FACES DA HISTÓRIA
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Recebido em: 27 de julho de 2014
Aprovado em: 09 de dezembro de 2014.
O conceito dialético de interpretação na losoa hermenêutica de
Paul Ricoeur
The dialectical concept of interpretation in hermeneutical philosophy
of Paul Ricoeur
PASSOS, Filipe Caldas O.
1*
RESUMO: O tema deste artigo é o conceito dialético de interpretação na
losoa hermenêutica de Paul Ricoeur. Analisamos o impacto desse conceito
não somente no sentido metodológico e epistemológico das ciências
humanas, mas no sentido crítico e ontológico do mesmo, ou seja, nas
consequências da interpretação da relação entre o ser humano e a realidade.
Para tanto, apresentamos o diálogo que Ricoeur estabeleceu com a tradição
hermenêutica, bem como com a tradição crítica, buscando ultrapassar as
limitações de ambas a partir de uma hermenêutica crítica, composta por
sucessivos momentos dialéticos e capaz, segundo o autor, de abordar
adequadamente o conceito de interpretação e também suas implicações no
existir humano.
Palavras-chave: Hermenêutica; dialética; crítica; ontologia; interpretação.
ABSTRACT:The subject of this article is the dialectical concept of
interpretation in Paul Ricoeurs hermeneutical philosophy. The focus here is
the impact of this concept in methodological and epistemological sense and
also in the critical and ontological logic. In other words, the consequences
of interpretation in the relation between human being and reality. Thus, we
present the dialogue wherein Ricoeur established with the hermeneutical
tradition and the tradition of criticism, seeking to surpass the limitations of
both through a critical hermeneutics composed by successive and dialectical
moments capable, according to the author, to approach properly the concept
of interpretation and their implications on the human existence.
Keywords: Hermeneutics; dialectics; criticism; ontology; interpretation.
Introdução
O presente artigo trata do conceito de interpretação segundo o
pensamento losóco de Paul Ricoeur. Os motivos para a escolha do referido
tema são, em primeiro lugar, a relevância do pensamento hermenêutico para a
losoa contemporânea e também para as demais áreas das ciências humanas;
o impacto da losoa de Paul Ricoeur no pensamento hermenêutico e, por
m, a centralidade e a amplitude do fenômeno da interpretação no interior do
pensamento ricoeuriano. Esses motivos suscitam alguns problemas que serão
respondidos, detalhadamente, no decorrer do presente artigo, entre eles: o
que é a interpretação? Por que a interpretação possui, de acordo com Ricoeur,
uma dimensão crítica?
1
*
Mestre em losoa pela Universidade Estadual do Ceará-UECE.
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FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº2, p. 64-72, jul.-dez., 2014.
Filipe Caldas O. Passos
Antes de adentrarmos no tema desta pesquisa, achamos necessário
esclarecermos algumas questões de cunho bibliográco e metodológico. Para
a elaboração do presente artigo, zemos uma leitura comparada das obras
listadas nas referências bibliográcas, tendo como o condutor a questão da
interpretação, segundo Paul Ricoeur, no âmbito da tradição hermenêutica.
A leitura comparada se deu, sobretudo, a partir da confrontação das obras
utilizadas, dentre as quais se destacam Hermenêutica e ideologias (2008) e
Teoria da interpretação (1973), ambas de Ricoeur e que são as obras principais,
adotadas na presente pesquisa.
Na primeira, encontramos uma argumentação consistente a respeito
do elemento crítico presente no processo de interpretação e, por conseguinte, no
âmbito hermenêutico. Nela, encontramos também uma exposição da dialética
que lhe subjaz, bem como suas implicações ontológicas e sua dimensão
crítica. Na segunda obra, essa não aparece de forma tão explícita como na
primeira, cando em destaque o elemento dialético e sua relação fundamental
com o processo da interpretação que, segundo Ricoeur, não se aplica apenas
à escrita e à leitura, pois já se faz presente na linguagem falada, abrangendo
campos como os da teoria da comunicação e da teoria do discurso.
Também confrontamos as obras de Ricoeur com as de outros
autores pertencentes à tradição hermenêutica, sobretudo, os que contribuíram
para seu desenvolvimento no sentido ontológico, tais como Martin Heidegger,
Hans-Georg Gadamer e Gianni Vattimo. Essa comparação tinha o objetivo de
tornar mais clara as especicidades e, por conseguinte, as contribuições do
pensamento de Ricoeur para a hermenêutica losóca, mais especicamente
a partir dos acréscimos ou, melhor dizendo, do desenvolvimento que o referido
autor confere ao conceito de interpretação. Acrescentamos às delimitações
mencionadas uma última, referente ao fato de empregarmos apenas escritos
nos quais os autores, sobretudo Ricoeur, se dedicaram integral ou parcialmente
à questão da interpretação, bem como suas implicações com o que se poderia
denir como questão de método, ou seja, em que trataram dos fundamentos
da hermenêutica.
Nesses escritos, as implicações no âmbito da pesquisa histórica
estão presentes, mas a centralidade é conferida à questão de método, mais
especicamente, à questão da interpretação, subjacente àquela no âmbito do
pensamento hermenêutico. Agimos dessa forma porque os textos de Ricoeur
e dos demais pensadores da tradição hermenêutica que se relacionam direta e
fundamentalmente com a pesquisa histórica são muitos e, no caso de alguns,
extensos e não poderiam ser abordados no espaço um tanto restrito de um
artigo.
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O conceito dialético de interpretação na losoa hermenêutica de Paul Ricoeur
Por conseguinte, tivemos de optar ou por selecionar algum escrito
em que determinada questão concernente à pesquisa histórica é abordada
ou por tratar da questão de método e, portanto, do conceito de interpretação,
apresentando, mesmo que indiretamente, suas implicações no campo da
história. Preferimos a segunda, por ser mais abrangente, uma vez que trata
de elementos metodológicos e por caber no espaço restrito de um artigo.
Além disso, o conceito de interpretação é fundamental tanto no pensamento
hermenêutico quanto nas implicações dessa corrente, no âmbito da pesquisa
histórica e, por esse motivo, mereceu destaque em nossa exposição.
O sentido dialético e crítico do conceito de interpretação na hermenêutica
ricoeuriana
Para compreendermos devidamente as perguntas levantadas na
introdução do presente artigo – o que é a interpretação? Por que a interpretação
possui, de acordo com Ricoeur, uma dimensão crítica? faz-se necessária
uma exposição dos motivos que conduzem a presente pesquisa. O primeiro
deles, a relevância do pensamento hermenêutico nas ciências humanas, se
deve ao fato de que, na passagem do século XIX para o século XX, surgiu um
debate acerca do estatuto das ciências do espírito, no qual as especicidades
metodológicas e epistemológicas dessas ciências foram defendidas contra a
utilização, em seu campo, de abordagens inspiradas no modo de pesquisa
próprio das ciências da natureza. Gadamer, um dos expoentes da tradição
hermenêutica, se referiu a isso na obra Verdade e método (1960), ao tratar da
divergência de Wilhelm Dilthey, outro lósofo da mesma tradição, em relação
ao posicionamento de John Stuart Mill.
Enquanto Dilthey defendia a necessidade de um método próprio no
caso, o hermenêutico para as pesquisas realizadas no campo das ciências do
espírito, Stuart Mill sustentava que, em tais ciências, chamadas pelos falantes
de língua inglesa de moral sciences, poderia se aplicar a lógica indutiva,
subjacente à metodologia das ciências da natureza. Segundo Gadamer, o
pensamento losóco de Dilthey se desenvolveu, sobretudo, como resposta
ao de Mill. A respeito disso, Gadamer diz o seguinte:
Também Dilthey, em quem a inuência do método das ciências da
natureza e do empirismo da lógica de Mill se faz sentir bem mais
fortemente, mantém rme a herança romântico-idealista no conceito
de espírito. Sempre se sentiu superior ao empirismo inglês, porque
vivia na contemplação viva do que distinguia a escola histórica de todo
e qualquer pensamento das ciências da natureza e do direito natural.
‘Só da Alemanha pode vir o verdadeiro procedimento empírico para
substituir o empirismo preconceituoso e dogmático. Mill é dogmático
por falta de formação histórica.’ esta é uma anotação de Dilthey
em seu exemplar da Lógica de Mill. Na realidade, todo o trabalho
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cansativo de várias décadas que Dilthey dedicou à fundamentação
das ciências do espírito é um permanente confronto com a exigência
lógica que o famoso capítulo nal de Mill impôs às ciências do espírito.
(GADAMER, 2013, p. 40-41)
Também devemos mencionar que o desenvolvimento do pensamento
hermenêutico está, de certa forma, ligado à crise da metafísica, diagnosticada
por Nietzsche ao utilizar o conceito da morte de Deus o que signica, em
última instância, o esgotamento do conceito metafísico de verdade
2
. Esse
esgotamento tornava completamente inviável o conceito hegeliano de saber
absoluto, entendido como a recapitulação total dos legados culturais humanos.
Isso ocorre porque, com a crise da metafísica que, no pensamento nietzschiano,
assume a forma do niilismo – a crise dos valores supremos para a tradição do
pensamento losóco ocidental, cujo principal valor foi o da verdade como algo
em si, quer dizer, o conceito metafísico de verdade –, a inserção dos saberes
numa totalidade sistemática, sob a forma do saber absoluto, libertando esses
saberes de sua parcialidade e, por conseguinte, consistindo em sua verdade,
também entra em crise. O pensamento hermenêutico surge, então, como
alternativa ao modo hegeliano, portanto, metafísico, de lidar com o passado.
Por m, devemos mencionar o impacto da polêmica que envolveu as
tradições crítica e hermenêutica na segunda metade do século XX, sobretudo,
no pensamento hermenêutico de Paul Ricoeur. Quanto à polêmica da tradição
crítica com a tradição hermenêutica, Habermas representando a primeira e
Gadamer a última, Ricoeur argumenta que o pensamento crítico, do mesmo
modo que a hermenêutica, pertence a uma tradição, no caso, à tradição do
pensamento crítico (RICOEUR, 2011a, p. 157-158). Logo, para ele, a cisão
entre pensamento crítico e pensamento hermenêutico se deve a um erro, no
qual o primeiro rejeita o conceito fundamental de tradição e o segundo ignora
a instância crítica presente no conceito de interpretação.
Portanto, a crise da metafísica e a defesa de um estatuto e de um
método próprios para as ciências do espírito impulsionaram o desenvolvimento
da hermenêutica losóca, que teve suas origens em Schleiermacher, adentrou
no debate acerca das ciências do espírito com Wilhelm Dilthey e adquiriu uma
dimensão ontológica com Martin Heidegger e Hans-Georg Gadamer. Além
disso, a polêmica entre o pensamento hermenêutico e o pensamento crítico
contribuiu para o desenvolvimento da losoa hermenêutica de Paul Ricoeur,
2 No que diz respeito ao conceito da verdade, Nietzsche sustenta que este consiste em toda
interpretação útil à vida, e o mesmo se aplica a todo e qualquer valor. A noção nietzschiana
de valor nega a ideia de um télos ou, por outras palavras, de um sentido último a orientar
a história, na medida em que os fatos, segundo o pensamento dele, nunca são puros, mas
constituídos por interpretações. Para Nietzsche, toda interpretação é fruto de uma vontade
que se assenhoreou de algo e lhe imprimiu certo sentido, não havendo, portanto, uma -
nalidade prévia a orientar a história de uma “coisa”, um órgão, um uso, etc. (NIETZSCHE,
1998, p. 66)
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O conceito dialético de interpretação na losoa hermenêutica de Paul Ricoeur
sobretudo, no que diz respeito ao conceito de interpretação. Trataremos,
primeiramente, do desenvolvimento da losoa hermenêutica, logo em seguida,
de sua passagem para um âmbito ontológico, associada à questão da crise
da metafísica e, por m, da polêmica entre pensamento crítico e pensamento
hermenêutico e suas implicações na losoa de Ricoeur.
O desenvolvimento da losoa hermenêutica teve início com Friedrich
Schleiermacher que buscou, diante das formas vigentes, em seu tempo,
de hermenêutica a jurídica, a lológica e a teológica –, as condições de
possibilidade da interpretação em geral e não de acordo com a especicidade
de cada uma das referidas formas. Tanto ele quanto seu sucessor, Wilhelm
Dilthey, lançaram as bases de uma concepção psicologista da hermenêutica,
cuja principal característica era a compreensão da intenção dos autores a partir
de uma metodologia empática aplicada pelos intérpretes aos textos. Sobre
isso, Ricoeur arma:
A obra de Dilthey, mais ainda que a de Schleiermacher, elucida a
aporia central de uma hermenêutica que situa a compreensão do
texto sob a lei da compreensão de outrem que nele se exprime. Se
o empreendimento permanece psicológico em seu fundo é porque
confere à interpretação não aquilo que diz o texto, mas aquele que
nele se expressa. Ao mesmo tempo, o objeto da hermenêutica é
incessantemente deportado do texto, de seu sentido e de sua refe-
rência, para o vivido que nele se exprime. (RICOEUR, 2011a, p. 35)
É justamente com Dilthey que a hermenêutica adentra no debate
metodológico-epistemológico acerca do estatuto das ciências do espírito. Com
base nela, Dilthey propõe que a pesquisa no campo das ciências do espírito
deve tomar como princípio, a compreensão e não a explicação, como se dava
com as ciências da natureza e que mencionamos, de certa forma, ao tratar de
sua polêmica com John Stuart Mill.
Sob a inuência de Dilthey, Heidegger amplia o alcance do pensamento
hermenêutico. Para Heidegger, a questão fundamental do pensamento é a
questão do sentido do Ser. Lançando mão do método fenomenológico de
Edmund Husserl, Heidegger se põe a investigar essa questão e, na obra
intitulada Ser e tempo (1927), propõe que só se pode ter um acesso adequado
à questão do sentido do Ser a partir de uma análise do ente que é capaz de
por a referida questão. Com base nisso, Heidegger desenvolve uma analítica
do homem compreendido como Dasein, como pre-sença ou o “aí” do Ser. A
respeito disso, Heidegger diz:
Se a pergunta pelo ser deve ser expressamente feita e executada na
plena transparência para si mesma, então, segundo as elucidações
dadas até agora, sua elaboração exige a explicação dos modos de
dirigir o olhar ao ser, de entender e apreender conceitualmente seu
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sentido, a preparação da possibilidade de escolha correta do ente
exemplar e a elaboração do genuíno modo-de-acesso a esse ente.
[...] Esse ente que somos cada vez nós mesmos e que tem, entre
outras possiblidades-de-ser, a possibilidade-de-ser do perguntar,
nós o apreendemos terminologicamente como Dasein. Fazer
expressamente e de modo transparente a pergunta pelo sentido
do ser exige uma adequada exposição prévia de um ente (Dasein)
quanto ao seu ser. (HEIDEGGER, 2012, p. 45-47)
Na analítica do Dasein, o fenômeno da compreensão e, por
conseguinte, o da interpretação, que o explicita, possui um papel fundamental,
uma vez que é por esses que o homem se relaciona com o mundo que o
cerca. Segundo Heidegger, a relação do homem com o mundo pressupõe a
interpretação. É com base nela que se dá a familiaridade com o mundo e com
os entes que o constituem. Quanto a isso, Heidegger arma:
[...] Todo preparar, ordenar, consertar, melhorar, completar se executa
de modo que que visível no utilizável do ver-ao-redor o seu para-
algo e torna-se objeto de ocupação conforme o que cou visível
na interpretação. O que o ver-ao-redor em seu para-algo interpreta
como tal, isto é, o expressamente entendido, tem a estrutura do algo
como algo. À pergunta do ver-ao-redor sobre o que é este utilizável
determinado, o ver-ao-redor responde interpretando: isto é para...
[...] Todo simples ver antepredicativo do utilizável já é em si mesmo
entendedor-interpretante. (HEIDEGGER, 2012, p. 423)
Posteriormente, Heidegger abandona o caminho trilhado na
analítica do Dasein e a questão da linguagem ganha relevância no interior de
seu pensamento
3
, sendo considerada como a “morada do Ser”. A linguagem
como morada do Ser remete ao fato de que o Ser se dá no âmbito da
linguagem (HEIDEGGER, 2008, p. 326), fundador dos horizontes histórico-
culturais no interior dos quais o homem habita, compreendendo a si mesmo
e aos demais entes.
Por meio dessas mudanças ou desenvolvimentos, subjacentes ao
pensamento heideggeriano, pelo menos no que diz respeito à hermenêutica,
é o seu sentido ontológico, isto é, o pensamento hermenêutico ultrapassa,
a partir de Heidegger, os limites de uma questão meramente metodológico-
epistemológica, adquirindo um alcance ontológico que, por sua vez, inuenciou
o pensamento losóco de Gadamer e desembocou no pensamento de
Ricoeur. Ambos, Heidegger e Gadamer, superaram os limites psicologizantes
3 A analítica do Dasein gerou, na perspectiva heideggeriana, uma espécie de mal-entendido,
o que acarretou o surgimento da corrente losóca do existencialismo. Em sua Carta sobre
o humanismo (1946), Heidegger polemiza com Sartre, o principal nome da referida corren-
te, sustentando que o pensamento deste permanece preso, sobretudo devido ao emprego
da distinção entre essência e existência (HEIDEGGER, 2008, p. 342), à linguagem da
metafísica. A “virada linguística” de Heidegger é, de certa forma, um modo de resolver esse
mal-entendido, uma vez que, por meio dela, ele abandona a necessidade de por a questão
do sentido do Ser a partir de uma analítica do Dasein.
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O conceito dialético de interpretação na losoa hermenêutica de Paul Ricoeur
impostos por Schleiermacher e Dilthey à hermenêutica, atribuindo no lugar
da reconstituição das intenções autorais, um diálogo sempre retomado com a
tradição que nos constitui.
Se Heidegger estabelece o alcance ontológico da hermenêutica,
mostrando que o fundamental para o pensamento não se encontra no debate
metodológico-epistemológico, Gadamer faz o caminho de “volta” que, segundo
Ricoeur, cou faltando no projeto heideggeriano. Gadamer investiga as
implicações desse enraizamento ontológico em três esferas fundamentais, nas
quais ocorre a constituição dos horizontes de compreensão e, por conseguinte,
da verdade e do sentido – as esferas da arte, da história e da linguagem.
Desse modo, Gadamer faz o movimento de retorno da ontologia em direção
aos problemas epistemológicos (RICOEUR, 2011a, p. 37).
Gadamer retoma o debate epistemológico sobre as ciências do
espírito, conferindo-lhes um devido enraizamento ontológico. Isso ocorre,
sobretudo, no que diz respeito ao círculo hermenêutico, no qual se a fusão de
horizontes, ou seja, do horizonte histórico-cultural do intérprete com o horizonte
aberto pela obra a ser interpretada. O próprio Ser que, segundo Gadamer, é
a linguagem, só se dá sob a forma dos horizontes de compreensão, ou seja,
horizontes histórico-culturais. A constituição desses horizontes se dá por meio
do diálogo com a tradição, diálogo entre horizontes culturais, entendido como a
abertura de nosso horizonte de compreensão a outro, propiciando certa fusão
de horizontes (RICOEUR, 2011a, p. 37). É por intermédio dessa fusão de
horizontes que se dá o diálogo entre as tradições culturais, entre o presente e o
passado, suscitando a compreensão do que nos foi historicamente transmitido
e, por conseguinte, de nós mesmos.
No processo de fusão de horizontes há uma dialética entre o
distanciamento e a pertença no seio das tradições, sendo que Gadamer
visa resgatar a pertença ou como diz Vattimo, a continuidade face o
distanciamento, sobretudo temporal, que se impõe entre o intérprete e as obras
da tradição que o precedem e, de certa forma, o constituem. A esse respeito,
Gianni Vattimo, um dos expoentes do pensamento hermenêutico, cuja losoa
sofreu forte inuência de Heidegger e Gadamer, diz o seguinte:
É essa a direção em que aponta, a meu ver, o desenvolvimento da
hermenêutica depois de Heidegger, especialmente da hermenêutica
gadameriana. Para Gadamer não se trata de olhar para um além da
metafísica, mas, sabendo que ‘o ser, que pode ser compreendido,
é linguagem’ (e nada mais, poderíamos acrescentar), o pensamento
remontará os caminhos, as mensagens da Ueberlieferung, apenas
com o objetivo de reconstruir sempre de novo a continuidade da
experiência, individual e coletiva. Essa continuidade, pelo menos
hoje em nossa sociedade, não está ameaçada tanto por fatores de
interrupção da comunicação, mas pelo desenvolvimento anormal de
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linguagens especializadas, em particular as linguagens das ciências.
Em Gadamer, portanto, a hermenêutica não é apenas volta para as
trans-missões provenientes do passado, mas também para todos
aqueles continentes linguísticos que se nos apresentam distantes
e estranhos, impenetráveis como culturas remotas no tempo e no
espaço. (VATTIMO, 2007, p. 186-187)
Nesse ponto, entra o segundo motivo para a escolha de nosso tema,
ou seja, o impacto da losoa de Paul Ricoeur no interior do pensamento
hermenêutico. Isso se explica da seguinte forma: o pensamento de Ricoeur,
diferentemente da hermenêutica de Gadamer, não visa tão somente o resgate
da pertença ou, como diria Vattimo, da continuidade. Para Ricoeur, a primazia
está na experiência do distanciamento, o que lhe permite se aproximar da
tradição do pensamento crítico.
Ricoeur não crê que o resgate da pertença ou, por outras palavras,
o restabelecimento, mesmo que temporário, da unidade de sentido entre o
passado e o presente e, inclusive, entre os discursos atuais seja tarefa da
hermenêutica. Para ele, o sentido não é resgatado, mas produzido pelo diálogo
entre passado e presente ou entre instâncias discursivas distintas e passa,
necessariamente, por uma dimensão crítica, na qual aquele que estabelece
o diálogo rompe, de certa forma, com as determinações discursivas de sua
situação histórico-cultural, efeito do distanciamento suscitado pelo contato
com outras formas de discurso que não as vigentes. Isso desperta para a
possibilidade de novos modos de ver e de ser no mundo. Por isso, Ricoeur
sustenta que o distanciamento não deve ser repudiado, mas assumido em sua
dimensão positiva (RICOEUR, 2011a, p. 49).
Segundo Ricoeur, o próprio pensamento crítico é uma tradição como
o é a hermenêutica, cuja sobrevivência depende da transmissão textual e cuja
crítica ao presente se deve, antes de tudo, à experiência de distanciamento,
suscitada no leitor pela interpretação do que foi transmitido. Por outras
palavras, Ricoeur não encara a pertença negativamente, como o faz a tradição
crítica, pois esta tende a reduzir o conceito de tradição – e também conceitos
correlatos, tais como os de preconceito e autoridade – ao de ideologia, no
sentido de misticação da consciência a serviço de formas de dominação. Pelo
contrário, ele sustenta a relevância ontológica da mesma, enfatizando que é
sempre a partir de uma tradição que o pensamento se constitui, e sempre se
baseia na autoridade do que conquistou o reconhecimento e que, com a crise
da metafísica e, por conseguinte, a impossibilidade de um saber total e único,
ele é também histórico, portanto, fruto de seu tempo e se produz com base nos
pré-conceitos, isto é, na pré-compreensão própria deste.
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Aqui, Ricoeur se aproxima de Gadamer; no entanto, seu pensamento
confere primazia ao fenômeno do distanciamento, que possibilita ao homem
novas formas de ver o mundo e novos modos de ser. Essa primazia do
distanciamento, que não é um resgate, mas uma produção de sentido,
Gadamer a reconhece, porém, segundo Ricouer, o losofo alemão em questão
não abre margem para uma relação crítica com o presente que, por sua vez, o
distanciamento do que é transmitido e interpretado suscita, ao nos abrir novas
possibilidades, novos modos de ser no mundo.
A diferença de posicionamento entre Ricoeur e Gadamer, no que
diz respeito à tarefa da hermenêutica comporta certa sutileza. Obviamente,
há, no resgate da unidade de sentido, uma produção, mas falta, segundo
Ricoeur, o devido reconhecimento de uma instância crítica na hermenêutica
por Gadamer. Este se limita a constatar a produção de sentido na fusão de
horizontes. Exatamente o oposto é feito pela tradição crítica, cujo criticismo não
abre espaço para o reconhecimento da primazia de pertença a uma tradição.
Eis o erro de ambas, o que acarreta seu antagonismo e, segundo Ricoeur,
ameaça torná-las ideológicas, no sentido de misticadoras da consciência,
da relação fundamental com a realidade. A respeito do distanciamento e do
sentido produtivo que confere à compreensão sem, contudo, tomá-lo como
instância crítica, Gadamer argumenta que o tempo não é um abismo a ser
transposto, mas o fundamento no qual a atualidade nca suas raízes, logo, o
distanciamento confere uma possibilidade positiva e produtiva ao compreender
(GADAMER, 2013, p. 393).
A primazia conferida pelo pensamento de Ricoeur ao conceito de
distanciamento faz com que a relação dialética entre o passado e o presente,
ou seja, o diálogo com a tradição que nos constitui, não seja apenas um
resgate do sentido, mas sua produção. Além disso, essa produção de sentido
possui uma dimensão crítica. É aqui que se insere o terceiro motivo de nossa
pesquisa, ou seja, a centralidade e amplitude do conceito de interpretação no
pensamento losóco de Ricoeur, visto que tanto a produção do sentido como
a sua dimensão crítica, pressupõem o fenômeno da interpretação e este, para
sustentar aqueles, deve ser pensado diferentemente do modo como o foi pela
tradição do pensamento hermenêutico.
O terceiro motivo, qual seja, a centralidade e amplitude do conceito de
interpretação no pensamento losóco de Paul Ricoeur, está fortemente ligado
ao motivo anterior, consistindo no fato de que, primeiramente, a interpretação
é fundamental para a hermenêutica e que, além disso, ela ultrapassa, no
pensamento ricoeuriano, os limites da hermenêutica como interpretação de
textos, uma vez que, como admite o próprio Ricoeur, a interpretação já ocorre
num fenômeno como o da conversação. Assim, a interpretação se estende
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O conceito dialético de interpretação na losoa hermenêutica de Paul Ricoeur
desde a simples conversação até o âmbito da leitura e da pesquisa histórica.
Eis seu alcance e sua relevância. A esse respeito, diz Ricoeur:
[...] O termo interpretação deve, pois, aplicar-se não a um caso
particular de compreensão, a das expressões escritas da vida,
mas a todo o processo que abarca a explicação e a compreensão.
A interpretação enquanto dialética de explicação e compreensão
pode, pois remontar às fases iniciais do comportamento
interpretativo já em acção na conversação. E, embora seja verdade
que só a escrita e a composição literária proporcionam um pleno
desenvolvimento desta dialética, a interpretação não deve referir-
se como uma província da compreensão. Não se dene por uma
espécie de objecto signos ‘inscritos’, no sentido mais geral do
termo –, mas por uma espécie de processo: a dinâmica da leitura
interpretativa. (RICOEUR, 2011b, p. 105)
Na obra intitulada Teoria da interpretação, que é composta de quatro
ensaios, Ricoeur analisa o processo da interpretação, estendendo-se da
linguagem oral à textual. Essa análise complementa, a nosso ver, a defesa
ricoeuriana de uma dimensão crítica no interior da hermenêutica, apresentada
na obra Hermenêutica e ideologias, pois mostra a amplitude do conceito de
interpretação, fundamental para o pensamento hermenêutico. Em sua exposição,
sustenta que esse processo se constitui dialeticamente, abrangendo a oralidade
e a escrita, o símbolo e a metáfora, a frase e a obra textual.
Primeiramente, Ricoeur examina a relação entre linguagem e
discurso, polemizando com as ideias estruturalistas a respeito dessa relação.
Segundo ele, a abordagem estruturalista é insuciente para o conhecimento
dos fenômenos da linguagem, da comunicação e da interpretação. Isso se
deve ao fato de que o estruturalismo parte da distinção entre la langue e la
parole – a primeira indicando o código ou conjunto de códigos que compõem
a língua como sistema de signos e o segundo, o uso desse código ou sistema
sob a forma de uma mensagem particular – e, com base nessa distinção,
confere primazia à sincronia da língua como código ou sistema, em detrimento
da mensagem particular, que seria efêmera e, portanto, não se enquadraria
nos requisitos necessários a seu objeto de estudo.
Ricoeur, discordando da abordagem estruturalista, argumenta que a
língua como sistema existe virtualmente. Para ele, o que confere existência
efetiva a uma língua é o seu uso
4
. Essa efetivação ocorre com o que Ricoeur
chama de dialética de evento e signicação, em que o termo discurso substitui
o termo parole e a semântica ultrapassa os limites da semiótica. Portanto, a
4 A linguagem é essencialmente temporal, por conseguinte, histórica. É no tempo, na história
que ela se produz e também se atualiza. Reduzi-la à forma da estrutura ou do sistema faz
com que o uso, por meio do qual ocorre sua produção e atualização, não seja devidamente
considerado. O uso não é desvio do código, mas o que lhe confere a duração (RICOEUR,
2011b, p. 21-22).
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linguagem só existe efetivamente como discurso. Este é produzido mediante
a dialética de evento e signicação, o primeiro termo se referindo ao caráter
transitório, temporal, do processo de comunicação e o segundo à informação
que é retida nesse processo. Trata-se aqui da linguagem como discurso, com
suas implicações ontológicas que, por sua vez, ocorrem com o processo
dialético de interpretação, cujo pleno desenvolvimento se encontra, segundo
Ricoeur, na hermenêutica enquanto interpretação textual.
A dialética entre evento e signicação diz respeito à mediação
entre o caráter passageiro, efêmero da circunstância em que se articula uma
mensagem e o caráter duradouro que é o da produção de sentido por meio
de sua transmissão. Ambos, evento e signicação, se opõem na medida em
que aquele é passageiro e o outro duradouro, mas o fenômeno da produção
de sentido depende de ambos, portanto, de sua mediação para poder existir
(RICOEUR, 2011b, p. 25). Quanto à sua preferência pelo termo discurso ao
invés do termo parole, empregado pelos estruturalistas, Ricoeur argumenta que
parole exprime apenas o aspecto residual de uma ciência da langue e que sua
preferência visa salientar a especicidade do discurso, bem como estabelecer
uma distinção entre a semiótica e a semântica que tratam, respetivamente,
do signo e da frase, duas espécies características da linguagem (RICOEUR,
2011b, p. 19). Ricoeur diferencia semântica, que é a ciência do sentido, de
semiótica, que é a ciência dos signos porque, para ele, o sentido não resulta da
mera combinação de signos, ou por outras palavras, é irredutível à sincronia
de um sistema linguístico (RICOEUR, 2011b, p. 20). O sentido se produz
na diacronia, ou seja, temporal e historicamente, envolvendo processos
integrativos da linguagem, como ocorre no âmbito da fusão de horizontes.
A signicação, na medida em que ultrapassa o evento, ou seja, o que
há de transitório no processo de comunicação, remete à relação entre fala e
escrita. Nessa relação, o fenômeno da signicação adquire um maior alcance,
pois a escrita lhe confere um maior poder de transmissão. Isso ocorre porque
a escrita liberta o processo de comunicação da relação direta entre locutor e
ouvinte, bem como da referência que, na fala, é comum a ambos. Com isso,
é estabelecida uma nova dialética. Ricoeur a chama de dialética da referência
e do sentido, na qual este último, mediante formas de inscrição, dentre as
quais se destaca a escrita, supera os limites espaço-temporais daquela.
Portanto, pode-se dizer que a escrita liberta o sentido do âmbito restrito da
referência. Nesse ponto, ca visível a relevância do distanciamento, ou seja,
da distância temporal, na superação da circunscrição referencial imediata e,
por conseguinte, na produção do sentido.
O fenômeno da inscrição remete, em Ricoeur, à teoria da iconicidade
que, por sua vez, é uma resposta à crítica platônica contra a escrita, entendida
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O conceito dialético de interpretação na losoa hermenêutica de Paul Ricoeur
como contrária à verdadeira reminiscência. Para Platão, conhecer é recordar,
o que envolve o exame crítico de tudo o que julgamos saber. Segundo ele,
como se pode depreender da leitura do mito de Thoth, presente no diálogo
intitulado Filebo (Fil. 274d-275b), a escrita tornaria a memória sua dependente,
ou seja, dependente do registro escrito, ao invés de fomentar o exame das
opiniões acerca dos entes a m de conhecer-lhes a verdade, isto é, sua ideia,
seu aspecto real. Discordando de Platão, Ricoeur argumenta que a iconicidade
é reescrita da realidade. A iconicidade, no sentido da inscrição do discurso,
da qual a escrita faz parte, é transcrição do mundo e essa transcrição não é
reduplicação, mas metamorfose (RICOEUR, 2011b, p. 62). Sobre a questão
da escrita, Ricoeur arma:
[...] Graças à escrita, o homem e o homem tem um mundo e
não apenas uma situação. Esta extensão é mais um exemplo das
implicações espirituais da substituição do suporte corporal do discurso
oral pelas marcas materiais. Da mesma maneira que o texto liberta a
sua signicação da tutela da intenção mental, liberta também a sua
referência dos limites da referência situacional. Para nós, o mundo é
o conjunto das referências abertas pelos textos [...]. É nesse sentido
que podemos falar do ‘mundo grego’: não é imaginar o que eram
as situações para os que lá viviam, mas designar as referências não
situacionais exibidas pelos relatos descritos da realidade. (RICOEUR,
2011b, p. 55)
Vimos logo acima que a produção do sentido, subjacente à teoria
da interpretação desenvolvida por Ricoeur, se constitui dialeticamente,
ultrapassando a limitação inerente à referência situacional. Essa produção,
por sua vez, adquire um alcance mais amplo nas obras literárias que nas obras
cientícas, pois sua signicação deve ser tomada sob a forma da denotação,
ou seja, literalmente, ao passo que naquelas há um excesso de sentido, devido
ao uso da conotação, processo metafórico que lhes é inerente5.
Ricoeur sustenta uma teoria da metáfora que não trata como um
simples tropo de linguagem, mas como nível em que a linguagem se atualiza
e o sentido é produzido. A metáfora, quando viva, estabelece novas relações
entre coisas diferentes e, com isso, enriquece a linguagem e cria novos
sentidos. Além disso, a metáfora se encontra a meio caminho entre o símbolo
e a alegoria.
O símbolo é, segundo Ricoeur, constituído por um sentido semântico
e outro não semântico, o primeiro pertencendo ao logos, visto que é passível
5 Cabe apontar aqui a relação de semelhança, apresentada por Ricoeur e inspirada na teoria do
lósofo analítico Max Black, entre as metáforas, constitutivas do discurso literário, e os modelos,
que desempenham uma função heurística no campo do discurso cientíco, substituindo interpre-
tações antiquadas acerca dos fenômenos estudados por interpretações mais novas e adequadas
(RICOEUR, 2011b, p. 95).
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de enunciação, o segundo remetendo ao bios6, ao âmbito das forças vitais, dos
impulsos psíquicos, da ecácia do sagrado. O símbolo se constitui no âmbito
em que a linguagem toca algo que a transcende de tal forma que ultrapassa
a esfera da simples interpretação. Ricoeur fornece como exemplo disso os
símbolos do inconsciente, segundo o discurso psicanalítico, que remetem a um
campo de energia psíquica que o esforço hermenêutico não consegue por si
interpretar, como o faria se tratando de um texto, mas demanda o processo da
análise, mais especicamente, o mecanismo de transferência para manejar as
energias psíquicas simbolizadas em formas únicas, singulares no inconsciente
de um indivíduo (RICOEUR, 2010, p. 34).
Por sua vez, a alegoria, da mesma forma que a metáfora, possui
dois sentidos semânticos, mas, ao contrário daquela, pode-se eliminar quando
sua função, normalmente didática, foi executada, enquanto a metáfora é um
elemento já consolidado pela rede de metáforas presentes em determinada
tradição cultural.
Mesmo no nível simbólico, em que a linguagem beira o indizível, há
signicação e, por conseguinte, possibilidade de interpretação. Esta ocorre
mediante o que Ricoeur chama de dialética do poder e da forma, na qual a
força ou poder expresso por intermédio do símbolo torna-se, até certo ponto,
exprimível pelas formas da linguagem, apesar de sempre restar um fundo não
semântico inacessível. Sobre isso, diz Ricoeur:
[...] Aquilo que nos símbolos pede para vir à linguagem, mas
que nunca ingressa totalmente na linguagem, é sempre algo de
poderoso, ecaz e forte. O homem é designado aqui como um
poder de existir, indirectamente discernido a partir de cima, de baixo
e lateralmente. O poder dos impulsos que assediam as nossas
fantasias, dos modos de ser imaginários que inamam a palavra
poética, e do omni-englobante, desse algo muito poderoso que
nos ameaça enquanto nos sentimos não amados, em todos esses
registos e talvez ainda noutros tem lugar a dialéctica do poder e da
forma, que garante que a linguagem apenas apreende a espuma na
superfície da vida. (RICOEUR, 2011b, p. 90)
No entanto, somente no âmbito da metáfora, mais especicamente das
obras literárias, que são produzidas, o processo de interpretação se torna pleno,
porque a metáfora possui dois sentidos semânticos, linguísticos, consistindo
num excesso de sentido que, diferentemente do símbolo, não repousa sobre um
fundo não semântico, extralinguístico. Além disso, a escrita liberta o sentido da
referência situacional, convertendo a interpretação em hermenêutica.
6 A metáfora ocorre no universo já puricado do logos, ao passo que o símbolo, na linha divisória entre
o bios e o logos. Ele dá testemunho da radicação do discurso na vida, surgindo onde a força e a forma
coincidem (RICOEUR, 2011b, p. 85).
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O conceito dialético de interpretação na losoa hermenêutica de Paul Ricoeur
A partir da obra literária, é estabelecido, da parte do leitor, aquilo que
Ricoeur chama de dialética da explicação e da compreensão que ocorre, em
linhas gerais, da seguinte forma: o leitor sempre parte de uma compreensão
conjectural, elaborando hipóteses sobre o sentido do texto, baseadas em
seus pré-conceitos, ou seja, na pré-compreensão de seu horizonte histórico-
cultural. Em seguida, no momento da explicação, sua leitura é guiada pelo
procedimento de validação, que http://oglobo.globo.com/opiniao/os-dois-lados-
14862043analisa a consistência conteudística do texto, bem como os seus
elementos estruturais. Por m, um retorno à compreensão, enriquecida
pelo momento da explicação, porém, essa nova compreensão não é ingênua,
como a primeira, mas consiste numa apropriação da obra interpretada que,
agora, é vista em sua especicidade, ou seja, a partir de sua diferença para
com o horizonte do leitor, oferecendo-lhes novos sentidos, novas formas de ver
o mundo, novos modos de ser.
Conclusão
Como vimos, a interpretação, segundo Ricoeur, possui uma
dimensão dialética e, além disso, uma dimensão crítica. Quanto à primeira,
mostramos que o processo interpretativo é composto de momentos dialéticos:
a dialética do poder e da forma, no nível simbólico; a dialética do evento e da
signicação, na produção do discurso; a dialética da referência e do sentido,
no ato da escrita; a dialética da explicação e da compreensão, no ato da leitura
e a dialética da pertença e do distanciamento, no âmbito histórico, ou seja, no
plano em que se estabelece um diálogo com a tradição que nos constitui.
No que diz respeito à dimensão crítica da interpretação, mostramos
que a dialética presente no ato da leitura e no diálogo com a tradição é produção
de sentido, produção de novas formas de ver o mundo, de novos modos de ser.
Isso possibilita uma ruptura com a vigência da situação presente, conferindo,
portanto, à hermenêutica uma dimensão crítica, o que repercute não no
campo da tradição hermenêutica, mas também no da losoa contemporânea
e, além disso, no das ciências humanas em geral. É por isso que procuramos
investigar o conceito ricoeuriano de interpretação, com seu elemento dialético,
sua instância crítica e, por conseguinte, suas implicações ontológicas.
No campo especíco da história, a contribuição da hermenêutica se
deve, sobretudo, ao conceito de interpretação. Esse conceito permite tratar os
registros históricos, mais especicamente, os textos que chegaram até nós,
fora dos limites impostos pelo pensamento metafísico ou pelo modelo das
ciências da natureza. O primeiro interpreta a história visando uma nalidade
(télos). O maior representante dessa abordagem é, como vimos, Hegel, que
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compreende o movimento da história como as sucessivas determinações do
Espírito, da totalidade da experiência humana e cujo sentido é o saber absoluto,
ou seja, a recapitulação total dos legados culturais humanos, de tal forma que
o passado nada mais tem a nos dizer. O segundo limita a relação com passado
a um modelo explicativo, de tipo causal, portanto, restrito à mera explicação
dos fatos históricos, reduzindo-os à análise de suas causas e consequências.
O pensamento hermenêutico, por intermédio do conceito de
interpretação, se contrapõe às limitações que as noções de nalidade e de
explicação impõem à história. Para ele, o passado sempre tem algo a nos
dizer e o diálogo é sempre retomado, de tal modo a suscitar novas formas de
compreensão, não somente do passado, mas da situação presente. Assim,
a compreensão do passado implica a compreensão do presente e, como
aquela só é possível a partir do horizonte de sua compreensão, ambos são
passíveis de ressignicação, algo inconcebível para os modelos teleológico
e explicativo da história.
Essa implicação metodológico-epistemológica da hermenêutica
no campo da história baseia-se no sentido ontológico do conceito de
interpretação. O homem, ser histórico, é acima de tudo, um ser interpretante.
Graças ao diálogo com horizontes de compreensão distintos do seu, como
o de outra época, ele é capaz de reinterpretar seu passado e seu presente
e, com base nisso, projetar seu futuro. Esse diálogo, característico do
processo de interpretação, possui uma dimensão crítica que lhe permite
novas possibilidades de ver e, por conseguinte, de ser no mundo, para além
das determinações discursivas vigentes em sua época. Eis as implicações
ontológicas do conceito hermenêutico de interpretação que articula as
dimensões histórica e interpretante do existir humano.
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