ROTHENBURG, Walter Claudius
*
https://orcid.org/0000-0003-3422-3846
RESUMO: Pretende-se enfocar a ambiguidade
do Direito ao proteger o humor como
liberdade de expressão e, paradoxalmente,
controlá-lo devido à sua subversividade.
Procura-se sustentar que o humor, enquanto
manifestação crítica e artística, tem um âmbito
de proteção alargado e que, em situações de
conflito com outros valores, como a
privacidade, a honra e a imagem, uma
predisposição favorável ao humor. Defende-se
que quem define o humor é seu autor, porém a
perspectiva das pessoas atingidas é relevante
e somente eles podem, em princípio, troçar de
si em caráter derrisório ou de crítica social. A
abordagem é dedutiva e normativa, com base
em pesquisa bibliográfica e de jurisprudência.
Conclui-se que, quando inferioriza e ofende, o
humor é ilícito e não deve ser aceito para
normalizar ou encobrir a discriminação. O
humor deve ser inclusivo e não
discriminatório.
PALAVRAS-CHAVE: humor; liberdade de
expressão; discriminação, discurso do ódio;
democracia.
ABSTRACT: This article aims to focus on the
ambiguity of Law in protecting humor as
freedom of speech and, paradoxically,
controlling it due to its subversiveness. The
purpose of this paper is to argue that humor,
as a critical and artistic manifestation, has a
broad scope of protection and that, in
situations of conflict with other values, such
as privacy, honor and image, there is a
favorable predisposition to the legality of
humor. We hold that humor is defined by its
author, but the perspective of the affected
people matters and only they may, in principle,
make fun of themselves for the purpose of
derision or social criticism. The approach of
this study is deductive and normative, based
on bibliographic and jurisprudential research.
In conclusion, humor is illicit when it
downplays and offends and should not be
accepted in order to normalize or cover up
discrimination. Humor should be inclusive, not
discriminatory.
KEYWORDS: humor; freedom of expression;
discrimination, hate speech; democracy
Recebido em: 19/08/2020
Aprovado em: 01/12/2020
*Livre-docente em Direitos Humanos pela Universidade de São Paulo (USP), Ribeirão Preto-SP. Professor
da Instituição Toledo de Ensino (ITE); Procurador Regional da República, Ministério Público Federal. E-
mail: wcrburg@gmail.com.
Este é um artigo de acesso livre distribuído sob licença dos termos da Creative Commons Attribution License.
“Como uma obra de arte efetiva, a comédia
ilumina o mundo de um ângulo distinto, e o faz
de uma maneira que nenhuma outra prática
social pode fazer.”
(EAGLETON, 2020, p. 34).
É possível proteger as manifestações humorísticas e reconhecer seus limites,
especialmente quando o humor inferioriza e ofende? Essa abordagem revela a
ambiguidade da relação do Direito com o humor, visto que este é assegurado como
liberdade de expressão, embora o Direito tenda a controlar a tendencial insubordinação
que caracteriza o humor.
A hipótese apresentada neste texto baseia-se nas diversas caracterizações do
humor (como insubordinação, incongruidade, alívio, superioridade, agressividade) e
busca situar juridicamente as manifestações humorísticas, frequentemente expressas
como formas de crítica e/ou de arte. O humor é uma liberdade de expressão forte, com
um âmbito de proteção alargado, e conhece, portanto, franquias. Significa que uma
presunção de licitude (permissibilidade) nas manifestações de humor, mas que não é
absoluta. O Direito deve oferecer contornos (limites) a essa modalidade de liberdade de
expressão, bem como estabelecer critérios para balizar as restrições.
O itinerário do desenvolvimento deste artigo conduz à reflexão acerca da
qualificação de uma manifestação como humorística e da relevância da perspectiva de
quem é atingido pelo humor, pois a inferiorização e a ofensa testam os limites da
liberdade de expressão em uma sociedade democrática e multicultural.
O estudo é especulativo e utiliza o método dedutivo a partir de uma pesquisa
predominantemente bibliográfica, mas que, por consistir em um enfoque jurídico,
envolve também uma análise da legislação e da jurisprudência relacionadas ao direito
fundamental de manifestação do pensamento e seus limites.
O humor como subversão
Este tópico inicial aborda uma ambiguidade presente no Direito: a tentativa de
capturar como jurídico aquilo que se configura como avesso mas nem sempre
contrário ao Direito. O humor tem relação com essa ambiguidade.
A pretensão totalizante do Direito em tudo querer qualificar sob o prisma jurídico
(“tudo o que não é proibido, é permitido”) encontra no humor um desafio ou talvez
será uma insubordinação? Ainda assim, o humor consegue ser situado como objeto de
apreciação do Direito (CAPELOTTI, 2016, p. 74).
Num grupo de estudos sobre o Direito e sua relação com as manifestações
artísticas, instituído por curto período, a integrante mais jovem, aluna de graduação,
abordou as pichações, uma forma de expressão artística gráfica que eventualmente se
constitui pela subversão. Ela entrevistou um pichador (sob a garantia do anonimato) a
quem não interessava expressar-se autorizadamente. Suas pichações haveriam de ser na
calada da madrugada, em um muro ou parede não franqueado, sob o risco de a polícia
aparecer. Interessante exemplo a respeito (com o trocadilho deliberado) dos limites da
regulação jurídica de uma manifestação que somente se reconhece como transgressão. A
proteção da liberdade de expressão parece implicar, paradoxalmente, a ilicitude. O jurista
esboça um riso nervoso, de desconforto.
O Direito tenta neutralizar a subversão das grafias murais enquadrando-as na
versão bem comportada do grafite. Quando a manifestação passa a ser autorizada (o
muro ou parede são oferecidos ao artista) e até incentivada (o Poder Público fornece
material e remuneração), ela deixa de ser pichação para passar a ser identificada como
grafite e pode, por isso, perder a graça.
Voltando àquele grupo de estudos: um integrante mais experiente, pós-graduando
e profissional do Direito, propôs-se a abordar a “ars erotica”, uma concepção das
práticas sexuais como manifestações artísticas relacionadas à experiência do prazer
sensorial (SHUSTERMAN, 2007). Ele tentava resgatar uma perspectiva antiga, presente
em tradicionais culturas orientais. O viés cômico ficou por conta da disposição do
pesquisador em realizar pesquisa empírica... Também aqui a intervenção do Direito é
ambígua: tutela a privacidade, mas defende a moralidade; protege a liberdade de
expressão, mas costumava ser rigoroso com a pornografia.
O humor que, como as pichações, pode apresentar-se como uma modalidade de
manifestação artística, que concretiza a liberdade de expressão (BARCELÓ I
SERRAMALERA, 2004, p. 570) frequentemente retira sua motivação e seu sentido da
transgressão. Vemo-nos confrontados com o paradoxo de uma liberdade assegurada
pelo Direito (essa instância social controladora por excelência) e que tende a afrontá-lo
em sua tendencial insubmissão. Afinal, uma das explicações mais aceitas para o humor
(em especial para o riso) vem da psicanálise e sustenta que o humor é um alívio
temporário de nossas repressões. Referindo-se a Freud, Terry Eagleton afirma: “[...] a
piada é um tabefe insolente no superego.”, sendo a “[...] postura solene em