ROTHENBURG, Walter Claudius
*
https://orcid.org/0000-0003-3422-3846
RESUMO: Pretende-se enfocar a ambiguidade
do Direito ao proteger o humor como
liberdade de expressão e, paradoxalmente,
controlá-lo devido à sua subversividade.
Procura-se sustentar que o humor, enquanto
manifestação crítica e artística, tem um âmbito
de proteção alargado e que, em situações de
conflito com outros valores, como a
privacidade, a honra e a imagem, uma
predisposição favorável ao humor. Defende-se
que quem define o humor é seu autor, porém a
perspectiva das pessoas atingidas é relevante
e somente eles podem, em princípio, troçar de
si em caráter derrisório ou de crítica social. A
abordagem é dedutiva e normativa, com base
em pesquisa bibliográfica e de jurisprudência.
Conclui-se que, quando inferioriza e ofende, o
humor é ilícito e não deve ser aceito para
normalizar ou encobrir a discriminação. O
humor deve ser inclusivo e não
discriminatório.
PALAVRAS-CHAVE: humor; liberdade de
expressão; discriminação, discurso do ódio;
democracia.
ABSTRACT: This article aims to focus on the
ambiguity of Law in protecting humor as
freedom of speech and, paradoxically,
controlling it due to its subversiveness. The
purpose of this paper is to argue that humor,
as a critical and artistic manifestation, has a
broad scope of protection and that, in
situations of conflict with other values, such
as privacy, honor and image, there is a
favorable predisposition to the legality of
humor. We hold that humor is defined by its
author, but the perspective of the affected
people matters and only they may, in principle,
make fun of themselves for the purpose of
derision or social criticism. The approach of
this study is deductive and normative, based
on bibliographic and jurisprudential research.
In conclusion, humor is illicit when it
downplays and offends and should not be
accepted in order to normalize or cover up
discrimination. Humor should be inclusive, not
discriminatory.
KEYWORDS: humor; freedom of expression;
discrimination, hate speech; democracy
Recebido em: 19/08/2020
Aprovado em: 01/12/2020
*Livre-docente em Direitos Humanos pela Universidade de São Paulo (USP), Ribeirão Preto-SP. Professor
da Instituição Toledo de Ensino (ITE); Procurador Regional da República, Ministério Público Federal. E-
mail: wcrburg@gmail.com.
Este é um artigo de acesso livre distribuído sob licença dos termos da Creative Commons Attribution License.
“Como uma obra de arte efetiva, a comédia
ilumina o mundo de um ângulo distinto, e o faz
de uma maneira que nenhuma outra prática
social pode fazer.”
(EAGLETON, 2020, p. 34).
É possível proteger as manifestações humorísticas e reconhecer seus limites,
especialmente quando o humor inferioriza e ofende? Essa abordagem revela a
ambiguidade da relação do Direito com o humor, visto que este é assegurado como
liberdade de expressão, embora o Direito tenda a controlar a tendencial insubordinação
que caracteriza o humor.
A hipótese apresentada neste texto baseia-se nas diversas caracterizações do
humor (como insubordinação, incongruidade, alívio, superioridade, agressividade) e
busca situar juridicamente as manifestações humorísticas, frequentemente expressas
como formas de crítica e/ou de arte. O humor é uma liberdade de expressão forte, com
um âmbito de proteção alargado, e conhece, portanto, franquias. Significa que uma
presunção de licitude (permissibilidade) nas manifestações de humor, mas que não é
absoluta. O Direito deve oferecer contornos (limites) a essa modalidade de liberdade de
expressão, bem como estabelecer critérios para balizar as restrições.
O itinerário do desenvolvimento deste artigo conduz à reflexão acerca da
qualificação de uma manifestação como humorística e da relevância da perspectiva de
quem é atingido pelo humor, pois a inferiorização e a ofensa testam os limites da
liberdade de expressão em uma sociedade democrática e multicultural.
O estudo é especulativo e utiliza o método dedutivo a partir de uma pesquisa
predominantemente bibliográfica, mas que, por consistir em um enfoque jurídico,
envolve também uma análise da legislação e da jurisprudência relacionadas ao direito
fundamental de manifestação do pensamento e seus limites.
O humor como subversão
Este tópico inicial aborda uma ambiguidade presente no Direito: a tentativa de
capturar como jurídico aquilo que se configura como avesso mas nem sempre
contrário ao Direito. O humor tem relação com essa ambiguidade.
A pretensão totalizante do Direito em tudo querer qualificar sob o prisma jurídico
(“tudo o que não é proibido, é permitido”) encontra no humor um desafio ou talvez
será uma insubordinação? Ainda assim, o humor consegue ser situado como objeto de
apreciação do Direito (CAPELOTTI, 2016, p. 74).
Num grupo de estudos sobre o Direito e sua relação com as manifestações
artísticas, instituído por curto período, a integrante mais jovem, aluna de graduação,
abordou as pichações, uma forma de expressão artística gráfica que eventualmente se
constitui pela subversão. Ela entrevistou um pichador (sob a garantia do anonimato) a
quem não interessava expressar-se autorizadamente. Suas pichações haveriam de ser na
calada da madrugada, em um muro ou parede não franqueado, sob o risco de a polícia
aparecer. Interessante exemplo a respeito (com o trocadilho deliberado) dos limites da
regulação jurídica de uma manifestação que somente se reconhece como transgressão. A
proteção da liberdade de expressão parece implicar, paradoxalmente, a ilicitude. O jurista
esboça um riso nervoso, de desconforto.
O Direito tenta neutralizar a subversão das grafias murais enquadrando-as na
versão bem comportada do grafite. Quando a manifestação passa a ser autorizada (o
muro ou parede são oferecidos ao artista) e até incentivada (o Poder Público fornece
material e remuneração), ela deixa de ser pichação para passar a ser identificada como
grafite e pode, por isso, perder a graça.
Voltando àquele grupo de estudos: um integrante mais experiente, pós-graduando
e profissional do Direito, propôs-se a abordar a “ars erotica”, uma concepção das
práticas sexuais como manifestações artísticas relacionadas à experiência do prazer
sensorial (SHUSTERMAN, 2007). Ele tentava resgatar uma perspectiva antiga, presente
em tradicionais culturas orientais. O viés cômico ficou por conta da disposição do
pesquisador em realizar pesquisa empírica... Também aqui a intervenção do Direito é
ambígua: tutela a privacidade, mas defende a moralidade; protege a liberdade de
expressão, mas costumava ser rigoroso com a pornografia.
O humor que, como as pichações, pode apresentar-se como uma modalidade de
manifestação artística, que concretiza a liberdade de expressão (BARCELÓ I
SERRAMALERA, 2004, p. 570) frequentemente retira sua motivação e seu sentido da
transgressão. Vemo-nos confrontados com o paradoxo de uma liberdade assegurada
pelo Direito (essa instância social controladora por excelência) e que tende a afrontá-lo
em sua tendencial insubmissão. Afinal, uma das explicações mais aceitas para o humor
(em especial para o riso) vem da psicanálise e sustenta que o humor é um alívio
temporário de nossas repressões. Referindo-se a Freud, Terry Eagleton afirma: “[...] a
piada é um tabefe insolente no superego.”, sendo a “[...] postura solene em relação ao
mundo que o humor nos permite descartar por um instante.” (EAGLETON, 2020, p. 20-
23)
O humor pode ser uma insubordinação à autoridade e também pode ser uma
subversão da coerência, ou seja, a insubordinação manifesta-se então em relação à razão
e à lógica:
Passamos dos rigores do cognitivo para um estado no qual podemos abrir mão
da lógica da causa e efeito, ou da lei da não contradição, e saborear o ridículo ou
irreconciliável por si mesmos. Já não estamos limitados pelo axioma de que toda
coisa é ela mesma e o outra, e a liberação dessa restrição pode adquirir a
forma de riso. (EAGLETON, 2020, p. 68-69).
Adilson Moreira cita Noël Carroll ao tratar da incongruidade produtora do humor,
que “[...] ocorre em função de uma violação de nossos sentidos, sejam nossos sentidos
sensoriais, sejam nossos sentidos cognitivos, nossos julgamentos estéticos ou nosso
senso de polidez.” (MOREIRA, 2019, p. 77)
Sendo o Direito um reino de autoridade e de pretensão de coerência (ALEXY,
2009, p. 43-47) trata, mais amplamente, do “argumento da correção”, não surpreende o
papel coercitivo que ele tenha exercido em relação ao humor. A propósito, Eagleton
esclarece que “[a] mais antiga regra monástica que conhecemos proíbe as piadas [...]”
(EAGLETON, 2020, p. 81-83) e que:
A comédia representa uma ameaça ao poder soberano não apenas por causa de
sua natureza anárquica, mas porque ela não leva a sério questões tão
momentosas quanto o sofrimento e a morte, assim diminuindo a força de
algumas das sanções judiciais que as classes governantes tendem a esconder na
manga. Ela pode gerar uma despreocupação que afrouxa o punho da autoridade.
(EAGLETON, 2020, p. 81-83).
Provavelmente por causa de seu potencial de irreverência, desestabilizador da
ordem e da rigidez, o humor tenha conhecido a indisposição de formas autoritárias,
como diversas religiões, em especial o cristianismo desde o período medieval e na época
das reformas protestantes. Sustentava-se que Jesus Cristo nunca teria rido e o riso seria
“[...] um fenômeno diabólico, ligado à decadência humana.” (MINOIS, 2003, p. 133) Ainda
que a Igreja (cristã) tenha se reconciliado com o riso na contemporaneidade (MINOIS,
2003, p. 577), ficou uma tradicional antipatia das autoridades em relação ao humor. A
repressão oficial não hesitou em valer-se das formas jurídicas. O paradoxo aparece de
novo, vez que o mesmo Direito que persegue o humor insubmisso é aquele que deve
garantir a liberdade de expressão.
As franquias do humor (limites do direito de manifestação do pensamento)
Tal como a pichação, o humor pode ser uma manifestação crítica e/ou artística
subversiva, tanto em relação aos padrões morais, quanto aos jurídicos. O humor
escancara, debocha, ofende, testa os limites da liberdade de expressão. Justamente
porque muitas vezes se nutre da contestação, o humor deve gozar de uma franquia
maior. A contestação suscita a reflexão; afirma Minois que o riso caracteriza-se como
“[...] um instrumento de conhecimento, que desmascara o erro e a mentira [...]” (MINOIS,
2003, p. 630).
Como liberdade de criação cultural, o humor exige “[...] um tratamento especial,
que se reconduz a uma maior liberdade do que a que está implícita no direito geral de
expressão do pensamento.” (CANOTILHO; MOREIRA, 2007, p. 621) Em linguagem
técnica, o âmbito de proteção do direito de expressão é aqui particularmente alargado, à
semelhança da liberdade religiosa, da propaganda eleitoral e da publicidade comercial,
por exemplo. Examinemos brevemente essas três franquias.
Com efeito, o sacerdote pode fazer afirmações que soariam discriminatórias
ordinariamente. A negativa de realizar casamentos homoafetivos é uma ilustração. Isso é
reconhecido no Canadá, onde a mesma legislação estabelece o casamento como uma
união entre duas pessoas (independentemente do gênero) e prevê expressamente que
“[...] autoridades de grupos religiosos são livres para recusar a celebração de casamentos
que não estejam de acordo com suas crenças religiosas.” (Civil Marriage Act, 2005) No
Brasil, após a importante decisão do Supremo Tribunal Federal, de admitir a união
familiar de casais homoafetivos, houve a impressionante decisão que estabeleceu a
criminalização da homotransfobia (Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão
26/DF e Mandado de Injunção 4.733/DF; VECCHIATTI, 2019, p. 435) e consignou
expressamente:
A repressão penal à prática da homotransfobia não alcança nem restringe ou
limita o exercício da liberdade religiosa, qualquer que seja a denominação
confessional professada, a cujos fiéis e ministros (sacerdotes, pastores, rabinos,
mulás ou clérigos muçulmanos e líderes ou celebrantes das religiões afro-
brasileiras, entre outros) é assegurado o direito de pregar e de divulgar,
livremente, pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, o seu
pensamento e de externar suas convicções de acordo com o que se contiver em
seus livros e códigos sagrados, bem assim o de ensinar segundo sua orientação
doutrinária e/ou teológica, podendo buscar e conquistar prosélitos e praticar os
atos de culto e respectiva liturgia, independentemente do espaço, público ou
privado, de sua atuação individual ou coletiva, desde que tais manifestações não
configurem discurso de ódio, assim entendidas aquelas exteriorizações que
incitem a discriminação, a hostilidade ou a violência contra pessoas em razão de
sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero. (BRASIL. Supremo
Tribunal Federal, 2019).
Nos Estados Unidos, a Suprema Corte reconheceu o direito de um confeiteiro
recusar a encomenda de um bolo de casamento por um casal homossexual, sob o duplo
fundamento da liberdade de crença religiosa e da liberdade de manifestação artística
(Masterpiece Cakeshop, Ltd. v. Colorado Civil Rights Commission, 2018). Esta decisão
estendeu indevidamente pretensas franquias da liberdade religiosa e da liberdade de
expressão, acobertando um episódio de discriminação no âmbito comercial, o que não é
nada engraçado.
Candidatos em campanha eleitoral podem fazer afirmações e promessas que não
precisam ser comprovadas ou cumpridas. Algum arroubo é tolerado. A livre
manifestação das diversas correntes políticas, fundamental para uma democracia e em
uma democracia, deve ser protegida e estende-se ao desempenho dos mandatos,
conforme a tradicional cláusula de imunidade material (inviolabilidade) disposta no art.
53 da Constituição brasileira: “Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e
penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos.” Talvez por isso a veia
farsesca de muitos políticos.
Entretanto vivemos justamente um momento em que manifestações de políticos
extrapolam essas já generosas franquias e descambam para o abuso eleitoral e até para o
discurso do ódio, que nenhuma relação pode ter, licitamente, com o exercício dos
mandatos ou com a campanha política. Afinal, os partidos políticos têm de respeitar o
regime democrático e os direitos fundamentais da pessoa humana, conforme estabelece
expressamente o art. 17 da Constituição (MEZZAROBA, 2018, p. 756-757).
Contudo, é certo que, no campo da política, há maior liberdade de expressão. Uma
caricatura disso apresentou-se em uma peça de teatro do final do século passado
(“S.O.S. Brasil”), cujo tema nada comum para uma encenação era o sistema público
de saúde brasileiro. A personagem principal era um parlamentar demagogo e corrupto,
médico de formação, que empolgava o eleitorado com uma retórica redundante cujo
bordão era “um povo sem saúde... é um povo doente” (SÁ, 1999).
Existe um caso representativo do âmbito alargado do direito de manifestação de
humor justamente na política: trata-se da decisão do Supremo Tribunal Federal brasileiro
que invalidou dispositivos da legislação eleitoral que pretendiam proibir as emissoras de
rádio e televisão de “usar trucagem, montagem ou outro recurso de áudio ou vídeo que,
de qualquer forma, degradem ou ridicularizem candidato, partido ou coligação, ou
produzir ou veicular programa com esse efeito;” bem como de “veicular propaganda
política ou difundir opinião favorável ou contrária a candidato, partido, coligação, a seus
órgãos ou representantes;” (Lei 9.504/1997, art. 45, II e III). O tribunal assentou que a
liberdade de expressão compreende não apenas “[...] as opiniões supostamente
verdadeiras, admiráveis ou convencionais, mas também aquelas que são duvidosas,
exageradas, condenáveis, satíricas, humorísticas, bem como as não compartilhadas pelas
maiorias.”
Os limites do direito de manifestação são tradicionalmente alargados para a
publicidade comercial e suas mensagens de convencimento. O melhor produto de
limpeza, que tira qualquer mancha (inclusive da consciência), pode não ser tão bom nem
tão eficaz assim. Embora haja parâmetros jurídicos de proteção do consumidor, da
saúde, do meio ambiente, das crianças etc., pode-se dizer coisas na publicidade
comercial que não seriam admitidas em outras linguagens. A apresentação dos produtos
com o objetivo de vendê-los e a concorrência de mercado autorizam uma liberdade de
expressão ampliada.
E assim é com as manifestações críticas e artísticas, em que a liberdade de
expressão é mais intensa. Veja-se a ênfase dada pelo texto da Constituição brasileira,
que consagra de maneira geral: “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o
anonimato;” (art. 5º, IV) e consagra de maneira específica, mais adiante: “é livre a
expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação,
independentemente de censura ou licença;” (art. 5º, IX). Por conseguinte, um nu que
talvez violasse códigos morais encampados pelo Direito não poderia ser considerado
ilícito numa performance, por exemplo.
A propósito, instaurou-se uma polêmica há poucos anos quando um conhecido
museu de São Paulo apresentou um homem nu, deitado inerte, deixando que as pessoas o
tocassem e mudassem a posição de seus braços e pernas, sem conotação sexual. Uma
mãe viu essa exposição performática com sua filha criança, que interagiu e tocou no
artista. Houve quem gente moralista conservadora se indignasse e até ameaçasse a
mãe com a destituição da guarda da filha! A instância repressora do Direito foi acionada,
mas felizmente sucumbiu à liberdade de expressão artística.
Pouco tempo antes, na França, tinha havido uma campanha pública, com cartazes
afixados nas ruas e no transporte público, convidando as crianças aos museus para
compreender a representação da nudez nas artes: Leve seus filhos para ver pessoas
completamente nuas.(TERTO, 2017, tradução nossa e grifo no original).
1
Comparando-
se nossa experiência com a francesa, verifica-se no episódio brasileiro a estreiteza da
perspectiva que não consegue enxergar a nudez de boa-fé e, prisioneira dessa miopia,
pretende impor uma visão de mundo ofuscada pela maldade.
A indicação de âmbitos em que a liberdade de expressão é mais forte, mais
protegida pelo Direito sendo que o humor se inclui aponta justamente para a
presumida licitude dessa modalidade de manifestação do pensamento.
1
[No original] Emmenez vos enfants voir des gens tout nus.” (TERTO, 2017)
O humor é lícito em princípio
Flertando com a subversão, o humor projeta-se na nue margem da tolerância e
arrasta para essa zona de incerteza também o Direito. Não existe uma fórmula canônica
que estabeleça de antemão a fronteira da licitude do humor. A variedade das situações e
o contexto em que elas se apresentam serão imprescindíveis para avaliar essa licitude.
Uma das mais aceitas explicações para o humor, como vimos, enxerga na
dissonância a própria constituição do humor:[...] o humor surge do impacto entre
aspectos incongruentes: uma súbita mudança de perspectiva, um deslize inesperado do
significado, uma atraente dissonância ou discrepância, uma momentânea
desfamiliarização do familiar e assim por diante.” (EAGLETON, 2020, p. 61) Essa
incongruência é referida por Capelotti como “[...] a confusão mental ocasionada por
ideias incompatíveis entre si apresentadas conjuntamente.” (CAPELOTTI, 2016, p. 43)
A alternância que provoca o humor pode variar do conforme ao contrário ao
Direito. Mas é a licitude que se deve presumir, obviamente. Como modalidade da
liberdade de expressão, o humor precisa estar protegido pelo Direito, e na mais
importante das categorias: enquanto direito fundamental. Afinal, “[n]ormas nem sempre
são mecanismos sinistramente coercitivos.” (EAGLETON, 2020, p. 112), como diz
Eagleton.
Um esclarecimento importante dado pela teoria dos direitos fundamentais está no
princípio da não funcionalização. Ao afirmar um direito fundamental, o papel do Direito é
sobretudo de dizer o que é um direito fundamental e não para que ele serve. A ideia é de
conferir autonomia ao direito fundamental, ou seja, respeitar o que o titular do direito
fundamental pretende fazer com ele, sem que alguma instância heterônoma estabeleça
para que propósito o direito fundamental pode ser exercido.
No campo das liberdades comunicacionais, isso é particularmente relevante, pois
as pessoas não podem ver seu direito de expressão condicionado por alguma finalidade
determinada, como um propósito moral. Portanto, também devem ser protegidas “formas
teoricamente ‘menos elevadas’ de discurso” (CAPELOTTI, 2016, p. 77), como lembra João
Paulo Capelotti. Nessa medida, não se pode exigir do humor que seja “construtivo”. Não
há lugar apenas para o humor “correto”, “bem intencionado”, inofensivo.
Essa alforria em contraste com o “humor de bem” é apontada por Georges Minois
como uma diferença da contemporaneidade em relação ao medievo, pois naquela época
o riso “[...] nunca [era] um fim em si mesmo nem divertimento, [era] sempre instrumento
que visa[va] a um fim elevado.” (MINOIS, 2003, p. 222) Hoje, ao contrário, a liberdade se
exerce com relativa liberdade (permitido seja o trocadilho) quanto ao fim: produz-se
humor sem necessidade de justificação. Tem-se o direito de fazer humor e isso basta.
Desde que, é claro, não se exorbite a ponto de violar com alguma gravidade os direitos
alheios. Mas isso não depende tanto da finalidade, pois eventualmente posso querer
atingir alguém e mesmo assim meu humor deve ser tolerado; por outro lado, posso,
involuntariamente, produzir um humor intolerável.
Para cada um de nós e para os diferentes contextos culturais, o humor tem uma
configuração e uma importância distintas. Essa óbvia constatação antropológica é
afirmada por Laraia: Todos os homens riem, mas o fazem de maneira diferente por
motivos diversos.” (LARAIA, 2009, p. 69). No mundo ocidental atual, o humor está muito
presente e desempenha um papel fundamental. Minois (2003, p. 559) aponta para uma
universalização que se traduz na “banalização e mediatização” do riso, e que, num
mundo de desencantos, o humor protege contra a angústia existencial da
contemporaneidade. Não se pode exigir do humor que preste um serviço mais relevante.
Valorizado e difundido, o humor tem em seu criador o titular primeiro do
respectivo direito. Terá também as suas vítimas.
Quem diz o que é humor (o titular da liberdade de expressão)
Quem define o caráter humorístico de uma manifestação como, aliás, a
qualidade artística em geral é o próprio humorista. Trata-se também aqui, obviamente,
de uma mensagem, que só constitui comunicação à medida que reúne o remetente ao
destinatário. Porém, em princípio, é o humorista que define sua pretensão como humor.
Se vai conseguir ser engraçado é outra história. Ao público resta divertir-se ou não. Em
termos jurídicos, Peter Häberle enfatiza que “[...] é impossível elaborar uma
interpretação do conceito de liberdade artística sem levar em conta o que os próprios
poetas e outros artistas definiram como arte e liberdade artística.” (HÄBERLE; LÓPEZ
BOFILL, 2017, p. 17) Trata-se de um aspecto reflexivo da autodeterminação dos sujeitos:
“[...] a expressão do pensamento é um ponto-chave do exercício de autodeterminação
das pessoas [...]” (MOREIRA, 2019, p. 162).
Mas a caracterização do humor sob a perspectiva do humorista não é absoluta.
Certamente ninguém saberá, heteronomamente, impor ao humorista que aquilo que ele
faz não é humor, pois ele tem uma reserva íntima e insuprimível (ainda que ele ache
graça). Todavia, será possível estabelecer que os limites da licitude da manifestação
humorística foram ultrapassados. O Direito prevê desde indenizações até crimes contra
a honra ou de preconceito. Não se nega então o caráter humorístico da manifestação,
mesmo que ninguém ache engraçado, porém se pune o humor por agredir outros bens
jurídicos também protegidos. A leitura a fazer-se, no entanto, é justamente de não se
presumir a ilicitude, pois o âmbito de abrangência da manifestação de humor é amplo e o
humor é tendencialmente transgressor. Como pontua Eagleton, “a palavra humor’
originalmente significa alguém cujo comportamento diverge da norma” (EAGLETON,
2020, p. 71).
Objetivamente, para verificar os contornos da liberdade de expressão
humorística, menos para definir o que é humor e mais para avaliar o caráter ofensivo da
manifestação pretensamente humorística, importa consultar a perspectiva das vítimas.
Embora todos devamos suportar a jocosidade alheia em certa medida, seu potencial
ofensivo não deve ser desprezado e um critério decisivo é a recepção por parte dos
destinatários. É isso que releva, por exemplo, quando o humor se caracteriza como
manifestação de superioridade: não basta que o autor da manifestação sinta-se superior;
é preciso que ele inferiorize e ultraje. Assim, o humor racista, conforme Adilson Moreira,
apresenta-se como “[...] uma ação deliberada que procura afirmar a noção de que
minorias raciais são pessoas inerentemente inferiores.” (MOREIRA, 2019, p. 165) Uma
piada racista pode não estar “[...] simplesmente brincando com um exagero, mas
sugerindo que a violência racista é algo divertido, o que não tem vez numa sociedade
moral.” (CAPELOTTI, 2016, p. 51)
Normalmente, o humor ofensivo tem como autor um sujeito prepotente, aquele
que se diverte a partir de uma posição bem estabelecida em termos de etnia, gênero e
orientação sexual, condições materiais. Em regra, é um homem branco heterossexual,
que se autorrepresenta como “[...] o paradigma do sujeito de direito, a encarnação do
sujeito universal.”, e assim (des)qualifica excluindo o “outro” (VAZ, 2020). Esse
sujeito risonho acha graça de tudo, a menos que sinta ameaçada sua hegemonia.
Pessoas representadas por estereótipos depreciativos são vítimas de preconceito.
Em princípio, elas e somente elas podem falar de si e dos grupos a que pertençam
em tons que não são autorizados às demais pessoas. Figura-se uma interessante
projeção do “lugar de fala” como espaço de legitimidade de quem pertence a e
representa determinado grupo ou situação: se quem faz o humor eventualmente troça de
si mesmo, há uma autoderrisão, quem sabe uma crítica social por contraste, e muito
excepcionalmente se caracteriza uma ofensa percebida por pessoas do próprio grupo.
É possível que o tom humorístico afaste o caráter ofensivo de uma manifestação
do pensamento. Veja-se uma ilustração a respeito da utilização de símbolos nazistas, que
é proibida em diversos países (no Brasil, existe a Lei 7.716/1989, art. 20, § 1º). E
justamente na Alemanha, em 1990, o Tribunal Constitucional federal considerou
permitidas “[...] camisetas satíricas (e sarcásticas) que traziam a suástica e Hitler
brincando de ioiô [...]”, como “[...] legítima expressão artística [...]”, tendo em vista “[...]
que o espírito de derrisão das camisetas era claro em ridicularizar o projeto
megalomaníaco de Hitler.” (CAPELOTTI, 2016, p. 114) Aqui a sociedade em geral zomba de
seu passado ao invés de agredir suas vítimas.
Outras vezes, no entanto, o humor pretende ocultar e neutralizar o preconceito,
oferecendo um pretexto para autorizar a discriminação: “O humor hostil encobre nossa
agressividade em relação ao outro, o que é uma forma de superar inibições sociais que
condenam expressões públicas de desprezo e ódio.” (MOREIRA, 2019, p. 74).
Quando o humor ofende
Como quase toda forma de expressão, o humor é capaz de causar ofensa às
pessoas, seja por deliberação de seu autor, seja involuntariamente. Uma explicação
atávica para o riso que pode ser generalizada ao humor associa-o à agressividade,
pois o riso “[...] nos faz mostrar os dentes da mesma forma que um animal que se sente
ameaçado e se prepara para se defender.” A agressividade não é uma qualidade
necessariamente ruim, mas, ao contrário, indispensável ao ser humano, “[...] um instinto
vital, muito positivo, voltado para a proteção da vida [...]”, segundo a teoria de Konrad
Lorenz (apud Minois, 2003, p. 617). O que ressalta dessa versão de origem, contudo, é o
potencial ofensivo do humor, com o qual o Direito se preocupa.
Se a liberdade de expressão é protegida enquanto um direito fundamental,
também o é “a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas”, conforme
dispõe a Constituição brasileira no art. 5º, X. Esses explicitamente, além de outros
valores constitucionais como a proteção das crianças, adolescente e jovens ,
representam limites à liberdade de expressão (BARCE I SERRAMALERA, 2004, p.
585).
Em situações de conflito com outros bens jurídicos, especialmente a honra e a
imagem das pessoas atingidas, haverá uma predisposição favorável ao humor, posição
preferencial relativa de que desfrutam as liberdades comunicacionais em geral num
contexto democrático. A Constituição brasileira, inclusive por razões históricas, ressalta
que, na seara da comunicação social, “[é] vedada toda e qualquer censura de natureza
política, ideológica e artística” (art. 220, § 2º). Não se ignora, porém, que nem sempre a
preferência está do lado do humor; ela pode contemplar outros bens constitucionais,
como é o caso da proteção às crianças, adolescentes e jovens, cujos direitos devem ser
assegurados di-lo a Constituição no art. 227 com “absoluta prioridade”.
Portanto, o tratamento a ser dado a uma questão de humor “agressivo” será
diverso daquele que envolve uma informação, por exemplo: esta tem um cunho mais
objetivo e uma expectativa de retratar “fatos”, o que a constrange juridicamente, ao
passo que uma manifestação humorística é mais subjetiva, mais opinativa, mais criativa,
mais livre enfim.
A piada do anão, do preto, do bichinha, do nordestino etc. está amparada, em
princípio, pelo direito de manifestação do pensamento, quem sabe até de crítica social
“às avessas”. Talvez seja um ônus da liberdade de expressão no ambiente democrático
(TRIBE; MATZ, 2014, p. 152). Mas não é um cheque em branco. Serão testados os limites.
São piadas cada vez mais sem graça e cada vez menos suportadas do ponto de
vista moral (e jurídico). Steven Pinker, com seu otimismo humanista, aponta que, nos
Estados Unidos da América, o preconceito diminui: “Na minha adolescência, piadas de
polonês pateta, loira burra e bicha desmunhecada eram comuns na televisão e nos
quadrinhos de jornal. Hoje são tabu na grande mídia.” Conclui o pesquisador:[...] não
os americanos têm mais vergonha de confessar um preconceito do que antes, mas
também que, no conforto de sua privacidade, não acham mais tanta graça.” (PINKER,
2018, p. 264)
Não podemos ignorar que o humor tende a (re)produzir os preconceitos, manter
estereótipos, inferiorizar. “Práticas discriminatórias acontecem dentro de uma cultura
social que permite a construção e circulação de estigmas negativos.” (MOREIRA, 2017, p.
196), como esclarece Adilson Moreira. Com efeito, um dos modos mais perversos de
manter a discriminação é torná-la corrente, imperceptível, normal: uma modalidade
engraçadinha da banalidade do mal. O racismo recreativo, no dizer de Moreira, “[...] está
integrado à moralidade liberal contemporânea [...]” (MOREIRA, 2019, p. 152).
O humor funciona então como instrumento de opressão e se vale de um suposto
essencialismo para ridicularizar. Está presente aqui a explicação do riso a partir da
superioridade de quem ri e da inferiorização daquele de quem se ri: o riso “[...] busca a
gratificação psicológica dos membros do grupo racial dominante por meio da afirmação
da suposta inferioridade de minorias raciais.” (MOREIRA, 2019, p. 150)
O antídoto pós-moderno pode ser tirado da reflexão de Morrison a propósito do
feminismo (mas que vale para diversas outras formas de preconceito), ao sustentar que
as mulheres “[...] abandonem qualquer pretensa entidade e homogeneidade ao darem sua
resposta à ‘questão da mulher’ e se dediquem a analisar e mediar uma multiplicidade de
relações de subordinação, transformando a opressão numa afirmação das possibilidades
e oportunidades da vida.” (MORRISON, 2006, p. 612)
Esse humor ofensivo e discriminatório produz agressões mais ou menos
evidentes, inclusive “microagressões” (MOREIRA, 2017, p. 159) nada irrelevantes. Já
desde os gregos antigos ocorre uma “associação do riso com a agressão verbal, com as
forças obscuras da vida, do caos, da subversão” (MINOIS, 2003, p. 37), afirma Minois. Tal
humor é capaz de provocar discriminações eventualmente imperceptíveis ou
insignificantes para as pessoas e grupos que não fazem parte dos discriminados. Moreira
aponta que o humor “não é uma mera reação reflexa, mas sim produto do contexto
cultural no qual as pessoas vivem” e, portanto, está impregnado dos mesmos “valores”,
estereótipos, subalternizações: “Ele manifesta a hostilidade por pessoas que possuem
status social inferior.” (MOREIRA, 2019, p. 29-30) Quando inferioriza, quando agride, o
humor discriminatório deve ser encarado pelo Direito como ilícito: uma manifestação
intolerável de “discriminação recreativa”. Nesses episódios, todavia, a retórica do humor
chega a ser invocada, paradoxalmente, como estratégia de defesa, que “[...] permite que
brancos expressem hostilidade racial, sendo que eles estão certos que tal
comportamento não terá consequências legais.” (MOREIRA, 2019, p. 154); isso vale para
outras formas de discriminação.
Num plano mais individual (ainda que com possíveis repercussões ao grupo e à
sociedade), o humor extrapola seus limites quando ofende insuportavelmente a honra e a
imagem. Daniel Sarmento anota que, “[e]mbora manifestações agressivas ou irônicas
também estejam compreendias no âmbito de proteção da liberdade de expressão, essas
costumam impor um dano maior ao direito à honra, nem sempre constitucionalmente
justificável” (SARMENTO, 2018, p. 266).
Parâmetros muito rígidos e sensibilidades extremadas tendem a restringir em
demasia o âmbito de proteção de um direito que apresenta um âmbito de proteção
tendencialmente alargado. Porém os limites são traçados de acordo com a mentalidade
de cada sociedade em seu tempo. Será preciso fazer uma avaliação mais casuística das
diversas situações, sendo que critérios como a intensidade, a forma, o veículo e a
vulnerabilidade da vítima sejam levados em consideração. As intervenções repressivas
do Direito não devem ser excluídas quando o humor atingir pessoas e grupos de modo
insuportável.
Certa feita, o Conselho Regional de Enfermagem ingressou com uma ação judicial
para impedir a encenação de uma peça teatral em que uma famosa beldade encarnava
personagens femininas sensuais e erotizadas representando fetiches dos homens: a
professora, a empregada doméstica, a enfermeira... O conselho profissional insurgiu-se
contra a apresentação e reprodução sexista da profissional de enfermagem. A medida
judicial não prosperou. Um argumento em favor da liberdade de expressão sustenta que
se tratava de uma manifestação artística retratando a sociedade de modo caricato. É bem
provável que o público masculino que eventualmente tenha assistido à peça achasse
mais graça do que o feminino. Deveria o Direito intervir aqui? Talvez (ainda) não, mas se
a peça fizesse troça de pessoas com deficiência...
O escárnio que ofende as pessoas corresponde ao humor como manifestação de
superioridade, com a consequente inferiorização (“ridicularização”) do outro. Como
adverte Eagleton, “[...] não dúvida de que grande parte do humor envolve insulto e
abuso.” (EAGLETON, 2020, p. 55) Nem sempre, no entanto, a pretensão de
superioridade contida no humor é aviltante. Pode ela ser apropriada pelas vítimas da
opressão e servir como mecanismo de resistência. Capelotti lembra que sobreviventes de
campos de concentração atribuíam “[...] sua sobrevivência (sobretudo do ponto de vista
psicológico) ao bom humor, exercido, corriqueiramente, de forma cáustica, como no
apelido ‘Senhor Dreck’ (isto é, ‘Senhor Merda’) dado ao guarda incumbido de vigiar as
latrinas.” (CAPELOTTI, 2016, p. 29) Em termos mais abstratos, Axel Honneth sustenta:
“[...] a experiência de desrespeito pode tornar-se uma fonte de motivação para ações de
resistência política.” (HONNETH, 2009, p. 224)
Com efeito, o humor pode revelar não apenas seu potencial de resistência, mas de
crítica, e pode então significar um modo de empoderamento. “A comédia pode ser menos
um exercício de poder que sua contestação. Ela pode ser um campo de conflito
simbólico, e não simplesmente o riso zombeteiro dos poderosos.” (EAGLETON, 2020, p.
42) assevera Eagleton.
Retomando a perspectiva inicial do humor como subversão, veja-se este exemplo
às avessas, em que ressalta a falta de sensibilidade do regime político-militar que vigeu
no Brasil a partir do golpe de Estado de 1964. alguns anos, houve uma exposição de
manifestações artísticas que foram objeto de censura na época da ditadura. Constava um
desenho de uma história em quadrinhos infantil da Turma da Mônica, criada por
Maurício de Souza, no qual se via a personagem Cebolinha, que tomava banho de
chuveiro e, na imagem não muito nítida intermediada pelo vidro do box, estavam
reproduzidas ingenuamente as nádegas do garoto. Dificilmente a mente mais pervertida
enxergaria alguma maldade. Pois o censor de então circulou as nádegas do Cebolinha
com uma caneta de tinta vermelha e vetou a publicação!
Censores talvez não sejam muito dados às artes. Passado o período tenebroso da
ditadura militar, arquivos secretos foram localizados e tornados públicos. Em um deles
encontrou-se uma antiga ficha a respeito de Monteiro Lobato, escritor que protestou, à
sua época, contra a política do Presidente Getúlio Vargas, em especial com a campanha
“O petróleo é nosso”, de combate à exploração desse mineral por empresas estrangeiras.
Como se sabe, Monteiro Lobato chegou a ser preso. Mas, muito curiosamente, também
foi encontrada outra ficha, com informações a respeito de Emília sim, a própria, uma
alegre boneca de pano falante criada pelo escritor! e sua possível subversividade... Ao
final da ficha, havia uma anotação a lápis: “endereço não localizado”. Eis que o censor
não sabia de algo que nós todos conhecemos: “que Emília pode ser encontrada a
qualquer tempo no Sítio do Pica-Pau Amarelo” (ROTHENBURG, 1998, p. 388;
infelizmente não foi possível recuperar a fonte dessa história).
Sim, o humor pode ser perverso e ofensivo. Importa muito avaliar quem ele
ofende. Limites precisam ser estabelecidos para que o humor não sirva impunemente à
discriminação. Limites precisam ser afrouxados quando o humor funciona como crítica à
opressão, em que os poderosos se sentem ofendidos. O espaço do humor há de ser
democrático.
Humor e democracia
A livre convivência de diferentes perspectivas caracteriza a democracia
contemporânea (um “pluralismo igualitarista”: ALVES, 2013, p. 127). A imposição de
determinada perspectiva cultural exclusiva é antitética à democracia (BAUMAN, 2013, p.
96-97, em relação às artes) e a prevalência da perspectiva majoritária é francamente
insuficiente para caracterizar a democracia contemporânea. Portanto, a convivência de
perspectivas diversas (KYMLICKA, 1996, p. 92) e mesmo a concorrência intensa entre
perspectivas tornam-se indispensáveis ao padrão democrático.
Nesse contexto, o direito de manifestação é “a força vital da democracia” (TRIBE;
MATZ, 2014, p. 122). E o humor, como manifestação artística e de crítica, é indispensável
à tolerância e à diversidade em que se baseia uma democracia multicultural
contemporânea. Sendo assim, o humor não é apenas uma válvula de escape que as
democracias precisam autorizar como se um mal necessário fosse para conter as
dissidências em níveis suportáveis. O humor é uma expressão que precisa ser cultivada
como um bem necessário para possibilitar que as diferentes perspectivas se
apresentem. “A ordem social mais durável diz Eagleton é aquela segura o bastante
para não apenas tolerar os desvios, mas encora-los ativamente.” (EAGLETON, 2020, p.
22).
A importância do humor para a democracia foi ressaltada na referida decisão do
Supremo Tribunal Federal que derrubou vedações no âmbito eleitoral: “A Democracia
não existirá e a livre participação política não florescerá onde a liberdade de expressão
for ceifada, pois esta constitui condição essencial ao pluralismo de ideias, que por sua
vez é um valor estruturante para o salutar funcionamento do sistema democrático.”
(BRASIL. Supremo Tribunal Federal, 2018).
Como importante aspecto cultural, o humor serve de ligação comunitária. “Rir
junto é partilhar uma comunhão corpórea e espiritual” (EAGLETON, 2020, p. 95), afirma
Eagleton. Mas nem de simpatia se alimenta o humor. Dois efeitos opostos podem
decorrer do riso, pois há “o riso de acolhida e o riso de exclusão” (MINOIS, 2003, p. 611).
Os laços comunitários restam abalados quando o humor agride a dignidade de
pessoas ou grupos e viola, assim, a igualdade entre seres livres e iguais em que se baseia
a democracia. Assim, “[...] expressões de racismo, sexismo, homofobia e intolerância
religiosa, entre outras formas de discriminação... tendem a abalar a autoestima das suas
vítimas, atingindo a sua dignidade e fomentando um ambiente de intolerância, que nada
contribui para a democracia.” (SARMENTO, 2018, p. 267) No mesmo sentido, afirma
Moreira que o humor pode abarcar o discurso do ódio e, então, “[...] comprometer um
objetivo central do processo democrático: o reconhecimento da dignidade moral de
todas as pessoas, um interesse fundamental de todas elas.” (MOREIRA, 2019, p. 167)
Humor e democracia não estão implicados necessariamente e cabe ao Direito
fomentar-lhes a compatibilidade, de modo a que as pessoas possam rir juntas sem serem
desprezadas.
Conclusão
O humor é uma manifestação de potencial subversivo e, por isso, relaciona-se de
modo paradoxal com o Direito: ao contestar a autoridade e a coerência, o humor
conhece a face repressora do Direito, mas por caracterizar uma liberdade humana, o
humor requer a garantia do Direito.
Sendo uma manifestação crítica ou artística, não raro contestadora, o humor tem
franquias alargadas, à semelhança de manifestações religiosas, políticas e comerciais, em
comparação com outras formas de expressão (como a informação de fatos, por
exemplo). Portanto, o Direito deve proteger mais amplamente as manifestações
humorísticas, que se presumem lícitas em princípio. Ademais, como direito fundamental,
o humor não está condicionado a uma finalidade reputada boa, bem intencionada ou
inofensiva.
A definição do caráter humorístico de uma manifestação cabe a seu autor, pois
não se pode impugnar ou impor essa definição. Mas a perspectiva dos atingidos pelo
humor não deve ser desprezada, se forem agredidos outros bens jurídicos como a
privacidade, a honra e a imagem. Quando ofende e inferioriza, o humor ultrapassa o
limite da licitude. Em princípio somente as próprias pessoas e grupos vulneráveis e
discriminados podem troçar de si, em autoderrisão ou em crítica social por contraste.
Ainda, o humor pode ser utilizado como estratégia de resistência e crítica.
Manifestações humorísticas contam com uma predisposição favorável quando em
conflito com outros direitos. Contudo, o humor não pode servir de pretexto para
normalizar e encobrir a discriminação e o discurso de ódio. A ilicitude pode ser aferida
por critérios como a intensidade da manifestação, sua forma, seu veículo e a
vulnerabilidade da vítima.
Uma democracia multicultural exige o igual respeito e consideração. Nesse
contexto, deve haver espaço para a manifestação das diferentes perspectivas, que
podem encontrar no humor uma ligação comunitária (inclusiva) ou uma perversa forma
de exclusão. Cabe ao Direito proteger a liberdade das diversas manifestações ao mesmo
tempo em que assegure a dignidade de todos.
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