FACES DA HISTÓRIA
81
Entrevista com José Carlos Reis
Entrevistadores
CRACCO, Rodrigo Bianchini
SILVA, Tiago Viotto da
Em seu segundo número, a Revista Faces da História entrevista José
Carlos Reis. Professor do Departamento de História da Faculdade de Filosoa
e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Reis
dedica seus estudos às áreas de Teoria da História e História da Historiograa.
Sua contribuição é capital, com a publicação de diversos artigos e livros
consagrados à reexão sobre a teoria-metodologia da história e o lugar que
ela ocupa na produção do conhecimento histórico. Dentre sua vasta produção,
pode-se destacar as obras: Tempo, História e Evasão, Nouvelle Histoire e
Tempo Histórico: a contribuição de Febvre, Bloch e Braudel, As Identidades do
Brasil: de Varnhagen a FHC e A História Entre a Filosoa e a Ciência.
Com formação mista em História e Filosoa
1
, Reis, na conversa que
segue, aborda as possibilidades de relação entre tais disciplinas, sobre os
desaos dos prossionais que se dedicam a relacionar ambas as áreas, sobre
o espaço da reexão teórica no labor dos historiadores, bem como sobre as
implicações ético-políticas envolvidas nas escolhas teóricas que constituem a
prática do historiador. Além disso, o professor comenta, também, os trabalhos
de Friedrich Nietzsche, Paul Ricoeur e Michel Foucault, pensadores que, cada
qual à sua maneira, procuraram pensar a história.
Esperamos que a entrevista contribua não somente àqueles que
se dedicam, especicamente, à área de Teoria e Filosoa da História, mas
também a todos os estudantes e pesquisadores interessados em reetir
acerca do próprio fazer historiográco. Aproveitamos para agradecer a
gentileza do professor Reis em conceder a entrevista para a Revista Faces
da História. Boa leitura.
Revista Faces da História (RFH): O tema do atual dossiê da Revista
Faces da História é “História e losoa: elos e confrontos entre genealogia e
hermenêutica na historiograa”. A ideia de fundo, que orienta a publicação,
é a complicada relação entre história e losoa, seus desdobramentos e as
1 Graduação em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (1981), mestrado em
Filosoa pela Universidade Federal de Minas Gerais (1987), mestrado em Filosoa pela
Université Catholique de Louvain (1989) e doutorado em Filosoa pela Université Catholi-
que de Louvain (1992). É pós-doutor pela École des Hautes Études en Sciences Sociales
(Paris, 1996/97), pela Université Catholique de Louvain (Bélgica, 2007/08) e está desen-
volvendo atualmente um terceiro pós-doutrado na UFRJ (Universidade Federal do Rio de
Janeiro).
82
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº2, p. 81-89, jul.-dez., 2014.
Rodrigo Bianchini Cracco
Tiago Viotto Da Silva
consequências para ambas as disciplinas. Como renomado pesquisador
da área, o senhor poderia nos apresentar um panorama dessa questão,
considerando a sua formação mista entre história e losoa e baseado em
seus estudos e publicações?
José Carlos Reis (JCR): Seria preciso distinguir as relações entre
história e losoa das relações entre historiadores e lósofos, embora possa
parecer uma falsa distinção na medida em que não pode haver relação
entre história e losoa sem a mediação dos seus prossionais. Contudo,
isso seria verdade se os historiadores detivessem o monopólio do estudo da
história-realidade, que, na verdade, é muito maior do que qualquer escola
historiográca. Todo homem vive na história e, imerso nela, torna-se um
lósofo e cronista da sua experiência. Todo homem é, em germe, lósofo e
historiador e, nesse nível, as relações entre história/experiência e losoa/
reexão sobre a vivência são intensas.
Mas, a pergunta é sobre as relações entre historiadores e lósofos,
que são tensas. A tensão é maior, beirando a aversão total, por parte dos
historiadores, que não entendem o modo losóco de abordar o objeto “história”.
Para eles, o lósofo o aborda com “ideias”, com “a priori”, com “pontos de
vista fechados”, como se a história tivesse uma forma, um o, uma trama,
um sentido. O lósofo aborda a história sem frequentar arquivos, sem citar
fontes primárias, sem descer ao chão da experiência e com uma uência, uma
eloquência, digna de um gênio ou de um hospício. Para o historiador, o lósofo,
não importa qual a sua tendência, trata o tema da experiência temporal de
forma irresponsável. Não é assim, como eles dizem, que os homens viveram,
vivem e muito menos viverão. Essa resistência dos historiadores à especulação
em história, por um lado, faz sentido.
Os lósofos, por sua vez, ignoram as objeções e censuras dos
historiadores e realizam, intensamente, aquela situação inicial do homem diante
da sua experiência. Para eles, os historiadores são técnicos competentes, mas
não têm o monopólio do conhecimento histórico e não podem impedi-los de
fazerem o seu trabalho. O historiador quer resolver com métodos e técnicas
problemas que exigem “reexão”, “perlaboração”, “pensamento” e operações
cognitivas que não conhecem. É necessário e urgente pensar a história,
atribuir-lhe alguma ordem e sentido, pois é preciso fazer escolhas e agir. A
existência e a práxis desaam a reexão. Até mesmo um genealogista, que
insiste em rupturas, descontinuidades, ausência, inessência, está procurando
atribuir alguma ordem e sentido à experiência temporal. Eu diria que a história
tem sido um dos temas maiores dos grandes lósofos, sobretudo, dos séculos
XVIII, XIX e XX: Voltaire, Hegel, Marx, Comte, Nietzsche, Heidegger, Sartre,
Foucault, Ricoeur e muitos outros.
83
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº2, p. 81-89, jul.-dez., 2014.
Entrevista com José Carlos Reis
Talvez, seja preciso ao estudante, prossionalmente, fazer uma
escolha: “eu quero abordar a história como lósofo ou como historiador?”
Feita a escolha, ele saberá como operar. Mas, se ele considera que losoa
e história são tão complementares que se deveria até escrever losoa &
história e quiser ser um “historiador-lósofo” ou um “lósofo-historiador”,
como eu mesmo escolhi, como Henri I. Marrou, R. G. Collingwood, François
Dosse escolheram, terá de conviver com a previsível resistência e objeções
de uns e outros. Quem fez essa escolha, e são poucos, tem uma vocação
dupla e deve tentar articulá-la da melhor maneira e o resultado pode ser muito
positivo e produtivo, apesar das diculdades de inserção institucional e de
reconhecimento pelas duas comunidades, para obtenção de bolsas, para ser
aceito em concursos públicos.
Anal, ele é um “estranho” para uns e outros.
RFH: Sabe-se que parte dos historiadores considera a pesquisa
teórica uma vertente bastante especíca e que deve car a cargo de poucos
pesquisadores experientes (essa posição reete, em geral, a famosa armação
de Pierre Chaunu). Outros, contudo, defendem a necessidade de uma ampliação
do debate teórico entre o maior número possível de prossionais, visando ao
aprimoramento do debate e uma crescente lucidez quanto à apropriação de
diferentes fundamentações teóricas. Conforme sua experiência nesse campo
de trabalho, qual a relevância do trabalho do historiador epistemólogo?
JCR: A teoria da história não se restringe à epistemologia. A história
propõe inúmeras questões à reexão teórica: políticas, estéticas, éticas,
teológicas e losócas. A teoria da história é um campo amplo que coloca em
diálogo lósofos, historiadores, sociólogos, antropólogos, literatos, psicólogos e
psicanalistas. Ela deve estar a cargo, não apenas, de “pesquisadores experientes”,
ou seja, mais velhos, mas de todo aquele jovem que tem aquela dupla vocação,
que deve começar a praticar o mais cedo possível, para, nalmente, tornar-se
um “pesquisador experiente”. Ele terá de enfrentar a resistência dos “empiristas”,
que vão lhe dizer o tempo todo que o que ele faz “não é história”. E o fazem com
uma sionomia rancorosa! E perseguem institucionalmente esses “lósofos”
como historiadores amadores. Eu mesmo, às vezes, apesar de uma extensa
produção de relativo reconhecimento, sinto-me caçado pelos corredores
institucionais: “peguem aquele não historiador”. Confesso que isso me constrange
e desestimula a minha pesquisa. Apesar disso, é o que aprecio fazer e acho a
área de teoria-metodologia central na cultura histórica, incluindo a interlocução
com os lósofos (e sociólogos, antropólogos, críticos literários, psicólogos). E
todo curso de história deve ter um conjunto de disciplinas dedicadas a essas
discussões, dirigidas por professores com vocação teórica e bem preparados.
84
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº2, p. 81-89, jul.-dez., 2014.
Rodrigo Bianchini Cracco
Tiago Viotto Da Silva
Elas formam o “sujeito da pesquisa”, o historiador, que deve ser um pensador/
problematizador das fontes.
RFH: A expressão “teoria da história” comporta inúmeras acepções.
Desde uma teoria sobre o conhecimento produzido pelos historiadores até um
debate que extravasa as fronteiras da disciplina. Várias instituições de fomento
à pesquisa, por exemplo, têm uma área comum intitulada Teoria e Filosoa da
História
2
. Todavia, em outras situações, apresenta-se teoria e método como
elementos ou etapas apartadas na construção do conhecimento histórico.
Gostaríamos que o senhor nos falasse sobre as diferenças e/ou auências
entre método, teoria e losoa da história.
JCR: Não considero “teoria” e “método” como etapas apartadas na
produção do conhecimento histórico. Eu prero utilizar a expressão “teoria-
metodologia”, porque não há “método” que não pressuponha problemas e
hipóteses, escolhas de objeto, de fatos e processos, de técnicas e abordagens,
de fontes. Para mim, a teoria antecede e dene a metodologia que, a rigor,
não existe, no sentido puramente técnico do termo. Toda metodologia é uma
“construção”, orientada por obras referenciais teórico-losócas e historiográcas.
Nenhum historiador aplica um “método” exatamente igual ao outro. O trabalho
do historiador é criativo, heurístico. Ninguém pesquisou e escreveu a história
exatamente como zeram Braudel, Marx, Ginzburg, Michel de Certeau. Eles
funcionam como referência, como modelo, como inspiração, mas toda obra
histórica válida é teórico-metodologicamente original. Eu diria que “história é
teoria”, porque não são as fontes que denem o que vai ser narrado, mas a
perspectiva, a direção, o ponto de vista do historiador. No nal, a pergunta que
se faz ao historiador é: a que escola de pensamento histórico você pertence?
Você se situa em qual grupo historiográco? Quer dizer, como você representa
a temporalidade, o objeto, a fonte, o método, a técnica? E o historiador se
obrigado a explicitar a teoria-metodologia que sustenta a sua pesquisa.
RFH: No texto “A operação historiográca”
3
, Michel de Certeau
estabeleceu como incontornável a questão do lugar social para a história da
historiograa. Em suma, seria fundamental pensar a relação da produção
historiográca com a sociedade em dois sentidos: as formas como
historicamente a sociedade oferece/impõe problemas para a operação
historiográca e os efeitos do produto dessa operação na sociedade. Naquelas
poucas linhas, Certeau oferece apenas algumas pistas de um método para
pensar essa questão e, aparentemente, recusa o método sociológico aplicado,
2 Reconhecida como uma subárea da História, com o número 70501009. Conforme Tabela
de Conhecimento da Capes. Disponível em http://www.capes.gov.br/avaliacao/instrumen-
tos-de-apoio/tabela-de-areas-do-conhecimento-avaliacao
3 CERTEAU, M. A Escrita da História. Tradução: Maria de Lourdes Menezes. ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2008.
85
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº2, p. 81-89, jul.-dez., 2014.
Entrevista com José Carlos Reis
por exemplo, por Pierre Bourdieu. Como o professor pensa essa questão? E o
que tem a nos dizer a respeito do historiador como sujeito social?
JCR: Esse texto “bíblico” de Michel de Certeau, profundamente
foucaultiano, apesar da linguagem barroca, quer dizer algo simples: nenhuma
pesquisa histórica é feita fora de instituições, que estabelecem o conceito e
as regras da sua fabricação. Nenhuma obra histórica é alheia à sociedade/
época em que foi produzida. Febvre pôde combater a história que chamava de
positivista/historicista, porque percebeu que a sociedade mudara e exigia uma
nova abordagem do seu passado, percebeu que ela estava insatisfeita com as
instituições históricas e impunha a recriação dessas instituições. Enm, todo
trabalho intelectual é, ao mesmo tempo, uma criação individual, institucional e
social. E ele mostra como funcionam as pressões institucionais e sociais. Eu
sou crítico desse texto, porque acho que ele fecha as possibilidades de criação
individual, submete o trabalho histórico a coerções, impõe uma linguagem
uniforme, que, muitas vezes, indivíduos talentosos conseguem contornar e
superar. Provavelmente, contra a disciplina institucional de Michel de Certeau,
os melhores trabalhos históricos sejam aqueles que não se submeteram às
instituições e pressões de uma época e conseguiram inaugurar um novo tempo.
Ao abrir um novo tempo, o historiador torna-se um “sujeito social” precioso,
importantíssimo. Os clássicos da historiograa brasileira foram produzidos por
esses indivíduos talentosos que, com um uso original de teorias-metodologias
existentes, zeram uma nova conguração da experiência temporal, atribuindo-
lhe um novo sentido e abrindo o seu horizonte de expectativa. Muitos clássicos
da historiograa brasileira não foram produzidos por historiadores stricto sensu
e são bastante inuentes nas pesquisas históricas. A sociedade precisa muito
desses “sujeitos sociais”, os historiadores, que se submeteram/romperam com
coerções institucionais e sociais. Hoje, se não houver uma revisão/ruptura
com essa “escrita institucional” da história, os jornalistas vão se tornar os
“historiadores” do nosso tempo.
RFH: Em sua visão, quais as implicações ético-políticas das escolhas
e liações teóricas para a prática do ofício do historiador?
JCR: A obra histórica pode contribuir para a conservação do status
quo ou para a sua transformação. As implicações ético-políticas das escolhas
e liações teóricas são essas: você quer manter a ordem e, para isso, você se
torna cego e acrítico aos seus problemas, ou você quer transformar a ordem
e, para isso, você precisa mostrar suas limitações e diculdades e tornar-se
um crítico social? Para mim, e essa é a minha escolha, uma historiograa
deve ser crítica do seu tempo e sociedade pela mediação do passado. Ou
melhor, o sentido da ida ao passado é a problematização do presente e a
abertura do horizonte de expectativa. Um historiador que não seja crítico social,
86
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº2, p. 81-89, jul.-dez., 2014.
Rodrigo Bianchini Cracco
Tiago Viotto Da Silva
para mim, não faz muito sentido. Benjamin distingue o historiador “empático
com o vencedor” daquele que é “empático com os vencidos” e abomina o
primeiro. Para mim, e essa é a minha escolha ético-política, bom historiador
é aquele que narra o tempo vivido a contrapelo. Mas, os que preferem
se adaptar ao presente e à sociedade atual e ensinam que “a escravidão foi
legal e consensual”, que “a Ditadura foi apenas uma época histórica”, que “a
inquisição fez sentido em sua época”, que “o nazismo foi um regime político
histórico”, que se deve “compreender e reconstruir” em seus próprios termos,
sem uma atitude crítica, que é denida como “preconceito”, “anacronismo”. O
conceito historista de “compreensão” é muito complacente com o passado e
pode ser perigoso para o presente-futuro. É a esse “historismo compreensivo”,
conservador que Benjamin rejeita e eu também.
RFH: Quanto ao tema de nosso dossiê especicamente, podemos
destacar a presença de um pensador como fundamental, tanto à genealogia
quanto à hermenêutica, em suas ilações históricas: trata-se de Friedrich
Nietzsche. Como o senhor avalia a importância de Nietzsche para a consciência
histórica ocidental?
JCR: Nietzsche é um autor fundamental para a historiograa, pois criou
o “método genealógico”, consolidado por Foucault, que exerce uma profunda
inuência na historiograa atual. A sua obra “Da Utilidade e Desvantagens
da História para a Vida”
4
é espetacular. Para mim, dois Nietzsche: um
admirável, o desconstrutor da cultura moderna, do platonismo, do cristianismo,
do hegelianismo, que é absolutamente necessário conhecer, para quem quer
pensar a história ocidental e a historiograa. A sua atitude altamente crítica em
relação à moral, ao poder, à ciência, aos conceitos e à verdade, à “bondade
humana”, quem não a conhece é ainda ingênuo. O segundo Nietzsche é o
reconstrutor da cultura, talvez, o “pós-moderno” e, em relação a esse, sou
crítico e resistente. As suas proposições anti-modernas me deixam assustado
e preocupado e prero não ensiná-las. O elogio do Superhomem, daquele que
está além do Bem e do Mal, a ênfase no corpo e natureza, nos instintos, no
animal, na força, a tese de que “viver e ser injusto são a mesma coisa”, acho
que ainda sou muito socrático para admitir. A compaixão e a capacidade de co-
sofrer, não quero perdê-la jamais. A obra póstuma A Vontade de Potência
5
, com
o seu “racismo cientíco”, vejo-a, francamente, como uma orientação nazista.
imaginaram como seria uma sociedade nietzschiana? me disseram
“isso é porque você não sabe nada de Nietzsche!” Pode ser. me disseram
também que “eu não sabia nada de Marx”. Eu prero assim. Essa história
4 NIETZSCHE, F. Segunda consideração extemporânea: da utilidade e desvantagem da história para
a vida. Tradução: Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003. Texto de 1874.
5 NIETZSCHE, F. A vontade de poder. Tradução e notas: Marcos Sinésio Pereira Fernandes
e Francisco José Dias de Moraes. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
87
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº2, p. 81-89, jul.-dez., 2014.
Entrevista com José Carlos Reis
de “saber tudo” é fanatismo, dogmatismo, fundamentalismo, enm, “burrice”.
Tenho medo de nietzschianos, marxistas e cristãos maciços, brandindo as
suas bíblias, transtornados. Para eles, serei fraco demais, ou alienado-inerte
demais, ou pecador demais e o meu extermínio seria justo. Eu prero saber
menos e duvidar, sempre. Descartes é a minha referência: duvido sempre,
metodicamente. E se esses crédulos/fanáticos acham que vou me submeter/
converter às suas interpretações fechadas, ociais, únicas, às suas seitas,
podem esperar sentados.
RFH: Os livros de Michel Foucault eram, declaradamente, de cunho
histórico. Mesmo assim, ainda que pautados em farta referência documental,
os trabalhos arqueológicos e genealógicos desenvolvidos pelo pensador
francês pouco se assemelhavam ao labor dos historiadores de ofício. Este
último aspecto, em particular, gera algumas resistências quanto a um possível
uso do pensamento foucaultiano como referencial teórico e metodológico
para a história enquanto disciplina. Conforme sua perspectiva, de que modo
o diálogo com o pensamento de Foucault pode ser profícuo à produção de
conhecimento historiográco?
JCR: Na minha opinião, o pensamento histórico praticado pela
historiograa, hoje, é profundamente foucaultiano. Todas as suas teses estão
orientando a historiograa, o que prova que a historiograa não tem autonomia
em relação aos lósofos. O que os historiadores pesquisam hoje? As ações de
indivíduos e grupos, as suas estratégias, as suas negociações que expressam
a sua “vontade de poder”. O que Foucault ensinou é que não história global ou
geral que se imponha aos indivíduos a ponto de impedi-los de estabelecer seus
próprios objetivos e lutar pelo que desejam. Todos têm poder e não nenhuma
estrutura cega ou verdade absoluta ou necessidade teleológica que imobilize
ou encaixote os indivíduos. Os indivíduos são capazes de se adaptar, de se
representarem de outra forma para atingirem seus objetivos. Não identidades
xas, estáveis, essenciais que endureçam a necessária exibilidade para se
buscar o poder. Se identidade houver, ela se constrói na história e, no nal, são
“máscaras” que foram usadas mediante um cálculo político. Nada é estável,
essencial, natural. Foucault desnaturalizou, desconstruiu, historicizou todos os
objetos históricos, enfatizando as “práticas históricas”. A ciência, a política, a
economia, a arte, a sexualidade, a família, o homem, a mulher, a criança, a
educação são “práticas de poder”, de disciplina-resistência, combates que dão
formas imprevistas à experiência histórica. Mas, Foucault não a vê, mas
uma história global que se impõe aos indivíduos e direciona os seus combates:
o processo civilizador, a globalização, a europeização do Planeta, a expansão
do capitalismo mundial. Quem enfatiza essa macro-história é Norbert Elias. O
homem foucaultiano é adequado à sociedade-moderna capitalista global, seus
88
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº2, p. 81-89, jul.-dez., 2014.
Rodrigo Bianchini Cracco
Tiago Viotto Da Silva
combates e práticas realizam o processo civilizador. A dupla Elias (macro) e
Foucault (micro), para mim, é que orienta a “história dos vencedores” atual.
RFH: Nota-se, a partir de meados da década de 1980, um progressivo
aumento da leitura da obra de Paul Ricoeur entre os historiadores. No que tange
em especial à questão epistemológica, a ressalva acerca de sua hermenêutica
é, pelo menos, dupla: seja por um grupo de historiadores defensores da
objetividade das fontes, seja por outro de defensores da utilização de métodos
cientícos de forma mais austera. Como o senhor vê a contribuição teórica de
Ricoeur para os historiadores?
JCR: A contribuição de Ricoeur à historiograa, hoje, parece-
me menos contundente do que a de Foucault. Talvez, seja uma inuência
anti-foucaultiana. Ricoeur limita o impacto iconoclasta de Foucault. Nesse
sentido, é uma contribuição importante, porque lembra a necessidade do
“reconhecimento” que se obtém com a “narrativa”, sempre recomeçada.
Ricoeur valoriza o “trabalho de memória”, não para que o passado oprima
o presente, mas para que o presente “tome consciência” e se liberte do
passado. O “círculo hermenêutico”, que é uma narrativa sempre recomeçada
da experiência, que repercute na experiência, modicando-a, gerando cada
vez mais reconhecimento e tornando o sujeito cada vez mais capaz de agir
com responsabilidade, é uma contribuição importante. Estamos longe de
Nietzsche e Foucault: há um sujeito, que não tem uma memória-consciência
absoluta, mas tem; há uma identidade, que não é consciência absoluta, que
inclui alguma alteridade, mas existe; um conhecimento, que não é um
domínio completo da realidade, mas é; uma dialética, que não chega
à síntese absoluta, mas se mantém; um projeto ético-político de “viver
juntos na diferença”, que é um reconhecimento limitado, mas é um horizonte
democrático. O caminho é longo, quebrado, difícil, mas narrável, reconhecível
e o “homem capaz” poderá vencê-lo.
Após Nietzsche e Foucault, Ricoeur reconstrói a tradição socrático-
cristã-kantiana-hegeliana-husserliana Ocidental atualiza-a, tornando-a menos
rígida, fechada e autoritária. Gosto de circular entre os dois: quando Foucault
ultrapassa o caminho de liberdade que propõe e começa a elogiar o indivíduo
predador, além do Bem e do Mal, “seguro na mão de Ricoeur”. Quando este
ultrapassa o projeto poético de reconhecimento e começa a pregar como um
calvinista enfurecido, deixo-o falando sozinho e volto à liberdade foucaultiana.
A verdade é poliédrica, os dois têm razão e ainda há razão para outros também.
RFH: Para nalizar, gostaríamos de agradecer a entrevista e saber
sobre suas atuais pesquisas. O que podemos esperar de suas próximas
publicações?
89
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.1, nº2, p. 81-89, jul.-dez., 2014.
Entrevista com José Carlos Reis
JCR: Tenho um projeto de pesquisa intitulado “Tempos e Narrativas
do Brasil”, no qual analiso obras selecionadas de seis autores: José Murilo de
Carvalho, Fernando Henrique Cardoso, Raimundo Faoro, Evaldo Cabral de
Mello, Raimundo Morais e Darcy Ribeiro. Estou desenvolvendo essa pesquisa
em um pós-doutorado, no Instituto Histórico/UFRJ, sob a supervisão da Profª
Marieta de Moraes Ferreira, com bolsa CNPq. Ele foi concebido para ser uma
espécie de Identidades do Brasil 3
6
, uma continuidade à história do pensamento
histórico brasileiro que z nos primeiros volumes. Eu gostaria de terminar bem
esse projeto e isso signica com uma boa publicação. Ando muito interessado
no “pensamento brasileiro” historiográco, losóco, literário. Ou no Brasil nunca
se pensou? Acho que sim, nós é que nunca valorizamos a língua brasileira, os
nossos autores, as nossas próprias produções. Enm, ando fazendo teoria-
metodologia da historiograa brasileira, estou continuando a minha “história do
pensamento histórico brasileiro”.
Eu é que agradeço a oportunidade dessa entrevista. Abraços.
6 Cf. REIS, J.C. As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. Rio de Janeiro:
Fundação Getúlio Vargas, 2008 e REIS, J.C. As identidades do Brasil 2: de
Calmon a Bonm. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2006.