HOLOWATE, Isaias
*
https://orcid.org/0000-0002-8129-1465
RESUMO: Este artigo estuda o
estabelecimento e consolidação do jornal
Diário dos Campos
em Ponta Grossa no
Paraná, entre os anos de 1907 e 1921 a partir do
estudo das sociabilidades e discursos que
permeavam a constituição e a existência do
jornal. Ao redor da publicação. uma unidade
social foi sendo desenvolvida envolvendo
funcionários, colaboradores, patrocinadores e
leitores. As mudanças nessa estrutura
ocorreram em forma de um processo não
linear, mas que, em fins de 1921, apontavam
para uma consolidação da publicação, com
membros reconhecidos e premiados e com um
posicionamento sobre questões políticas
sociais e ideológicas da sociedade. Esse estudo
busca, a partir do levantamento histórico e das
estruturas sociais locais, análise das
sociabilidades e investigação das
representações, compreender o encadeamento
entre as sociabilidades e os discursos
presentes na publicação e a configuração
social que foi sendo desenvolvida.
PALAVRAS-CHAVE: Configurações Sociais;
Diário dos Campos; Ponta Grossa;
Sociabilidades.
ABSTRACT: This article studies the
establishment and consolidation of the
newspaper
Diário dos Campos
in Ponta
Grossa, Paraná, between the years 1907 and
1921, based on a study of sociability and
discourses that permeated the constitution
and existence of the newspaper. Around the
publication, a social unit developed itself
involving employees, collaborators, sponsors
and readers. The changes in this structure
occurred in a non-linear process, but which at
the end of 1921 pointed to a consolidation of
the publication, with recognized and awarded
members and a position on social and
ideological political issues in society. This
study seeks, from the historical research and
the local social structures, the analysis of
sociability and investigation of
representations, in order to understand the
link between the sociability and the discourses
present in the publication and the social
configuration that was developed.
KEYWORDS: Social Configurations; Diário dos
Campos; Ponta Grossa; Sociability.
Recebido em: 29/08/2020
Aprovado em: 13/03/2021
* Mestre em História pela UEPG, Ponta Grossa PR. Doutorando em História pela UFPR, Ponta Grossa
PR. Bolsista CAPES. Atua como pesquisador nas áreas de História Social do Discurso e História da Cultura
Escrita, com ênfase nos estudos sobre as relações entre os discursos e sociabilidades em uma
configuração social. Email: isaiasholowate@gmail.com
Este é um artigo de acesso livre distribuído sob licença dos termos da Creative Commons Attribution License.
Introdução
Como entusiasta e franco-atirador dos propagandistas
de Ponta Grossa, por diversas vezes me vi em sérios
apuros quando, em viagens, apregoava o progresso e o
futuro da cidade onde constituíra família.
Quase sempre, no auge da conversação elogiosa, os que
não conheciam nossa cidade perguntavam-me:
- Temos indústrias?
- Estão em formação.
- Temos boa viação?
- Temos a melhor do Estado, além de outras que
fatalmente virão.
- Temos comércio?
- Em franca prosperidade.
- Quantos jornais há? São diários? (Aqui é que o Jacob
embatucava...)
- Não temos nenhum, já tivemos, mas se acabaram.
- Então não há progresso em sua terra.
Assim, tinha eu que concordar, reconhecendo que numa
terra sem imprensa não há, efetivamente progresso.
(HOLZMANN, 2004, p. 263-264)
1
É tentador ao apaixonado pela História olhar para o passado e buscar construir
um destino linear nos processos históricos, com um final teleológico que se finaliza na
sua própria existência. Porém, a História não é teleológica e nem os processos históricos
ocorrem de forma inevitável. A História é a Ciência dos homens no tempo (BLOCH, 2001,
p. 55) e os processos históricos ocorrem em função das transformações em seu próprio
tempo e espaço. Por isso, a investigação e a reflexão do historiador precisa buscar
compreender os significados e significantes presentes em cada momento do período em
que o processo ocorre. Isso não significa que a História abdica do presente, mas que ela
dialoga com o passado e o presente. O rosto do anjo da História está dirigido para o
passado. Ele vê acontecimentos únicos, “catástrofes que acumulam incansavelmente
ruína sobre ruína e as dispersam a nossos pés” (BENJAMIN, 1987, p. 226). Mas o olhar do
historiador se desloca entre o presente e o passado, pois ele precisa dar um significado
compreensível no presente para as “ruínas” do passado. Por isso, o historiador busca
compreender os acontecimentos em sua historicidade e em sua processualidade.
1
A primeira edição do livro
Cinco Histórias Convergentes
de Epaminondas Holzmann foi publicada em
1966. A edição disponível em mãos do pesquisador é a segunda edição revisada, publicada pela editora
UEPG em 2004. O livro é composto de memórias escritas pelo filho do fundador do
O Progresso/Diário
dos Campos
nos seus últimos anos de vida. A obra trata de suas lembranças sobre cinco personalidades
ponta-grossense que fizeram parte do círculo de sua convivência, sendo eles, seu pai, Jacob Holzmann, o
magistrado Casimiro Reis (1864-1913), o médico Francisco Búrzio (1875-1961), o jornalista Hugo Mendes
Borja dos Reis (1884-1934) e o teatrólogo José Fernandes Cadilhe (1881-1942) (HOLZMANN, 2004). Por
isso, nessa pesquisa, as memórias de Epaminondas Holzmann constituem uma das fontes históricas a
investigadas.
Se para o cidadão ponta-grossense que passa pela Avenida Bonifácio Vilela e
encontra o prédio atual do jornal
Diário dos Campos
é sedutor acreditar que a fundação
do jornalismo em Ponta Grossa no início do século XX era inexorável, a afirmação de
Jacob Holzmann (1875-1933) apresentada por seu filho Epaminondas Holzmann (1896-
1960) que “[...] não temos nenhum [jornal], tivemos, mas se acabaram.” (HOLZMANN,
2004, p. 264) é esclarecedora. Diversas tentativas de estabelecimento de uma imprensa
local no final do século XIX e início do século XX fracassaram em Ponta Grossa
(PONTES; GADINI, 2008).
Diversos foram os fatores que representavam dificuldades para a consolidação de
uma unidade jornalística em Ponta Grossa na virada do século XIX para o XX. Tais
problemas envolviam especialmente a existência de diversos grupos da elite local
disputando espaços de poder. Cada periódico instalado precisava manter uma relação
positiva com outros grupos interessados na construção de uma imprensa local sob seu
domínio e a sociedade na qual ele tentaria manter-se. Falhar em construir uma relação
positiva com as elites no interior do Paraná significava, para o incipiente jornalismo, um
decreto de falência.
As elites locais também não eram uniformes. Elas se dividiam em grupos com
interesses divergentes e se chocavam continuamente em disputas pelos espaços de
poder. Os jornais, enquanto uma ferramenta comunicativa, também constituía um desses
espaços de poder em disputa pelas elites. E para sua sobrevivência, os periódicos
precisavam do apoio e do patrocínio desses grupos.
Por isso, para o estudo das sociabilidades e dos discursos presentes no jornal
Diário dos Campos
se faz necessária a compreensão das características do jornal como
fonte e objeto e sua relação com a sociedade ponta-grossense, investigando suas
estruturas sócio-históricas naquele período no qual essas tentativas jornalísticas se
realizaram, a historicidade da fundação do jornal e dos discursos e relações de
sociabilidade que possibilitaram a consolidação do jornal
Diário dos Campos
.
O trabalho do historiador com os jornais
Os discursos que aparecem nas páginas de um jornal do início do século XX são
entendidos como representações de uma realidade. Estas, não são cópias exatas da
realidade social da época em que foram escritas, mas afirmam realidades discursivas, ou
seja, tratam-se de construções individuais feitas em um determinado momento histórico,
social e cultural. A representação é, assim, compreendida através da relação signo
significado “entendida, deste modo, como relacionamento de uma imagem presente e de
um objeto ausente, valendo aquela por este, por lhe estar conforme.” (CHARTIER, 1991, p.
184).
Construídas a partir de uma apropriação de mundo própria de um indivíduo ou
grupo, as representações são específicas e dialogam com a cultura e a sociedade das
quais fazem parte, atendendo a interesses daqueles que as produzem. Entretanto, podem
reconstruir uma realidade na forma de um discurso produzido em um contexto próprio e
divulgado nos seus meios de circulação. Quanto maior o espaço de circulação de um
discurso e mais próxima sua relação social e cultural com os grupos com acesso a essas
representações, maior a possibilidade dos signos e significados do discurso atingir seus
alvos.
Tais representações não são simples imagens, verídicas ou enganosas, de uma
realidade que lhes fosse exterior. Elas possuem uma energia própria que
convence de que o mundo, ou o passado, é realmente aquilo que dizem que é.
Produzidas em suas diferenças pelos distanciamentos que fraturam as
sociedades, as representações, por sua vez, as produzem e reproduzem.
(CHARTIER, 2010, p. 26).
Por isso, a investigação que se utiliza dos jornais como fonte e objeto da pesquisa
precisa compreender que as páginas do periódico que lhe chegam as mãos possuem um
aspecto discursivo e social historicamente datado.
O pesquisador dos jornais e revistas trabalha com o que se tornou notícia, o que
por si abarca um espectro de questões, pois será preciso dar conta das
motivações que levaram à decisão de dar publicidade a alguma coisa. [...] os
discursos adquirem significados de muitas formas, inclusive pelos
procedimentos tipográficos e de ilustrações que os cercam. A ênfase em certos
temas, a linguagem e a natureza do conteúdo tampouco se dissociam do público
que o jornal ou revista pretende atingir. (LUCA. 2011, p. 140).
A utilização do jornal como fonte se pelas amplas possibilidades de análise que
estes permitem. Sua utilização foi se tornando mais comum após as transformações
promovidas pela História Cultural, especialmente a partir do final da década de 1970, com
a popularização de novas fontes, problemas e abordagens de pesquisa (LE GOFF; NORA,
1978), tendo o uso dessa variedade de documentos dado origem a uma multiplicação na
disponibilidade de fontes e aberto novas perspectivas de pesquisa (REIS, 1994, p. 126).
Com os avanços nas investigações, os jornais se tornaram uma importante fonte para
diversas áreas, pois as páginas das publicações apresentam discursos em que
determinados grupos sociais constroem e divulgam suas representações sobre o meio
cultural e social do qual fazem parte. O estudo dessas fontes possibilita uma
reconstrução de fatos históricos e culturais de uma sociedade.
Nesse sentido, compreende-se o jornal como uma ferramenta que constrói uma
realidade, atuando como um instrumento político de legitimação e de contestação social
ao mesmo tempo em que é influenciado pelo meio social, realizando uma constante troca
de informações (ALSINA, 2009, p. 129).
Estudar o jornalismo por um viés histórico possibilita uma melhor compreensão
das formas com que indivíduos pertencentes a determinados grupos, pensavam,
praticavam e representavam a sua realidade. Ao mesmo tempo, por ser uma produção
discursiva e social com características próprias, a linguagem publicada no jornal voltado
para o público leigo complexificava as relações entre os membros do circuito
comunicativo, pois ao mesmo tempo em que o colaborador do jornal escrevia para o
veículo informativo, também estava produzindo para ser lido por indivíduos que, em
muitos casos, poderiam encontrá-lo e discutir o tema com ele nos botecos, cinemas e na
convivência diária (HOLOWATE, 2018, p. 27).
O jornal físico, produzido em um determinado tempo e espaço, além de ser o elo
entre as sociabilidades e os discursos, também era a razão da existência da própria
configuração, sendo um veículo informativo e uma mercadoria. O periódico é produzido
por indivíduos com interesses variados que muitas vezes são negociados ou impostos,
pois o espaço de sua circulação é um espaço de relação entre pessoas que negociam,
organizam-se e muitas vezes concordam ou discordam. Ao mesmo tempo, o jornal
também é um veículo que informa, diverte, interpreta e guia seu leitor.
Tais discursos são produzidos em meio a processos de transformações sociais da
cultura e de modificações culturais da sociedade, se constituindo enquanto criações e
elementos transformadores dessa realidade. Assim, os discursos publicados nas páginas
do jornal eram culturalmente construídos em meio a “práticas que obedecem a regras”
(FOUCAULT, 2008, p. 159) que articulam sua função enunciativa.
Assim, o processo de investigação ocorre através uma análise que obedece aos
elementos de uma crítica de uma fonte impressa, o qual é constituído de um estudo das
características físicas do produto midiático, os sentidos dos textos objetivamente e as
camadas subjetivas do texto em relação ao seu contexto histórico de produção e
circulação.
[O método de estudo com fontes jornalísticas é estruturado] em dois tempos:
um objetivo que interpreta o texto escrito efetivamente e outro subjetivo que
precisa entender aquilo que não aparece escrito, mas é possível identificar à luz
do contexto histórico. Assim, o estudo da imprensa necessita do
reconhecimento do que está em torno dela, que essa mesma imprensa está
invariavelmente atrelada ao seu tempo histórico. (SOSA, 2007, p. 11-12).
O período de fundação do
Diário dos Campos
e de consolidação do periódico
como ferramenta comunicativa está em estrita correlação com as transformações na
sociedade ponta-grossense das últimas décadas do século XIX e que ganharam força no
início do século seguinte. A investigação compreende o jornal enquanto fonte que produz
um discurso sobre uma realidade. O trabalho do historiador busca compreender a
representação à luz da sua temporalidade e das relações sociais que a compunham.
Sociabilidades ponta-grossenses no alvorecer do século XX
O ser humano é um animal social. No decorrer dos séculos ele buscou
estabelecer-se em unidades sociais de sobrevivência de forma a obter um melhor
aproveitamento dos seus recursos e uma maior chance de sucesso de suas empreitadas.
Dentro dessas estruturas uma série de relações são estabelecidas, indo de mais simples
para mais complexas no decorrer da consolidação da unidade. Nelas, o interesse pela
sobrevivência individual e sucesso do grupo são interconectados com as proximidades
afetivas, ideológicas e hierárquicas. Com isso, acaba estabelecendo uma dinâmica de
relações e interesses que moldam seus membros e as sociabilidades e ações que são
reconhecidas pelo grupo. Essas sociabilidades são entendidas como uma forma de
associação e um jogo em que os lances de cada indivíduo determinam e são
determinados pelos papéis que ele ocupa na rede.
Assim, as sociabilidades são um exercício livre dos conteúdos materiais que essas
formas adquirem por si e pelo estímulo que delas irradia a partir dessa liberação,
produzindo assim significados próprios (SIMMEL, 2006, p. 63-64). Tal, como Voigt (2019,
p. 117-118) aponta, as redes de sociabilidades podem atrair indivíduos de diferentes
grupos sociais para o jogo. Tais diferenças podem ser espelhadas para as representações
produzidas no jogo, e, por conseguinte, as relações em uma rede de sociabilidades
também podem envolver relações de poder não igualitárias. Nesse espaço de interação
social, o indivíduo não apenas se relaciona com os outros, mas também produz discursos
sobre si e sobre a própria unidade. Assim, desde que a comunicação se tornou um
mecanismo de socialização fundamental para as relações humanas, os discursos e
sociabilidades são vertentes fundamentais para se compreender as unidades sociais.
No início do século XX uma dessas unidades sociais se estabeleceu em uma
pequena cidade no interior do Paraná chamada Ponta Grossa. Não era a única desse tipo
no Paraná e tampouco no Brasil. Porém, ela trazia uma série de características que a
tornam interessante para essa pesquisa não só pelo número de fontes disponíveis como
também pela sua complexidade e as possibilidades que a compreensão dessa unidade e
da configuração que se estabeleceu nela nos permite observar.
A estrutura em estudo é uma configuração social estabelecida em torno do jornal
Diário dos Campos
de Ponta Grossa sob a direção do comerciante Jacob Holzmann
2
e do
jornalista
3
Hugo dos Reis. Por configuração social entendemos a construção de um grupo
em um espaço, com relações dinâmicas e estabelecimento de um regime de condutas e
padrões que permeiam as relações entre os membros da unidade social. Assim, a
configuração social em um ambiente, como entre os indivíduos que acessavam ao
Diário
dos Campos
, cria um padrão regular mas também fluído - de normas e ações
permitidas, como um jogo, com padrões próprios e prêmios específicos do ambiente em
questão (ELIAS, 2008).
Por configuração entendemos o padrão mutável criado pelo conjunto de
jogadores não pelos seus intelectos, mas pelo que eles são no seu todo, a
totalidade das suas ações nas relações que sustentam uns com os outros.
Podemos ver que essa configuração forma um entrançado flexível de tensões. A
interdependência dos jogadores, que é uma condição prévia para que formem
uma configuração, pode ser uma interdependência de aliados ou adversários.
(ELIAS, 2008, p. 142).
Ponta Grossa é um município da região dos Campos Gerais do interior do estado
do Paraná, ocupada durante os séculos XVIII e XIX pela economia tropeira e a instalação
das fazendas de invernagem dos animais que passavam pela região em direção ao estado
de São Paulo. A economia das invernadas era intensamente dependente da utilização do
regime da escravidão, inicialmente predominantemente indígena e que, no decorrer do
século XIX, foi substituída pela escravidão negra.
A partir do último quarto do século XIX a região passou por um processo de
transformação social com o declínio da economia tropeira escravocrata (PEREIRA, 1996,
p. 53-54; MARTINS, 2011, p. 47-64) e o desenvolvimento de uma economia mais
diversificada com a instalação de indústrias na cidade (KOHLRAUSCH, 2007, p. 20) e um
nascente comércio urbano (LEANDRO, 1995, p. 12). A chegada de levas de imigrantes
poloneses, italianos, alemães, russos e ucranianos causou um aumento populacional na
cidade que passou, entre os anos de 1890 e 1920 de 4.774 habitantes em 1890 para 20.771
em 1920 (PINTO, 1980, p. 61).
A abolição da escravatura, construção da República e fortalecimento dos
discursos de modernidade também significaram transformações na região. Tais
mudanças impactavam nas disputas sobre a identidade local e estimulavam, entre alguns
2
Sobre Jacob Holzmann ver HOLOWATE (2018) e, embora não seja um produto historiográfico, vale a pena
ler as memórias de seu filho Epaminondas (HOLZMANN, 2004).
3
A utilização do termo jornalista neste ensaio busca apontar aqueles que atuavam na produção das
edições de um jornal. A primeira escola de jornalismo brasileira foi fundada apenas em 1947.
membros da elite local ponta-grossense, a presença de ideais que defendiam a
concepção de cidade urbanizada com seus hábitos de urbs agitada e triunfal” como
signos do “avanço de Ponta Grossa rumo ao progresso.” (ZULIAN, 1998, p. 44).
Esse ideal de modernidade que ganhou força entre esses grupos dominantes
nessa época, apresentava íntimas ligações com os princípios de Ordem” e “Progresso”,
originários do Positivismo. O Positivismo era uma doutrina de pensamento proposto por
August Comte que se propôs a ordenar as ciências experimentais, considerando-as o
modelo por excelência do conhecimento humano, em detrimento das especulações
metafísicas ou teológicas. No plano social, se caracterizou por um princípio evolucionista
das sociedades a partir de estágios menos avançados para mais avançados (Estágios
Teleológico, Metafísico e Positivo), em que a sociedade avançaria em direção ao
Cientificismo e ao Progresso (BRANDÃO, 2011, p. 80-105). Essa concepção iria fazer
parte do cotidiano defendido por alguns grupos de membros da elite local, que buscavam
em seus discursos, defender uma urbanização marcada pela atuação dos poderes
públicos no meio citadino de forma a alterar, modificar e controlar o meio urbano se
embasando em discursos de progresso tecnológico, científico e industrial (PESAVENTO,
2004, p.79).
Porém, esses discursos amplamente presentes no meio social local, não
significavam sua aplicação imediata em práticas sociais, sendo que as transformações na
sociedade local ocorriam em uma mescla, ou seja, com características próprias e em
negociação com as práticas locais. A inauguração do cine Renascença em 1911, por
exemplo, em uma época em que o cinema era visto pelos positivistas como um símbolo
do progresso moderno e “O cinematógrafo coroou [...] toda uma era de grande progresso
técnico ocorrido ao longo do século XIX.” (LEANDRO, 1995, p. 66), também envolvia
especificidades do meio interiorano local. O cinema em Ponta Grossa também exibia
filmes, tal como os cinemas das metrópoles. Todavia, essa não era sua função principal.
O cinema local, também fundado por Jacob Holzmann, tinha por função primordial, servir
como um espaço para a banda Lyra dos Campos tocar (HOLZMANN, 2004, p. 110).
A noção de modernidade se afirmava enquanto um discurso idealizado,
amplamente defendido por grupos progressistas da região. Contudo, esses ideais
modernistas presentes nos discursos do
Diário dos Campos
não significavam uma
prática aplicada sem distinção no meio social. O que ocorria era uma cultura mesclada
entre práticas tradicionais e ideais positivistas que iam sendo apropriados por alguns
membros das elites locais. As tentativas de aplicação da ideologia positivista na vida
cotidiana dependia das condições locais, e em diversos momentos, entrava em choque
com modelos tradicionais de convivência mais antigos, especialmente em Ponta Grossa,
por ser uma cidade interiorana e historicamente dominada por uma elite
majoritariamente conservadora. Tais disputas pelos sentidos do urbano foram alguns dos
responsáveis pelas disputas entre modernidade e tradição e pelas intervenções de
mecanismos dos poderes blicos em determinados grupos locais vistos como símbolos
de atraso, tais como mendigos, parteiras, curandeiros e prostitutas.
Vale lembrar também que a idealização da modernidade não condizia com a
prática social nem mesmo nas metrópoles, como mostram o exemplo do Rio de Janeiro
que conviveu com a chibata e as favelas e Paris com o aumento do desemprego e as
difíceis condições de vida dos mais pobres. Os discursos modernistas produzidos nas
sociedades do início do século XX apresentavam apropriações locais de ideais
(inter)nacionais e, como aponta Chartier “[…] a apropriação é criadora, produção de uma
diferença, proposta de um sentido possível, porém inesperado.” (CHARTIER, 2010, p. 25).
Assim, as representações produzidas sobre a modernidade e o progresso, sejam locais
ou internacionais eram signos com um sentido ideal e não uma reprodução exata da
realidade.
Todavia, o aumento exponencial da população no meio urbano fortaleceu a
produção comercial e industrial através do aumento do consumo na própria população
local e regiões vizinhas. Anteriormente ao período de ascensão da economia urbana, a
principal função da aglomeração urbana era servir como um lugar de descanso e troca de
mantimentos pelos tropeiros (HOLOWATE, 2018, p. 43). Não havia, inclusive, uma
distinção clara entre o rural e o urbano, onde terminava a cidade e começava as
invernadas e o domínio dos grandes fazendeiros. A cidade existia em função da economia
tropeira e a presença das grandes fazendas de descanso dos tropeiros na região. Com a
consolidação do meio citadino, ocorreu o aparecimento de novas classes sociais como os
operários (MONASTIRSKY, 1997, p. 52) e os jornalistas (HOLOWATE, 2016b, p. 25-28), e
favoreceu o desenvolvimento de um sentimento de pertença ao meio urbano, que era
motivado pela vivência e dependência dos moradores da cidade para as atividades que
não dependiam exclusivamente do meio rural, mas da própria cidade. Assim, surgiram
práticas sociais anteriormente não existentes no meio local, tais como o trabalho
operário, a convivência nos clubes, cinema, bares e as atrações oriundas do caminhar
pela cidade, conversar diariamente com conhecidos”, debater a política e a sociedade à
sua volta.
Essas mudanças estruturais na cidade também atraíram fazendeiros para “fazer
negócios na cidade”, passando a assumir também investimentos no meio urbano e
compartilhar espaços de sociabilidades com os imigrantes e investidores citadinos. Com
mais dinheiro circulando, se fortaleceu o comércio citadino, desenvolvido principalmente
por estabelecimentos fundados por imigrantes, com a instalação de açougues, lojas de
secos e molhados, mercearias e sapatarias.
As mudanças na sociedade local também sofreram um impulso com a instalação
das duas ferrovias em Ponta Grossa nos anos de 1893 e 1896 (PETUBA, 2012, p. 1). Além
de facilitarem o abastecimento econômico da região, elas diminuíram radicalmente o
tempo de deslocamento dos cidadãos para os principais centros metropolitanos do país:
se antes uma viagem para Curitiba durava de três a quatro dias e para São Paulo mais de
uma semana no lombo dos animais, após a chegada das ferrovias, é possível encontrar
diversos membros da elite ponta-grossense fazendo viagens diárias para as capitais
(VIAÇÃO FERREA, 1910, p. 1982).
Essa maior integração espacial também estimulou a presença de grupos de
intelectuais entre membros das elites locais da região. Esse fenômeno já vinha ocorrendo
em menor escala desde meados do século XIX, pelo qual filhos de fazendeiros se dirigiam
às capitais de São Paulo, Rio de Janeiro e Pernambuco, onde realizavam seus cursos de
bacharelado (LEANDRO, 1995, p. 13) e, após retornarem à região, assumiam funções no
setor público ponta-grossense ou desenvolviam iniciativas de investimento privadas
junto aos grupos de investidores locais (HOLOWATE, 2016a, p. 23-25). A chegada dos
imigrantes reforçou o processo de injeção de ideias e motivou o estabelecimento de
grupos de pensadores locais responsáveis pelo aparecimento de discussões em Ponta
Grossa sobre temas debatidos no meio nacional e internacional. Tais discursos,
produzidos em diálogo com os textos científicos, eram reconstruídos em relação às
questões sociais locais e os desafios cotidianos desses entusiastas e publicados em
livros, panfletos e jornais (HOLOWATE, 2018, 60-69).
Discursos progressistas com uma sociedade influenciada por grupos de elites
locais conservadoras pode parecer ao leitor uma contradição. Porém, as apropriações de
um discurso são específicas ao interesse daquele que toma um discurso para si. Por isso,
é muito importante ficar atento aos usos do discurso em cada configuração social e em
cada momento. Assim, o que poderia aparentar ser uma contradição é apenas um sinal
da complexidade dos discursos e apropriações em um ambiente específico.
Ao mesmo tempo, deve-se observar que nessa sociedade mesclada, a
estruturação de serviços públicos não ocorriam na mesma velocidade que o aumento
populacional e as mudanças tendiam a atender apenas a alguns grupos sociais mais
privilegiados. A instalação da energia elétrica e a iluminação pública em 1904 atendiam
apenas as ruas centrais. Os dois médicos presentes na cidade em 1911 geralmente
atendiam em farmácias e atingiam principalmente as elites locais. Ao mesmo tempo, a
cidade não dispunha, na primeira década do século XX de um serviço sanitário, água
encanada ou calçamento urbano, faziam com que a população fosse constantemente alvo
das epidemias.
Outro aspecto característico dessas mudanças na sociedade local era a existência
de espaços de exclusão e a xenofobia com alguns grupos de imigrantes. Holzmann, em
uma das páginas do
Cinco História Convergentes
constrói um discurso reinterpretando o
caminho seguido por imigrantes russos após a chegada em Ponta Grossa, onde
desassistidos pelo setor público e decepcionados com a falta de apoio da população
local, muitos deles constituíram residência no meio urbano apesar das dificuldades de
vivência na cidade.
Os russos não eram dorminhocos e vadios. Foram confiadas a eles as piores
terras; houve má administração e abundaram só os maus conselhos aos colonos
desamparados. Daí o abandono das culturas, pois aquela gente tinha que
produzir em outros setores para poder comer. Assim, se a terra era sáfara,
procuravam trabalho em outra parte, permanecendo nas colônias apenas os
velhos e desvalidos. Na cidade, onde vendiam lenha, areia, broas, hortaliças e
salames, muitos deles recorreram aos respectivos ofícios: sapateiros, seleiros,
carpinteiros, barriqueiros; outros foram construir estradas e os mais jovens
empregaram-se no comércio. (HOLZMANN, 2004, p. 48).
Nota-se inclusive, a preocupação do autor em defender os imigrantes contra
discursos que veiculavam no período de instalação destes no meio social ponta-
grossense, como as acusações de serem “dorminhocos” e vadios”. Tais discursos,
combatidos em diversas ocasiões pelo jornalismo local, atingiam principalmente grupos
de imigrantes pobres ou de comunidades mais fechadas (SOPELSA, 2009, p. 2; MACIEL,
1915, p. 1) e apontam para a presença de discursos que imputavam os imigrantes,
especialmente de alguns grupos, como não-morigerados, inadaptáveis, bêbados e vadios
(HOLOWATE, 2018, p. 46). A acusação de não-morigerado”, era utilizada na sociedade
paranaense do século XIX para referir-se aos indivíduos que não se comportavam de
acordo com as leis e regras da etiqueta social defendidas pelas elites socioeconômicas.
Os indivíduos que não se colocavam na função operários das indústrias e comércio,
vivendo do trabalho e buscando a acumulação de capital eram atingidos por essa
preconceitualização que os acusavam de serem incapazes de viver em sociedade e
nocivos para o progresso da região (PEREIRA, 1996, p. 5).
Além dos pobres e imigrantes, grupos de ex-escravos também sofriam com a
marginalização na sociedade ponta-grossense. No final do século XIX, o processo de
abolição da escravatura, embora tenha extinguido a escravidão enquanto uma prática
legal, não promoveu uma igualdade de condições de sobrevivência entre os indivíduos
recém-libertos e a população branca e “[…] não acabou com o regime social e cultural de
discriminação que existia durante a escravidão.” (HOLOWATE, 2016c, p.10). A
marginalização desses grupos também deu origem a respostas dos atingidos, que
constituíram lugares de pertença e associação próprios. Tal é o caso do Clube Treze de
maio, fundado em 1890 em Ponta Grossa portanto dois anos após a abolição da
escravatura no Brasil cujas normas restringiam a participação de forasteiros nas
atividades do estabelecimento (SANTOS; JOVINO, 2018, p. 177).
O jornal
Diário dos Campos
de Ponta Grossa
No início do século XX, no meio nacional, já haviam publicações com algumas
décadas de existência, como o
Jornal do Commercio
(1827-2016) do Rio de Janeiro e o
O
Estado de São Paulo
, vigente desde 1875, da capital paulista. Naquele tempo, era comum
os jornais serem influenciados das elites políticas dos lugares do qual faziam parte. No
Jornal do Commercio
, que geralmente apoiava os interesses da corte do Império, por
exemplo, durante boa parte do Segundo Império, D. Pedro II tinha uma coluna fixa no
periódico. o
Estado de São Paulo
foi um importante veículo de comunicação da elite
cafeicultora paulista em sua campanha de oposição às mudanças dos anos finais do
império e, como tal, se manteve em uma relação de proximidade com essas elites.
No Paraná, embora houvessem tentativas de estabelecimento da imprensa desde a
fundação do
Dezenove de Dezembro
(1854-1890), na primeira década do século XX, o
jornalismo ainda era algo novo. Os jornais de maior fôlego, como o
Diário da Tarde
(1899-1983) e o
A República
(1888-1930), trocavam debates e colaborações com
articulistas de outros jornais. Os colaboradores circulavam de uma publicação para
outra, motivados pelos atritos ocorridos entre as publicações e as oportunidades que
surgiam nos periódicos vizinhos. Assim, a doutrina dos jornais, embora defendesse uma
certa liberdade de seus membros e se posicionasse enquanto uma ferramenta
informativa, na prática, ainda dependiam do apoio político dos grupos poderosos da
cidade, os quais não convinha contrariar, sob a pena de ser marginalizado das redes de
sociabilidades da imprensa local ou mesmo colocar a própria existência do periódico em
risco.
Em Ponta Grossa, a primeira tentativa de estabelecimento de uma unidade de
imprensa ocorreu em 1893 com a fundação do
Campos Gerais.
Porém, a vida do jornal foi
curta. Assim também ocorreu com seus sucessores
Gazeta dos Campos
(1899),
Jubileu
Operário
(1903),
Luz Essênia
(1905),
O Escalpello
(1908) e
O Commercio
(1904). Também
em Ponta Grossa, essas tentativas iniciais de desenvolvimento de uma imprensa
enfrentaram dificuldades, pois geralmente não conseguiam vender assinaturas e
anúncios suficientes para cobrir as suas despesas. Para não fecharem, dependiam do
patrocínio da Prefeitura Municipal ou dos principais grupos políticos da cidade. Com
isso, muitos periódicos tiveram curta duração, pois findado o interesse político e o
desejo em patrocinar a publicação, também terminava a possibilidade de sobrevivência
do jornal (PONTES;GADINI, 2008, p. 7).
O Progresso
que após 1913 se chamaria
Diário dos Campos
foi fundado em 27 de abril
de 1907. A configuração do jornal inicialmente apenas Jacob Holzmann, proprietário;
Augusto Silva, redator; João Antunes de Oliveira, gráfico; Jovito Ferreira, aprendiz e
Epaminondas Holzmann, dobrador das páginas e entregador das edições (HOLZMANN,
2004, p. 329). Como Jacob era músico e não tinha experiência jornalística e Epaminondas
tinha 10 anos, na prática o grosso do trabalho começou com apenas três funcionários
minimamente capacitados. Ainda assim, desde as primeiras edições o jornal apresentava
uma relevante tiragem para a sociedade local
4
e se afirmava como uma vanguarda
intelectual na região com o objetivo de promover o “avanço” da sociedade local e
divulgar as conquistas e transformações da cidade.
[o objetivo do periódico era divulgar] os acontecimentos políticos; as atrações
culturais; a vida social; os avanços urbanos e tecnológicos e os problemas
decorrentes de tais avanços; os acontecimentos fortuitos e pitorescos; quem
chegava e quem partia; tudo era objeto das colunas publicadas em O Progresso.
(CHAVES, 2011, p. 30).
O jornal tinha o formato
standard
, com quatro páginas diagramadas em seis
colunas verticais cada uma. Na maior parte do tempo, as duas primeiras eram dedicadas
à publicação de editoriais, artigos e notícias, enquanto as duas últimas eram preenchidas
com propagandas de medicamentos, estabelecimentos comerciais e indivíduos que
promoviam sua atuação profissional na publicação. Pequenas alterações na diagramação
poderiam ocorrer motivadas por maior ou menor disponibilidade de anunciantes ou
volume de notícias, variando de momentos em que parte da página três ainda
apresentavam alguns textos sobressalentes, e períodos de maior quantidade de
patrocinadores, em que até mesmo parte da página dois acabava sendo utilizada para
propaganda.
Essa configuração social inicialmente pequena foi conquistando no decorrer do
tempo, patrocinadores, colaboradores e leitores. A chegada de Hugo dos Reis em Ponta
Grossa em fins de 1908 e sua entrada na equipe da publicação com a função de redator
literário foi um dos importantes reforços para a configuração do jornal, sendo a figura
4
Fontes e autores divergem sobre a tiragem das primeiras edições. Chaves (2011, p. 29) fala de 300
exemplares e Holzmann (2004, p. 267) fala de meio milhar. É provável que o número tenha oscilado nesse
período inicial de acordo com as assinaturas, vendas e devoluções. Em todo caso, para uma população de
10 mil habitantes, era uma tiragem relevante.
central da publicação durante as primeiras décadas do periódico. Reis atuou no jornal de
1907 a 1921, galgando as funções de redator literário, redator, secretário, gerente e
proprietário do jornal. Socialista convicto, espiritualista e positivista, ele se utilizou da
tribuna do jornal para promover diversas campanhas em defesa do sanitarismo,
educação, do operariado ponta-grossense e daquilo que ele chamava de socialismo
humanitário. Esteve no Contestado durante a guerra, foi um dos representantes dos
grevistas em 1917 e participou de diversas lutas pelo jornalismo local (HOLOWATE,
2016b, p. 39-51).
Com Hugo dos Reis na chefia, a redação teve uma preocupação redobrada com a
construção de uma equipe que pudesse colaborar com a publicação. Nos primeiros anos,
não era incomum que todas as matérias de uma edição fossem artigos da redação ou
republicações de outros jornais. Mas nos anos seguintes, foram criadas diversas
iniciativas para estimular autores a colaborarem com o jornal, inclusive através de
concursos literários, nos quais a partir de uma temática estabelecida, candidatos
escreviam contos e ensaios publicados no jornal e julgados por um júri formado por
personalidades locais convidadas e que incluía o próprio Hugo dos Reis (CONCURSO...,
10 fev. 1913, p. 1). Ocorreram diversos concursos literários, como o “A noite”, de fevereiro
de 1913. Os textos publicados podem ser encontrados na edição de 1 de fevereiro daquele
ano (CONCURSO..., 1 fev. 1913, p. 1-2). As críticas, réplicas e discussões permearam as
edições seguintes até por volta do dia 20 do mesmo mês. Essas campanhas literárias
facilitaram o reconhecimento de intelectuais do meio local, tal como a escritora Anita
Philipovsky (1886-1967) e favoreceram a aproximação de articulistas de outros jornais,
tais como colaboradores dos periódicos curitibanos
Diário da Tarde
e
A República
, com o
Diário dos Campos
. Isso fortaleceu a continuidade do jornal, de forma que mesmo em
meio às crises e desafios, a equipe do periódico encontrou condições de superar as
perdas.
A configuração social era móvel e no decorrer do tempo tanto os membros
quanto os enfoques do jogo” tendiam a se alterar. Assim, alterações no grupo da
redação, seja através da aproximação ou distanciamento de um membro da equipe, ou
mesmo a chegada e apropriação de novos discursos, tendiam a modificar os
posicionamentos do jornal em relação a determinadas representações. Porém, a
estrutura das configurações, os enfoques centrais, as regras e normas dos discursos nos
jornais as regras do jogo mesmo que com contínuas transformações, permaneciam
existentes (ELIAS, 2000, p. 58).
Assim, a configuração variava de acordo com os jogadores, interesses,
premiações, proibições, discursos e sociabilidades, sejam através de interações,
negociações ou afastamento, pois a configuração é o resultado do grupo enquanto uma
unidade formada pelo todo dos indivíduos.
Entre os membros reconhecidos pela sociedade local atraídos para a configuração
social do jornal pode se notar o médico Francisco Búrzio, imigrante italiano que chegou a
Ponta Grossa após ter se formado na Universidade de Turim. Búrzio conquistou o
respeito da sociedade local pela sua qualidade enquanto cirurgião e seu conhecimento
intelectual, especialmente na área médica. Tendo chegado em 1908, era um dos raros
casos em que um médico atendia em um consultório próprio.
O jornal cedeu espaço para Búrzio boletins médicos e o entrevistou como uma
autoridade em questões médicas e biológicas como forma de aproximar e angariar o
profissional para a equipe de colaboradores da publicação. Búrzio, por sua vez, foi um
dos indivíduos que durante a maior parte do recorte da pesquisa comprou espaço de
propaganda no
Diário dos Campos
. Também Flávio Carvalho Guimarães (1891-1968), um
dos mais bem-sucedidos políticos ponta-grossenses, membro da elite fazendeira local e
literato, foi atraído pelas páginas do
Diário dos Campos
. Amigo pessoal de Hugo os Reis,
foi colaborador assíduo do jornal, especialmente durante seus tempos de estudante de
Direito e seus primeiros anos após a graduação, o que certamente favoreceu a seu
reconhecimento como figura política no meio local e, nos anos seguintes, facilitou suas
campanhas eleitorais. Assim, fazer parte das sociabilidades do jornal era interessante
para ambos os lados da rede de interesses.
Nas suas primeiras publicações, a unidade jornalística apresentava sinais de uma
estrutura improvisada. As ferramentas de impressão na primeira edição “[…] incluíam
uma prensa do tempo de Gutenberg.” (HOLZMANN, 2004, p. 268). Contudo, no decorrer
das edições o jornal foi se profissionalizando, sendo essa prensa substituída pouco
tempo depois por um prelo alemão em que o gráfico fazia girar a manivela ligada a polia,
e posteriormente, por prelos cilíndricos movidos a pedal (HOLZMANN, 2004, p. 268-
269).
A publicação passou por diversos proprietários, indo das mãos de Jacob
Holzmann para a
Companhia Typographica Pontagrossense
uma associação entre
empresários, comerciantes e políticos locais que tinha Jacob Holzmann como presidente
e Hugo dos Reis como secretário , tornando propriedade da
Hugo dos Reis & Cia
uma
associação entre Hugo dos Reis e sua esposa e sendo vendida para os irmãos Cadilhe
em 1921, sempre por déficit orçamentário e falta de apoio financeiro para cobrir as
despesas de manutenção do periódico nas terras princesinas. É, aliás uma das
regularidades do
Diário dos Campos
naquele período o fato que mesmo possuindo um
reconhecimento social considerável, especialmente após 1913, ainda assim, o jornal
continuou seguidamente passando por crises financeiras. A liquidação da
Companhia
Typographica Pontagrossense
em 1915 e a venda do jornal para os irmãos Cadilhe em
1921 foram estratégias de sobrevivência da publicação que com contínuo
déficit
orçamentário, caminhava à beira da falência. Reis se retirou para o interior de São Paulo
após sua saída do jornal em 1921 onde viveu seus últimos anos de vida em condições
muito próximas da pobreza.
Além da falta de investimentos, a publicação enfrentou também, em diversos
momentos, a hostilidade de parte da elite local. O jornal se aliou politicamente ao grupo
capitaneado pelo Dr. Elyseu de Campos Melo, um fazendeiro, político, advogado e membro da
elite local ponta-grossense, conseguindo, com isso um importante apoiador para o jornal e que
em 1913 seria um dos principais investidores da
Companhia Typographica Pontagrossense
. Mas
os discursos do jornal sobre a atuação da direção da ferrovia local resultou em perseguições e
ameaças. Em 1909, em virtude de disputas políticas, o jornal sofreu uma tentativa de
empastelamento
5
e os redatores Hugo dos Reis e Jo Dutra foram, inclusive, espancados por
um grupo de opositores políticos na própria tipografia do jornal (O CASO..., 8 jun. 1909,
p. 1-2). Quatro anos depois, a Câmara Municipal de Ponta Grossa, naquele momento sob
controle de um grupo que se opunha ao que considerava ser um monopólio da
comunicação pelo
Diário dos Campos
daria apoio à criação ao
Município
, um jornal local
para competir com o
Diário dos Campos
. Porém, tal como tantos outros periódicos
locais, também este teve uma curta existência
6
.
Passados alguns anos, em 1915, alguns membros da configuração social do jornal
entraram em um ardoroso debate com o médico Francisco Barbosa Maciel, sobre os
significados da raça e a eugenização do sul do Brasil. Maciel, tendo recentemente
retornado de uma viagem acadêmica ao Império Alemão, defendeu um discurso de
eugenização a partir da germanização cultural do sul do Brasil, se apoiando em uma
apropriação heterodoxa dos discursos eugenistas e em oposição aos discursos de
evolução da raça defendidos pela equipe da redação, que tinha uma forte influência das
ideias neolamarckistas e do sociólogo Sílvio Romero. Os textos do médico geraram
reações e Maciel acabou sendo acusado por muitos colaboradores do jornal de
“antipatriótico”. Nesse momento, a recognição da equipe do jornal era tamanha que
após mais de cinquenta textos de debates entre os contendores publicados no jornal, o
5
Empastelamento de uma tipografia é um tipo de atentado com objetivo de danificar os equipamentos de
impressão e produção de jornais.
6
Sobre a contenda entre a redação do
Diário dos Campos
e a Câmara Municipal de Ponta Grossa, ver o
artigo
Relações de Poder: A contenda entre o jornal Diário dos Campos e a Câmara Municipal no alvorecer
da imprensa ponta-grossense
, de minha autoria na qual são esmiuçados os fatos relativos a essa disputa
(HOLOWATE, 2015, p. 1-18).
médico, desacreditado, acabou tendo que migrar para São Paulo (HOLOWATE, 2018, p.
125).
Dois anos depois, em 1917, a equipe do
Diário dos Campos
esteve ativa durante a
Greve Geral, junto ao operariado ponta-grossense. O movimento foi amplamente
veiculado ao jornal, com geralmente mais de uma matéria sobre a temática em cada
edição da publicação, do dia 20 de julho até o final de agosto de 1917. Algumas
personalidades do jornal tiveram papéis de destaque durante o movimento grevista,
entre eles, Hugo dos Reis, que atuou principalmente como porta-voz dos grevistas nas
negociações com os patrões e Flávio Carvalho Guimarães, que assumiu a função de
advogado do movimento em Ponta Grossa. Diversos documentos sobre a greve de 1917
em Ponta Grossa, incluindo discursos de seus líderes e atas dos encontros dos grevistas
foram publicados nas páginas do jornal.
Como todo sistema relacional baseado na sociabilidade, e especialmente por ser
uma equipe que tinha cronogramas próprios uma edição do jornal tinha que ser
fechada a cada dois dias a configuração era flexível e mesmo bastante volátil.
Colaboradores poderiam parar de escrever por motivos particulares, ou escrever mais,
ter mais atenção, receber mais ou menos reconhecimento ou serem restringidos e
marginalizados. Assim, se observa que na configuração em 1907, 1909, 1913, 1915, 1917 e
1921 ocorreram transformações tanto na estrutura quanto na recognição social e nas
sociabilidades que a engendravam. Porém, a estrutura ainda era a mesma e manteve os
mesmos elementos centrais, como a presença de Hugo dos Reis, a mesma estrutura de
colaboração, foco e escopo do jornal.
Reis saiu do jornal em 1921, motivado por crises financeiras e por outros
interesses do jornalista, vendendo a publicação para os irmãos Cadilhe. O jornal mudaria
alguns de seus enfoques principais e a rede de sociabilidades dos colaboradores do
jornal sofreria, nos anos seguintes, uma série de transformações. Todavia, o jornal
sobreviveu. Manteve-se ininterrupto nos seus primeiros anos graças a configuração, os
discursos, as negociações e as relações sociais que foi capaz de construir. E após 1921
continuou publicando trissemanalmente até a atualidade com apenas uma pequena pausa
na década de 1990.
Considerações finais
Assim, observamos que a configuração social desenvolvida em volta do
Diário dos
Campos
compreende um processo histórico-social em que a sobrevivência do jornal
esteve diretamente ligada à flexibilidade e dinamismo de sua configuração, construída e
moldada em meio a relações de interesse político, comercial, simbólico e afetivo.
Nesse ambiente, as sociabilidades e o compartilhamento de discursos e ideais nas
páginas do periódico poderiam produzir choques discursivos, mas também serviram de
espaços de reconhecimento, fortalecimento e aproximação entre os membros dessa
configuração, premiando, consagrando e agregando seus membros e também atraindo
cada vez mais para dentro da configuração o apoio político e econômico de alguns
indivíduos também da elite local da região.
Dessa forma, a configuração social do
Diário dos Campos
foi se consolidando e se
modificando no decorrer do tempo. Esse processo está em correlação com as
transformações na sociedade local e nacional daquele período, tais como a chegada dos
imigrantes, a instalação das ferrovias, declínio da economia tropeira e a modernização e
industrialização do meio urbano.
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