GOUVÊA, Caroline P.
*
https://orcid.org/0000-0001-9953-1992
DEL RÉ, Alessandra
**
https://orcid.org/0000-0002-6740-9631
VIEIRA, Alessandra Jacqueline
***
https://orcid.org/0000-0002-3216-6107
RESUMO: Este artigo tem por objetivo analisar o
processo de compreensão e de produção das
incongruências que vão produzir um efeito humorístico
no discurso de uma criança (S.), a partir de dados
selecionados de 3;2 a 4;1 anos. Essa incongruência pode
ser entendida enquanto uma ruptura, algo estranho e
inesperado, que causa uma quebra no encadeamento
discursivo (KINTSCH; VAN DIJK, 1978; ATTARDO, 1994;
2008) e, com ela, desencadeiam-se situações
humorísticas que serão compartilhadas pelos
interlocutores. A partir de uma abordagem dialógico-
discursiva (DEL RÉ et al, 2014 a e b), considerando a
alteridade, a conivência entre os interlocutores, a
dialogia, a cultura (micro e macro), os contextos
discursivos etc., foi possível observar que, por meio do
diálogo com o outro e das interações empreendidas, S.
pôde compreender a função e o funcionamento desse
fenômeno (ruptura) como parte integrante do humor,
incorporando-o em seus enunciados, em diferentes
situações discursivas. Os dados de S. pertencem ao
banco de dados do grupo NALingua (CNPq) e foram
filmados em ambiente familiar, em situações cotidianas
(refeições, brincadeiras etc.), em momentos de interação
entre a criança e seus familiares. Os exemplos trazidos e
as análises realizadas revelam que a incongruência
encontrada nos enunciados humorísticos das situações
em que S. participa tem algumas especificidades e
desempenha um papel importante nesse processo de
entrada da criança no humor linguageiro e que o humor,
de um modo geral, está presente desde muito cedo na
linguagem, contribuindo para que se possa observar, a
partir de um outro ponto de vista o infantil , de que
forma se constrói essa importante manifestação cultural,
enquanto lócus de crítica e de divergência, por meio do
cômico.
PALAVRAS-CHAVE: Humor; Incongruência; Criança;
Aquisição da Linguagem.
ABSTRACT: This article aims to analyze the process of
understanding and production of incongruities that
produces a humorous effect on the speech of a child (S.),
from 3;2 to 4;1 years of age. This incongruity can be
understood as a rupture, something strange and
unexpected, which causes a break in the discourse chain
(KINTSCH; VAN DIJK, 1978; ATTARDO, 1994; 2008), and,
with it, humorous situations that are shared by the
interlocutors are initiated. From a dialogical-discursive
approach (DEL et al., 2014 a and b), considering the
otherness, the connivance among the interlocutors, the
dialog, the culture (micro and macro), the discursive
contexts, etc., it was possible to notice that, through the
dialogue with the other and the interactions undertaken,
S. was able to understand, little by little, the function and
the functioning of this phenomenon (rupture) as an
integral part of humor, incorporating it in her statements
in different discursive situations. S.’s data belong to the
database of NALingua group (CNPq) and they were
recorded in a familiar environment, in everyday
situations (meals, games, etc.), during moments of
interaction among the child and her relatives. The
examples brought up and the analyzes performed reveal
that the incongruity found in the humorous statements of
the situations in which S. participates has some
specificities and performs an important role in the
process of the child’s entry into humorous language. That
humor in general is present since very early in the
language, contributing to the observation, from another
point of view the infantile one of how this important
cultural manifestation is constructed, as a locus of
criticism and divergence, through the comic.
KEYWORDS: Humor; Incongruity; Child; Language
Acquisition.
Recebido em: 22/08/2020
Aprovado em: 01/12/2020
*Graduada em Letras pela Unesp, Araraquara-SP, mestranda do Programa de Pós Graduação em Linguística e Língua
Portuguesa da Unesp/Araraquara, Araraquara-SP. Bolsista CAPES. E-mail: caap_gouvea@outlook.com.
**
Professora do Departamento de Linguística da UNESP/FCLAr- Araraquara-SP e Programa de Pós Graduação em
Linguística e Língua Portuguesa da Unesp/Araraquara-SP. Bolsista Produtividade CNPq. E-mail: del.re@unesp.br.
***
Professora do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas do Instituto de Letras da UFRGS/Porto Alegre-RS e
Professora do Programa de Pós-Graduação em Letras UFRGS/ Porto Alegre-RS. Bolsa FAURGS. E-mail:
alessandra.vieira@ufrgs.br.
Este é um artigo de acesso livre distribuído sob licença dos termos da Creative Commons Attribution License.
Introdução
muitas questões acerca do universo da linguagem da criança que vêm sendo
estudadas atualmente e que instigam pesquisadores em todo o mundo. Entre elas, está o
humor. Diante disso, o objetivo deste artigo, de modo mais amplo, é refletir sobre esse
fenômeno discursivo, verificando de que modo ele se apresenta no linguajar das crianças
pequenas, como ele funciona discursivamente, qual o papel do outro e da situação
discursiva no surgimento de enunciados humorísticos, em termos de compreensão e de
produção, contribuindo para que se possa observar, a partir de um outro ponto de vista
o infantil de que forma se constrói essa importante manifestação cultural, enquanto
lócus de crítica e de divergência, por meio do cômico.
Para refletir sobre essas questões, apresenta-se um panorama do humor na
linguagem da criança pequena, mostrando que ele está presente desde muito cedo na
fala infantil - como é o caso da criança S., que foi analisada dos 3;2 aos 4;1 anos. Para
tanto, daremos um foco na noção de incongruência, um dos ingredientes
1
que compõem
o humor infantil (DEL et al. 2015, 2019) e que aparece como um elemento importante
para o humor, de um modo geral, nos trabalhos de Kintsch e Van Dijk (1978), Attardo
(1994; 2008), entre outros.
Trata-se de verificar se a criança compreende as incongruências produzidas pelos
interlocutores que com ela dialogavam e, além disso, se a própria criança produz
enunciados incongruentes, buscando fazer o outro rir. A incongruência pode ser
identificada quando uma ruptura no diálogo, ou seja, uma distância entre o que é dito
e o que é feito e o que isso significa em função do contexto, da situação, entre outros
elementos, podendo gerar um efeito humorístico (BERGER, 1992, p. 03). De acordo com
Morreall (1982), nem sempre essas rupturas vão ter como resultado o humor, podendo
desencadear, ao contrário, emoções negativas como o medo, a raiva. Diante disso,
parece-nos importante investigar quais incongruências resultaram em situações
humorísticas (uma reação de prazer pelo riso), e que foram compartilhadas pela criança
e pelo interlocutor, gerando o que consideramos um humor compartilhado (DEL RÉ et al,
2015; 2019).
Para a realização da pesquisa cujos resultados são aqui apresentados, parte-se da
teoria dialógico-discursiva, de base bakhtiniana (1992, 1997), que considera a língua a
partir das relações empreendidas, com o foco nos movimentos discursivos e
encadeamento de enunciados (FRANÇOIS, 1994; SALAZAR-ORVIG, 1999; DEL et al.,
1
Os demais ingredientes, bem como a própria incongruência, serão explicitados no item “A linguagem da
criança e o humor”.
2014a, 2014b). Desse modo, há elementos fundamentais que são considerados nessa
teoria, tais como o dialogismo, o presumido, a conivência, a alteridade, a interação, a
cultura (micro e macro), conceitos que serão melhor explicitados no próximo item.
Vale ressaltar que este artigo é resultado de uma pesquisa realizada entre 2018 e
2020 (GOUVÊA, 2019) e (GOUVÊA, 2020), e uma outra que está em andamento
2
, e está
inserida em um projeto mais amplo sobre o humor na linguagem da criança, que é
composto por um estudo de dados de crianças brasileiras, com financiamento do CNPq,
além de um trabalho cooperativo feito entre o grupo NALingua (CNPq) e o grupo COLAJE
(França), que estudam dados de crianças francesas e brasileiras (DEL RÉ;
MORGENSTERN, 2010; DEL RÉ et al., 2019).
Na literatura sobre o humor na criança ainda é escasso o número de trabalhos em
aquisição da linguagem. Diante desse fato e defendendo a hipótese de uma aparição
precoce do humor na fala das crianças, parte-se dos resultados das últimas pesquisas
feitas pelo grupo, em colaboração com outros pesquisadores (DEL RÉ et al., 2015;
MCROCZINSK; DEL RÉ, A; VIEIRA, 2019; VIEIRA, A. J.; DEL RÉ, 2019; DEL et al.,
2019).
O presente trabalho pretende, assim, contribuir com essas pesquisas, verificando
se a criança (S., entre 3;2 e 4;1 anos) é capaz de compreender as incongruências
produzidas pelos interlocutores que com ela dialogavam e se ela própria produz esses
enunciados cujo efeito é o humor no discurso. Trata-se, pois, de novos dados, além de
um foco específico para a incongruência partilhada com a criança.
Para tanto, vários elementos multimodais, além da própria fala, foram levados em
consideração ao longo das análises, como o olhar, os gestos, o riso, o sorriso, as
expressões faciais etc., pois esses elementos fornecem indícios sobre a compreensão e a
produção dessas incongruências pela criança. Em muitos episódios aqui analisados, a
criança olha mais fixamente para o outro, sorri ao escutar uma incongruência no
discurso ou produz uma ruptura, ocupando um lugar enunciativo, um papel ativo,
fornecendo ao outro indícios de sua compreensão da situação enunciativa, dando
continuidade à comunicação.
O humor faz parte do universo dos seres humanos e cada família, que é um
microuniverso/microcultura, faz uso dele de maneiras distintas, de acordo com a
macrocultura em que ela se insere. Portanto, a entrada da criança nesse universo do
humor está intimamente ligada à relação que sua família possui com o humor e com as
2
Trata-se dos relatórios de Iniciação Científica (IC), cujas pesquisas foram realizadas na Universidade
Estadual Paulista, UNESP, campus Araraquara, entre os anos de 2018 e 2020, e de uma pesquisa de
mestrado em andamento, sobre o mesmo tema.
interações sociais das quais essa criança participa (DEL et al., 2015). Enfatiza-se,
assim, o papel das relações dialógicas, uma vez que, ao interagir socialmente com o
outro, a criança tem contato com outros discursos, como os de humor, e responde a
esses discursos, utilizando-os em outros contextos discursivos.
No caso da criança analisada, pode-se dizer que ela advém de uma família cujas
interações são plenas de humor e, desde muito cedo, ocorrência de histórias
engraçadas, que produzem incongruências no discurso, rompendo o diálogo e gerando o
riso de S.
3
e/ou dos interactantes. São algumas dessas cenas que analisaremos neste
artigo.
A seguir, serão abordadas as questões teóricas que servem de pano de fundo para
essas análises e que ajudam a compor o quadro do humor na linguagem da criança.
Fundamentação teórica
O olhar dialógico-discursivo nos estudos em Aquisição da Linguagem
Dentre as diferentes teorias que tratam da aquisição da linguagem pela criança,
abordaremos a dialógica-discursiva (BAKHTIN, 1997; BAKHTIN; VOLOSHINOV,1992),
que dialoga com as propostas de Vygotsky (2007; 2008) e de Bruner (1991; 2004). Os
trabalhos do Círculo de Bakhtin nos ajudam a olhar para o vínculo muito forte existente
entre indivíduo e sociedade e observar que é nessas relações sociais que o indivíduo
deve ser configurado. Além disso, o discurso é visto sempre no âmbito social e a língua é
concebida como um fenômeno socioideológico, que tem base na interação verbal. Ao
produzirmos enunciados, eles não são inéditos, mas, sim, advém de outros discursos, que
ouvimos e reestruturamos em outras situações discursivas e em outras esferas de
atividade.
Essa ideia dialoga com as noções da teoria de Vygotsky, que fornece subsídios
para os estudos sobre a Aquisição da Linguagem de abordagem interacionista. O
psicólogo considerava a interação entre a criança e as pessoas ao seu redor essencial
para o aprendizado/aquisição, portanto, o adulto é o mediador entre a criança e o mundo
e tem um papel fundamental nas atividades as quais elas necessitam de ajuda para
realizar (chamada de Zona de desenvolvimento proximal ou ZPD). Por essa razão o
outro/adulto aqui tem um papel tão importante, seja ele o pai, a mãe, a babá, os avós etc.
Da mesma forma, Bruner (1991), partindo das ideias de Vygotsky, retoma a noção
do papel do outro para o desenvolvimento da linguagem da criança, discutindo sobre a
3
Para este artigo, por questões éticas, nomearemos a criança estudada por S. (inicial do nome da criança).
Para melhor compreensão da legenda de transcrição utilizada neste trabalho, ver nota 3.
importância da tutela do adulto, em especial a mãe, no processo. Para o autor, é por meio
da interação com o outro que a criança vai adquirindo a linguagem e dominando as
estruturas linguísticas. Para além dessas questões, Bruner enfatiza a importância dos
jogos e das brincadeiras para o desenvolvimento da linguagem da criança (BRUNER, 1991;
2004), pontuando que o lúdico, o faz-de-conta, a alternância de papéis sociais são
elementos fundamentais para o desenvolvimento linguageiro.
A alteridade, nessas teorias, assim como na perspectiva bakhtiniana, assume
papel fundamental para a comunicação efetiva, porém, ressalta-se o papel ativo de cada
indivíduo na compreensão e produção dos enunciados produzidos. É na interação com o
outro que a criança se desenvolve e aprende tudo aquilo que, algum tempo depois,
conseguirá realizar sozinha.
Levando em consideração a heterogeneidade da língua, é nas relações sócio
discursivas empreendidas pela criança ao longo de sua existência que ela vai se
constituindo enquanto sujeito (na e pela linguagem). Para Bakhtin (1997), nossos
discursos são sempre permeados por outros discursos, sendo dialógicos por excelência.
O dialogismo, conceito central dentro da perspectiva aqui adotada, considera a relação
existente entre enunciados - uma vez que [...] cada enunciado é um elo da cadeia muito
complexa de outros enunciados” (BAKHTIN, 1997, p. 291) - e entre enunciadores - uma
vez que todo enunciado é dirigido a alguém, tem um destinatário, sendo uma
particularidade constitutiva do enunciado (BAKHTIN, 1997, p.301), relação essencial
existente nas produções de enunciados humorísticos.
Todos esses conceitos são fundamentais para a pesquisa aqui proposta e serão
retomados ao longo de nossas análises.
A linguagem da criança e o humor
Considerando-se a dificuldade em se definir o humor e, ao mesmo tempo, que não
é possível olhar para a linguagem da criança comparando-a à do adulto, como se algo
nela faltasse, é necessário buscar aquilo que nos ajude a entender o funcionamento
desse fenômeno discursivo na linguagem da criança. Por essa razão, aqui, entende-se
que o funcionamento desse humor está relacionado ao que é engraçado, àquilo do que se
ri.
O verdadeiro sentido do humor está na relação com o outro e nas diferentes
situações em que ele circula, uma vez que está atrelado à cultura e à sociedade. E
embora não necessariamente se ria das mesmas coisas no Brasil e em outras partes do
mundo, no que se refere ao humor infantil, aquilo que é engraçado está muito ligado ao
que se ri, inicialmente, no seio da família e em situações que são compartilhadas com a
criança, situações que ela pode entender e participar (DEL RÉ et. al, 2015).
Sabe-se que o humor pode produzir reações no outro, como o riso, o sorriso, o
divertimento (DEL RÉ, 2011) e pode ser usado como estratégias individual e social, a
partir do uso de paradigmas ideológicos existentes em cada sociedade. Ele pode ser
usado, por exemplo, para depreciação do outro, desmoralização, fuga ao tema debatido
no discurso, preconceito de diversos tipos, crítica social e política etc. Esses paradigmas
são construídos socialmente, a partir de enunciados dialógicos que circulam nessas
comunidades e nas diferentes esferas de atividade, e é no meio familiar que essa
construção se inicia.
Focalizando o olhar para os trabalhos existentes que abordam o humor na
criança, observamos que a maioria não pertence à linguística ou à aquisição da
linguagem: são voltados para as perspectivas de base psicanalítica, como Freud (1905),
ou de base psicológica, como Aimard, Ruffiot(1988), Bariaud (1983), Feuerhahn (1993),
Garitte (2005), Carrausse e Carrausse (2009), Mireault e Reddy (2016). Na aquisição da
linguagem, o trabalho que nos serviu como ponto de partida foi o de Figueira (2001).
Nele, a autora relata que, de acordo com as suas análises, a partir dos 2 anos a criança
não parece ter intenção de fazer o outro rir, o que a leva à distinção do humor com (dado
humorístico) ou sem intencionalidade (dado anedótico).
Um tópico que une esses trabalhos é a aparição precoce do humor na criança. No
entanto, cada um deles possui um ponto de vista diferente em relação à faixa etária na
qual o humor aparece na linguagem da criança: para Aimard, Ruffiot (1988) e Carrausse
(2009), a criança de 3 meses já está no caminho do humor; para Garitte (2005), o humor
escatológico se faz presente no discurso da criança entre 2 e 3 anos de idade; já Bariaud
(1983), ao tratar da gênese do humor na criança, postula que antes dos 4 anos a criança
não é capaz de explicar, colocando em palavras, o sentimento do que é engraçado e,
portanto, só vai debruçar-se sobre o humor a partir dos 7 anos de idade (DEL RÉ, 2011).
algumas pesquisas mais recentes em psicolinguística (MIREAULT; REDDY, 2016)
afirmam que o humor acontece desde o primeiro ano de vida da criança.
Dando importância a certas questões, como a intencionalidade, proposta por
Figueira (2001), e a hipótese do aparecimento precoce do humor dos demais trabalhos
com exceção do trabalho de Mireault e Reddy que foi publicado posteriormente
propusemos uma tipologia de diferentes tipos de humor produzidos por crianças entre 4
e 6 anos e constatamos diferentes produções humorísticas nessas crianças, desde os 4
anos de idade, bem como a relevância de alguns fatores dos quais essas produções
dependiam, dentre eles, o contexto e o saber partilhado/conivência (SALAZAR-ORVIG,
2003, DEL RÉ, 2011; DEL RÉ, 2002). A partir dessa constatação, foi realizada uma
pesquisa com crianças brasileiras e francesas (DEL RÉ; MORGENSTERN, 2010),
analisadas a partir dos 11 meses de idade, por meio de gravações feitas periodicamente
(dados do grupo COLAJE e do grupo NALingua), que relatou que é possível encontrar a
emergência desse humor precoce, por meio do divertimento partilhado, desde que a
criança começa a falar.
Assim como nesses últimos trabalhos, continuou-se a investigar a precocidade do
aparecimento do humor, olhando para dados de crianças menores. Verificou-se que esse
humor acontece quando há a presença de diversos elementos que são indispensáveis,
como a) a ruptura no discurso/incongruência; b) o recuo utilizado pelos interactantes
para a compreensão e para produção de enunciados humorísticos, identificada por
índices multimodais (olhar, gestos etc.); c) a intencionalidade, que pode ser observada
pelo contexto e/ou também a partir de elementos multimodais utilizados, como o olhar, o
gesto, expressão facial, movimento corporal etc.; e d) o saber partilhado, que envolve o
conhecimento dos interlocutores sobre o tema da situação discursiva, que pode
influenciar, por exemplo, no tipo de humor ou na compreensão do humor pelo outro.
Este saber caracteriza a conivência (SALAZAR, 2003) entre interlocutores/papel do
outro, a cumplicidade, a atmosfera que envolve o contexto, e vê-se nessa relação o outro
dando acabamento ao enunciado e fazendo emergir os enunciados humorísticos (DEL RÉ
et al., 2015 e 2019).
A incongruência, como um desses elementos presentes no humor, vem sendo
objeto de estudo de pesquisas sobre o tema e, na linguagem da criança, tal ingrediente
parece-nos fundamental para a ocorrência desse fenômeno discursivo. Para Bariaud
(1983), a incongruência é uma inversão na ordem habitual das palavras ou das coisas,
sendo algo inesperado no diálogo. Ela está ligada a algo estranho ou inesperado, que
ocorre quando uma quebra no encadeamento discursivo (ATTARDO, 2008) e
acontece quando há uma grande distância entre o que é dito e o que é feito. Dessa forma,
surgem lacunas entre as expectativas da criança e as de quem com ela interage, que
causam a reação que pode ser vista por meio do riso.
Após essa ruptura inesperada, é preciso que se tenha, por parte dos
interlocutores, um recuo, de maneira que eles identifiquem que o percurso normal do
discurso foi quebrado. Além disso, é necessário querer partilhar e verbalizar esse querer
para o outro interlocutor e verificar se tanto a criança quanto o interlocutor que dialoga
com ela compreenderam as mesmas incongruências e partilham seus saberes. Esse
passo é essencial para que se tenha como resultado um humor que será compartilhado
pelos interlocutores, incluindo a criança. Outro elemento essencial é um ambiente que
permite o humor, a conivência entre os interactantes, possibilitando que a criança se
sinta à vontade com determinado interlocutor. São nesses ambientes que o humor tende
a aparecer, em forma de incongruências. E são esses elementos inesperados, essas
rupturas, que serão analisadas nos dados de S.
Metodologia
Os dados analisados da criança S. fazem parte de um banco de dados do grupo
NALingua-CNPq (DEL et al, 2016). Trata-se de filmagens registradas em situações
naturalísticas, do nascimento aos 7 anos da criança, e se encontram em fase de
transcrição, com base nas normas CHAT, do programa CLAN, oferecido gratuitamente
pela Plataforma CHILDES (MACWHINNEY, 2000), e que podem ser encontradas em uma
adaptação feita para o português em Hilário et al .(2012)
4
. O trabalho realizado e cujos
resultados apresentamos aqui é de cunho qualitativo, considerando que analisa,
longitudinalmente, os dados da criança S. dos 3;2 aos 4;1 anos. A opção por essa faixa
etária justifica-se considerando a busca por dados de humor em crianças cada vez mais
novas (precocidade).
Foram analisadas 10 sessões da criança, gravadas em situações cotidianas. S. é
uma criança brasileira, filha única, nascida em abril de 2008. Ela mora com a mãe, em
São Paulo, mas, geralmente, os vídeos acontecem na casa da bisavó e do bisavô de S., em
refeições que a família partilha. Além do bisavô e da bisavó, também estão presentes os
avós de S., o tio, a tia, que também é observadora durante a filmagem, e a mãe de S.
Trata-se de uma criança que demonstra compreender as situações, utilizando os
enunciados ouvidos em diferentes situações discursivas. Ela demonstra estar sempre
muito confortável com seus familiares e esse ambiente favorável ao humor está sempre
presente nos vídeos. Tem-se, portanto, um cenário (familiar) propício ao humor, também
pelo fato de que seus familiares estão sempre produzindo enunciados humorísticos ou
que a levem a produzir uma resposta divertida, que gera o riso.
É importante mencionar que, na parte dos resultados, selecionamos alguns
episódios das transcrições dos vídeos analisados e, neles, observamos vários tipos de
incongruência que foram encontrados em todo o material analisado. No entanto, devido
ao limite de extensão do artigo, traremos apenas alguns exemplos. A análise teve como
4
Nas transcrições M corresponde ao enunciado da mãe, O é a inicial de observadora, que filmou a criança;
T, para o tio. algumas linhas que descrevem a ação dos interlocutores, ações que são cruciais para se
compreender os enunciados. Tais linhas são descritas por %act de action, que significa ação em inglês.
Além disso, alguns símbolos que são importantes, como “#” que significa pausa na fala e [=! risos] que
indica a risada do interlocutor no começo, meio ou final da fala. Neste artigo foram alguns exemplos de
trechos retirados dos vídeos analisados. Os caracteres xxx significam que não foi possível compreender e
# significa que houve pausa curta no diálogo.
foco a compreensão e a produção dos enunciados humorísticos por parte de S. A partir
de uma abordagem dialógico-discursiva, buscou-se verificar os movimentos discursivos
feitos pela criança para chegar à compreensão das incongruências produzidas pelos
interlocutores e os movimentos realizados pela criança para produzir incongruências
que geram o riso nos interlocutores. Postulando-se, como dissemos anteriormente, que o
humor seja tudo aquilo de que se ri, podendo ser uma brincadeira, um jogo de linguagem,
entre tantos outros exemplos, buscou-se, durante a análise dos vídeos, marcas de
divertimento como o riso ou o sorriso, que foram os pontos de partida para se identificar
as rupturas que geraram humor (e não as de outra natureza).
Observou-se, a partir disso, como surgiu determinada incongruência, quem a
produziu e se ela foi a mesma para ambos interlocutores, ou seja, se tanto a criança
quanto o adulto que com ela interagia riram do mesmo enunciado. Ademais, foi
observado qual interlocutor produziu o enunciado humorístico, se foi a criança ou o
adulto, e se a criança compreendeu a incongruência instaurada naquele enunciado
humorístico, observando os elementos multimodais utilizados pela criança, como o olhar,
o riso, o sorriso, os gestos etc.
Deve-se considerar o fato de, em alguns casos, a incongruência se mostrar mais
importante que o riso, de ela não encontrar eco na resposta do interlocutor, por vários
motivos: seja porque ele não quis rir, ou porque não estava prestando atenção naquele
momento, ou até mesmo porque escolheu não rir naquela situação, seja para repreender
a criança por algum motivo ou para ensiná-la. Nessas situações, a ruptura não vai gerar
o humor compartilhado.
Nota-se, então, uma divisão importante que é relevante para as análises: há
incongruências que
a) não causam riso;
b) causam o riso nos adultos, mas não na criança;
c) causam o riso na criança, mas não nos adultos;
d) causam o riso na criança e em algum interlocutor/adulto, mas não em todos;
e) geram o humor compartilhado por todos os interlocutores presentes.
Em função dos objetivos propostos para este artigo, nosso foco recairá sobre os
dois últimos grupos. E é observando-os que chegamos aos diferentes tipos de
incongruências nos dados de S. que apresentaremos a seguir.
Análise e alguns resultados
1) Deslocamento do mundo real para o imaginário.
Neste exemplo, S. (3;2) está no quarto com a observadora e a sua mãe, brincando
com uma boneca:
1. *M: vai levar ?
2. *S: é # ela vai morder sua mão !
3. *O: a:::i meu deus [=! risos] !
4. *S: me dá [=! risos] !
5. %act: S pega a mão da observadora e finge que o brinquedo está mordendo a mão
da mesma
6. *O: ai ai ai # ai ai # ai [=! risos] .
7. *S: 0 [=! risos] .
Duas rupturas aconteceram nesse diálogo: a primeira ocorreu quando a criança
disse que o brinquedo iria morder a o da observadora, que é algo inesperado, ou seja,
S. produz uma incongruência. A ruptura para a criança está no fato de um
objeto/inanimado não poder morder, mas se trata de um faz de conta. Aqui, observamos
que também acontece um recuo de quem dialoga com a criança, que ri durante essa
interação. A ruptura é a mesma para ambos interlocutores, que eles riem da mesma
coisa e partilham o saber. Nesse caso, a criança iniciou a produção do enunciado
humorístico. É possível dizer que S. teve intenção em fazer a observadora rir com aquela
brincadeira, através da sua expressão facial ao produzir o enunciado, sempre atenta à
maneira como a observadora reagia, continuando a brincadeira pegando a mão da
observadora e rindo. Aqui é possível reconhecer a incongruência produzida pela criança
por meio do uso de algum objeto, que, nesse caso, é um brinquedo.
Dando continuidade à situação humorística, a segunda ruptura foi instaurada pela
observadora, que disse repetidas vezes a interjeição “ai”, o que fez com que a criança
compreendesse a incongruência produzida pela observadora e também risse. Nessa
situação, foi o adulto que deu continuidade ao enunciado humorístico produzido pela
criança anteriormente, que proferiu, por meio de uma interjeição, e com entonação e
ritmo diferentes, uma incongruência, que é compreendida pela criança. Enfatiza-se,
nesse episódio, a noção de alteridade, na qual a observadora suporte à brincadeira
instaurada pela criança no diálogo, entrando no faz-de-conta da criança (BRUNER, 2004;
1991). Esse suporte é fundamental e auxilia a criança na compreensão e na produção dos
enunciados em diferentes situações discursivas.
2) Uso de aumentativos ou diminutivos.
uma cena em que S. (3;5) chama a mãe para brincar; a mãe responde que sim,
mas antes ela precisa tirar o sapato. S. diz, então: “sapatão::: [=! risos]”. A observadora
também ri, no entanto, a mãe permanece séria, portanto, a incongruência não gera
humor compartilhado entre todos os interactantes.
Neste caso, o uso do aumentativo traz um duplo sentido para o termo “sapato”,
que não diz respeito apenas ao tamanho dele, mas é também um termo pejorativo
utilizado para designar uma mulher homossexual de aspecto masculinizado. A ausência
de riso da mãe pode revelar um aspecto da microcultura importante que deve ser
aprendido pela criança, o fato de que não se trata de um tema engraçado naquela família,
pois, ao fazê-lo, produz-se um discurso preconceituoso, que não é aceito nesse meio
familiar. Sobre o riso da criança, não como afirmar que ele esteja ligado a esse outro
significado do termo, mas o importante, aqui, é que a mãe reconheceu essa possibilidade
de interpretação por parte da criança e deixou isso claro com o não-riso.
3) Incongruência de ordem dialógica.
Neste exemplo, S. (3;5) estava brincando de massinha e começou a colocar o dedo
na boca. A mãe de S. ficou brava com ela por ter colocado o dedo sujo de massinha na
boca e diz:
1 *M: S.::: # tira da # ah então tá # então você não (es)tá me ouvindo
2 né .
3 *S: não:::: eu não (es)tô(u) # eu (es)tô(u) pondo o dedo .
4 *M: então # o dedo (es)tava onde até agora ?
5 *S: em / embaixo da água [=! risos] .
6 *M: ah tá # embaixo da água .
7 *O: 0 [=! risos] .
Verifica-se que S. faz uso de uma incongruência, mas a mãe não ri. Há, aqui, uma
intencionalidade por parte da criança para fazer rir, marcada pelo riso, o olhar e a
mudança na expressão facial. Além disso, a criança a utiliza como uma estratégia
discursiva para fugir da repreensão da mãe, que, no entanto, não ri - e não pode - do
enunciado pronunciado por S., justamente por estar dando uma bronca naquele
momento. Aqui, portanto, um tipo de incongruência produzida com intencionalidade
pela criança, mas não partilhada pelo adulto. A ruptura está justamente no fato de
termos um eco da voz da mãe na fala da criança (dialógico), um discurso que prega que
não se deve colocar a mão suja na boca, que vem da macrocultura para a microcultura, e
que a mãe deseja que seja compreendido e incorporado pela criança. A ausência de riso
por parte da mãe demonstra a sua reprovação em relação a esse tipo de comportamento
da criança. Mas, apesar de não haver o riso da mãe, a incongruência faz com que S. e a
observadora riam, já que ali um enunciado que não se espera que a criança
(re)produza.
4) Comparação.
S. (4;0) está no quarto, brincando de jogar um ursinho de pelúcia para a
observadora, mas a criança joga continuamente de modo errado. A observadora, então,
diz à criança:
1 *O: ai S. # você é uma figura .
2 *S: e você é a tia Nastácia [=! risos] .
3 *O: 0 [=! risos] .
A resposta dada por S. provocou uma ruptura no discurso e fez com que ambas
rissem, por compartilharem o conhecimento sobre quem era a personagem. S. parece
compreender que seu enunciado causou uma incongruência, demonstrando ter tido a
intenção de fazer rir ao fazer a comparação, pois, após dizer, fica atenta à reação da
observadora (com o olhar). Aqui, uma retomada do universo da personagem do Sítio
do Pica Pau Amarelo, que a criança traz para esse contexto discursivo. Esse enunciado
inesperado faz com que a O e S. riam, em uma relação de conivência e continuidade do
diálogo. Aqui, a incongruência ocorre a partir da comparação, feita pela criança, entre a
observadora e a tia Anastácia.
5) Transgressão de uma regra social, como por exemplo, mostrar uma parte
do corpo que deveria estar coberta.
Nesse exemplo, S. (3;3) está brincando com sua boneca Barbie, mostra a boneca
sem a parte debaixo da roupa e comenta que ela está muito larga. Na sequência, a
criança dirige-se à mãe rindo:
1 *M: soltou aí a calcinha dela ?
2 *S: não / não ## aqui (es)tá muito / (es)tá muito / (es)tá solto .
3 *O: ah:: (es)tá muito largo # né ?
4 *S: é .
5 *M: ah:: a gente arruma .
6 *T: leva no alfaiate [o bisavô de S. é alfaiate].
7 *O: 0 [=! risos] .
8 *S: olha o bumbumzinho de fora [=! risos] .
9 %act: todos riem
10 *M: é sem calcinha ?
11 *S: 0 [=! risos] .
12 *M: ah@i [= ! risos] .
O enunciado produzido por S. (turno 8) fez com que todos rissem, e a criança
demonstrou entender a incongruência, porque ela produz o enunciado, ri e fica atenta à
reação dos demais. Da mesma maneira que nos outros episódios, é possível afirmar que
a criança compreende a incongruência que aqui se instaurou, uma vez que seu olhar para
as interlocutoras, juntamente com o riso, estão presentes no momento em que ela
enuncia. Temos aqui uma ruptura causada por uma espécie de transgressão, que envolve
o fato de a boneca estar pelada, sem calcinha etc. e que é desencadeada pelo enunciado
“bumbumzinho”, proferido por S.
Há, aqui, a importância da microcultura, da dialogia e da conivência envolvidas
nesse episódio, que permitem à criança realizar esse tipo de enunciado. O bumbum é
uma parte do corpo na qual há ênfase durante a primeira infância, especialmente nos
momentos do banho, de trocar a fralda, sendo muitas brincadeiras produzidas em torno
dessa questão. “Vamos trocar para não mostrar o bumbum”, “fulana(o) irá ver seu
bumbum” etc. são enunciados que aparecem nos episódios de S. e que, a partir dessas
relações dialógicas, ela os utiliza em outros contextos discursivos, como nas
brincadeiras. Esses enunciados das crianças, muitas vezes, causam uma quebra de
expectativa da resposta imaginada pelo interlocutor, causando o riso.
Um outro exemplo desse tipo de incongruência ocorre neste episódio, em que S.
(3;5) estava brincando com uma massinha de modelar, de cor marrom. Em certo
momento, S. levanta-se da cadeira em que estava sentada e um pedaço de massinha fica
grudado.
1 *S: vamos brincar / vamos brincar?
2 *M: (es)pera # fez cocô aqui ?
3 *O: oh lá [=! risos] .
4 *M: 0 [=! risos] .
5 *S: eu fazi [=! risos] .
6 *M: 0 [=! risos] acho que é cocô .
7 *O: (es)tá parecendo cocozão .
8 *M: você fez cocô ?
9 *S: 0 [=! risos] vamos brincar Teteia .
S. (3;5) parece compreender as incongruências que se instauram nos enunciados
produzidos por seus familiares. A incongruência se instala na frase da mãe, que causa
uma ruptura no diálogo com uma frase inesperada, questionando a criança se ela havia
feito cocô na cadeira. A criança ri e confirma, por meio do enunciado 5, entrando na
brincadeira que sua mãe propôs. Portanto, a partir do riso da criança, é possível afirmar
que S. compreendeu a incongruência produzida pela mãe. Há, portanto, um tipo de
ruptura causada por um humor escatológico, provocado pelo adulto, mas muito comum
na linguagem de crianças, que ocorre pelo uso de palavras como xixi, cocô, pum, mas
também trazido pela cor da massinha que remete ao cocô da criança.
É por meio de exemplos como esse, em que os adultos produzem enunciados
humorísticos, que, acreditamos que S. passa a compreender o que é uma incongruência,
como criá-la, em que momento dizê-la, e passa a utilizá-la em diferentes situações
discursivas. É possível notar a intenção da mãe em provocar o riso na criança, que, ao
enunciar, usa a entonação, ri e modifica a sua expressão facial. Também se pode
observar que uma conivência entre os interlocutores, e ela torna o ambiente propício
para a produção do humor (entre mãe, criança e observadora). O saber partilhado,
mobilizado pela ideia do cocô, como algo escatológico, muito utilizado em outras
brincadeiras, e pela cor e espessura da massinha que remetem ao cocô humano, também
é um elemento importante, que propicia aos interactantes rirem da situação vivenciada
conjuntamente.
Um aspecto interessante desse exemplo é o fato de esse enunciado escatológico
ter sido trazido pela mãe, já que, em geral, os pais não riem desses enunciados da
criança, justamente como uma forma de mostrar para a criança que não se deve
enunciar esses termos em sociedade.
6) Repetição de palavras (jogo, brincadeira); como em um dos exemplos
encontrados, em que S. (4;0) está brincando de jogar uma boneca para a observadora,
que a joga de volta para S. Em um determinado momento, S. diz “pode”, sinalizando que a
observadora poderia jogar a boneca. A observadora repete a palavra “pode”, rindo. Logo
em seguida, S. repete novamente a mesma palavra, rindo também. Esse jogo, inesperado,
gerou o riso compartilhado por ambas.
7) Incompatibilidade de cenários.
Neste exemplo, S. (3;5) faz um chapéu para o pinguim, com massinha, e o coloca
no brinquedo.
1 *S: é meio gran:::de # vamos fazer uma touca pequena # eu vou cortar
uma
2 touca pequenininha pra ele # aí vai caber # olha uma touca
3 pequenininha # vai ficar engraçado # deixa eu ver / deixa eu ver se
4 ficou engraçado # olha .
5 *O: 0 [=! risos] .
6 *S: parece um pinguim com chapéu de carboy@c [=! risos] .
7 *O: um chapéu de cowboy@s:i [=! risos] ?
8 *S: sim [=! risos] ou assim oh [=! risos] .
Nesse episódio, S. ri e diz que o brinquedo ficou muito engraçado porque está
parecendo um chapéu de cowboy. Esse enunciado é inesperado e causa uma ruptura,
fazendo ambas rirem com esse comentário. Nota-se, portanto, que a incongruência é a
mesma para a criança e para a observadora, pois elas partilham o saber, que sabem
como é um chapéu de cowboy e como ficaria engraçado um chapéu desse modelo em um
pinguim. S. parece compreender a ruptura que produziu nesse enunciado humorístico,
demonstrando intenção em causar o riso na observadora, uma vez que fala o enunciado
rindo, estando atenta à sua reação.
Interessante notar como as brincadeiras estão sempre presentes e auxiliam S. na
produção desses enunciados humorísticos. Além disso, um outro, que entra no
universo do faz-de-conta da criança e continuidade/acabamento ao enunciado da
criança. Essa conivência é fundamental e permite à criança compreender e fazer uso do
humor em diferentes contextos discursivos.
8) Relação cultural e familiar da criança.
S. (3;3 anos) estava em um cômodo da casa e ouviu sua bisavó (chamada de
nonna) insistindo para que sua mãe fizesse algo. Diante da insistência da bisavó, S. diz
para a observadora:
*S: ela # a nonna (es)tá enchendo a minha mãe [S. sorri].
E todos os presentes na cena riem da incongruência instaurada, gerando o humor
compartilhado. Neste episódio, verifica-se que alguns presumidos e retomadas de
discursos relacionados à microcultura familiar, como, por exemplo, as brincadeiras em
família que o bisavô sempre faz com S. e a retomada de enunciados utilizados nas
brincadeiras da família desde que S. era pequena, os pedidos para não incomodá-la
sempre que o bisavô queria provocá-la. Além disso, uma relação de conivência
fundamental entre os interactantes, que suporte à criança para que ela retome esses
discursos utilizados entre os familiares e os utilize em outros e diferentes contextos,
dando o acabamento e a continuidade ao diálogo de S. Há, portanto, um ambiente
favorável para o desenvolvimento do humor em S., propiciado por essas relações
discursivas entre a criança e seus familiares.
Outro episódio que mostra essa relação com a microcultura é este, no qual S.
(3;7) está em um almoço com a família. Ela acaba de almoçar, quando o tio lhe faz a
seguinte pergunta:
1 *T: vamos comer mais macarrão # S. ?
2 *S: eu já comi .
3 *T: eu também ## vou comer mais .
4 *S: você vai ficar com (a) ba ## você vai ficar barrigudo [=! risos] .
5 %act: todos riem
6 *T: ahn # como é que é ?
7 *O: 0 [=! risos] vai ficar barrigudo [=! risos] .
Esse enunciado fez com que todos rissem, inclusive a criança, que estava rindo
desde o momento em que fez o comentário para o tio. Interessante notar como a
microcultura influencia nos enunciados humorísticos produzidos pela criança. O
ambiente familiar de S., cujos membros são italianos ou têm ascendência italiana,
costuma ser bem-humorado, com muitas brincadeiras e jogos de palavras. Ao analisar os
dados de S., verifica-se que há uma conivência entre os interactantes da família, que
permitem e incentivam S. na produção do enunciado humorístico (no caso, o do turno 4).
Nessa cena, a incongruência é a mesma para todos os interlocutores, que ocorre
quando S. diz que o tio ficará barrigudo se comer mais. A criança parece ter tido a
intenção de fazer os outros rirem, já que ao dizer o enunciado, ela também ri e fica
observando atentamente a reação de seus familiares. Todos os interlocutores presentes
nessa cena partilharam o saber quem come muito fica barrigudo. A incongruência,
então, é produzida com intencionalidade, a partir de uma brincadeira com o interlocutor.
De acordo com os vídeos analisados, é possível dizer que a criança compreendeu
muitas das incongruências produzidas pelos adultos com quem ela dialogava e que, a
partir dessa compreensão, da incorporação de alguns deles em seu próprio discurso, a
criança também adquiriu a capacidade de formular inúmeros enunciados humorísticos,
em diferentes contextos discursivos, demonstrando sua intencionalidade em fazer o
outro rir, muitas vezes com o objetivo de conseguir algo que deseja, para ter a atenção
dos demais para si ou, ainda, escapar de uma bronca.
Como dissemos, nos exemplos acima, priorizamos aqueles que ilustravam as
situações em que a criança riu com um ou mais interlocutores, gerando um humor
compartilhado. Mas vale discutir os casos que, embora não tivéssemos o riso ou o
sorriso explícito, talvez a criança tenha entendido e compartilhado do humor na cena.
Como no caso em que S. (3;2) estava fazendo desenhos para todos os familiares que
estavam presentes e mostrando-os para os mesmos. O único familiar não retratado foi o
bisavô. Ao ser questionada do porquê disso, S. responde, sem rir, com o seguinte
enunciado, em tom de bronca: o nonno não tem porque ele não dando risada”. A
ruptura está justamente na criança dar uma bronca no adulto e por essa razão eles dão
risada, mas S. não demonstra por nenhum outro elemento multimodal (sorriso, olhar,
gesto) reconhecer a ruptura, nem identificamos que os interlocutores tenham
interpretado enquanto tal, e, portanto, não analisamos esse exemplo como sendo do tipo
compartilhado.
Além disso, há ainda duas ressalvas: a primeira, diz respeito ao fato de, em nossos
dados, os tipos que apresentamos terem desencadeado o riso, mas talvez, em outros
contextos, com outros interlocutores, não tivéssemos o mesmo resultado. E, segunda,
um tipo que aparece como tendo desencadeado o riso na criança e em um adulto, ou na
criança e em todos os adultos pode se “comportar” de forma diferente em função de uma
série de fatores pragmático-discursivos que dependem dos interlocutores, do contexto
etc. Por exemplo, em geral, os pais não riem quando as crianças trazem para o discurso
enunciados escatológicos, mas em nossos dados, como vimos, é a mãe que traz esse
enunciado e todos riem (humor compartilhado por todos).
Considerações finais
Com o objetivo de aprofundar as noções o humor no discurso infantil, refletindo
sobre o funcionamento desse fenômeno discursivo, buscou-se, neste artigo, analisar os
tipos de incongruências, compreendidas e produzidas por uma criança pequena (S.), que
geram o humor compartilhado.
Os tipos de incongruência aqui descritos nos ajudam a compreender melhor o
funcionamento do fenômeno do humor na criança. Retomando os principais tipos
encontrados, verificou-se que eles ocorrem quando: deslocamento para o mundo do
imaginário; há o uso de aumentativos ou diminutivos; há uma ligação de ordem dialógica;
surge por comparação (com personagens, com objetos), uma transgressão de uma
regra social; ocorre repetição de palavras ou ações; surge a partir de alguma referência a
um objeto, que gera uma incompatibilidade de cenários; ou é produzida através da
relação cultural e familiar da criança.
A análise dos dados mostrou, igualmente, que S. compreende as incongruências
dos enunciados humorísticos, que surgem em diferentes situações de interação social da
criança com seus familiares e que ela também as incorpora em seu discurso, produzindo
enunciados que têm como efeito o riso no interlocutor, e que ri com as incongruências
produzidas pelos interactantes. Esses resultados reafirmam a precocidade do surgimento
do humor na criança, principalmente quando o ambiente é propício para que ela se sinta
confortável em produzir enunciados humorísticos, como é o caso da criança observada.
O diálogo, então, mostrou-se um espaço importante para esse processo de aquisição da
linguagem, bem como o aspecto dialógico, quando outros discursos ecoavam em sua voz.
É nessa relação (de diálogo e do dialógico) que surgem as rupturas que podem gerar
enunciados humorísticos.
Por isso, ao se analisar o humor (em especial, o infantil), é preciso levar em conta
na análise dos enunciados dos sujeitos envolvidos a sua cultura (a macro e a
microcultura) e o contexto discursivo no qual ocorrem as produções humorísticas.
Portanto, além da incongruência, embora não tenhamos dado especial atenção a eles
neste artigo, como dissemos, outros ingredientes são fundamentais para esse
surgimento, como o ambiente propício ao humor e a conivência, o saber partilhado entre
os interlocutores o recuo, a intencionalidade (DELet al., 2015, 2019).
Os dados nos permitiram refletir sobre os casos em que a incongruência não foi a
mesma para a criança e o adulto, porque um dos interlocutores não riu da brincadeira ou
não a compreendeu, que não necessariamente a incongruência gera um humor
compartilhado por todos os interlocutores; também houve cenas em que a criança disse
algo que gerou uma incongruência, fazendo os interlocutores rirem, mas ela mesma não
riu, por não partilhar do mesmo saber, ou por não entender o motivo de determinada
frase ter causado o riso no outro. O que nos mostra a necessidade de novos estudos
sobre o tema.
Da mesma forma, em rios momentos, foi possível perceber, por meio de gestos
e das expressões faciais, que S. produzia incongruências e esperava o riso do outro com
quem dialogava, ressaltando a importância dos elementos multimodais que, ainda,
carecem de um aprofundamento.
Resta-nos, ainda, para trabalhos futuros, observar se um tipo em especial de
incongruência que aparece mais nos dados do que outro tipo, como se o
desenvolvimento desses tipos ao longo das sessões, se nos dados de outras crianças
monolíngues brasileiras teremos os mesmos tipos, ou ainda, por fim, se os mesmos tipos
de incongruências surgem na linguagem de crianças falantes de outras línguas (inglês,
francês, LIBRAS etc.).
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