LIMA, Pamela Cristina de
*
https://orcid.org/0000-0003-3952-7507
RESUMO: Este trabalho versa sobre os fatores
do pensamento histórico da escrita da história
de um letrado sul-rio-grandense do século XX,
Manoelito de Ornellas. Para tal, a fonte
utilizada foi a obra Gaúchos e beduínos,
publicada por este autor em 1948. Buscamos
compreender o contexto institucional do
autor, de modo a entender as orientações de
sua historiografia, pautadas nos estudos da
cultura popular e do Folclore. Optamos pelo
escopo teórico-metodológico oferecido por
Jörn Rüsen, intentando compreender como a
historiografia e as orientações ornellianas
partiram das demandas de seu presente e,
também, as maneiras pelas quais regressaram
a ele, objetivando entender a função social do
conhecimento histórico produzido por
Ornellas.
PALAVRAS-CHAVE: historiografia sul-rio-
grandense; gaúchos e beduínos; IHGRGS.
ABSTRACT: This paper deals with the factors
of the historical thought in the writing of
history by a 20th century scholar from Rio
Grande do Sul (Brasil), Manoelito de Ornellas.
For this, the source used was the work
Gaúchos e Beduínos, published by this author
in 1948. We seek to understand the
institutional context of the author, in order to
understand the orientations of his
historiography, based on the studies of folk
culture and Folklore. We opted for the
theoretical and methodological scope offered
by Jörn Rüsen, trying to understand how the
historiography and Ornellian orientations
came from the demands of his present time,
and also the ways in which they returned to it,
aiming to understand the social function of the
historical knowledge produced by Ornellas.
KEYWORDS: sul-rio-grandense
historiography; gauchos and Bedouins;
IHGRGS.
Recebido em: 10/08/2020
Aceito em: 26/10/2020
* Graduanda em História pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Professora de História no Colégio
Universos (Sarandi RS). Membra do GT História Intelectual e História das Ideias. E-mail: 174267@upf.br.
Agradeço ao Professor Dr. Fabrício Antônio Antunes Soares pela leitura e considerações que teceu em
relação a este texto.
Este é um artigo de acesso livre distribuído sob licença dos termos da Creative Commons Attribution License.
Nascido entre a poesia e o arado / A gente lida
com o gado e cuida da plantação / A minha
gente que veio da guerra / Cuida dessa terra,
como quem cuida do coração (Oswaldir e
Carlos Magrão, (“Eu sou do Sul”)
Peleando em favor da pampa / A pilcha
sovada em tiras / Marcando fronteira provou
lealdade / Livrando os trastes da campa / Na
ventania rusguenta / Pranchando adaga a
gritos de liberdade (Grupo Rodeio, “Gritos de
liberdade”)
Introdução o gaúcho: representações diversas
A expressão entre aspas, contida no título deste artigo, é uma citação, escrita por
Manoelito de Ornellas, em sua obra Mormaço (ORNELLAS, 1969, p. 90). Considerando
que a vida intelectual do autor se iniciou com escritos em jornais, de cunho literário e
informativo, Ornellas parece autodeclarar-se como “chamado a historiar”, mas não por
apelos externos. Era sua essência que o colocava no papel de “historiador”. Dentro da
interpretação que fazemos da referida citação, o que vinha de dentro, os sentimentos
que alimentava pelo Rio Grande e a importância que a cultura deste estado tinha para o
autor teriam sido os fatores que o levaram a escrever ensaios sócio-históricos
1
.
A epígrafe, por sua vez, contém trechos de músicas regionalistas gaúchas.
Produzidas em conjunturas similares, os temas, as características e os aspectos que
evocam parecem convergir. O gaúcho, em grande parte das músicas tradicionalistas, é
representado como o homem do pampa, e aparece associado às lides campeiras, à
bravura, à coragem, ao amor à terra, sua terra. A melodia, da vaneira ao chama,
envolve e convida à dança, sendo que muitos memorizam e entoam as letras das
canções. Se o leitor é de algum canto do Rio Grande, possivelmente essas melodias
embalaram seus domingos de manhã, num daqueles programas típicos das estações de
rádio, que regam com boa música o preparo do churrasco e o sabor do chimarrão
2
. Esse
discurso é apresentado por muitos apresentadores de rádios que conhecemos, que
ouvimos, que nossos pais e avós ouvem. Tome-se consciência disso, da naturalidade com
que podemos tender a cristalizar imagens: esse é um poder da música. Atente-se à
“atemporalidade” das narrativas que as canções podem apresentar. E, por que não,
1
Para compreender a trajetória intelectual de Manoelito de Ornellas, os espaços sociais ocupados pelo
autor e aspectos importantes de sua vida pessoal, ver THESING (2015).
2
Apenas para elucidar: na cidade de Sarandi (RS), muitas emissoras de rádio contam com programas de
cunho tradicionalista, nos quais tocam majoritariamente sicas gaúchas, sobretudo aos domingos de
manhã.
tome-se um chimarrão ouvindo, analisando e cantando certas letras, caso isso agrade ao
leitor.
Um famoso ditado popular enuncia que o que os olhos não veem, o coração não
sente. Parece que muitos dos pintores sul-rio-grandenses acreditavam que o ver e o
sentir estão relacionados: a riqueza de detalhes em suas pinturas sobre o gaúcho é de
impressionar. É para ver, para sentir. A indumentária, o pampa, as lides, as guerras... o
gaúcho homem, nas pinturas, ganhou destaque ao lado de seus instrumentos de trabalho
e de seu habitat pampiano (OLIVEIRA, 2017). Olhos e ouvidos foram (e são) fisgados
pelas representações que, enfatize-se, são frutos de construções, escolhas e seleções.
Mas, quem é este gaúcho? Quem foi, no passado? Por que aparece atrelado ao
pampa, ao pastoreio e à guerra? Estas questões, entre tantas outras de cunho e sentido
similares, foram postas em pauta e refletidas pelos letrados sul-rio-grandenses dos
últimos dois séculos, e principalmente a partir dos anos 1920, quando ocorrera a
fundação do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (IHGRGS), instituição
que seria responsável por aglutinar muitos homens de letras, iniciados no mesmo campo
do saber, em um mesmo espaço social de produção do conhecimento
3
. A fundação da
agremiação se deu num momento de consolidação da identidade brasileira: era
importante inserir o pedaço no todo, o local no nacional, de modo que o Rio Grande não
figurasse como “corpo estranho” frente ao Brasil. Deste modo, “a elaboração do discurso
sobre a identidade regional e a construção da própria identidade dos intelectuais ligados
ao IHGRGS [...] se relacionavam com a tensão e acomodação entre o discurso regional e
o nacional” (MARTINS, 2015, p. 30).
Antes de adentrarmos nas questões pontuais relacionadas ao tema do presente
artigo, delineamos nossos objetivos. De modo geral, visamos a compreender os fatores
que embasaram e conduziram a escrita da história de Manoelito de Ornellas, seja a partir
de seus interesses, seja em relação ao contexto intelectual no qual esteve inserido nos
anos 1940. Para tal, primeiramente, visa-se a uma apresentação geral dos fatores do
pensamento histórico, propostos por Jörn Rüsen na obra Razão Histórica (2001). Em
seguida, apresentaremos o contexto institucional no qual Manoelito de Ornellas produziu
Gaúchos e Beduínos (1948), obra analisada neste artigo, bem como os principais pontos
sobre os quais o autor se atém na publicação mencionada. Num terceiro momento,
discorreremos sobre como o escopo teórico-metodológico rüseniano pode ser utilizado
3
A existência de agremiações históricas e de núcleos intelectuais similares, contudo, remonta ao século
XIX. Em 1838, fora fundado o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e, a nível “provincial”, o
Instituto Histórico e Geográfico da Província de São Pedro (IHGPSP), na década de 1860. Em relação ao
primeiro, ver GUIMARÃES (1988) e, no que tange a este último, ver BOEIRA (2019).
na compreensão da escrita da história ornelliana. Ao fim, teceremos algumas
considerações finais acerca do tema proposto.
A vida prática como orientadora do pensamento histórico
Jörn Rüsen é um historiador e filósofo alemão, nascido em 1938, na cidade de
Duisburgo. Suas pesquisas centram-se em problemáticas relacionadas à teoria e
metodologia da história, pensando suas relações com o ensino e aprendizagem em
história nos mais variados níveis. Para este artigo, toma-se como apoio teórico-
metodológico o esquema dos fatores do pensamento histórico que o autor elaborou e
desenvolveu no primeiro capítulo da obra Razão Histórica, publicada originalmente em
1983.
Ao iniciar o livro, ainda na introdução, o autor reflete acerca da razão da (e na)
história, apresentando aos leitores esta questão como pertinente e convidativa à
reflexão, afirmando que ela faz parte dos “fundamentos da ciência da história” (RÜSEN,
2001, p. 12). Prosseguindo, Rüsen tece uma consideração muito importante sobre seu
entendimento acerca da razão na história, apresentando-a não como “uma propriedade
qualquer da história que se chama razão’, mas a de saber como se constitui o
pensamento sobre a história que se apresenta como ciência” (RÜSEN, 2001, p. 12).
Portanto, o convite do autor é para que se pense a História em seus métodos, teorias,
técnicas, didática, etc., sem que o foco seja definir o conceito (fechado) de “razão” neste
processo. É, portanto, uma forma de atentarmos ao que fazemos e como fazemos
enquanto historiadores, bem como às implicações disto em nosso campo do saber. Como
vamos proceder enquanto historiadores, e como isso vai refletir no campo do
conhecimento do qual fazemos parte? Eis uma questão complexa, mas importante.
A teoria da história, para o autor, adquire importância nesta reflexão: ela permite
analisar a pretensão de racionalidade da ciência histórica, uma vez que se volta aos
fundamentos desta e, ainda, permite que a pesquisa, o estudo e a reflexão histórica se
deem com embasamento conciso. Rüsen, além disso, argumenta sobre as relações
existentes entre uma teoria da história e o cotidiano do historiador, afirmando que a
teoria elaborada por este último, que é discutida e pensada junto aos pares, é um
produto da “constante reflexão do sujeito cognoscente sobre si mesmo” (RÜSEN, 2001,
p. 26). É preciso, portanto, que o historiador reflita sobre sua prática, sua ciência e seu
contexto para que, assim, se constitua uma teoria da história capaz de atender as
demandas que lhe gestaram, ou que contribuíram para tal fim. A teoria, de tal modo, se
encontraria no cerne do sentido do trabalho histórico. Conforme Rüsen, é preciso
considerar
[...] a função prática que a teoria exerce (ou pode exercer) nos diversos campos
de atividade do historiador. O fio condutor da argumentação [desenvolvida pelo
autor] é a intenção de descrever e demonstrar que a reflexão do pensamento
histórico sobre seus fundamentos emerge do trabalho prático do próprio
historiador, baseia-se nele e possui para ele significado. Embora a teoria
além desse trabalho e conduza a seus pressupostos fundamentais, ela é
necessária sempre que se tratar de fundamentar, justificar ou modificar, em
suma, sempre que se tratar do sentido do trabalho histórico. (RÜSEN, 2001, p.
26)
Se a teoria da história se faz necessária para que haja uma pesquisa bem
fundamentada, com um método adequado, o pensamento histórico sobre esse fazer tem,
por outro lado, a capacidade de elaborá-lo e aprimorá-lo, o que, por fim, desemboca em
reelaborações, novos pontos de vista e abordagens no campo teórico da história. Teoria,
vida prática e autorreflexão, assim, se influenciam mutuamente, num movimento
constante, infindável.
De modo geral, os esforços de Rüsen no primeiro capítulo da obra Razão
Histórica, denominado Tarefa e função de uma teoria da história, se deram no sentido
de perceber a importância, a utilidade e as relações que uma teoria da história
estabelece, ou pode estabelecer, em seu diálogo com o estudo, com a pesquisa e com a
vida prática. As considerações que o autor tece no decorrer do capítulo se relacionam a
estes fatores
4
. Para o presente estudo, porém, optou-se por trabalhar com as cinco
categorias que o autor apresenta como sendo os “fatores do pensamento histórico”. São
elas: interesses, ideias, métodos, formas de apresentação e funções, respectivamente.
Adentremos suscintamente nos significados que cada qual adquire, para o autor.
No parágrafo prévio à apresentação dos fatores do pensamento histórico, Rüsen
apresenta importantes reflexões, que tangem à teoria da história e ao que o autor chama
de matriz disciplinar, explicando que essa expressão fora apropriada dos escritos de
outro autor, Thomas Kuhn, em A estrutura das revoluções científicas (apud RÜSEN,
2001). Vejamos o que o primeiro escreveu:
A teoria da história tem de apreender, pois, os fatores determinantes do
conhecimento histórico que delimitam o campo inteiro da pesquisa histórica e
da historiografia, identificá-los um a um e demonstrar sua interdependência
sistemática. E como a pesquisa e a historiografia nada têm de estático, cabe à
teoria mostrar como esse sistema é um processo dinâmico. Seu objeto são os
fundamentos e os princípios da ciência da história. O termo técnico para
descrevê-lo é matriz disciplinar, [...] [que] significa ‘o conjunto sistemático dos
fatores ou princípios do pensamento histórico determinantes da ciência da
história como disciplina especializada. (RÜSEN, 2001, p. 29)
4
Para compreender aspectos mais profundos das reflexões rüsenianas, ver LIMA (2016), autor que
discorre sobre o sentido que a história toma nos escritos de Jörn Rüsen, além de outros tópicos similares.
A teoria, assim, fornece uma importante base às pesquisas e aos estudos no
campo da história, funcionando como um “instrumento” de grande valia ao entendimento
dos fundamentos que são caros a esta ciência. Enfatize-se, ainda, que ela não é estática
ou pronta, mas sim objeto de constantes e importantes reflexões dos pares. Este
movimento é importante à própria vitalidade e estatuto da ciência histórica: se as
demandas que conduzem à pesquisa e ao estudo partem da vida prática (variável em suas
necessidades, contextos e conjunturas), conforme argumenta Rüsen, as reflexões em
torno do campo teórico da disciplina são de todo pertinentes. Se as demandas variam, a
base para buscar respostas adequadas a elas pode, também, ser modificada e
aprimorada.
Rüsen início à sua argumentação sobre os fatores do pensamento histórico
afirmando que é necessário que se pense a história (ciência) desde seus fundamentos,
suas demandas e necessidades, as quais a gestaram e gestam, e não a partir da
constituição específica que toma para a contemporaneidade. Assim, nesta reflexão, “o
melhor ponto de partida parece ser aquele que, na vida corrente, surge como
consciência histórica ou pensamento histórico [...]. Esse ponto de partida instaura-se nas
carências humanas de orientação do agir e do sofrer os efeitos das ações no tempo”
(RÜSEN, 2001, p. 30). Deste modo, o autor atenta às necessidades de respostas a uma
dada questão, seja um problema, uma satisfação intelectual ou carências de orientação.
Nas palavras do autor:
Pode-se chamar esse ponto de partida de reflexão sobre os fundamentos da
ciência da história, resumidamente, de interesses. Trata-se do interesse que os
homens têm de modo a poder viver de orientar-se no fluxo do tempo, de
assenhorar-se do passado, pelo conhecimento, no presente. Interesses são
determinadas carências cuja satisfação pressupõe, da parte dos que as querem
satisfazer, que esses as interpretem no sentido das respostas a serem
obtidas. Tais interesses são abordados pela teoria de história a fim de poder
expor, a partir deles, o que significa pensar historicamente e por que se pensa
historicamente. (RÜSEN., 2001, p. 30).
Pensando historicamente o passado, conforme argumenta o autor, poderíamos
atender demandas do presente. A teoria da história, assim, abrange os interesses, as
carências e as demandas da vida cotidiana; é a partir disto que ela se estrutura, delimita
seus objetivos e, também, varia no âmbito qualitativo. As carências não são
permanentes: em suas variações, constituem o ponto de partida do pensamento
histórico. Note-se, porém, que os interesses dos quais falamos não se constituem como
ciência, nem como conhecimento histórico: eles formam o primeiro (e importante) nível
dos fatores que conduzem a tal.
A partir dos interesses, é apresentado pelo autor um segundo fator: as ideias.
Para introduzir seu significado ao pensamento histórico, Rüsen propõe uma questão:
“como é possível que se constitua algo chamado história’ quando as carências dos
homens na prática de suas vidas no tempo são satisfeitas?” (RÜSEN, 2001, p. 31). As
ideias, na concepção do autor, funcionariam como perspectivas orientadoras da
experiência do passado, ou seja, pontos de vista que podem auxiliar na transformação de
simples carências em interesses específicos, atribuindo ao passado a qualidade de
histórico. Assim, das ideias
[...] depende o que, como “história”, integra o campo cognitivo da ciência da
história (pois o mero fato de pertencer ao passado não faz de tudo algo
histórico). Delas depende o que o historiador já traz consigo, ao formular suas
conjecturas e ao interrogar as fontes acerca do que ocorreu no passado. Sem
tais perspectivas determinantes do que queremos propriamente saber, ao
pesquisar as fontes do passado, estas em nada podem nos ajudar quanto ao que
é ou foi a história que tencionamos fazer erigir delas. (RÜSEN, 2001, p. 32)
Deste modo, as ideias servem de orientação ao historiador: elas formam a base
dos questionamentos e direções dos quais este se utilizará em sua pesquisa. Assim, elas
podem ser oriundas das inquietações, das necessidades e das curiosidades intelectuais
do próprio pesquisador, fornecendo-lhe suporte e sentido, enriquecendo sua
investigação. Mas, mesmo sendo muito importantes, as ideias não são tudo ao
pensamento histórico: “elas não bastam para constituir a especificidade científica desse
pensamento”. Porém, “quando interesses e ideias como precondições [...] do pensamento
histórico se efetivam na experiência concreta do passado, é no processo dessa
efetivação que se constitui o que entendemos como ‘história’ como especialidade
científica” (RÜSEN, 2001, p. 33). Neste processo, e a partir dele, são empregados os
métodos, que o autor apresenta como sendo o terceiro dos fatores do pensamento
histórico.
Em relação aos métodos, Rüsen argumenta que são fundamentais à conversão de
simples interesses e perspectivas em saber histórico que, por sua vez, é fundamentado e
embasado em regras próprias do campo de saber chamado história. Os métodos,
também, conferem a este saber seu caráter científico. Utilizar-se de métodos é uma
necessidade dos historiadores, uma vez que permitem que se conceba e organize de
maneira mais clara as carências de orientação e as diferentes ideias que se têm sobre
elas, uma vez que é frente a estas que “o passado deve ser tornado cognoscível pela
história como ciência particular” (RÜSEN, 2001, p. 33).
Mas, não basta apenas fundamentar, dar concisão e metodizar a pesquisa ou
estudo realizado: é preciso apresentá-lo, divulgá-lo, torná-lo acessível aos pares e ao
público interessado. Neste ponto, surge o quarto fator do pensamento histórico,
proposto por Rüsen: as formas de apresentação. O autor enfatiza que, muitas vezes,
certa negligência em relação a elas, no sentido de serem valorizadas inversamente à sua
importância. A historiografia, produto da pesquisa que deve ser “apresentado”, deve ser
percebida como sumariamente importante ao ofício do historiador, e as formas de
apresentação, neste sentido, carecem de ser compreendidas como portadoras de uma
função fundamental, que liga quem pesquisa a quem busca conhecimento: são o elo que
une as duas pontas, conectando-as e tornando possível a relação entre ambas.
Sintetizando, Rüsen afirma que:
Com as formas de apresentação, o pensamento histórico remete, por princípio,
às carências de orientação de que se originou. Ele se exprime, como resultado
cognoscitivo, sob a forma da historiografia, com a qual volta ao contexto da
orientação prática da vida no tempo. Com a historiografia, o pensamento
histórico usa uma linguagem que deve ser entendida como resposta a uma
pergunta. Originada em carências de orientação e enraizada em interesses
cognitivos da vida prática, a ciência da história com os resultados de seu
trabalho cognoscitivo expressos historiograficamente assume funções de
orientação existencial que têm de ser consideradas como um fator próprio [...]
de seus fundamentos [...]. (RÜSEN, 2001, p. 34).
Deste modo, chegamos ao quinto e último fator do pensamento histórico,
delineado por Rüsen em Razão Histórica (2001): as funções que desempenha. De acordo
com este autor, dos interesses e das ideias, como vimos, partem as demandas da
pesquisa e as perspectivas orientadoras destas, respectivamente. Com base nelas, o
historiador elenca os métodos mais adequados para dar prosseguimento à sua
investigação, transformando carências de orientação em saber histórico fundamentado e
embasado cientificamente. Este saber, por sua vez, é apresentado de diferentes formas,
por meio da historiografia, que torna possível a ponte entre saber e público interessado.
É nesta “ponte”, ou neste processo de transposição e irradiação do conhecimento por
meio das formas de apresentação, que o conhecimento histórico exerce sua função
social: através dele, agora sistematizado, são respondidas, da melhor maneira possível,
as demandas que o originaram, as perguntas que estiveram no cerne de sua elaboração e
desenvolvimento. Assim, o conhecimento histórico, entre outras funções, possui a de
orientar, responder e clarificar as questões humanas sobre si, sobre seu passado e sobre
sua contemporaneidade. Ele, em outras palavras, possibilita que compreendamos quem
fomos, para melhor entender quem somos, observando o passado, mas pensando no
hoje.
Apresentando e explicando os cinco fatores do pensamento histórico, Rüsen
manifesta sua concepção de matriz disciplinar como cerne da ciência histórica. Explica,
ainda, a interdependência dos fatores citados: “um fator leva ao outro, até que, do
quinto, volta-se ao primeiro” (RÜSEN, 2001, p. 35). Ou seja: a função que o conhecimento
exerce para o contexto que originou suas demandas depende do contexto e dos
problemas que este coloca ao pensar histórico, a seus métodos e aos sujeitos que se
dedicam à ciência histórica. As demandas de amanhã podem ser diferentes das de hoje.
Logo, a função que o conhecimento histórico exerce, no sentido proposto pela teoria
rüseniana, não é algo estático, mas sim variável e intimamente relacionado aos sujeitos
que o desenvolvem, refletem e sistematizam. Vida prática e ciência especializada, assim,
estão lado a lado.
Após esta breve análise sobre os fatores do pensamento histórico, vejamos como
estes se manifestaram na escrita da história de Manoelito de Ornellas.
O gaúcho-centauro: considerações sobre a escrita da história ornelliana
Pensar a escrita da história de Manoelito de Ornellas pelo escopo teórico-
metodológico rüseniano implica, entre outras coisas, que nos atenhamos brevemente a
apresentar quem foi o primeiro e qual a conjuntura de seu contexto de escrita. Provoca,
assim, pensar o sujeito por detrás “da pena e do tinteiro”, bem como as situações que o
rodeavam. Façamos isto, então.
Em 1903, nascia em Itaqui um rapazinho. Filho de Manoel Pedro e Anna Guglielmi
d’Ornellas, Manoelito teria contato com as letras desde cedo, influenciado pela mãe,
assídua leitora (THESING, 2015). Com quinze anos, teria seu primeiro artigo publicado
num jornal local. Estudara em Itaqui, mas logo fora enviado a Santa Maria. A decadência
econômica da família, que os faz perder os bens e morar no campo, é sentida na pesada
carga sentimental dos escritos do autor: ele sente as diferenças, a mudança de ambiente,
as dificuldades. Entre a vida de trabalhos e de leitor, Manoelito desdobrou-se e, pouco a
pouco, construiu seu próprio acervo de livros. O pampa era seu cenário de leitura e
estudos a vida literária retirava-o da rotina de peão campeiro: “minhas mágoas,
aprisionado à estreiteza espiritual de uma campanha que, nisso, contrastava com os
latifúndios territoriais” (ORNELLAS apud THESING, 2015, p. 50).
A dedicação de Ornellas aos ensaios sociológicos e históricos se deu
posteriormente. Em 1934, publicou Tupanciretã, escrito atrelado à participação no
processo emancipatório do município de mesmo nome. Esta obra lhe rende a
incorporação no IHGRGS (Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul),
fundado catorze anos antes de seu ingresso. A partir de então, figura entre os nomes
importantes da escrita histórica do Rio Grande, seja enquanto um historiador
reconhecido, seja como antagonista de outros autores, como Moysés Vellinho
5
. É a partir
deste ponto que nosso autor mergulha nos estudos sócio-históricos e, pouco mais de
uma década depois, publica Gaúchos e beduínos, tese polêmica sobre a formação do
estado sulino, tomada aqui como objeto.
Apresentemos, brevemente, o contexto institucional no qual vivia Manoelito de
Ornellas. O IHGRGS, fundado em 1920, funcionou como uma importante instituição que
se dedicou a escrever a história do Rio Grande. Em sua gênese, teriam sido três os
fatores principais que o originaram e mantiveram. Eis os aspectos relacionados à
fundação do Instituto:
[...] primeiro, uma saída institucional na busca pela mobilização coletiva,
concretizada na ação da criação do IHGRGS; segundo, a adesão à uma atitude
ecumênica, apesar das clivagens internas de toda ordem (republicanos,
federalistas, positivistas, jesuítas, lusitanistas, platinistas, folcloristas, etc.); e,
terceiro, a adoção do patrulhamento historiográfico como uma postura
estruturante da esfera acadêmica no RS. Esse patrulhamento era exercido,
externa e internamente, em relação à produção intelectual local e à brasileira
sobre o Rio Grande do Sul. Esta “missão” aparece na primeira edição da
Revista do Instituto, na lavra do primeiro orador da Instituição como um dos
propósitos da criação do Instituto. (MARTINS, 2015, p. 33)
Porém, quando do ingresso de Manoelito à agremiação, e nos anos imediatamente
posteriores, o IHGRGS passava por uma espécie de “reformulação interna”. As
orientações legitimadoras e de cunho estritamente político não mais cabiam, e não mais
agradavam aos pares de outros estados: era preciso reabilitar a imagem do Rio Grande
do Sul, de seus intelectuais e de sua produção literária e teórica frente ao Brasil (NEDEL,
2005). Neste sentido, o regionalismo passa a ser muito valorizado, enfatizando-se as
peculiaridades, mas relacionando-as às características do todo. A cultura popular fora
instrumentalizada e valorizada como forma de evidenciar a importância do povo, de seus
costumes, de seus hábitos. O cerne da reformulação do IHGRGS se encontraria, pois,
nisto
6
.
Entendendo estes aspectos, podemos compreender melhor as orientações, as
escolhas e os temas elencados por Ornellas em sua escrita da história. Em Gaúchos e
5
Enquanto Ornellas admitia diversas origens étnicas aos habitantes do Rio Grande do Sul, Vellinho
afirmava este último como primordialmente formado pelo contingente português. Este é apenas um dos
traços de discordância entre os autores. Para compreender os antagonismos entre ambos os letrados, ver
ALMEIDA (2007).
6
Sobre as questões que tangem ao regionalismo e à importância do movimento folclórico no período,
sugerimos a tese de doutorado da Professora Letícia Nedel (2005).
beduínos (1948), como também em outros ensaios posteriores
7
, o autor prima por temas
de formação, tradições, costumes e indumentária, por exemplo. Estes aspectos, por sua
vez, se relacionam com a abordagem pelo viés da cultura popular, em voga durante seu
contexto de escrita
8
. Ornellas, assim, fora um dos intelectuais que se engajara na
reabilitação da imagem do estado frente aos pares nacionais. Conhecendo-se este
interesse do autor, mas não considerando exclusivamente este fator, vejamos como sua
escrita da história pode ser interpretada dentro da teoria rüseniana, abordada mais
acima.
Os fatores do pensamento histórico ornelliano
Jörn Rüsen, conforme vimos, delineou cinco fatores do pensamento histórico,
interdependentes, nos quais se correlacionam o saber histórico e a vida prática. Partindo
destes fatores, dedicar-nos-emos a perceber como estes podem auxiliar na interpretação
da escrita da história de Manoelito de Ornellas, tomando como objeto os escritos deste
autor que compõem a obra Gaúchos e beduínos (1948), na qual a tese central trata da
ancestralidade do último em relação ao primeiro, bem como da permanência de traços,
hábitos e costumes, mesmo em tempos e espaços diferentes.
A teoria da história rüseniana aponta que o pensamento histórico parte dos
interesses, das carências de orientação dos seres humanos. A nosso ver, no caso
ornelliano, os esforços do autor estiveram centrados nas demandas de seu contexto
intelectual, bem como da agremiação histórica da qual fazia parte (o IHGRGS), demandas
estas que, conforme visto, apontavam no sentido de reabilitar a imagem do Rio Grande e
de seus intelectuais no nível mais amplo, nacional. A carência, aqui, reside no fato de não
se ter, até então, uma maneira plausível de atender a estas demandas, uma vez que a
história escrita pelos pares sulinos não correspondia ao que estava sendo feito com êxito
em outras regiões do país, como é o caso do Nordeste de Gilberto Freyre. Partindo do
interesse de reabilitar o Rio Grande, e da carência de como fazer isso, Ornellas
prospecta sobre como buscar respostas para tal situação
9
.
O segundo fator do pensamento histórico proposto por Rüsen são as ideias,
descritas por ele como perspectivas orientadoras, pelas quais observamos e pensamos o
7
A tese defendida em Gaúchos e beduínos aparece, também, em A gênese do gaúcho brasileiro (1956) e As
origens remotas do gaúcho (1974).
8
Mencione-se a influência que os escritos de Gilberto Freyre tiveram sobre a produção intelectual
ornelliana. Este último menciona o primeiro e concorda com certos pontos de sua análise. Ver THESING
(2015).
9
É neste contexto, e tendo Ornellas como um dos expoentes, que se um movimento no sentido de
tornar o Folclore uma disciplina, ou seja, de demonstrá-lo como um tema/abordagem relevante no escopo
da cultura popular, em voga no período. Ver NEDEL (2005) e THESING (2015).
passado. Pois bem, em se tratando da historiografia ornelliana, percebe-se que o autor
tece sua análise por meio da perspectiva de formação, principalmente. Como se formou
o gaucho? E o gaúcho? Quais etnias tiveram participação neste processo? Como se deu
a organização dos diferentes grupos existentes no território sul-rio-grandense? Qual a
importância da miscigenação neste processo? Quais as permanências? Enfim, uma gama
de questões nas quais se relacionam os interesses = que permitem que a investigação se
dê de maneira mais concisa, dentro de perspectivas bem delimitadas.
As perspectivas adotadas pelo autor denotam algumas ideias que permeiam seus
escritos. Primeiramente, a adoção do pampa como um dos personagens de sua trama:
nele tudo ocorreu, ele tudo presenciou (ORNELLAS, 1948). Mas, não apenas isso: o
pampa indiviso também teria sido fundamental à formação, tema máster de Gaúchos e
beduínos.
A vida equestre, a alimentação carnívora, a rude intempérie, os ventos tônicos
do Oceano e do Pampa, fizera o homem magro, duro, ágil e de contextura
biliosa. [... ]. O deserto e a solidão [do pampa] fizeram-nos [gaúchos] taciturnos
e silenciosos. [...] A liberdade e abundância fizeram-nos, ainda, altivos,
hospitaleiros e leais. (ORNELLAS, 1948, p. 44-46).
Ornellas afirma a abundância de recursos, no pampa, como um dos elementos
ativos na formação do gaúcho, de seus hábitos e de sua psique. Além disso, os elementos
agregados ao cenário pampiano convergem para a representação típica feita do gaúcho,
seja na história deste período, seja nas artes visuais ou na música, conforme
argumentado no início do presente artigo. O gaúcho cavaleiro, centauro, com seus
instrumentos, é apresentado, caracterizado e afirmado como soberano dos pampas,
similarmente àquele povo do qual descenderia (o beduíno). Surge, aqui, a segunda
perspectiva do pensamento histórico ornelliano: a busca das origens.
Abordando os traços típicos do gaúcho, Ornellas apresenta estes mesmos traços,
mas em sua “origem”, uma vez que os relaciona com os beduínos, povo made da
Península Arábica que o autor considera como ancestral longínquo (mas influente) do
primeiro. Um dos traços mais marcantes, e mais recorrentes na escrita da história
ornelliana, é a indumentária. Assim, desde os tempos da vida livre no cenário pampiano,
havia uma
[...] casta de gente comumente escapada aos cárceres e à perseguição das
tropas de linha da Espanha e do Brasil, a que se chamava de “gauchos” ou
“gaudérios”. Alguns prendiam os cabelos duros, espetados, com a “vincha” um
lenço ou larga fita branca que o índio vulgarizou. Outros, punham sobre a solta
melena o sombrero que o espanhol importara da Ibéria. Alguns traziam nu o
torso cor de bronze, e outros se vestiam com camisas de chita e, quando
favorecidos pela fortuna, com palas de seda ou de vicunha. Todos usavam
porém botas de potro e chiripa. (ORNELLAS, 1948, p. 45).
No pampa, seriam estas as vestimentas dos gaúchos. Mais adiante, em sua
argumentação, o autor começa a traçar as parecenças entre gaúchos e beduínos, base da
segunda perspectiva com a qual Ornellas observa o passado. Deste modo, é afirmado que
“no tipo, nos hábitos e nos costumes do gaúcho vamos descobrir remotas influências de
uma raça que viveu nômade pelos desertos da Arábia” (ORNELLAS, 1948, p. 61).
Descrevendo as características positivas do beduíno, o autor as aproxima das do gaúcho.
Ao tratar da suposta prontidão do árabe para defender seu grupo, e do entusiasmo com
o qual o teriam feito, Ornellas torna este esforço paralelo ao do gaúcho de fronteira nas
lutas contra tropas inimigas. Ao explicar como estes gruposmades beduínos teriam se
espalhado pela Península Ibérica, o autor afirma que tanto espanhóis quanto portugueses
seriam contingentes mestiços, com sangue beduíno nas veias. Logo, enquanto
colonizadores, teriam transmitido as virtudes apreendidas em solo peninsular aos
habitantes do “Novo Mundo”. Além disso, o costume de viver isolado no deserto
favoreceria a vida no deserto verde. Mais uma vez, aparece o pampa, suas “lides” e seu
meio como importantes à análise ornelliana. Deste modo, em suma e de modo
metafórico, “o tropeiro ainda é o homem da caravana” (ORNELLAS, 1948, p. 148).
Refletindo sobre os interesses e as ideias que orientaram a escrita da história de
Ornellas, podemos pensar sobre o próximo dos fatores do pensamento histórico
proposto por Rüsen: os métodos. Pensemos, no caso ornelliano, em caminhos que o
autor seguiu para comprovar sua tese de paralelos entre gaúchos e beduínos.
Comecemos pelos autores que Ornellas menciona, a fim de comprovar “cientificamente”
a plausibilidade de sua argumentação, afirmando-a como pertinente ao saber histórico
por ele desenvolvido. O autor parte, assim, de teorias que comprovariam a semelhança
de traços físicos entre distintos povos. É mencionado um estudo desenvolvido por um
autor chamado Garrote
10
. Estudando-se a fisionomia de berberes e maragatos, chega-se
à conclusão de que seriam muito semelhantes fisicamente. Acrescenta-se, ainda,
comentários que aquele autor teria tecido a respeito das semelhanças, novamente sem
mencionar de qual obra os retira:
E Garrote acrescenta: podemos encontrar afinidades entre o maragato
[habitante da Maragateria, região espanhola, cujos membros teriam participado
do expansionismo às Américas] e o berbere [beduíno] se atentamente
10
Sobre este estudo citado por Ornellas, não referência na obra. É apresentado “Garrote” como autor,
mas a obra completa não é referenciada ou mencionada, o que dificulta a conferência das informações e
prejudica o entendimento acerca do método ornelliano.
observarmos duas características circunstanciais: a habitação e o vestuário.
(ORNELLAS, 1948, p. 76).
Ornellas parece buscar uma maneira “científica” de legitimar as premissas que
defende, mas seu método é defasado: além de não mencionar a fonte de sua informação,
neste caso específico, o que é caro aos historiadores, ainda parece escolher apenas
autores que corroborem com as teses que defende. Certamente a prática historiográfica
não se dava da forma como se atualmente. Todavia, ao fazer referência a alguns
autores e a outros não, Ornellas defasa sua análise e os caminhos pelos quais a
desenvolve. Em termos de método, portanto, este autor seleciona os fatos, autores e
obras que comprovam e legitimam sua tese, sem que seja feita uma discussão mais
aprofundada frente a posicionamentos contrários ou diversos dos seus.
A partir dos resultados de sua pesquisa, obtidos por suas perspectivas e métodos,
dentro das limitações teóricas e metodológicas de seu contexto
11
, Ornellas constrói sua
historiografia. Neste caso específico, o conhecimento foi apresentado na forma de um
livro, um ensaio sócio-histórico sobre os temas que teriam envolvido a formação sul-rio-
grandense. Em se tratando da forma ornelliana de escrever, percebe-se sutileza nas
palavras, num tom quase poético em muitos trechos. Além disso, quando utiliza citações,
muitas são de poemas, versos ou músicas relacionadas aos temas que aborda. Quando
fala das razões que teriam levado os peninsulares a expandirem-se para além do Velho
Continente, apresenta a existência do “sonho da América”,
[...] com suas promessas tentadoras de fortuna fácil, a vastidão sem limites da
terra, fecunda e virgem, e as possibilidades de grandes aventuras, estimularam
o espírito inquieto dos homens que traziam no sangue o nomadismo de séculos.
E os espanhóis e portugueses, descendentes de berberes e árabes, agitados
pelas ideias e a febre das descobertas e surpresas do novo mundo, embarcaram,
certo dia [...] o grande deserto verde, que as tribos ferozes haviam
percorrido, encheu-lhes os olhos de luz e distâncias. [...] A mesma extensão
solitária, os mesmos horizontes sem paredes, daqueles desertos áridos que seus
avós haviam perdido, porém, aqui, o verde cambiante do pampa, a monotonia
das ondulações sem arrojo, de longe em longe quebrada pelo relevo mais alto de
uma coxilha ou pelo boleio sensual de uma canhada. (ORNELLAS, 1948, p. 90-
91).
O tom poético da narrativa ornelliana é evidente. A saída da Europa, o remonte ao
passado conjugado ao presente, a experiência da chegada, as impressões sobre o
território... tudo poetizado, harmonizado, naturalizado e embelezado. A sutileza da
11
Perceba-se que os programas de pós-graduação em História surgiram muitos anos depois da atuação de
Ornellas no campo da história (RODRIGUES; NEDEL, 2003). Considere-se, por outro lado, que muitas
discussões de método e uso de fontes vinham se dando, seja em seu congênere a nível nacional, o IHGB
(SANCHEZ, 2003), seja a nível local (NEDEL, 2005; SILVEIRA, 2008).
narrativa impressiona. O texto é de fácil compreensão, bom de ler. Enquanto forma de
apresentação, dentro dos fatores rüsenianos, é capaz de estabelecer a comunicação
entre quem escreve e quem lê, apesar de todos os “pontos falhos” mencionados neste
texto. Além disso, o estilo poético de sua historiografia parece convergir para uma
narrativa que alia os temas de formação, em voga em sua contemporaneidade, à busca
por uma leitura compreensível.
E quanto à função social desempenhada pelos escritos de Ornellas? Como eles
atenderam às demandas das quais o autor partiu? Pois bem, pensemos pelo viés da
cultura popular. Ao enfatizar os hábitos, as vestimentas e os costumes, Ornellas atendeu
à necessidade da intelectualidade gaúcha de seu contexto, aproximando a ciência
histórica dos temas de cunho sociológico que estavam em voga, como o caso freyriano
supracitado. O foco da história se desligava um pouco da torre de marfim e chegava aos
grupos humanos, suas práticas, seu vocabulário. Note-se, porém, que foram atendidos os
interesses do autor por meio da pesquisa histórica e, por meio dele, as demandas de uma
gama de letrados dedicados à ciência histórica: fora da necessidade de reabilitação da
imagem sul-rio-grandense, principalmente, que a abordagem da análise ornelliana e suas
perspectivas partiram, e foi a ela que retornaram, fornecendo-lhe respostas e
possibilidades.
Considerações finais
Analisar a escrita da história de Manoelito de Ornellas tomando por base as
contribuições teórico-metodológicas de Jörn Rüsen foi o que objetivamos neste artigo. A
complexidade de fazê-lo, dado o espaço e as limitações de nossa abordagem, é evidente.
Assim, buscamos mais compreender, de modo geral, os fatores do pensamento histórico
ornelliano e menos encerrar o tema e as abordagens possíveis em relação a ele.
É importante reconhecermos as contribuições rüsenianas para o campo da teoria
da história. Em relação à historiografia sul-rio-grandense, pontualmente, a
considerarmos como um escopo teórico frutífero, que pode enriquecer em muito as
análises relacionadas ao tema. Neste caso específico dos fatores do pensamento
histórico, cabe refletir sobre o ponto de onde os letrados teriam partido, o que os
poderia ter motivado, quais suas influências, e etc. Cabe estudar as “implicações
concretas” do conhecimento produzido, as funções por ele desempenhadas, bem como
seus usos, sua instrumentalização. Cabe, assim, não pensar o texto pelo texto, mas nas
mais variadas relações que pode estabelecer com a vida prática. É este o convite de
Rüsen na obra que tomamos como apoio metodológico; fora este o convite que
aceitamos, trazendo-o para os campos dos letrados gaúchos.
Em suma, entendemos nosso trabalho como relevante pelos motivos
mencionados, e, também, deixamos o nosso convite: que, a cada vez mais, possamos
pesquisar, escrever e publicar textos que influenciem positiva e qualitativamente a
ciência histórica e a vida prática. Que possamos pensar e refletir sobre nosso próprio
fazer e suas implicações. E, ainda, que nos compreendamos enquanto sujeitos históricos
que, assim como Ornellas, partem de demandas concretas, de perspectivas orientadoras
e, ainda, de métodos específicos. Tenhamos consciência de nossa própria historicidade!
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