PROENÇA, Vinícius da Silva
*
https://orcid.org/0000-0001-7612-9837
As pesquisas na área de história podem sofrer revisões ao longo do tempo, uma
vez que os acontecimentos do presente instigam os historiadores a questionar o
passado, permitindo que temas estudados possam ser reinterpretados. Como ensina o
historiador francês Marc Bloch O passado é, por definição, um dado que nada mais
modificará. Mas o conhecimento do passado é uma coisa em progresso, que
incessantemente se transforma e aperfeiçoa.” (BLOCH, 2002, p. 75). Esse é o caminho
que percorreu Everton Grein, quem propôs releitura da tese de Abilio Barbero de
Aguilera sobre um antigo problema historiográfico acerca do início das unções régias no
Reino Visigodo de Toledo, bem como ressaltou a relevância de Taio de Zaragoza (600-
683) no período pós-isidoriano como um importante elemento do florescimento cultural
do século VII, algo que, na perspectiva do autor, a historiografia não se preocupou em
realçar.
Abilio Barbero de Aguilera em seu livro intitulado La sociedad visigoda y su
entorno histórico, dedicou o primeiro capítulo a compreender o pensamento político
*Graduado em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Assis-SP, e
Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação da mesma Instituição. E-mail: vinicius-v-
8@hotmail.com
Recebido em: 04/08/2020
Aprovado em: 14/10/2020
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visigodo e às primeiras unções régias ocorridas no Ocidente europeu, haja vista que os
visigodos foram os primeiros a realizá-las. Barbero de Aguilera defendeu a ideia de que a
formação de uma teoria política no Reino Visigodo foi obra de Isidoro de Sevilha, tendo
sido evidenciada no IV Concílio de Toledo em 633. Nesse sentido, Everton Grein também
buscou com sua pesquisa compreender a concepção teórica da realeza cristã, como
escolhiam e legitimavam os soberanos no interior dessa sociedade.
Fruto de uma tese de doutorado, o livro foi organizado em quatro capítulos.
Munido de epístolas, atas conciliares, documentos jurídicos, dentre outras fontes sobre o
tema, Grein demonstrou conhecer bem os manuscritos e a historiografia sobre o
período. Vale ressaltar que, além do material tradicional sobre o tema, o pesquisador se
valeu de poesias visigóticas, algo inovador na medida em que tais fontes, na perspectiva
de Grein (2019, p. 43), foram marginalizadas pelos pesquisadores. Esse conhecimento em
relação às fontes fora salientado por Luis A. García Moreno (2019), pesquisador da área,
ao escrever o “Prólogo” da obra, no qual teceu elogios a Everton Grein pela finura e
inteligência com que concebeu sua pesquisa.
No primeiro capítulo, o autor apontou que o reino dos godos foi construído
sobre as antigas estruturas do Império Romano, tendo absorvido muitos aspectos da sua
forma de organização, o que Edward Arthur Thompson (2014) constatou em sua obra
Los godos en España. Na sequência, iniciou sua narrativa a partir da conversão pessoal
de Recaredo ao catolicismo em 587, dando enfoque ao projeto de unificação política e
religiosa intentado por Leovigildo. O referido monarca, ao associar seus filhos como
consortes regni, teve de lidar com a revolta de seu filho mais velho, Hermenegildo. O
pesquisador descreveu, de maneira detalhada, as implicações dessa disputa familiar para
a unificação do reino e apontou como os prelados da época descreveram Leovigildo e
seu filho rebelde. Ao analisar os escritos visigodos e os exteriores ao reino, observou
diferenças na forma de compreender o ocorrido, sendo alguns apoiadores de
Hermenegildo enquanto outros ficaram ao lado de Leovigildo.
Notou-se que, pelo menos em Hispania, os clérigos optaram por ficar do lado de
Leovigildo que, embora ariano, tinha um projeto de unificação para o povo godo da
península. Findadas as disputas, foi a missão de Recaredo concluir o projeto de seu pai,
convertendo o reino visigodo em católico através do III Concílio de Toledo, sob a
presidência de Leandro de Sevilha. Tal bispo foi descrito pelo autor como figura central
na consolidação dos visigodos como herdeiros do Império Romano, tendo no III Concílio
de Toledo adotado insígnias correspondentes ao período imperial, dando a conotação de
que Recaredo seria o continuador de tal herança. Além disso
A ideia de realeza entre os godos ganhou, portanto, a partir do III Concílio de
Toledo, contornos mais nítidos daqueles que até então se apresentavam. O
papel desempenhado pelo bispo Leandro de Sevilha foi determinante no
processo de edificação do conceito de realeza cristã entre os godos. (GREIN,
2019, p. 81).
Everton Grein concluiu que o prelado foi o articulador da conversão dos visigodos
ao catolicismo e o promotor da cristandade em Hispania. Dessa maneira, o pesquisador
procurou ressaltar a relevância de Leandro de Sevilha para esse contexto, pois em
alguns estudos o papel do prelado fica eclipsado por seu irmão mais novo, Isidoro.
Contudo, é necessário destacar a ideia de unificação entre os godos é problemática, uma
vez que esses grupos não podiam ser considerados homogêneos dado os múltiplos
interesses das várias facções políticas. A ideia de que Leovigildo teria alcançado uma
forma de coesão nos parece mais apropriada. Também se faz necessário destacar que,
mesmo após a conversão oficial do reino visigodo ao catolicismo em 589, as práticas
ditas pagãs permaneceram vivas na sociedade visigótica, não sendo apenas meros
resquícios, mas parte da religiosidade popular, algo que Grein pouco explorou em sua
pesquisa.
Ao final do primeiro capítulo, o autor destacou o papel de Isidoro de Sevilha e
suas contribuições para a formação de uma teoria política no reino visigodo, apontando
que anteriormente ao IV Concílio, o prelado teria esboçado suas concepções através
de suas Sentenças e Etimologias. Everton Grein concluiu que
De fato, a partir de inferência do pensamento de Isidoro de Sevilha com a
sacralização da instituição monárquica verifica-se na Hispania visigoda uma
espécie de necessidade de ajustamento entre Igreja e Estado, cuja expressão
que melhor definiria tal necessidade seria a elaboração de uma teoria política
que tomava como princípio o aspecto religioso, portanto, o caráter sagrado do
poder. (GREIN, 2019, p. 97).
no segundo capítulo, o autor teve por objetivo versar sobre a consolidação do
reino visigodo católico, bem como apresentou a praxiologia política aplicada ao século
VII. Tomada de empréstimo da filosofia e sociologia, tal área de estudo visa compreender
“as ações humanas, suas leis e comportamentos” (GREIN, 2019, p. 99). Dessa maneira, o
pesquisador procurou analisar como determinados contextos produzem certos
comportamentos. Embora o autor tenha realizado o trabalho utilizando a referida
metodologia, que a mesma centra sua análise nas ações dos indivíduos em
determinadas situações, outro aporte metodológico que também poderia ter trazido
resultados satisfatórios são os estudos discursivos, os quais poderiam lançar luz sobre o
contexto em que tais narrativas foram produzidas, assim como sua efetividade ou não ao
longo do tempo.
No tocante à consolidação da Monarquia católica, Grein destacou que, após o III
Concílio de Toledo, Igreja e Estado precisaram se ajustar uma à outra, considerando-se
que ambas eram as duas principais instituições de poder. Isidoro de Sevilha teve papel
central nessa aproximação entre as instituições, pois contribuiu para o desenvolvimento
do caráter sagrado da Monarquia. O pesquisador também salientou a importância de
Bráulio de Zaragoza (590-651) no contexto analisado, por ter sido sucessor de Isidoro e
ter vivido nesse período conturbado da primeira metade do século VII. Bráulio esteve
presente no IV, V e VI concílios de Toledo, sendo considerado conselheiro dos monarcas
Chintila, Chindasvinto e Recesvinto. Dessa maneira, o prelado esteve presente em
momentos conturbados da história visigoda, período esse marcado por deposições e
legitimações contraditórias.
Mesmo com a sacralização da realeza, na prática, as usurpações continuaram a
ocorrer, sendo o IV Concílio de Toledo em 633 um exemplo disso. Suintila teve seu trono
tomado por Sisenando em 631 que, com apoio da Igreja e dos francos, usurpou o trono.
Tal acontecimento foi sui generis não pelo fato de ser uma usurpação, algo recorrente
entre os godos, mas por ter sido legitimada no IV Concílio de Toledo. O referido concílio
assemelhou Sisenando ao rei bíblico Davi, colocando-o como ungido do Senhor e
tentando proteger o monarca de posteriores deposições. Esse cenário instável para os
monarcas foi percebido em governos subsequentes, como o caso de Chintila (636-639) o
qual sucedeu Sisenando. Everton Grein apontou que, no V Concílio de Toledo em 636, o
então monarca teve por preocupação salvaguardar sua família e procurou legitimar-se
enquanto governante. Com esses dados, pode-se perceber, mesmo com a sacralização da
figura do monarca, sua segurança nem sempre foi assegurada.
Durante todo o terceiro capítulo, o pesquisador procurou ressaltar a relevância
de Taio de Zaragoza, descrevendo sua inserção no cenário visigótico do século VII, bem
como sua produção literária. Everton Grein, apontou como se dava a circulação dos
manuscritos nessa sociedade, e também versou sobre a viagem de Taio a Roma. Grein
salientou que “com efeito, nossas fontes da época, parecem de fato apontar que o fito da
viagem de Taio foi a busca das obras de Gregório Magno” (GREIN, 2019, p. 139). O autor
informou que as motivações que levaram Taio a ir para Roma possuem outras
interpretações. Outro ponto evidenciado por Grein é a quantidade de epístolas
produzidas no século VII, bem como suas potencialidades para se compreender tal
contexto histórico.
Ao final do capítulo três, o autor analisou a obra Sentenças, escrita por Taio de
Zaragoza, bem como a influência que Isidoro de Sevilha, Gregório Magno e Agostinho de
Hipona tiveram nas obras do prelado. Grein ainda evidenciou que Taio de Zaragoza não
era um simples compilador desses autores, mas alguém com uma leitura muito apurada e
uma grande capacidade de síntese. O autor também relatou uma possível mudança na
visão sobre o papel do rei e da realeza cristã no período de Taio de Zaragoza. Nesse
sentido, o último capítulo teve como objetivo propor uma releitura, utilizando como base
o livro V das Sentenças de Taio, sobre o pensamento político visigodo e as primeiras
unções régias, tendo sugerido um novo ponto de vista sobre o tema.
No último capítulo, o autor fez uma exposição pormenorizada sobre a tese de
Abilio Barbero de Aguilera, apontando como o visigotista construiu sua interpretação.
Grein evidenciou a relevância de Isidoro de Sevilha na concepção da realeza visigoda
cristã, e resumiu a perspectiva de Barbero de Aguilera sobre a teoria política isidoriana
ao escrever que
Compreendida desse modo por Abilio Barbero, a teoria política elaborada por
Isidoro de Sevilha apresenta pelo menos três pontos essenciais a considerar; a)
para Barbero, a doutrina política isidoriana deriva ante do aspecto teórico do
que prático; b) ainda que as condições em que se produziu a teoria isidoriana
fosse em virtude dos desmandos e dos crimes de Suintila, bem como a
usurpação de Sisenando, o ponto fundamental da doutrina era atribuir
legitimidade às ações do usurpador face a atmosfera política do reino naquele
momento; c) finalmente, através da citada doutrina, Isidoro atribui à Igreja, e
unicamente a ela, a auctoritas sobre a condução e a destituição do régio poder.
(GREIN, 2019, p. 177).
Nesse sentido, Everton Grein argumentou que a doutrina política isidoriana teria
um caráter mais teórico do que prático, tendo ressaltado as condições e as motivações
de sua confecção. Outro aspecto salientado por Grein fora o fato de que, a partir do IV
Concílio de Toledo, a Igreja passou a ter um papel fundamental como representante da
nobreza, tendo sua influência ampliada no referido concílio. Ao final de sua obra, o
pesquisador procurou demonstrar que a teoria política visigoda se iniciou no século VI
com Leandro de Sevilha, tendo Bráulio e Taio de Zaragoza um papel expressivo nessa
formulação ao longo do século VII. Dessa maneira, Everton Grein procurou mostrar que
tal empreendimento não fora obra exclusiva de Isidoro de Sevilha.
Em relação às unções régias, diferentemente de Barbero de Aguilera que apontou
para seu início no IV Concílio de Toledo em 633, Grein argumentou que tal prática teria
se iniciado com Recesvinto em 653. Isso porque, ao analisar o escrito de Juliano de
Toledo, Historia Wambae Regis, notou-se que o prelado fez menção ao fato de tal prática
seguir um antigo costume godo. Tendemos a discordar de Grein em relação ao início das
unções régias no reinado de Recesvinto. Na perspectiva de Barbero de Aguilera (1992, p.
68), é possível que as unções tenham se iniciado na época de Sisenando, haja vista que
foi no IV concílio de Toledo onde se teve pela primeira vez a referência de que o rei seria
um “ungido do Senhor”. Nas atas conciliares (VIVES, 1963, p. 217), podemos observar a
alusão ao Salmos 105:15 onde se alerta a não tocar nos ungidos de Deus, bem como a
associação de Sisenando à figura bíblica de Davi. Pode-se verificar que Sisenando
adquiriu no referido concílio a aparência de um rei ungido de Deus, possuindo
legitimidade para governar assim como o Davi bíblico de outrora. Dessa maneira,
baseado na associação feita com a narrativa bíblica pelo concílio, tendemos a acreditar
que Sisenando teria sido o primeiro monarca godo que experenciou a unção régia no
Reino Visigodo.
A tese não apresentou ineditismo quanto ao tema, pois o início das unções régias
no Ocidente goza de ampla bibliografia, mas teve sua inovação na proposta do
pesquisador de apontar uma nova leitura sobre o início das unções régias, além do fato
de ter ressaltado a relevância política de figuras como Leandro de Sevilha e Taio de
Zaragoza, o que pode contribuir para o surgimento de pesquisas voltadas à compreensão
do papel que esses prelados desempenharam em seus contextos.
Referências
BARBERO DE AGUILERA, Abilio. El pensamiento político visigodo y las primeras
unciones regias en la Europa Medieval. In: BARBERO DE AGUILERA, Abilio. La sociedad
visigoda y su entorno histórico. XXI, Siglo vinteuno de España. Madrid: Editores,1992. p.
1-77.
BLOCH, Marc. Apologia da história, ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Zahar,
2002.
GARCÍA MORENO, Luis A. Prólogo. In: GREIN, Everton. De Leandro de Sevilha a Taio de
Zaragoza: um estudo sobre a praxiologia política no Reino Visigodo de Toledo (séculos
VI-VII). Curitiba: Editora CRV, 2019. p. 17-18.
GREIN, Everton. De Leandro de Sevilha a Taio de Zaragoza: um estudo sobre a
praxiologia política no Reino Visigodo de Toledo (séculos VI-VII). Curitiba: Editora CRV,
2019.
THOMPSON, Edward Arthur. Los godos en España. Madrid: Alianza editorial, 2014.
VIVES, José. (Ed.). Concílios Visigóticos e Hispano-Romanos. Ed. Bilingue (Latim-
Espanhol). Madrid: CSIC, 1963.