa,
Adoniran Barbosa e Moreira da Silva.
Neste trabalho, analisa-se de que maneira o humor musical desenvolvido entre os
anos de 1964 e 1985 se revela como importante mecanismo de crítica, embate e
resistência cultural à ditadura e aos costumes hegemônicos. No primeiro momento,
aborda-se a perspectiva da história social do humor musical no Brasil, durante a ditadura
civil-militar. Apontam-se exemplos de como a comicidade se manifestou em canções e
comportamentos de renomados músicos brasileiros nesse período, em oposição ao
regime político vivenciado e à tradição cultural existente.
No segundo momento, o texto discorre sobre a censura musical no país,
abordando os mecanismos institucionais e os parâmetros normativos para sua atuação,
pontuando-se alguns exemplos em que a censura ocorreu no âmbito da música popular
brasileira.
Por fim, na última seção, trata-se da categoria brida de personagens do cenário
cultural daquele período: os “humoristas-cantores. Para tanto, fala-se da ascensão de
uma indústria fonográfica do humor no Brasil, especialmente a partir da década de 1960.
Após, são analisadas três produções musicais de artistas tradicionalmente associados à
comédia que registraram gravações em forma de LPs (long-plays): Ary Toledo cantando
no programa O Fino da Bossa, Paulo Silvino com o disco A Festa do Macaco, e Chico
Anísio e Arnaud Rodrigues, sob a alcunha de Baiano & Novos Caetanos, com o LP Sangue
no Cacto. A partir dessas obras, discute-se em que medida a condição de humorista de
seus autores permitiu que a censura desse pouca atenção ao conteúdo das canções ali
registradas, de cunho crítico e insurgente, autorizando-as sem grandes dificuldades.
Por uma história social do humor musical no Brasil (1964-1985)
A música e o humor são importantes instrumentos de sociabilidade, fundamentais
para o desenvolvimento da subjetividade e de sua projeção em determinada coletividade.
Associados ou não, seja na existência pública ou na esfera privada, esses elementos
estão cotidianamente presentes na vida dos indivíduos.
O riso se revela como uma das primeiras experiências da vida humana. A
comicidade, portanto, mostra-se como elemento inerente ao comportamento social,
essencial à constituição e desenvolvimento de laços sociais. Compreende-se, então, que
o riso se constitui não apenas como uma reação instintiva e orgânica a algum estímulo
externo associado ao humor, mas se origina, precisamente, na interação social (SALIBA,
2017, p. 4).
Os sentidos do humor são inúmeros e podem ser discutidos sob variadas
perspectivas, havendo complexos debates sobre o conteúdo da comicidade. Uma
definição introdutória, mas não exclusiva, é retirada de Bremmer e Roodenburg, para
quem o humor se qualifica “como qualquer mensagem expressa por atos, palavras,
escritos, imagens ou músicas cuja intenção é provocar o riso ou um sorriso
(BREMMER; ROODENBURG, 2000, p. 13).
Nesse sentido, o humor apresenta uma multiplicidade de funções, coletivas e
individuais: como elemento de interação, facilita a comunicação e o entrosamento dos
sujeitos entre si e com os grupos aos quais pertencem ou pretendem ingressar;
representa, sob a perspectiva fisiológica, indicativo e estímulo à “boa saúde”; sob o
ponto de vista dos estudos psicológicos e, em especial, da psicanálise, com Freud, o
humor exacerba o sujeito de suas inibições, pensamentos e sentimentos reprimidos
(SALIBA, 2017, p. 15). Além disso, o humor se manifesta como expressão de uma
cosmovisão, “um ponto de vista particular e universal sobre o mundo, que percebe de
forma diferente, embora não menos importante (talvez mais) do que o sério” (BAKHTIN,
1999, p. 57). Sob a perspectiva antropológica, pode ser entendido como manifestação
sociológica e cultural.
Sob a perspectiva que se pretende abordar neste texto, de sua apropriação e
utilização como ferramenta de resistência simbólica e politicamente constituída, a
comicidade manifestada através da sátira, escárnio, ironia, entre outras formas de
produção do humor é historicamente utilizada como meio para a crítica social, da
política, dos costumes, de algum evento histórico ou algum personagem. Serve como
mecanismo de questionamento da ordem vigente, do status quo, das desigualdades e
injustiças sociais, dos hábitos e práticas usualmente reproduzidos no cotidiano. Em
síntese, tensiona os modelos hegemônicos nos diversos âmbitos da sociedade.
Uma das possibilidades políticas do humor reside em seu aspecto transgressor:
consiste na ruptura com o sentido inicial de uma proposição ou de uma regra social, o
que ocasiona disjunções e diversidade de interpretação, motivando o riso (ARAGÃO,
2011, p. 116). Umberto Eco, amparando-se nos estudos de Mikhail Bakhtin sobre a função
do carnaval durante a Idade Média, de subversor da realidade e inversão dos papéis
sociais, compreende que o efeito cômico ocorre quando existe violação de uma regra
que pode ser um código, um marco social, uma lei, um conjunto de premissas sociais ou,
preferivelmente, uma regra de etiqueta – por um personagem com que não se tem,
necessariamente, vinculação (um agente pictórico, animalesco); nesse momento, o
receptor da mensagem sente-se livre por se liberar do temor imposto pela regra, a qual é
por ele violada apenas indiretamente (ECO, 1989, p. 10-11).
Essa forma de humor ocorre “ao identificarmos na enunciação do conteúdo
humorístico a intenção de transgressão de entendimento de uma dada regra social, que
ao ser violada e subvertida, proporciona a mobilização do intelecto na construção de
outras propostas de raciocínios” (FIGUEIREDO, 2012, p. 25), cujas aberturas permitem a
crítica à situação retratada.
Observa-se, então, que o humor se insere como parte de uma reflexão sobre a
cultura e seus aspectos políticos, sociais, estéticos, econômicos, jurídicos. Nessa
associação, agrega processos de contestação, enfrentamento, questionamento e crítica
social, constituídos e viabilizados por inúmeras formas de expressão.
Durante a ditadura civil-militar no Brasil, entre 1964 e 1985, a crítica por meio do
humor assumiu papel fundamental na tradução do descontentamento com os rumos que
o país tomava, se realizada sob uma perspectiva política, ou na retratação de
comportamentos então vistos como retrógrados ou ultrapassados, se manifestada sob
uma crítica aos costumes. O autoritarismo, ao mesmo tempo que representa uma intensa
repressão política, fomenta e incentiva a produção de bens culturais.
São inúmeros os exemplos e variadas as plataformas por meio das quais a
comicidade era veiculada. Na imprensa escrita, a revista O Pasquim é paradigmática para
a análise do humor no período da ditadura. Criada em junho de 1969, iniciou sua
produção como uma publicação de caráter comportamental e multidisciplinar, tratando
sobre sexo, drogas, emancipação feminina, mas também abordando temas relacionados à
música, teatro, cinema, literatura. Com o aumento da repressão, o semanário tornou-se
mais politizado, passando a ser alvo da censura. Teve importantes colaboradores, como
os cartunistas Jaguar, Henfil e Ziraldo, os jornalistas Sérgio Cabral, Paulo Francis, e o
escritor Millôr Fernandes, entre outros. Ao tratar sobre as possibilidades políticas do
humor nas charges de O Pasquim, Daniel Figueiredo afirma que o jornal, além de
provocar o riso ao tratar, com humor, das contradições advindos da ditadura, e dos
problemas sociais, gerava identificação do público com o conteúdo produzido, ou seja,
um processo catártico (FIGUEIREDO, 2012, p. 52-53).
Além de O Pasquim, outras produções alternativas, críticas ao regime, foram
editadas nas décadas de 1960 a 1980, no Brasil. Além do humor escrito, uma gama de
programas televisivos, cuja comicidade se revelava mais sob a vertente dos costumes, foi
produzida nesse período. Destacam-se, nesse âmbito, A Família Trapo (1967-1971), Os
Trapalhões (1974-1995), Praça da Alegria (1956-1978), Satiricon (1973-1975), Chico City
(1973-1980) e Viva o Gordo (1981-1987). Entre os expoentes desse estilo de humor, citam-
se Chico Anysio, Soares, Agildo Ribeiro, Ronald Golias, Renato Aragão, Berta Loran,
Paulo Silvino e Arnaud Rodrigues.
No cinema, Hugo Carvana é representativo da adoção da estética da comicidade
como instrumento de questionamento de hierarquias sociais, do progresso capitalista e
da ética ao trabalho, especialmente ao valorizar a malandragem em seus personagens.
Suas narrativas satíricas e populares expõem o mal-estar vivido pela sociedade brasileira
no período ditatorial. Entre suas principais produções, nesse estilo, estão Vai Trabalhar,
Vagabundo (1973) e Se Segura, Malandro! (1978), cuja trilha sonora contém composições
de Chico Buarque e Francis Hime.
Por outra banda, menos politizada, mas ainda humorada, é a filmografia produzida
sob a direção de Carlos Imperial. Personagem irreverente na cultura brasileira nas
décadas de 1960 e 1970, foi responsável pela criação de um movimento musical – a
“pilantrália”, em evidente ironia com o movimento tropicalista, capitaneado por Caetano
Veloso e Gilberto Gil –, que contou com a participação de Wilson Simonal, Nonato Buzar,
Antônio Adolfo e Tibério Gaspar. Registro desse movimento é o álbum Pilantrália, dele,
acompanhado pela Turma da Pesada (grupo composto por expoentes da música
instrumental brasileira, como Paulo Moura, Wagner Tiso, Oberdan Magalhães e Edison
Machado). No cinema, contudo, Imperial foi responsável pelo registro de inúmeras
chanchadas”, gênero cinematográfico em que predomina a rusticidade e precariedade
das gravações, e o humor ingênuo, popular e anedótico.
Como o riso, a música é uma das primeiras experiências sensoriais humanas.
Representa, além disso, importante modo de comunicação entre as pessoas, em
sociedade, constituindo meio de denúncia, crítica, insurgência e retrato da realidade
experienciada. Durante a ditadura, a assim intitulada música popular brasileira (MPB)
representou um dos maiores e mais potentes instrumentos de reflexão, comunicação e
formação de opinião, num período em que as plataformas de informação, em geral,
estavam sujeitas à censura prévia (PINHEIRO, 2010a, p. 10).
A irreverência e o humor, desde os primórdios, estiveram presentes na música
brasileira, sendo farta sua manifestação, até os dias atuais. Embora não se olvide da
existência de múltiplas representações musicais dotadas de comicidade no Brasil,
regionalizadas, não registradas formalmente ou apenas transmitidas oralmente, não se
pretende, no presente texto, tratá-las com maior detrimento. Parte-se, portanto, da
divisão proposta por Jairo Severiano (2017), que divide a história da música popular
brasileira em quatro tempos: formação (1770-1928), consolidação (1929-1945), transição
(1946-1957) e modernização (1958 até a atualidade), dando-se enfoque à moderna música
popular brasileira.
Reconhece-se, contudo, serem profícuos os exemplos de canções com cunho
cômico em momentos anteriores à ditadura militar. As marchinhas de carnaval, por
exemplo, são retratos fidedignos de aspectos da cultura e da sociedade brasileiras,
especialmente nas décadas de 1940 a 1960. Na linhagem do samba, a realidade social, as
mazelas urbanas e as desigualdades são cantadas em versos de inúmeros compositores
que, fazendo uso da comicidade, abrandam as dificuldades sem deixar de manifestar uma
crítica contundente. Nesse sentido, destaca-se o cancioneiro de Adoniran Barbosa, Noel
Rosa, Ismael Silva, Sinhô, Braguinha, entre outros. No Nordeste, Luiz Gonzaga e João do
Vale são representativos de uma música com evidente cunho de crítica social.
Posteriormente, já com os militares no poder, passou-se a fazer uma música
evidentemente mais engajada politicamente. As assim denominadas “canções de
protestoganharam destaque a partir dos festivais de música popular, na medida em que
reafirmavam o prestígio da temática social, “trabalhando com referências às dificuldades
colocadas pela nova situação política, tanto ao nível da expressão do intelectual, quanto
em relação ao cotidiano das classes populares, representadas por marias, motoristas de
caminhões e violeiros.” (HOLLANDA; GONÇALVES, 1984, p. 58).
Foi durante o III Festival Internacional da Canção, o mais político dentre todas as
disputas realizadas, que se sagrou campeã a canção “Sabiá”, de Chico Buarque e Tom
Jobim, traduzindo os episódios de exílio com seus versos sobre retorno ao Brasil (“vou
voltar / sei que ainda vou voltar”). Contudo, a canção mais aclamada pelo público foi “Pra
Não Dizer Que Não Falei das Flores”, de Geraldo Vandré, que ficou conhecida como o
hino contra a ditadura (SEVERIANO, 2017, p. 346-360). São representativos desse
movimento Chico Buarque, Taiguara, Geraldo Vandré, Luiz Gonzaga Jr., Edu Lobo, Sérgio
Ricardo, João Bosco e Aldir Blanc, Ivan Lins, entre outros.
No entanto, durante o regime autoritário, em virtude da censura e da perseguição
que os compositores e intérpretes sofriam, passou a ser necessário revestir e, de certa
forma, blindar a crítica que era trazida nas canções, sendo a comicidade um dos
principais artifícios para se driblar os agentes da ditadura e o controle autoritário das
instituições repressoras. Sem pretensão de esgotar a abordagem sobre o humor na
música brasileira no período da ditadura, serão apresentados alguns exemplos
ilustrativos dessa intersecção, e de que maneira contemplam, em seus versos, uma
ruptura, seja com o regime político, seja com os costumes sociais.
O movimento tropicalista colocou-se como manifestação de crítica e resistência à
ditadura, buscando, no humor e na irreverência, a contestação de códigos de conduta e
comportamento. Para Heloísa Buarque de Hollanda, o tropicalismo começa “a pensar a
necessidade de revolucionar o corpo e o comportamento, rompendo com o tom grave e a
falta de flexibilidade da prática política vigente” (HOLLANDA, 1992, p. 61). Nesse sentido,
Os Mutantes propuseram formas libertárias para se posicionar contra a política, a
estética e a sexualidade, nos moldes até então hegemônicos. O grupo, surgido em 1967,
tinha em sua formação original os irmãos Sérgio Dias e Arnaldo Baptista, e Rita Lee.
Posteriormente, somaram-se à banda Arnolpho Lima Filho (Liminha) e Ronaldo Leme.
Com essa composição, gravaram seu último trabalho em 1972, denominado Os Mutantes
e Seus Cometas no País de Bauret.
Um episódio que ilustra a irreverência do conjunto ocorreu durante a defesa da
canção Caminhante Noturno, durante um festival, em que Rita Lee, vestida de noiva,
aparece com uma falsa barriga de grávida. À época, Rita namorava com Arnaldo Baptista,
e a gravidez que ocorresse sem existir o matrimônio entre os genitores era malvista pela
sociedade. Exemplo disso é que no Código Civil de 1916, os filhos eram classificados em
legítimos e ilegítimos: “Legítimo era o filho biológico, nascido de pais unidos pelo
matrimônio; os demais seriam ilegítimos” (LOBO, 2004, p. 48).
Em Panis et Circencis, canção de Caetano Veloso e Gilberto Gil, registrada tanto
no álbum coletivo Tropicália quanto no disco homônimo da banda, de 1968, o humor se
situa na ambientação projetada pelo maestro Rogério Duprat. Ao retratar o jantar de uma
família burguesa, com pompas nos sopros da introdução e talheres ao chão, ao final, os
versos As folhas sabem procurar pelo sol / E as raízes procurar, procurar / Mas as
pessoas na sala de jantar / São ocupadas em nascer e morrer” (VELOSO; GIL; 1968)
revelam uma contundente crítica ao modo de vida irrefletido, automático, típico do
modelo capitalista. Em Ave, Lucifer, canção que compõe o álbum A Divina Comédia ou
Ando Meio Desligado (1970), exalta-se a sexualidade e, não fosse apenas isso, o enredo é
bíblico (as maçãs, a serpente, o anjo caído).
O disco seguinte, Jardim Elétrico (1971), traz em sua capa o desenho de um de
maconha, com traços de psicodelia, produzido por Alain Voss. Em Top Top, canção que
alude ao gesto de uma mão espalmada sendo batida contra a outra, cerrada, “gesto e
impropriedade não são apenas formas de riso, mas também revide e alerta” (PIMENTEL,
2001, p. 33), como se pode ver dos versos “Eu vou sabotar / você vai se azarar / o que eu
não ganho eu leso / ninguém vai me gozar, não, jamais!” (LIMA FILHO; MUTANTES; 1969)
Em Baurets (1972), o humor se cristaliza em A Hora e a Vez do Cabelo Nascer. Em
poucos versos, ironiza o patriotismo e o nacionalismo defendidos pela ditadura: “Hasteei
o meu cabelo / para que o sol fique sabendo das coisas / O meu cabelo é verde e amarelo
/ violeta e transparente / A minha é caspa é de purpurina / Minha barba azul anil” (LIMA
FILHO; MUTANTES; 1972)
As Frenéticas, por sua vez, foram um grupo vocal feminino com grande projeção
nacional a partir de meados da década de 1970. As letras das canções por elas cantadas
eram dotadas de um humor bastante específico, direcionado a questionar a objetificação
da mulher. Nesse sentido, destacam-se Perigosa
1
e Macho
2
.
Chico Buarque, por sua vez, em inúmeras canções, utilizou da comicidade como
instrumento de insurgência à realidade social existente durante a ditadura. Em Meu Caro
Amigo
3
(1976), por exemplo, o emissor do recado atualiza seu interlocutor que “a coisa
aqui” não estava boa, não se estava conseguindo “segurar o rojão”, mas, mesmo assim,
algumas pessoas permaneciam alienadas, pois havia muito entretenimento (samba, choro
e futebol). Em A Volta do Malandro
4
(1978), reflete sobre o desaparecimento da
1
Sei que eu sou / Bonita e gostosa / E sei que vo/ Me olha e me quer / Eu sou uma fera / De pele
macia / Cuidado, garoto / Eu sou perigosa” (Rita Lee, Roberto de Carvalho, Nelson Motta, 1977).
2
“Macho, macho, macho, machão / Ser somente um homem não lhe traz satisfação / Macho, machão / Usa
a força bruta pra mostrar quem tem razão / Elogio é mixaria se me chama de rainha / Me desculpe mas
não quero, não quero / E não vou reinar na cozinha” (Roberto Carlos e Erasmo Carlos, 1978).
3
“Meu caro amigo eu quis até telefonar / Mas a tarifa não tem graça / Eu ando aflito pra fazer você ficar /
A par de tudo que se passa / Aqui na terra 'tão jogando futebol / Tem muito samba, muito choro e rock'n'
roll / Uns dias chove, noutros dias bate sol / Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui preta /
Muita careta pra engolir a transação / E a gente engolindo cada sapo no caminho / E a gente vai se
amando que, também, sem um carinho / Ninguém segura esse rojão” (Chico Buarque e Francis Hime, 1976)
4
“Agora já não é normal / O que dá de malandro regular, profissional / Malandro com aparato de malandro
oficial / Malandro candidato a malandro federal / Malandro com retrato na coluna social / Malandro com
contrato, com gravata e capital / Que nunca se dá mal” (Chico Buarque, 1978).
malandragem carioca, que lugar aos malandros de terno e gravata, letrados, de altas
posições sociais. O humor também estava presente no comportamento de Chico ao
tentar driblar a censura, uma vez que, no disco Sinal Fechado (1974), em que constam
apenas regravações de canções de outros compositores, registra a música Acorda Amor
5
que afronta diretamente a ditadura, escrita por Julinho da Adelaide e Leonel Paiva,
pseudônimos de Chico. Sob a alcunha de Adelaide, também escreve e grava Jorge
Maravilha, com o emblemático verso “Você não gosta de mim / mas sua filha gosta”
(BUARQUE DE HOLANDA, 1974), supostamente dirigida ao então presidente Emílio
dici.
Caetano Veloso, no disco intitulado “Bicho, de 1977, também “apresentava o
protesto social, mas de uma maneira mais leve, dançante e até ingênua, sem, no entanto,
perder a contundência crítica” (CORREA, 2011, p. 197).
Inúmeros são os exemplos de compositores que registraram, com humor, o
momento vivenciado entre os anos 1960 e 1980. Sem pretensão de esgotamento, ainda é
possível citar Raul Seixas, com a canção Mosca na Sopa
6
(1973); Ivan Lins, com Rei do
Carnaval (1974); Sérgio Ricardo, referindo-se à Cuba, em Jogo de Dados
7
(1971).
A censura na música popular brasileira
Considera-se o Decreto n
o
20.493/46, que criou o Serviço de Censura e Diversões
Públicas (SCDP), como estruturante do aparelho censório por mais de quarenta anos
(GARCIA, 2008, p. 30). Entre as competências atribuídas ao SCDP estão censurar
previamente e autorizar as execuções de discos cantados e falados em qualquer
localidade pública (art. 4
o
, IV), bem como “as irradiações, pela radiotelefonia, de peças
teatrais, novelas, canções, discos cantados ou falados e qualquer matéria que tenha
feição de diversão pública” (art. 40, II) (BRASIL, 1946).
Os dispositivos contidos no decreto, que vigeu de 1946 a 1988, balizaram as
atividades artísticas e orientaram sua exibição pública, por meio de programas de
televisão, rádio, cinema, teatro, música (KUSHNIR, 2004, p. 83). Nesse sentido, a
essência da censura na ditadura militar encontra-se nesse decreto, que permanece
5
“Acorda amor / Eu tive um pesadelo agora / Sonhei que tinha gente fora / Batendo no portão, que
aflição / Era a dura, numa muito escura viatura / Minha nossa santa criatura / Chame, chame, chame /
Chame, chame o ladrão, chame o ladrão” (1974).
6
“Eu sou a mosca que pousou em sua sopa / Eu sou a mosca que pintou pra lhe abusar / Eu sou a mosca
que perturba o seu sono / Eu sou a mosca no seu quarto a zumbizar / E não adianta vir me dedetizar (…)
Pois nem o DDT pode assim me exterminar / Porque 'cê mata uma e vem outra em meu lugar” (Raul
Seixas)
7
“A gente é a gente, é um pedaço / A gente é um pedaço de homem / Cercado de ilha por todos / Cercado
por todos os lados / Posso errar na geografia / Mas vou acertando nos dados” (Sérgio Ricardo)
substancialmente inalterado (BERG, 2002). As normativas subsequentes tiveram por
base as disposições contidas no documento de 1946, promovendo algumas alterações a
fim de adequar o procedimento censório à realidade do momento.
Nesse sentido, o Decreto n
o
56.510/65 iniciou o processo de centralização da
censura, como se nota em seu artigo 175
8
. Posteriormente, a Constituição de 1967 deu
continuidade a esse intento, de modo que passou a competir à União organizar e manter
a polícia federal com a finalidade de promover a censura de diversões públicas (art. 8
o
,
VII, d) (BRASIL, 1967). No entanto, essa medida se efetiva nas primeiras décadas dos anos
1970, o que justifica serem raros os registros de pareceres da Censura Federal no campo
da música popular e, em especial, das canções de protesto nesse período (1964-1970)
(SOUZA, 2010, p. 73), o que também explica o porquê de algumas canções de cunho
contestatório terem sido divulgadas sem maiores dificuldades, como por exemplo
Antônio das Mortes (1964), de Sérgio Ricardo e Glauber Rocha para o filme Deus e o
Diabo na Terra do Sol, a canção Opinião (1965), composta por Ketti, as músicas
Aroeira e Caminhando (1967 e 1968), ambas de autoria de Geraldo Vandré.
Após dezembro de 1968, com a imposição do Ato Institucional n
o
5 visando ao
combate de “atos nitidamente subversivos, oriundos dos mais distintos setores políticos
e culturais” (BRASIL, 1968), houve o acirramento do caráter ditatorial do governo: a
censura se agravou, a repressão se institucionalizou e ganhou vestes de legitimidade, a
tortura passou a ocorrer mais incisivamente.
Por ser a forma de expressão preferida da juventude e pela facilidade e rapidez de
sua difusão, possibilitando maior articulação e, assim, maior enfrentamento ao regime
por quem a consumia, a música, dentre os campos da cultura, foi a que sofreu maior
controle e demandou maior atenção pelo órgãos censores, tanto a nível regional como
federal, de modo que as canções passavam por duplo exame até sua aprovação ou não.
Assim, em que pese, normativamente houvesse diretrizes para a atividade dos censores,
que deveriam negar a autorização sempre que o conteúdo analisado contivesse, entre
outros, ofensa ao decoro público, induzimento à prática de maus costumes, desprestígio
às forças armadas, ou fosse capaz de promover o incitamento contra o regime vigente, a
ordem blica e seus agentes (BRASIL, 1946), muitas das decisões permaneciam sob o
arbítrio e subjetividade dos agentes da censura.
8
Art. 175. Ao Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP) diretamente subordinado à Polícia Federal
de Segurança Pública, compete: I Coordenar, em todo território nacional, do ponto de vista doutrinário e
normativo, as atividades inerentes à Censura Federal, a serem desempenhadas pelo órgão central e pelos
demais descentralizados nas delegacias regionais; II Unificar a orientação da Censura Federal, em todo
território nacional.
A atividade dos censores é um fenômeno que merece atenção por parte do
pesquisador, “para não ser complacente com os efeitos da censura sobre a produção
político-cultural, como também com as práticas isoladas que apresentam ‘indícios
democráticos’” (SOUZA, 2010, p. 90). Isso, pois algumas canções de cunho mais
combativo e de crítica mais explícita ao regime não foram censuradas, tendo-se
autorizado suas gravações, como, por exemplo, Pesadelo
9
(1972), composta por Maurício
Tapajós e Paulo César Pinheiro, e Nada Será Como Antes
10
(1971), de Milton Nascimento e
Ronaldo Bastos.
Além disso, a atuação dos censores não era monolítica, ou seja, havia autores ou
intérpretes cujas canções sequer eram analisadas, enquanto outros eram visados e
mesmo perseguidos pelos agentes. É Paulo César Pinheiro, discorrendo sobre o processo
de aprovação de suas letras perante os órgãos da censura, quem relata que, com algumas
exceções (como relatado em Araújo, 2008), o repertório de muitos compositores era
examinado minuciosamente. Dos bregas, dos românticos (…) nem se davam ao trabalho
de ler. Carimbavam imediatamente e despachavam” (PINHEIRO, 2010b, p. 124).
Como adiantado na primeira seção, as críticas contidas nas canções poderiam ser
dirigidas tanto ao regime, propriamente dito, como aos costumes e à moral
predominante. Sobre a última, atuava a chamada “supercensura”, que primava “pelo veto,
nas letras de canções, a qualquer referência a assuntos como drogas, homossexualidade,
religião, prostituição etc” (SOUZA, 2010 p. 96). No entanto, a atividade dos censores era
cíclica, ora se determinava atentarem-se às questões relativas à política, ocasião em que
eram visados compositores como Geraldo Vandré, Milton Nascimento e Chico Buarque,
ora aos temas que abordassem costumes (SOUZA, 2010, p. 98).
Sob o aparato normativo da censura, conforme visto anteriormente, os
compositores brasileiros viam-se obrigados a driblar os agentes da ditadura caso
desejassem ter suas obras gravadas. Um dos mecanismos utilizados por esses artistas
era dizer nas entrelinhas” seus recados, utilizando-se de humor, ironia, metáforas e
ambiguidade em suas composições.
Com 68 canções vetadas, Taiguara foi o compositor mais censurado durante a
ditadura. Sua crítica contundente ao regime fez com que se tornasse alvo dos agentes da
censura, tendo se auto-exilado em duas oportunidades, retornando ao Brasil apenas na
9
“[…] Você corta um verso, eu escrevo outro / Vome prende vivo, eu escapo morto / De repente olha
eu de novo / Perturbando a paz, exigindo troco / Vamos por eu e meu cachorro / Olha um verso, olha o
outro / Olha o velho, olha o moço chegando / Que medo você tem de nós, olha aí”
10
Eu já estou com o pé nessa estrada / Qualquer dia a gente se vê / Sei que nada será como antes amanhã
/ Que notícias me dão dos amigos? / Que notícias me dão de você? / Sei que nada será como está, amanhã
ou depois de amanhã / Resistindo na boca da noite um gosto de sol [...]”
década de 1980. Seu disco Imyra, Tayra, Ipy (1975) teve sua venda proibida e seus
exemplares recolhidos 72 horas após o lançamento.
Luiz Gonzaga Jr. (Gonzaguinha) também teve diversas de suas composições
censuradas. Em 1973, num programa televisivo, defendeu a música Comportamento
Geral, que possui os versos “você deve lutar pela xepa da feira / e dizer que es
recompensado” (GONZAGA JR., 1972). O júri do programa criticou sua música e ameaçou
o compositor, sendo que um dos jurados o chamou de terrorista e outro sugeriu sua
deportação. Sobre o processo de driblar a censura, Gonzaguinha fala em Geraldinos e
Arquibaldos (1975): “no campo do adversário / é bom lutar com muita calma /
procurando pela brecha pra poder ganhar” (GONZAGA JR., 1975).
Chico Buarque foi outro compositor que, por muito tempo, esteve sob os olhos
atentos dos censores por sua obra engajada e crítica da ditadura militar. Sua primeira
obra de cunho mais político foi Roda Viva (1968), seguida por Samba de Orly (1969),
Cálice (1973, gravada apenas em 1978) e Apesar de Você (lançada em compacto em 1970,
posteriormente recolhido, e autorizada novamente apenas em 1978). Seu disco intitulado
Calabar (1973) teve uma primeira versão cuja capa foi proibida e recolhida. Além disso, a
canção Ana de Amsterdam foi integralmente censurada, constando apenas a versão
instrumental, enquanto Bárbara, narrando um romance lésbico, tem a última palavra do
trecho “vamos ceder, enfim, à tentação das nossas bocas cruas / e mergulhar no poço
escuro de nós duas” (BUARQUE DE HOLLANDA, 1973) abafada na gravação.
Milton Nascimento teve 8 das 11 músicas do disco Milagre dos Peixes (1973)
censuradas, gravando-as apenas em suas versões instrumentais. Por sua vez, Odair José
apresenta em suas canções temas como sexualidade, pílula anticoncepcional,
prostituição, fazendo grandes críticas às tradições religiosas e conservadoras, como nas
músicas Vou Tirar Você Desse Lugar (1972), Cristo, Quem é Você? (1972) e Vou Morar
com Ela (1971). No entanto, em razão do disco O Filho de José e Maria (1977), em que
retrata a história de um personagem que se assemelha a Jesus Cristo, que se envolve com
drogas e questiona sua sexualidade, foi excomungado pela Igreja Católica.
Os expoentes do movimento tropicalista, Caetano Veloso e Gilberto Gil, foram
presos e exilados, no ano de 1969. Em 1973, sob a direção de Jards Macalé, realizou-se no
Museu de Arte Moderna, no Rio de Janeiro, um show coletivo em comemoração aos 25
anos da Declaração de Direitos Humanos (1948). O conserto contou com participação de
Chico Buarque, Edu Lobo, Gal Costa, Milton Nascimento, Paulinho da Viola, Raul Seixas,
entre outros. Entre as canções, o poeta Ivan Junqueira lia os artigos da Declaração,
momento em que a plateia reverberava sua contrariedade ao regime. Não se autorizou o
lançamento do disco, o que ocorreu apenas em 1979, sob o título de Banquete dos
Mendigos. Já na década de 1980, a banda de rock Blitz precisou riscar à mão duas
músicas do disco As Aventuras de Blitz (1982).
Além desses, inúmeros os compositores e intérpretes que foram,
sistematicamente, censurados durante a ditadura, como João Bosco e Aldir Blanc, Ivan
Lins, Sérgio Ricardo, Geraldo Vandré, Martinho da Vila, Luiz Ayrão e Raul Seixas.
Diversos eram os argumentos da censura para impedir que determinada canção
fosse gravada. Além disso, inúmeros foram os episódios em que discos foram recolhidos
do mercado e shows foram interrompidos ou cancelados pelos agentes da ditadura. No
entanto, por outro lado, as formas de resistência e os mecanismos de contorno da
censura também variavam.
Na seção seguinte, será analisada a relação peculiar existente entre humor e
música no período da ditadura, e de que maneira se revelou como instrumento de crítica
e insurgência contra o regime e em face dos valores morais tradicionalmente
hegemônicos.
“Humoristas que cantam”: entre a sátira política e a crítica social
Como visto, o humor sempre esteve presente na indústria fonográfica brasileira.
Desde os primórdios, no início do século XX (TINHORÃO, 1978), canções cômicas foram
registradas. Nesse sentido, destacam-se as marchinhas de carnaval, os sambas de Noel
Rosa e Moreira da Silva, entre outros baluartes das origens da música popular brasileira.
O humor, nas décadas de 1960 a 1980, foi um prolífico segmento da indústria
fonográfica nacional, período em que foram gravados inúmeros discos de contação de
estórias, anedotas e piadas. Nesse período, ganha destaque o que posteriormente veio a
se denominar “humor stand up”; no entanto, o conteúdo dessas gravações é muito
diverso: abrange diálogos, simples contação de piadas, esquetes e canções estas
últimas, objeto da última parte do ensaio.
Entre os principais representantes do humor que tiveram registradas suas
apresentações, estão Barnabé, José Vasconcellos, Costinha, Juca Chaves, Ronald Golias,
Soares, Os Trapalhões, Ary Toledo, Dercy Gonçalves, Elke Maravilha, Paulo Silvino,
Chico Anísio e Arnaud Rodrigues.
O primeiro disco do gênero, no Brasil, conforme mencionado na própria
contracapa do álbum, foi Eu Sou o Espetáculo, de José Vasconcellos, lançado pela
gravadora Odeon em 1960. Teve à época, grande vendagem, o que proporcionou a
gravação de outros discos dessa vertente por Vasconcellos, contudo, sem o mesmo
sucesso. Foram lançados E o Espetáculo Continua (s.d.), O Mundo Alegre de José
Vasconcellos (1966) e O Espetáculo é Zé Vasconcelos (1970), todos pela Odeon.
Algumas obras de humor eram censuradas especialmente em virtude da
inadequação para determinadas faixas etárias, por conter conteúdo explícito ou
palavrões, tais como os discos lançados por Dercy Gonçalves e o long-play (LP) Humor
Para Mulheres (1980), estrelado por Cidinha Campos, Berta Loran e Elke Maravilha.
Sobre o último, é evidente o cunho feminista da abordagem mica ali registrada,
traduzindo nas piadas a crítica a um modelo patriarcal e misógino presente na sociedade.
No entanto, discorre-se, aqui, sobre os “humoristas que cantam”, ou seja, sobre
aqueles personagens tradicionalmente associados à produção cômica da cultura que,
ocasionalmente ou de forma mais contínua, dedicaram-se à canção, registrando
gravações musicais. Essa categoria, portanto, se revela como um hibridismo entre
humoristas e musicistas (compositores e intérpretes), sendo figuras intermediárias entre
os comediantes que registravam suas apresentações de contação de estórias e piadas
sem, contudo, mesclá-la com números musicais –, e os compositores e cantores de
música popular, como os referidos na seção inicial, que faziam uso do humor sem serem
classificados como humoristas.
Assim, serão abordadas algumas obras de Ary Toledo, Paulo Silvino, e Chico
Anísio e Arnaud Rodrigues, os últimos sob a alcunha de Baianos & Novos Caetanos.
-se que alguns registros fonográficos desses artistas contêm sátiras políticas
direcionadas à ditadura, seus agentes e instituições, ou críticas de cunho social ou à
moral prevalecente, tão incisivas ou até mais contundentes, que as realizadas pelos
tradicionais compositores da MPB. Algumas dessas críticas eram realizadas
explicitamente, sem grandes apelos às figuras de linguagem usualmente utilizadas pelos
compositores (ironia, alegorias, metáforas).
Ary Toledo, conhecido humorista, em 1969, grava Ary Toledo no Fino da Bossa,
registro ao vivo realizado no programa televisivo comandado por Elis Regina e Jair
Rodrigues. Uma das canções, Pau de Arara (Comedor de Gilete), composta por Carlos
Lyra e Vinicius de Moraes para o espetáculo “Pobre Menina Rica”, de 1964, retrata a
vinda de um cearense, fugindo da seca e vindo para o Rio de Janeiro, e narra o processo
de invisibilização e marginalização do nordestino na então capital do país. Além disso,
“gilete” era “uma gíria comum empregada pelo grupo heterossexual para se referir à
pessoa que mantém relações sexuais com indivíduos do mesmo sexo e do sexo oposto”
(ALONSO, 2010, p. 71), sendo que em uma das estrofes da canção, o personagem -se
obrigado a comer gilete” (ou seja, prostituir-se) para não passar fome
11
. Apesar de a
canção ter sido originalmente escrita em 1964, autorizou-se sua gravação cinco anos
depois, quando já havia sido editado o AI-5. Nas canções Tiradentes e Descobrimento do
Brasil, do mesmo álbum, há a narrativa, em sátira, da saga desses acontecimentos
históricos. Em O Anúncio, há, novamente o retrato da vida sertaneja, com o relato sobre
a seca, a dádiva da chuva, a vinda para o “sul” e o retorno à terra natal ainda sem
recursos.
Sob a produção de Paulo Silvino, Orlandivo e Durval Ferreira, o disco A Festa do
Macaco (1979) retrata a articulação dos bichos da floresta para se insurgir contra a
autoridade do leão. Em trecho destacado na contracapa do disco, são lidos os seguintes
versos: “no tempo em que na floresta / reinava cruel o leão / o macaco democrata / fez
uma conspiração / E esta festa alucinante / é o momento de alegria / onde toda a
bicharia / brinda o fim da monarquia” (SILVINO, 1979). Nota-se evidente alegoria entre a
figura do macaco democrata e os críticos à ditadura, e o leão, cruel e feroz, simbolizando
o autoritarismo dos militares.
Destacam-se, sobre essa obra, duas coisas. Primeiramente, os personagens que
compõem a gravação são originados do programa humorístico da Rede Globo, intitulado
“O Planeta dos Homens”. O programa, por si, já apresentava quadros de humor baseados
em sátira de costumes, crítica social e política, parodiando, também, quadros do rádio e
televisão. Em segundo lugar, a estética do disco é de uma gravação infantil, contendo
inúmeros desenhos, seja na capa ou contracapa, ou no encarte.
Percebe-se, ainda, que seu lançamento se deu em 1979, momento em que se
caminhava para uma reabertura política. No entanto, ainda havia a institucionalização da
censura, que autorizou a produção do álbum.
Por fim, a obra mais representativa do que se pretende aqui tratar é de Chico
Anísio e Arnaud Rodrigues, sob a alcunha de Baiano & Novos Caetanos (numa sátira a
Caetano e os Novos Baianos), o disco Sangue no Cacto, de 1974. Como mencionado na
primeira parte, a dupla Anísio-Rodrigues foi prolífica na produção do humor no Brasil,
especialmente na década de 1970.
Antes de se comentar sobre as canções, vale destaque o aviso presente no
encarte do disco: “Não durma… ou durma de olho aberto. sempre outro olho,
11
“Foi então que eu arresolvi a comer gilete...Tinha um cumpadre meu de Quixeramubim que ganhou
um dinheirão comendo gilete na praia de Copacabana. Eu não sei não, mas eu acho que ele comeu tanta,
mas tanta, que quando eu cheguei aquela gente toda estava até com indigestão de tanto ver o cabra
comer gilete. Uma vez eu disse assim prum moço que vinha passando: Ô decente, vosmecê não deixa eu
comer uma giletezinha pra vosmecê ver? "Tu não te manca não, ô Pau-de-Arara?" "Só uma, que eu ainda
não comi nadinha hoje.” (Carlos Lyra e Vinicius de Moraes).
querendo enxergar a sua” (ANÍSIO; RODRIGUES, 1974). Ou seja, o recado é para se estar
“atento e forte”, pois a vigilância e o controle, durante a ditadura, eram constantes.
Apesar do aparente tom de deboche, extraído dos autores e do título do trabalho, basta
uma audição inicial para concluir que a brincadeira continha fortes ares de seriedade e
crítica.
A primeira faixa é Vô Batê Tu, que trata dos processos de perseguição a partir
das delações na ditadura. Seus versos não deixam margem para interpretação diversa e,
no entanto, não foi censurada. Veja-se: O caso é esse / Dizem que falam que não sei o
que / Tá pá pintá ou tá pá acontecer / É papo de altas transações / Deduração / um cara
louco que dançou com tudo / Entregação com dedo de veludo / Com quem não tenho
grandes ligações” (ANÍSIO; RODRIGUES, 1974). Contudo, essa não é a única canção que
critica a ditadura.
A faixa Urubu tá com raiva de boi começa com Anísio declamando, em tom
apocalíptico: “Legal… me amarro nesse som, sabendo? O medo, a angústia, o sufoco, a
neurose, a poluição, os juros, o fim… nada de novo. A gente de novo tem os sete
pecados industriais” (ANÍSIO; RODRIGUES, 1974). A canção segue com o relato indignado
do urubu que não tem alimentação, pois o boi se recusa a morrer. E, novamente, Chico
prossegue falando: “O norte, a morte, a falta de sorte. Eu vivo, sabendo? Vivo sem
norte, vivo sem sorte, eu vivo… Eu vivo, Paulinho. a gente encontra um cabra na rua e
pergunta: Tudo bem?’, e ele diz pra gente, ‘tudo bem!’. Não é um barato, Paulinho? É um
barato!” (ANÍSIO; RODRIGUES, 1974). Ou seja, mesmo com as mazelas, as dificuldades,
deve-se, na vida pública, se aparentar normalidade, que está “tudo bem”.
A canção Cidadão da Mata contém uma ode à vida no campo, uma crítica à
intensificação da industrialização. No entanto, seu último verso é uma evidente crítica
direcionada à ditadura, louvando e concebendo como herói as figuras que resistem e
padecem na defesa da democracia: Amo, amo a mata! / Porque nela não preços /
Amo o verde que me envolve / o verde sincero que me diz que a esperança não é a última
que morre / Quem morre por último é o herói / E o herói é o cabra que não teve tempo
de correr” (ANÍSIO; RODRIGUES, 1974).
Em Aldeia, o alvo da crítica é o milagre econômico defendido pelos presidentes
militares, o processo de busca irrefletida por inserção nessa lógica do capital. A canção
começa: “Lá vem a procissão, toca o sino late o cão. E todo mundo corre e todo mundo
morre de pasta na mão”. E prossegue, arrebatando: Em cada rosto uma expressão / Em
cada bucho a digestão / Um novo carro / Nova capa / Enquanto o velho me pede pão / O
pão nosso de cada dia dão-nos hoje / Creditai nossas dívidas / Assim como não nos
perdoam nossos credores” (ANÍSIO; RODRIGUES, 1974).
Por fim, na última canção do disco, Dendalei (“dentro da lei”), a sutileza dos
versos reserva, por um lado e aparentemente, uma apreciação da ordem, da normalidade
e do regramento, uma vez que “Do que eu vi, muito gostei / Tudo perfeito demais”
(ANÍSIO; RODRIGUES, 1974), pois se encontra dentro da lei. Contudo, ao mesmo tempo,
o personagem é “fã da viração do vento”, o que pode indicar que também aprecia as
mudanças. No contexto em que se analisa, é possível concluir um apelo dos autores ao
fim da ditadura e retomada da democracia.
Além disso, logo após, canta-se: “Sou fã do livre pensamento / Sou da luz do
nascimento / Sou fã aqui do melhor momento” (ANÍSIO; RODRIGUES, 1974). Para além da
menção à liberdade de pensamento, apelo reiterado no período em comento, no qual a
própria palavra “liberdade” constantemente era alvo de censura nas publicações, de uma
leitura conjunta das estrofes, compreende-se o compartilhamento de um desejo pelo
nascimento de um melhor momento, com mais liberdade, o que representaria a mudança
dos ventos.
Em conclusão, -se que diversos artistas usualmente vinculados ao humor,
especialmente televisivo, inclinaram-se, durante as décadas de 1970 e 1980,
especialmente, à música, nela registrando, de diversas maneiras, críticas ao período
ditatorial ou aos costumes, o que, em diversas oportunidades, não foi objeto de censura
institucional.
Nesse sentido, Sangue no Cacto, de Chico Anísio e Arnaud Rodrigues, é simbólico
do que se pretendeu abordar nessa seção, pois apresenta críticas contundentes à
ditadura militar, de maneira incisiva e expressa. No entanto, pela característica jocosa de
quem registrou essas canções (dois grandes humoristas ironizando, em princípio, dois
representantes da música popular brasileira Caetano Veloso e Novos Baianos, estes,
anteriormente perseguidos pela ditadura), pouco a censura se debruçou em analisar esse
produto, liberando-o sem grandes dificuldades. Os humoristas não eram visados pelos
censores e, precisamente por isso, sequer tinham suas obras avaliadas, de modo que era
realizada a liberação, mesmo nelas havendo críticas tão intensas como nos tradicionais
cantores populares.
Considerações finais
Da exposição realizada nas seções precedentes, a partir de uma análise da
história social, comicidade e música muito são atrelados para transmitir recados de
crítica, insurgência e resistência, tanto numa perspectiva política, em face de um regime,
de uma autoridade, sistema ou instituição, ou em face de alguma tradição ou instituição
social hegemônica.
Com a observação dos instrumentos e aparatos normativos de censura à música
popular no período da ditadura, entre 1964 e 1985, observou-se que foram criadas zonas
de incidência e zonas de omissão das autoridades e dos agentes censores. Assim, artistas
como Chico Buarque, Gonzaguinha e Taiguara, ainda que trazendo críticas de maneira
mais despojada, em forma de humor, ficavam às vistas da censura, muitas vezes sendo
efetivamente perseguidos pelos agentes do regime.
Por outro lado, personagens que construíram suas carreiras no humor, televisivo
ou teatral, especialmente, como Chico Anísio, Paulo Silvino, Ary Toledo, Arnaud
Rodrigues, Elke Maravilha, entre outros, pouco ou nada atraíram dos olhares dos agentes
da ditadura, registrando canções com mensagens, às vezes, mais incisivas que aquelas
transmitidas pelos tradicionais compositores brasileiros, com forte tom de crítica.
Dessa forma, conclui-se que o humor, na canção e no cantor, por assim dizer, bem
como na forma criada para driblar a censura, se revelou como fundamental instrumento
de insurgência e resistência ao autoritarismo da ditadura civil-militar.
Referências
ALONSO, Nilton Tadeu de Queiroz. Entre segredos e risos: gírias da diversidade sexual
paulistana, 2010. 233 f. Tese (Doutorado em Língua Portuguesa) – Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010.
ARAGÃO, Octavio Carvalho. Cartum, do impresso à internet: narrativa sequencial e
humor disjuntivo. Revista USP: Humor na Mídia, n. 88, São Paulo, USP, 2011.
ARAÚJO, Paulo César. Eu não sou cachorro, não: música popular cafona e ditadura
militar. Rio de Janeiro: Record, 2008.
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi Vieira. 4ª edição. São Paulo:
Hucitec/Brasília: Editora da UnB, 1999.
BERG, Creuza. Mecanismos do silêncio: expressões artísticas e censura no regime
militar (1964-1984). São Carlos: EdUFSCar, 2002.
BRASIL. Decreto nº 20.493, de 24 de janeiro de 1946. Aprova o Regulamento do Serviço
de Censura de Diversões Públicas do Departamento Federal de Segurança Pública. Rio
de Janeiro, jan. 1946.
BRASIL. Decreto nº 56.510, de 28 de junho de 1965. Aprova o Regulamento Geral do
Departamento Federal de Segurança Pública. Brasília, jun. 1965.
BRASIL. Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968. Brasília, dez. 1968.
BREMMER, Jan; ROODENBURG, Herman. (Orgs). Uma História Cultural do Humor. Rio
de Janeiro: Record, 2000.
CORREA, Priscila Gomes. Do cotidiano urbano à cultura: as canções de Caetano Veloso
e de Chico Buarque. 2011. 246f. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.
ECO, Umberto. Los marcos de la liberdad cómica. Carnaval!. xico: Fondo de Cultura
Económica, 1989.
FIGUEIREDO, Daniel de Oliveira. Humor e resistência: as possibilidades políticas do
humor nas charges do jornal O Pasquim. 2012. 100 f. Dissertação (Mestrado em
Comunicação) – Universidade de Londrina, Londrina, 2012.
HOLLANDA, Heloisa Buarque de; GONÇALVES, Marcos A. Cultura e participação nos
anos 60. 3. ed. Brasiliense: São Paulo, 1984.
HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Impressões de Viagem: CPC, vanguarda e desbunde:
1960/70, 3. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.
KUSHNIR, Beatriz. Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de
1988. São Paulo: Boitempo/FAPESP, 2004.
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito ao estado de filiação e direito à origem genética: uma
distinção necessária. Conselho da Justiça Federal. Brasília. out/dez. 2004. Disponível em:
http://www2.cjf.jus.br/ojs2/index.php/revcej/article/viewFile/633/813. Acesso em: 05
dez. 2020.
PIMENTEL, Gláucia Costa de Castro. Guerrilha do prazer: Rita Lee mutante e os textos
de uma transgressão. 2001. 129 f. Dissertação (Mestrado em Teoria Literária) - Centro de
Comunicação e Expressão. Programa de Pós-Graduação em Literatura, Universidade
Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2001.
PINHEIRO, Manu. Cale-se: a MPB e a ditadura militar. Rio de Janeiro: Livros Ilimitados,
2010a.
PINHEIRO, Paulo César. Histórias das minhas canções. São Paulo: Leya, 2010b.
SALIBA, Elias Thomé. História cultural do humor: balanço provisório e perspectivas de
pesquisa. Revista de História, 176, FFLCH – São Paulo, 2017. Disponível em:
https://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/127332. Acesso em: 05 dez. 2020.
SEVERIANO, Jairo. Uma história da música popular brasileira: das origens à
modernidade. 3. Ed. São Paulo: Ed. 34, 2013.
SOUZA, Amilton Justo de. “É o meu parecer”: a censura política à música de protesto nos
anos de chumbo do regime militar do Brasil (1969-1974), 2010, 327 f. Dissertação
(Mestrado em História) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade
Federal da Paraíba, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2010.
TINHORÃO, José Ramos. Música Popular: do Gramofone ao Rádio e TV. São Paulo: Ática,
1978.