FACES DA HISTÓRIA
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Recebido em: 07 de abril de 2014
Aprovado em: 03 de agosto de 2014.
Entre discursos e práticas: a atuação do jornal “O Nordeste” no
combate aos “maus costumes” (1922 – 1927)
Between speeches and practice: the role of newspaper “O Nordeste”
in ghting “bad habits” (1922 – 1927)
GOMES, Maria Adaiza Lima
1
Resumo: O trabalho aqui apresentado discute a atuação e os discursos
do jornal católico fortalezense O Nordeste na década de 1920. Este, por
meio de queixas, notícias, denúncias e outros textos publicados em suas
páginas, buscava inuenciar as condutas da população, na tentativa de
uma moralização comportamental para a sociedade fortalezense. Ou seja,
havia um interesse, tanto por parte dos seus redatores, como dos próprios
leitores, de estabelecer padrões comportamentais para a população local.
Nesse momento, a cidade passava por uma série de mudanças como: a
higienização e “progresso”, principalmente, por parte das elites e dos poderes
públicos. Deste modo, os comportamentos tidos pelos grupos citados como
transgressores foram combatidos com maior intensidade, inclusive nas
páginas do citado periódico. Buscamos problematizá-lo a m de analisar
os discursos e as práticas utilizadas como instrumento moralizador dos
fortalezenses.
Palavras-chave: Jornal O Nordeste. Moralização. Controle comportamental.
Abstract: The work presented here discusses the actions and speeches
Fortaleza Catholic newspaper “The Northeast” in the 1920s. This, through
complaints, news, reports, and other texts published in its pages, sought to
interfere in the conduct of the population, in an attempt behavioral moralization
of Fortaleza’s society. In order words, there was an interest on the part of its
editors, as the readers themselves, to establish behavioral standards for the
local population. At this time the city was undergoing a series of changes
that would inuence concerns with your organization, hygiene and “progress”,
especially by the elites and government. Thus, the behavior taken by the
groups mentioned as breakers are now fought with a higher intensity, even
in the cited pages of the journal. Seek, problematize it in order to understand
how, through speeches and other practices, was used as instrument of
moralizing fortalezenses.
Keywords: Newspaper “The Northeast”. Moralization. Behavioral control.
A imprensa registra, comenta e participa da história. Através dela se
trava uma constante batalha pela conquista dos corações e mentes
– essa expressão de Clóvis Rossi dene bem a atividade jornalística.
Compete ao historiador reconstituir os lances e peripécias dessa
batalha cotidiana na qual se envolvem múltiplas personagens.
Maria Helena Capelato
1
Mestranda em História – Mestrado Acadêmico em História e Culturas – Centro de Humanidades –
UECE – Universidade Estadual do Ceará, Campus do Itaperi - Av. Dr. Silas Munguba, 1700, CEP:
60.714.903, Fortaleza/CE. Bolsista FUNCAP. E-mail: adaizagomes@hotmail.com.
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Maria Adaiza Lima Gomes
A Imprensa é composta pelos veículos que exercem o jornalismo. Ela
atua por meio dos periódicos e de outros tipos de transmissão que possuem,
principalmente, a função de informar o seu público. Porém, sabemos que
mesmo que se pense ser neutra, ela carrega consigo muitos dos valores,
ideias, crenças e intenções de quem a produz. Segundo Gabriel Tarde, ao
falar dos publicitas: “Estes, bem mais que os homens de Estado, mesmos
superiores, fazem a opinião e conduzem o mundo” (TARDE, 1992, p. 44).
Concordando com a opinião do autor a respeito do poder da imprensa, de
formação de opinião e de manipulação de ideias, acreditamos ser função do
historiador, a partir de uma análise crítica, trazer à tona, conhecer, analisar e
problematizar a história existente no universo da atividade jornalística.
Tania Regina de Luca, ao falar sobre a escrita da história dos, nos e
por meio dos periódicos, nos diz que suas considerações apontam para:
Um tipo de utilização da imprensa periódica que não se limita a extrair
um ou outro texto de autores isolados, por mais representativos que
sejam, mas antes prescreve a análise circunstanciada do seu lugar
de inserção e delineia uma abordagem que faz dos impressos, a um
tempo, fonte e objeto de pesquisa historiográca, rigorosamente
inseridos na crítica competente (LUCA apud PINSKI, 2006, p 141).
Visto deste modo, nos propomos, no presente artigo, a analisar os discursos
e outras atividades realizadas por redatores e leitores do jornal católico fortalezense O
Nordeste, entre os anos de 1922 e 1927, a m de perceber de que modo era utilizado,
por membros da Igreja e das camadas abastadas da população, como instrumento
moralizador, na tentativa de estabelecer um padrão comportamental para os
fortalezenses. Por meio de notícias, queixas, denúncias, campanhas etc., buscava-se
ajustar a conduta da população a uma moral católica e também civilizadora, criticando
os comportamentos indesejáveis e ditando a maneira como se deveria agir no espaço
urbano, o qual se pretendia que fosse ordenado.
Quando pensamos em moral, nos apropriamos das reexões alçadas por
Edward Thompson (1998, p.152), quando fala a respeito de uma “economia moral”.
Segundo ele, esta “tinha como fundamento uma visão consistente tradicional das
normas e obrigações sociais das funções econômicas peculiares a vários grupos na
comunidade”. Posteriormente, o autor nos diz que uma “norma moral” está relacionada
“ao que devem ser as obrigações recíprocas dos homens” (THOMPSON, 1998, p.
162). A partir do que é expresso pelo autor, percebemos que a Moral está diretamente
ligada ao dever. Assim, uma ação realizada de acordo com a Moral é uma ação
realizada por respeito ao Dever.
Nesse sentido, acreditamos que os discursos do periódico aqui estudado
apontavam para uma Moral católica, mas também adequada à cidade civilizada
pretendida pelas elites e pelos poderes públicos. Sendo assim, os redatores de O
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costumes” (1922 – 1927)
Nordeste explicitavam quais as normas e obrigações que os cidadãos fortalezenses
deviam seguir naquele período, ou seja, como deveriam agir no espaço urbano.
Mesmo não se tratando de um órgão ocial da Igreja Católica, era
conservador e de orientação religiosa, pois fora fundado por Dom Manuel da Silva
Gomes, terceiro bispo e primeiro arcebispo cearense (1912-1941). Este resolveu fundar
o periódico exatamente com a nalidade de preservar e disseminar os interesses da
Igreja na região e de aproximar a população dessa religião e dos seus princípios.
Conforme Pinheiro (2013), com a Proclamação da República e a Constituição
de 1891, que separou ocialmente a Igreja do Estado, o poder da primeira diminuiu.
A partir desse momento, ela passou a sentir a necessidade de reaproximar seus éis
e de manter sua inuência na sociedade brasileira. Foi com essas intenções que, no
início do século XX, ocorreu, com certa frequência, a fundação de jornais católicos no
Brasil, justamente como forma de divulgar seus princípios.
Como vimos, a Igreja Católica se utilizou da chamada “boa imprensa”
para disseminar e defender sua doutrina. Porém, esse objetivo foi realizado também
devido à ajuda de intelectuais católicos leigos, ou seja, pessoas que não pertenciam
ao clero. “Coube a intelectuais leigos da classe média urbana brasileira a tarefa de
divulgação da doutrina religiosa, porque faltavam, nos quadros do clero, sacerdotes
com preparação suciente para essa incumbência” (FURTADO, 1990, p. 9).
Com a mesma intenção foi que, na quinta-feira dia 29 de junho de 1922,
fora lançado em Fortaleza O Nordeste, que circularia até o ano de 1967
2
. Seus
redatores eram Andrade Furtado e José Martins Rodrigues e era administrado por
Ildefonso de Araújo. Sua publicação era diária contendo quatro páginas, desde o
ano de sua fundação até o ano de 1926. Já no ano de 1927, o periódico dobrou o
número de páginas publicadas, ou seja, passou de quatro para oito e, posteriormente,
passou a ter duas edições, a matutina com oito páginas e a vespertina com quatro.
Sua assinatura anual custava 30$000 e a semestral custava 16$000. Porém, em
setembro do mesmo ano houve a alteração de preço isto é, as assinaturas vespertinas
e matutinas passaram a ter valores diferenciados. A do matutino custava 40$000 por
ano, 25$000 por semestre e 15$000 por trimestre. A do vespertino custava 25$000
anualmente, 15$000 semestralmente e 10$000 trimestralmente. Eram vendidos ainda
os números avulsos, que valiam $200 o do dia e $300 o atrasado.
Em todas as edições podemos encontrar uma variedade de anúncios
de produtos e serviços. Eram bastante comuns as publicidades de automóveis,
de pneus, de bancos, de loterias, de advogados, de médicos, de farmácias,
2 Neste ano o jornal foi à falência, devido a uma crise nanceira. Porém segundo Ricarte (2009), “não
é sábio estabelecer a crise nanceira como uma explicação simplista, uma fórmula de causa e efeito
para o fechamento do jornal, existe toda uma composição para que essa crise nanceira tenha tido o
êxito do m do jornal, um contexto externo entre novas visões do Vaticano II, a situação da igreja em
Fortaleza e as ações do regime militar e um contexto interno onde as mudanças de postura inuen-
ciaram um novo olhar sobre o jornal O Nordeste”.
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de remédios, de colégios, de lojas, de alfaiates, de cervejas, de cigarros
etc. De acordo com o próprio jornal, todos os anúncios deveriam ser pagos
adiantadamente. Não sabemos se O Nordeste era nanciado somente pelo
dinheiro arrecadado por meio de assinaturas e publicidade, mas acreditamos
que essa renda contribuiu para o lucro do periódico.
Quanto à presença de imagens, percebemos que as fotograas
apareciam geralmente nas notícias de primeira página, quando estavam
relacionadas às personalidades importantes, como membros do clero ou
políticos. Era comum encontrar imagens também nas publicidades, como as
de remédios, por exemplo. Porém, neles apareciam somente gravuras.
Seus leitores tinham um perl religioso, católico, porém acreditamos que
seus discursos extrapolavam para o restante da população. Em suas edições, além
de notícias do país e do mundo, sempre estavam presentes matérias religiosas e
de cunho moralizador. Cada edição continha uma citação diferente, no canto direito
da primeira página, ao lado do nome do jornal, que deixava clara a sua intenção
de divulgar a religião católica e as normas de conduta que os católicos deveriam
seguir. No dia 05 de outubro de 1922, por exemplo, foi publicada a seguinte frase
de Washington: “A religião e a moral são os primeiros bens de um homem livre”.
Ela demonstra a importância dada a esses valores e a intenção dos redatores do
periódico de difundi-los para seus leitores, passando a ideia de serem bens que
deviam ser preservados.
Em suas edições, a folha tinha um espaço aberto para reclamações
dos leitores a respeito de fatos ocorridos na cidade. Eram as Queixas do Povo.
Porém, em outros locais, também poderiam ser encontradas as reclamações
feitas pela população. Tinha também uma coluna reservada para a divulgação
das ocorrências policiais, a qual pode ser vista como um reforço à sua opinião
a respeito de comportamentos que transgrediam a ordem. No período por nós
analisado, o quadro não tinha um título denido, sendo denominado, às vezes,
como Pela Polícia, e outras como Na Polícia. Existia também a coluna Com a
polícia, que era reservada para as denúncias, por meio das quais os habitantes
da cidade cobravam providências por parte da polícia a respeito dos crimes e
transgressões que aconteciam em Fortaleza.
Escolhemos o ano de 1922 como sendo o ponto de partida desse
trabalho porque foi o ano de fundação do periódico aqui analisado. Desde o
primeiro momento, verica-se a intenção tanto do fundador como de seus
redatores, de defender os interesses católicos e moralizar o público leitor, por
intermédio de suas citações de primeira página, das notícias, das denúncias etc.
Finalizamos nosso recorte temporal no ano de 1927, pois, diante
de nosso trabalho de pesquisa, percebemos uma diferenciação no modo de
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costumes” (1922 – 1927)
proceder e até mesmo na confecção do jornal e dos assuntos abordados. Isso
porque foi um ano de crescimento para O Nordeste. Ele passa a ser o diário de
maior assinatura do estado e começa a ter duas publicações diárias, uma de
oito páginas pela manhã e uma de quatro páginas pela tarde.
Deste modo, diminuem as publicações no que diz respeito ao
comportamento da população, dando espaço para assuntos variados.
Diminuem consideravelmente as queixas e as cartas de leitores e desaparecem
as campanhas, ao passo que aparecem outras preocupações, como a política
e as epidemias, a exemplo da gripe e da lepra. Aparece também um maior
número de notícias, nacionais e mundiais, e de anúncios. Surgem novas
colunas, como a seção de contabilidade, a seção charadística, a página
dos municípios, a página jurídica, a página rural, a página literária, a página
desportiva, a página feminina e a página colegial.
Não estamos armando que nesse ano O Nordeste perdeu totalmente
a característica que tinha de aconselhar, criticar e tentar intervir nos hábitos
dos fortalezenses, mas que, a partir desse ano, os discursos em relação ao
comportamento, que eram vistos quase que diariamente no começo de suas
publicações, passam a ser vistos com uma frequência bem menor.
Como falamos acima, O Nordeste, desde sua fundação teve a função
de defender o catolicismo e de difundir os princípios cristãos. De acordo com
Lima (2013), tinha como colaboradores na confecção dos seus textos tanto
membros da Igreja, a exemplo de padres, como um grupo de intelectuais laicos,
inseridos em uma elite intelectual e política da cidade de Fortaleza que, além
de defenderem e difundirem os ideais católicos, utilizavam-se do periódico,
também, para a disseminação dos seus pensamentos, que extrapolavam o
campo religioso.
Alinhando nosso pensamento com a perspectiva de Le Goff (2003, p.
536), acreditamos que “o documento não é qualquer coisa que ca por conta
do passado, é um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de
forças que aí detinham o poder”. Deste modo, é nosso papel lançar um olhar
crítico sobre nosso objeto, pois, a partir de suas publicações, os acontecimentos
da época foram transmitidos aos diversos setores da sociedade sob a visão
do grupo responsável pela sua edição e impressão, assim como suas ideias.
Para compreendermos o ponto de vista defendido nas páginas do O
Nordeste, devemos percebê-lo não só como um instrumento de evangelização
utilizado pela Igreja, mas também como meio utilizado pelos citados intelectuais
laicos, membros das elites locais, para defender seus interesses e seus valores.
Assim, como na historiograa a contextualização temporal e a espacial andam
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juntas na delimitação de um objeto, consideramos necessário pensar na cidade
de Fortaleza daquele período. Segundo Ítalo Calvino:
Poderia falar de quantos degraus são feitas as ruas em forma de
escada, da circunferência dos arcos dos pórticos, de quais lâminas
de zinco são recobertos os tetos; mas sei que seria o mesmo que
não dizer nada. A cidade não é feita disso, mas das relações entre as
medidas de seu espaço e os acontecimentos do passado (CALVINO,
2006, p. 14).
Como sugere Calvino, o que interessa na cidade não é somente seu
espaço, mas sim a relação entre ele e seus habitantes. São as práticas sociais
nele vivenciadas e os seus signicados que fazem a história. Pensando nessa
conexão, entre a cidade e as práticas sociais nela existentes, compreendemos
que, ao entender o momento pelo qual passava a cidade de Fortaleza, no
início do século XX, entenderemos também muitos dos pensamentos, normas
e valores nela difundidos por seus habitantes.
Pensar Fortaleza, nesse período, quase sempre é pensar nas
transformações pelas quais a cidade passou naquele momento. Esse foi um
período em que a ela havia experimentado, do nal do século XIX para o
começo do século XX, um crescimento econômico e social e com ele também
experimentou remodelações urbanas
3
. Assim, novas camadas sociais foram
surgindo ou se consolidando, como os comerciantes, por exemplo, e com elas,
novos espaços de sociabilidade e novas regras de comportamento.
Na virada do século XIX para o século XX, com a Abolição da
Escravidão e a Proclamação da República, as cidades brasileiras, principalmente
as capitais, passaram por transformações ocorridas nos campos político e
econômico que intensicaram o seu desenvolvimento e urbanização. Acentuou-
se, também, nos principais centros urbanos, uma busca em se alinhar com a
modernidade. De acordo com essa perspectiva, para os setores dominantes,
essas cidades deveriam ser remodeladas e ordenadas.
Conforme nos diz Ponte (2001), guardadas as particularidades de
cada centro urbano, ocorreu, nesse período, mais ou menos o mesmo processo
nas mais importantes cidades brasileiras. Processo no qual ao mesmo tempo
em que se procurava remodelar estruturalmente o espaço público, havia
também a intenção de adequar o comportamento da população a ele.
Procurou-se inserir nas cidades novos hábitos, cuidados higiênicos e
interesse para o trabalho. A partir de então, todos os comportamentos que não
3 Podemos citar, como exemplos dessa remodelação: a instalação da iluminação a gás carbônico
(1867); a elaboração da “Planta Tipográca de Fortaleza e Subúrbios” pelo engenheiro e arquiteto
pernambucano Adolfo Herbster (1875), inspirado nas reformas de Paris feitas pelo Barão de Hauss-
mann; a inauguração dos bondes à tração animal (1880) e do Passeio Público (1880), assim como o
aformoseamento das praças da cidade.
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estivessem nesses moldes, seriam considerados, pelos setores dominantes,
obstáculos para a inserção do progresso. Em Fortaleza, a partir da segunda
metade do século XIX, com maior intensidade na Primeira República,
ocorreram tentativas parecidas de civilização da cidade. Os principais grupos
interessados por essa remodelação foram o dos comerciantes, enriquecidos
com as importações e exportações e o dos prossionais liberais, entre eles
uma elite de intelectuais (PONTE, 2001).
Assim, o desenvolvimento provocado pela exportação do algodão
cearense para a Europa, criando-se condições para que Fortaleza se tornasse
o principal núcleo urbano, tanto econômico, como político do Ceará, e
possibilitando um maior intercâmbio com outras cidades do Brasil e do exterior,
dando assim impulso a essa pretensão remodeladora da cidade (PONTE apud
SOUSA, 2007; BARBOSA, 1997).
Ponte (apud SOUSA, 2007, p. 163) nos diz que:
Ante a essa inédita expansão econômica e urbana de Fortaleza,
convinha aos poderes públicos, elites enriquecidas, e setores
intelectuais procederem um signicativo conjunto de reformas
urbanas, capaz de alinhar a cidade aos códigos de civilização, tendo
como referência os padrões materiais e estéticos dos grandes centros
urbanos europeus.
Essas modicações, porém, não se deram apenas na estrutura física
da cidade, mas também no meio social:
Na esteira daquele contexto de crescimento econômico-urbano, a
estrutura social da cidade também sofreu importantes modicações
com a emergência de novos grupos dominantes, a constituição de
camadas médias auentes compostas em razão da proliferação
de prossionais liberais, além de um contingente de trabalhadores
pobres [...] (PONTE, 2001, p. 24).
De acordo com o autor, o crescimento da população, nesse período,
deve-se aos seguintes fatores: o crescimento comercial, novos serviços
urbanos, a industrialização, a abolição do trabalho escravo e as secas
periódicas. Devido a esse aumento populacional, teriam crescido os problemas
sociais, pois se dicultou o controle da população (PONTE, 2001, p.24).
Para Ponte (2001), as elites acreditavam que, naquele momento,
para que o processo de remodelação da cidade se concretizasse, era preciso,
também, que ela acontecesse concomitante a uma disciplinarização social.
As mudanças na cidade deveriam se estender ao comportamento de seus
habitantes. A partir da leitura de obras como a de Ponte, e também do próprio
O Nordeste, podemos perceber a presença de discursos em torno das
ideias de progresso, de civilização e de ordem, assim como intervenções
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remodeladoras do espaço e das condutas que, para as elites, poderiam
signicar a “modernidade” se aproximando cada vez mais.
Os periódicos do período tiveram papel muito importante na
disseminação de tais discursos. Por meio de notícias, queixas, denúncias etc.,
publicadas cotidianamente, tanto redatores como leitores de alguns jornais da
cidade buscavam ajustar a conduta da população a uma moral civilizadora.
Para eles, comportamentos como a vadiagem, o alcoolismo, a prostituição,
os quais eram realizados principalmente, pelas camadas populares, eram
tidos como transgressões, como práticas que deveriam ser evitadas, pois
representavam atentados contra a moralidade e a ordem pública.
Porém, apesar dessas semelhanças entre os periódicos fortalezenses
do período, percebemos singularidades existentes no O Nordeste. A
característica que, no nosso ponto de vista, foi a mais relevante é a articulação
entre seus discursos e determinadas práticas. Ou seja, O Nordeste teve uma
participação diferenciada, pois ele não só divulgava suas ideias, mas também
procurava outras formas de contribuir para que os “maus comportamentos”
fossem combatidos. Um bom exemplo disso é a prática do campanhismo. Além
de tentarem disseminar seu ponto de vista a respeito de como a população
deveria agir, os redatores do periódico davam início e colocavam em prática
diversas campanhas moralizadoras a m de mobilizar tanto os poderes
públicos como a própria população a combaterem os “maus costumes” que,
muitas vezes, eram retratados como problemas sociais.
No ano de 1922, por exemplo, o periódico começou uma campanha
contra a jogatina existente na cidade na qual, quase todos os dias eram
publicadas denúncias de casas de jogos e eram pedidas providências por
parte das autoridades policiais para solucionar o problema. Durante todo o ano
foram publicadas em quase todas as edições, matérias, notícias e denúncias
sobre os jogos de azar, além de textos que tinham a intenção de moralizar os
leitores, criticando a prática e apontando os males trazidos por ela.
Na edição de 14 de outubro de 1922 procurava-se passar a seguinte
ideia: “o jogo arrasta todos os vícios e bem cedo à esteira de crimes irremediáveis
pesará, como chumbo, na consciência dos que, podendo evitar, consentem a
tamanho atentado aos bons costumes da nossa terra”. Ou seja, na intenção de
impedir que seus leitores jogassem, era passada a ideia de que o jogo induziria
o indivíduo ao vício e a praticar crimes. No trecho apela-se inclusive para o lado
emocional do leitor, dando a entender que quem não evitasse o jogo teria a
consciência passada por atentar aos bons costumes da cidade.
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costumes” (1922 – 1927)
A seguinte notícia a respeito do fechamento de nove casas de jogos
nos traz um exemplo dos discursos publicados em suas páginas e da sua
forma de atuação contra os jogos de azar:
Ainda bem que não cou sem as atenções devidas o apelo que
zemos às autoridades competentes sobre a extinção da jogatina
desenfreada que ora reina em nossa capital.
Estaremos sempre a postos para combater o mal e propugnar
com desassombro por tudo quanto for em benecio social.
O Sr. Dr. Delegado de policia já começou a encetar a sua campanha
benfazeja contra o jogo.
Conforme ontem noticiamos aquela autoridade fechou nove casas,
onde se explorava criminosamente as economias dos incautos e
promete prosseguir energicamente no sentido de sanear essa praga.
De nossas colunas apontamos as espeluncas que acaso fujam
á vigilância policial, para que com mais facilidade possa agir a
autoridade. (O JOGO – Deliberações..., 06 de julho de 1922, p.1.
Grifos nossos).
O autor começa falando do sucesso das denúncias publicadas no
periódico a respeito do jogo na capital, ao mesmo tempo em que expressa
o seu alívio porque as autoridades deram sua atenção ao fato. No entanto,
podemos constatar também que, naquele momento, a extinção do jogo como
se planejava, era uma tarefa difícil, visto que, como o próprio texto fala, ele
estava bastante disseminado na cidade. Era uma prática “desenfreada”.
Em seguida, podemos perceber novamente a função do jornal de
moralizar a população, armando que estava “sempre a postos para combater
o mal”. A justicativa para a sua conduta seria por agir a favor do bem da
sociedade. Logo depois, noticia a ação da polícia contra o jogo, mas não
só isso, aproveita para deixar sua opinião a respeito das casas de jogos,
as quais chama pejorativamente de “espeluncas”. Arma, então, que tais
casas aproveitaram-se dos jogadores desprevenidos para lhes explorar suas
economias.
Ainda no mesmo trecho, podemos observar também a analogia
que comumente se fazia do jogo com doenças, quando se arma que a
polícia promete agir no sentido de “sanear essa praga”. Portanto, a prática é
apresentada como sinônimo de doença. Por m, é demonstrada a intenção
dos redatores de continuar promovendo a campanha contra a jogatina, quando
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Maria Adaiza Lima Gomes
armam que continuarão denunciando as casas de jogos as quais a polícia
não estivesse vigiando.
Como forma de divulgar o trabalho feito pela polícia, sempre que
ela fechava casas de jogos fazia-se questão de publicar a notícia no jornal.
Durante todo o ano de 1922 e nos anos seguintes, continuaram as denúncias
no periódico e as consequentes respostas da polícia.
De fato os jogos eram muito presentes na cidade e contrariavam
os valores defendidos pelo jornal. Eles consistiam em infrações proibidas
por lei, com punições previstas tanto para quem os praticasse como para
quem incentivasse sua prática. Eram considerados jogos de azar, de acordo
com o artigo 130 do Código Penal Brasileiro (1928)
4
, aqueles em que o
ganho e a perda dependessem exclusivamente do fator sorte. Porém, as
loterias, mesmo tendo esta mesma característica, não eram criminalizadas.
Acreditamos que serem legalizadas e, na maioria das vezes exploradas
pelo próprio Estado, não eram combatidas no discurso do periódico. Pelo
contrário, podemos encontrar com grande frequência, as propagandas de
loterias entre os anúncios do O Nordeste, como no dia 22 de março de 1923,
quando o jornal trouxe o seguinte texto: “Qualquer pessoa poderá car RICA
gastando apenas 500 réis, preço de um décimo de bilhete da loteria da Bahia”
(O NORDESTE, 22 de março de 1923, p. 4.).
Outra característica que podemos observar é a utilização de
metáforas no discurso do periódico. Como percebemos, sua utilização distorce
o sentido real do termo sobre o qual se fala. Sendo ele trocado ou comparado
a outro que lhe dá uma conotação que está para além do seu sentido literal.
No trecho do O Nordeste citado anteriormente, o autor compara o jogo de azar
a uma doença quando diz que a polícia promete “sanear essa praga”. Em uma
citação de Ruy Barbosa, publicada no ano seguinte, o jornal novamente traz
essa comparação quando diz que o jogo seria uma “diátese cancerosa”
5
, uma
doença que afetaria o caráter do homem, seria “a lepra do vivo, o verme do
caráter” (O NORDESTE, 28 setembro de 1923, p. 1).
Percebendo isso, alinhamos o nosso entendimento a respeito dos
discursos com a perspectiva de Michel Foucault, quando arma que estes
são “[...] práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam.
Certamente os discursos são feitos de signos; mas o que fazem é mais que
utilizar esses signos para designar coisas. [...] É esse mais que é preciso fazer
aparecer e que é preciso descrever” (FOUCAULT, 1986, p. 56).
4 Dec. nº 847, de 11 de outubro de 1890.
5 A diátese é uma predisposição do organismo a ser atacado por determinada doença. No caso do
texto citado, o autor comparou o jogo com uma predisposição do organismo a adquirir um tipo de
câncer do caráter.
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costumes” (1922 – 1927)
Portanto, os discursos são práticas que possuem intencionalidades
implícitas e o ponto de vista de quem os produziu. Eles contêm signicados e
são construídos com objetivo de formar visões sobre os objetos de que falam.
No caso analisado no presente trabalho, os discursos eram publicados com
o objetivo de divulgar o ponto de vista dos redatores do O Nordeste sobre
o comportamento dos habitantes de Fortaleza, ao mesmo tempo em que se
tentava traçar um imaginário social carregado de simbolismos que contribuíam
para a formação de uma imagem ruim, por parte do público, em relação aos
comportamentos considerados transgressores principalmente para as camadas
abastadas. Dessa maneira, percebemos que os grupos que produziam o
periódico se utilizavam da imprensa para disseminar seu discurso moralizador
na sociedade fortalezense, buscando torná-la uma sociedade ordenada.
Assim como o jogo, o álcool representava o gasto e também o ócio, o
que ia na contramão dos valores defendidos pelo jornal e, principalmente, pelas
elites locais. Valores que giravam em torno das ideias de civilização, disciplina e
de produtividade para o trabalho. De acordo com eles, caberia ao homem ser o
provedor da família, devendo, assim, evitar gastos e poupar o salário que deveria
ser destinado ao sustento da família. Assim, toda atividade que desviasse o
homem dos caminhos do trabalho, ou o tirasse do sossego do lar, era retratada
como atentado à moral e aos bons costumes, conduta não civilizada e como
problema social. Além disso, segundo Ana Lúcia Rosa (2003), nesse período,
o alcoolismo era descrito pelos médicos como uma ameaça não só à saúde de
quem bebia, mas também como uma ameaça ao desenvolvimento e à higiene
pública, ou seja, era visto como um problema social.
Costa (2009) arma que a preocupação com a embriaguez pública,
em Fortaleza, esteve presente no discurso governamental desde o nal do
século XIX. Essas preocupações e a ideia de álcool como veneno e como uma
doença social teriam se intensicado nas primeiras décadas do século XX,
Alguns fatores, porém, possivelmente contribuíram para a
intensicação do combate ao alcoolismo. No ano de 1918 ocorreu o
restabelecimento da chefatura de polícia (Ibid., p. 18), que possibilitou o
aumento do número de prisões relacionadas à embriaguez. Mais ou menos
nesse mesmo período surgiram jornais como o Correio do Ceará (1915) e O
Nordeste (1922) que passaram a noticiar as prisões ocorridas na cidade.
No caso do O Nordeste, existia uma coluna reservada para a
divulgação das ocorrências policiais. Assim, foi criada uma espécie de parceria
entre a polícia e os redatores do periódico, na qual aquela cumpria seu papel
de prender os bêbados e estes divulgavam o ocorrido. No dia 20 de fevereiro
de 1925, por exemplo, o seguinte texto foi publicado no quadro Pela Polícia:
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Maria Adaiza Lima Gomes
Ontem, cerca de 23 horas, José Dornellas Campos andava bastante
alcoolizado no Calçamento de Messejana. Ao entrar no beco Dionísio
Torres, encontrou-se com José Eufrásio da Costa, com quem trocou
palavras ásperas resultando forte pancadaria de bengala.
José Dornellas recebeu vários ferimentos na cabeça no rosto.
Banhado em sangue foi transportado pelo auto ambulância da
Assistência para o hospital da S. Casa, onde recebeu curativos.
Na polícia foi instaurado o inquérito, tendo sido preso o agressor (O
NORDESTE, 02 de fevereiro de 1925, p. 3.).
Pelo que foi noticiado, José Campos agiu violentamente contra José
da Costa sem um motivo aparente. Logo no início do texto é salientado que
o agressor andava “bastante alcoolizado”. Isso leva o leitor a entender que a
agressão foi um efeito da bebida, ou seja, que por ter ingerido álcool José Campos
cou violento e por isso discutiu e bateu na vítima. A relação que se fazia entre a
embriaguez e os crimes, como portes de armas e, principalmente, as desordens
e os ferimentos era muito comum nas notícias publicadas no O Nordeste. Seu
discurso contribuía para a formação da imagem do bêbado como um criminoso,
buscando alimentar o temor e a repulsa a este por parte da população.
Além das ocorrências policiais, também eram publicados outros
textos de cunho moralizador, na intenção de impedir os leitores de consumir as
bebidas alcoólicas. No texto a seguir, baseado em estudos médicos, o padre
A. Pequeno fala sobre os males trazidos pelo consumo de bebidas alcoólicas e
faz a ligação do consumo de álcool dos pais com muitos problemas dos lhos,
entre eles doenças genéticas e problemas mentais:
Há uma campanha salutaríssima que toda imprensa moralizada deve
secundá-la com empenho: a campanha contra o abuso do álcool.
Dentre os problemas sociais da hora presente que mais reclamam
atenção e carinhosa vigilância dos governantes, avulta-se o vício
daninho da embriaguez, os abusos satânicos do álcool.
O Dr. Bourilhou, notável médico e exímio psicologista declara
peremptoriamente: “o álcool faz do honesto chefe de família um ser
mau e terrível, faz sofrer os seus. Imprime as suas taras no corpo e
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Entre discursos e práticas: a atuação do jornal “O Nordeste” no combate aos “maus
costumes” (1922 – 1927)
na alma dos lhos, que serão degenerados, débeis, sem forças e sem
virtudes”.
[...] O Dr. Austrogesilo, nos seus variados estudos clínicos sobre
doenças mentais apela para os degenerados pais alcoólicos a
responsabilidade das variadas moléstias orgânicas dos lhos.
As características, porém, falam mais alto do que os preceitos clínicos
em 362 lhos de alcoólicos, 23 nascem mortos, 107 morrem entre
convulsões, 96 são epiléticos, 16 histéricos, 41 idiotas ou loucos e
apenas 70 normalmente constituídos.
Nas escolas da heroica Bélgica, estão inscritos nos frontispícios
estes salutares dizeres: < a porta de taberna conduz à prisão e ao
manicômio; preveni- vos do uso do álcool (O NORDESTE, 25 de
outubro de 1922, p. 3).
O padre começa por falar da campanha antialcoólica, realizada
não só pelo O Nordeste, mas segundo ele, por toda a imprensa moralizada.
Fazendo uso do termo “salutaríssima” diz que a campanha seria extremamente
favorável à saúde. nesse trecho do texto, podemos perceber a inuência do
discurso médico no combate ao álcool.
Em seguida, o “vício” da embriaguez é citado como um dos maiores
problemas sociais do momento e sugere-se que Estado deve dar sua atenção
a esse fato. Além disso, o ato de beber é retratado como algo satânico, o que,
provavelmente poderia induzir o leitor religioso a não mais realizá-lo. Após dar
a sua opinião a respeito do alcoolismo, o padre começa a falar dos resultados
das pesquisas médicas, o que, além de reforçar a ideia de que álcool traz
malefícios, legitima também seu discurso.
O médico citado assinala os efeitos do álcool sobre o indivíduo. Esse
efeito, porém, iria além do estado de embriaguez. De acordo com o texto, ele
mudaria o caráter do alcoólatra, transformando-o em um mal para a sua família.
A partir daí podemos perceber que o discurso antialcoólico sempre colocava
a família como a vítima do álcool. Daí viria o seu perigo. A família sempre
era retratada como uma instituição muito importante para aquela sociedade.
O álcool como um “destruidor” das famílias, seria também um perigo para a
sociedade.
De acordo com o texto, o “pai de família honesto”, ao se tornar um
consumidor de bebidas alcoólicas, estaria trazendo muitos problemas físicos
para os lhos, ou seja, os efeitos do álcool seriam hereditários, já que o médico
aponta para “os degenerados pais alcoólicos a responsabilidade das variadas
moléstias orgânicas dos lhos”. Além disso, com a frase nal insinua que além
dos problemas para os lhos, a bebida também levaria ao crime e à loucura. O
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periódico, baseado nos discursos médicos, sempre buscava passar ideia de que
o álcool fazia mal para a saúde e corrompia os costumes dos que o consumiam.
Porém, percebemos uma contradição entre o que era dito nos
textos publicados no periódico em relação ao álcool e os anúncios publicados
no mesmo. Ao mesmo tempo em que se combatia o alcoolismo, fazia-se
propaganda de bebidas alcoólicas, principalmente das cervejas, como no dia
02 de setembro de 1922:
Chegou o novo tipo da cerveja Hanseática
Preparada para atender, exclusivamente, às exigências do paladar
cearense. Quem beber um copo da cerveja HANSEATICA, não
beberá mais de outra qualidade. É atualmente a cerveja da moda.
Não tem rival. Experimentem!
Companhia Hanseática --- Rio de Janeiro
Agente geral no Ceará – Álvaro de Castro Correia (O NORDESTE, 02
de setembro de 1922, p. 2).
Acreditamos que o motivo disso seja porque, segundo Costa (2009),
nesse período, no Ceará, ampliaram-se as importações de bebidas de outros
estados e também estrangeiras, como cervejas, vinhos e licores e whiskys,
sendo vendidas como produtos higiênicos e elitizados. Já o ato de beber
cachaça era visto pelo discurso médico como pouco higiênico e civilizado.
De acordo com Rosa (2003, p. 18), existia uma “associação dessa bebida ao
alcoolismo e também a um determinado grupo social, o dos homens pobres,
aqueles que, por sua condição social, já eram vistos como suspeitos”.
É importante perceber, ainda na citação acima, a repercussão que os
discursos publicados no O Nordeste poderiam ter exercido naquela sociedade.
O autor do texto foi um padre, uma autoridade religiosa. Ao se pronunciar
determinado assunto, este, exercendo seu papel de representante da Igreja,
poderia inuenciar a opinião de um grande público, visto que Fortaleza naquele
momento era uma terra na qual a religião católica era fortemente arraigada.
Nesse sentido, acreditamos que, para a população local, o ponto de vista de
um padre seria muito importante e, consequentemente, teria um grande poder
de inuência.
Além do padre ainda temos a citação das ideias de um médico. A
utilização de um saber cientíco pode ser vista como mais uma maneira de
inuenciar os leitores a não consumirem álcool. Além disso, o discurso médico
seria uma maneira de legitimar a campanha contra o alcoolismo feita nas
páginas do periódico.
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Entre discursos e práticas: a atuação do jornal “O Nordeste” no combate aos “maus
costumes” (1922 – 1927)
Como o discurso médico era um dos saberes cientícos em destaque
na sociedade, naquele momento, ele contribuiu muito para a luta contra
estas atividades. O médico tinha o papel de conselheiro, mais do que curar
as enfermidades, usando seu discurso, ensinava aos indivíduos as regras de
higiene a serem respeitadas, em benefício de sua saúde e da saúde pública.
Daí, investir na saúde pública signicava ter cuidado não só com as doenças,
mas sim com os comportamentos, que incluem desde a organização dos
espaços, o comer e o beber até a sexualidade. É nesse contexto que se insere
outra prática bastante criticada no periódico em estudo: a Prostituição.
Esta, apesar de não ser caracterizada como um crime pelo Código
Penal Brasileiro era vista pelos médicos como sinal de doenças e de perigos
tanto para o indivíduo, como para as famílias e para a sociedade como um
todo. Com a busca pela higienização das cidades, se fez forte a presença
de um discurso médico que buscava combatê-la, visto que o espaço urbano
deveria ser organizado e higienizado. Destarte, passou a ser vista como uma
doença social (ENGEL, 1988).
Ela seria uma prática avessa ao que se esperava de uma mulher
naquele momento. Ao prostituir-se, a mulher estaria rompendo com o seu
papel de esposa e mãe, zeladora da família. A prostituta fugia do padrão ideal
de mulher representava o perigo de degeneração da família e da sociedade
como um todo (ENGEL, 1988).
Era também uma prática fortemente ligada à ideia do desperdício.
Seria um dos fatores destruidores do patrimônio das famílias. Ela seria o foco
de degeneração do trabalho e da propriedade do homem/pai. Que estaria
gastando o dinheiro, fruto do seu trabalho, que deveria ser repassado ao lar,
com uma prática física e moralmente degradante (ENGEL, 1988).
No ano de 1923, o periódico deu início a uma campanha moralizadora
contra a prática em Fortaleza:
[...] Mas nós estamos dispostos a fazer agir a polícia, levá-la ao
cumprimento de seu dever, em que ela é tão lamentavelmente
negligente.
Com esta nota de hoje, iniciamos uma campanha viva de
moralização social, na qual esperamos contar com o apoio dos
leitores dignos.
Estes tem a obrigação moral de colaborar conosco para esse m.
Portanto devem trazer-nos para que denunciemos todos os fatos que
para tal possam concorrer, bem como o rol das casas de perdição que
chegarem ao seu conhecimento, de modo a que possamos apontá-
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Maria Adaiza Lima Gomes
las a vigilância das autoridades policiais (O NORDESTE, 26 de maio
de 1923, p1.)
O Nordeste, desse modo, toma a frente no combate à prostituição na
cidade. A justicativa para seu empenho em denunciar a prática seria porque
a polícia não cumpria o seu papel de combatê-la. Uma reclamação publicada
no jornal daria uma maior visibilidade ao fato. Assim, a população também
passaria a reclamar com uma maior intensidade. O próprio jornal pede a
colaboração dos leitores “dignos”, que teriam a obrigação moral de fazê-lo.
Implicitamente, o autor diz que quem não colaborasse não era digno, não teria
moral. Com essas denúncias por parte da imprensa e da população, a polícia
se sentiria constrangida a realizar seu papel na luta contra a prática. Durante
este ano de 1923, as denúncias apareceram mais veementemente. Elas eram
publicadas em um quadro chamado Pela moralização social.
Durante os outros anos, era comum encontrar queixas sobre a
prostituição na cidade e reclamações a respeito do comportamento tanto das
prostitutas como de seus clientes em quadros como As queixas do povo e Com
a polícia. A contribuição dos leitores no combate ao meretrício foi bastante
presente, principalmente através de cartas anônimas publicadas nesses dois
quadros do jornal. Na seguinte carta, em que o leitor assina somente como “Um
pai de família”, é feita a denúncia que um grupo de prostitutas que planejavam
alugar um sobrado na Praça do Ferreira:
Ilmo. Sr. Redator d<O Nordeste>.
Como tem sido este órgão o único a fazer campanha contra a
indecência praticada por mulheres de vida alegre, venho por meio
desta comunicar-lhe que um grupo de mulheres pretende alugar o
sobrado n. 215, à Praça do Ferreira, para se estabelecer e, como só
pode, ofender o decoro da nossa sociedade, é mister que v.s. chame
a atenção das autoridades para este fato.
Certo de que fará v.s. mais um benefício às famílias que frequentam a
Avenida 7 de Setembro subscrevo me atenciosamente.
Um pai de família. (O NORDESTE, 16 de maio de 1924, p. 2).
O leitor, então, pede ao redator que chame a atenção das autoridades
para que não deixem as citadas mulheres alugarem o sobrado. Ou seja, queria
impedir a prostituição naquele local antes mesmo de que ela se consumasse.
O argumento utilizado é de que elas, certamente, ofenderiam o decoro da
sociedade e que impedir que isso acontecesse seria “mais um benefício às
famílias que frequentam a Avenida 7 de Setembro”. Mais uma vez O Nordeste
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Entre discursos e práticas: a atuação do jornal “O Nordeste” no combate aos “maus
costumes” (1922 – 1927)
aparece como um defensor das famílias e o próprio autor da carta deixa claro
que o motivo de ter enviado a carta ao jornal é por ele ser o único órgão a fazer
a campanha contra a prostituição.
É interessante observar a relação de cumplicidade que o periódico
tinha, ou demonstrava ter, com os seus leitores. Eram muito comuns, em
suas folhas, as cartas com queixas da população a respeito de alguns fatos
ocorridos na cidade. Algumas delas eram anônimas ou, como no caso acima,
assinadas apenas como “um pai de família”. Não podemos armar se haviam
sido realmente enviadas pelos leitores, ou criadas pelos próprios redatores do
jornal na intenção de criar para si uma reputação de representante do povo
fortalezense. O fato é que era grande o esforço feito para publicar as reclamações
de seus leitores a respeito das transgressões ocorridas na cidade. Além disso, é
interessante observarmos a importância dessa assinatura. O autor da carta não
estava defendendo um interesse somente seu, mas das famílias fortalezenses,
que eram retratadas como as principais “vítimas” da prostituição. Atendendo ao
pedido do leitor, o redator do jornal estaria as protegendo. O próprio jornal se
dizia defensor dos bons costumes e das famílias.
Além dessa relação de suposta proximidade com o leitor e do
campanhismo realizado, é relevante, ao pensar a atuação do O Nordeste em
Fortaleza e sua inuência naquela sociedade, perceber algumas estratégias
realizadas para a sua propagação na cidade e também para a disseminação
de seus valores e interesses. Deste modo, faz-se necessário notar práticas
como os agenciamentos de compra e venda do periódico, o papel de seus
contribuintes e dos próprios párocos sua divulgação. Geraldo Nobre nos traz
um exemplo desses agenciamentos, quando diz que “seu êxito [do O Nordeste]
foi devido, em grande parte, ao empenho com que monsenhor Antônio Tabosa
Braga recorreu às famílias católicas, tanto da capital como do interior, para que
assinassem o dito jornal” (NOBRE, 2006, p.18).
Assim, a partir das promoções feitas por membros da Igreja, a exemplo
do Monsenhor Tabosa, das campanhas, etc., O Nordeste ganhava seu espaço
na sociedade fortalezense e divulgava os valores católicos, assim como um
padrão comportamental civilizado, que deveria ser seguido pelo seu público.
É nesse sentido que, naquele momento, houve nas páginas do O
Nordeste, uma série de comportamentos combatidos, como a vadiagem, o
alcoolismo, os jogos de azar e a prostituição. Os fortalezenses deviam, portanto,
agir de acordo com as ideias defendidas pelas elites locais, que estavam
relacionadas com a higiene, a saúde e a produtividade para o trabalho.
Percebemos, desse modo, a inserção d’O Nordeste na busca pela
construção de uma cidade idealizada. Cidade que deveria ser civilizada, higiênica
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Maria Adaiza Lima Gomes
e ordenada. Assim, passava-se a ideia de que se deveria agir de acordo com
os padrões e com as convenções a respeito do que seriam considerados “bons
costumes”. De acordo com esse pensamento, a inserção da civilização na cidade
aconteceria a partir do controle do comportamento da população.
Pelo que observamos, a partir da leitura do O Nordeste, os “bons
costumes” eram os comportamentos alinhados com a noção de higiene e
também com a de ordem e de progresso, mas, principalmente, eram os que
estavam de acordo com uma moral católica, a qual era defendida pelos editores
do periódico. Para as mulheres, especicamente, era defendido um padrão de
comportamento segundo o qual ela deveria priorizar a educação dos lhos e
zelar seu lar e sua família, preservando a saúde e o pudor, principalmente das
lhas. para os homens, signicava trabalhar para prover a família e evitar
vícios e desordens.
De acordo essa perspectiva, pensamos o citado periódico como
ferramenta importante utilizada, tanto pelos seus organizadores como pelos
seus leitores, como meio de promover a moralização da população, visto que
em suas páginas era divulgada a necessidade de se disciplinar os costumes da
população, através de suas notícias, da publicação de queixas e de ocorrências
policiais, e também da criação e divulgação das campanhas moralizadoras.
Sua linguagem funcionava como um veículo de intervenção social no cotidiano
da cidade, na intenção de disciplinar os atos dos fortalezenses.
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