Recebido em: 17/12/2014
Aprovado em: 16/02/2015
Francisco Curt Lange e o Americanismo Musical
nas décadas de 1930 e 1940.
Franscico Curt Lange and the Musical Americanism
in the 1930s and 1940s.
MOYA, Fernanda Nunes
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Resumo: Neste artigo, resultante da minha pesquisa de doutorado concluída em julho
de 2014, analisarei a teoria musical de Francisco Curt Lange (1903-1997) – batizada
pelo próprio como “Americanismo Musical”. Em seus escritos, o alemão naturalizado
uruguaio defendeu a integração cultural do continente a partir da música e, para
concretizar seus propósitos, buscou a colaboração de diversos intelectuais de todo o
continente americano fundando instituições e periódicos dedicados ao assunto.
Palavras-chave: Francisco Curt Lange; Americanismo Musical; Música; Cultura.
Abstract: In this paper, resulting from my doctoral thesis, I will analyze the musical
theory of Francisco Curt Lange (1903-1997) – baptized by him as “Musical Americanism.
In his writings, the german naturalized uruguayan defended the cultural integration of
the continent through music and, to achieve his purposes, sought the collaboration of
intellectuals from all over the american continent founding institutions and publications
1. Doutora em História pelo Programa de Pós-graduação em História - Faculdade de Ciências e Letras -
UNESP - Universidade Estadual Paulista, Campus de Assis - Av. Dom Antônio, 2.100, CEP: 19806-900,
Assis, São Paulo, Brasil. A pesquisa que resultou neste artigo contou com financiamento parcial da CA-
PES. E-mail: fernandanunesmoya@yahoo.com.br
Francisco Curt Lange e o Americanismo Musical nas décadas de 1930 e 1940.
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.2, nº1, p. 17-37, jan.-jun., 2015.
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dedicated to the subject.
Keywords: Francisco Curt Lange; Musical Americanism; Music; Culture.
Introdução
Nascido Franz Kurt Lange em Eilenburg, Prússia/Alemanha, a 12 de dezembro
de 1903, no seio de uma família de situação financeira confortável, o personagem
central deste trabalho recebeu desde cedo ampla formação musical e humanística. Em
1927, Lange diplomou-se, sem maiores problemas, em arquitetura pela Universidade
de Munique e também empreendeu, neste período, estudos em filosofia, antropologia,
etnologia, grego e latim. Com poucas oportunidades de trabalho na Alemanha, foi
incentivado por Karl Vossler, amigo e professor de linguística, a emigrar para a América
Latina. Dois anos depois, já em solo americano, concluiu seu doutorado em Música, um
tratado acerca da polifonia dos motetos2 nos Países Baixos, iniciado em Bonn.
O alemão desembarcou na Argentina, mas foi em Montevidéu que se
estabeleceu definitivamente, em 1930, quando recebeu convite do governo uruguaio
para a reorganização da área musical do país. Colaborou com o Servicio Oficial de
Difusión Radio Electra, SODRE, que havia sido criado em 1929, organizando a Discoteca
Nacional que daria suporte à programação musical da emissora de rádio deste serviço.
Logo se naturalizou uruguaio, adaptando seu nome de batismo para Francisco Curt
Lange.
Em pouco tempo, já pesquisava a música uruguaia, argentina, brasileira e de
outros países vizinhos enquanto formulava o seu “Americanismo Musical”3, defendendo
que a música proveria a integração cultural do continente em artigos publicados entre
1934 e 1939 em diversos meios informativos de Nova York, Tlaxcala (México), Cidade do
xico, Santo Domingo (República Dominicana), Caracas, Bogotá, Lima, Montevidéu,
Buenos Aires, Santiago (Chile) e Rio de Janeiro (MONTERO, 1998, p.12).4
Ainda em 1934, iniciou o estabelecimento de vínculos com pesquisadores
brasileiros, entre eles Luis Heitor Corrêa de Azevedo quem o convidou para proferir
uma conferência sobre o Americanismo Musical no Instituto Nacional de Música. No
evento, conheceu grandes nomes da música e da pesquisa musicológica do Rio de
Janeiro e de São Paulo. Travou uma estreita amizade com o compositor Heitor Villa-
Lobos, “quien sería uno de sus grandes apoyos en las atividades de investigación que
desarrollaría ulteriormente en archivos del Brasil” (MONTERO, 1998, p.12). Lange tinha
profunda admiração por Villa-Lobos, principalmente por causa da sua atuação no canto
orfeônico, que incorporava crianças à prática musical.5
2. Composição musical curta, na qual a letra é geralmente um trecho de algum dos textos bíblicos. Possi-
velmente surgiu na Europa do século XII, sendo muito popular na França.
3. Em 1934, Curt Lange publica pelo Instituto de Estudios Superiores uruguaio um livreto chamado “Ame-
ricanismo Musical: la sección de investigaciones musicales, su creación, propósitos y finalidades” onde
explica pela primeira vez o seu conceito de Americanismo Musical.
4. O primeiro artigo que publicou sobre o americanismo musical foi em 1934 na revista de cultura me-
xicana Reforma Social, editada em Tlaxcala. No Brasil, um artigo sobre esse assunto aparece na Revista
Brasileira de Música, em 1935. Em 1939, o americanismo musical é retratado nos Papers read at the Inter-
nacional Congress of Musicology, evento realizado em Nova York no mesmo ano.
5. Em 1940, Villa-Lobos demonstrou a prática do canto orfeônico apresentando-se com 700 alunos de
escolas públicas uruguaias em Montevidéu, a convite de Lange. O pesquisador teuto-uruguaio ainda de-
dicou dois artigos ao compositor brasileiro: “Villa-Lobos, um compositor de transcendência universal”.
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No ano seguinte, 1935, o Americanismo Musical ganhou ainda mais força, nas
páginas do Boletín Latino Americano de Música, fundado por Curt Lange. Tratava-se
de um veículo de divulgação dos seus pressupostos musicais e que também incentivava
a musicologia americana através da publicação de trabalhos de pesquisadores dos
diversos países do nosso continente.
Neste período também assessorou a criação da Discoteca Pública Municipal
de São Paulo, instituto que daria suporte à Rádio-Escola do Departamento de Cultura
desta cidade. Contudo, a Rádio-Escola paulista nunca saiu do papel, devido ao alto custo
que implicaria a sua organização e a sua equipagem. Coube a Discoteca todas as suas
atribuições.6
Atuando com apoio oficial, Curt Lange impulsionou as instituições públicas do
Uruguai voltadas à música e divulgou-as. Agiu ainda na educação musical e idealizou e
fundou o Instituto Interamericano de Musicologia, em 1938 – oficializado pelo governo
em 1940, que tinha como uma das principais atividades a realização de concertos de
música americana. Era comum Lange participar ativamente de festivais musicais como
o Primeiro Festival Iberoamericano de Música realizado em Bogotá, Colômbia, ainda no
ano de 1938. Nesse período, o pesquisador teuto-uruguaio também passou a manifestar
nos seus artigos a preocupação com a música folclórica dos países latino-americanos,
defendendo sua preservação, divulgação e execução. Entre os principais está o texto
Sistemas de investigación folclórica y el empleo del acervo folclórico en la música
artística, publicado em 1936 no BLAM – Boletín Latino Americano de Música.
O defensor do Americanismo Musical ainda estimulou os compositores latino-
americanos com a criação da Editorial Cooperativa Interamericana de Compositores
em 1941. Essa instituição, voltada à “edição de música inédita americana”, em um ano,
durante o “primeiro ciclo de publicações”, editou cerca de trinta obras para piano, violino,
viola etc. No “segundo ciclo de publicações”, entre 1943 e 1952, editou mais de sessenta
obras de jovens músicos do Chile, Uruguai, Argentina, Brasil, Peru, Colômbia, México,
Cuba e dos Estados Unidos. Alguns deles alcançariam mais tarde reconhecimento
internacional (MONTERO, 1998, p.18-19). Segundo Montero, essa iniciativa de Lange
(...) permitió la diseminación en los Estados Unidos, de doce compositores de
Chile, Argentina, Uruguay, Brasil, Perú, Venezuela y México; apoyándose en
las “políticas del buen vecino” fomentadas por el presidente Franklin Delano
Roosevelt durante la Segunda Guerra Mundial (MONTERO, 1998, p.19).
In: Festa. RJ: 1934; e “Villa-Lobos, um pedagogo creador”. In: Boletín Latinoamericano de Música. I/1.
(abril, 1935). p.189-196.
6. “Pelo Ato nº861, a Discoteca é uma das subseções da Rádio-Escola. Esta, não poderá ser fundada
imediatamente, como esta Diretoria já expôs ao sr. Prefeito, pela complexidade excepcional de sua orga-
nização e pelo dispêndio financeiro que isso acarretaria. As suas manifestações, por agora, só podem ser
episódicas, como as irradiações que fará durante a próxima temporada lírica. Mas, se a Rádio-Escola não
pode ser criada já, é de toda conveniência fundar-se imediatamente a Discoteca. As irradiações musicais
vivem grandemente do emprego do disco, e é pois necessário que comecemos desde logo a colecionar
discos escolhidos, de forma a possuirmos, quando a Rádio-Escola principiar a sua atividade, um acervo
discotecário numeroso, para que possa atender às exigências imediatas de irradiação (...)” Ver: Processo
nº 56.869/35, de 19 de julho de 1935. “Exposição de um dos trabalhos do Departamento de Cultura: a
Discoteca Pública Municipal” apud Catálogo: Mário de Andrade, Diretor do Departamento de Cultura de
São Paulo. SP: Centro Cultural São Paulo, p.5.
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Em 1943, morando na Argentina, Curt Lange fez nova viagem ao Brasil. Nessa
oportunidade incentivou a criação de uma discoteca pública na capital do Recife, que
só saiu do papel anos mais tarde. Entre 1944 e 1946, realizou a sua terceira visita ao
nosso país e iniciou seus trabalhos de investigação sobre a cultura musical barroca em
Minas Gerais, sobre a música brasileira do século XX e sobre o pianista e compositor
norte-americano Luis Moreau Gottschalk que faleceu no Rio de Janeiro, vítima de
malária, após uma série de concertos. Nesta década, Curt Lange debruçou-se em suas
pesquisas acerca da música barroca brasileira, ganhando mais espaço dentro da nossa
musicologia.
O Americanismo Musical
O propósito musical defendido por Francisco Curt Lange, batizado por ele como
Americanismo Musical, pautava-se na criação de instituições de pesquisa e divulgação
musical. Após auxiliar a criação de órgãos públicos de ensino e difusão musical no
Uruguai, Lange passou a advogar a cooperação musical entre os países americanos, em
especial os do sul, pois entendia que na região existia um “espírito de latinidade, vivo
e prodigioso” (BUSCACIO, 2009, p.17). Além disso, era urgente para Curt Lange, nas
palavras de César Maia Buscacio,
(...) suscitar, através de pesquisas e publicações acerca da produção musical
contemporânea da América, reconhecimentos mútuos das afinidades culturais
existentes entre essas sociedades, pois, a escuta recíproca de seu legado
musical propiciaria não apenas uma maior valorização, como principalmente
um aprimoramento das possibilidades latentes, contidas na particularidade de
cada corpus musical nacional (BUSCACIO, 2009, p.11).
O alemão radicado no Uruguai tinha convicção na sua “missão” como promotor
da cooperação interamericana e, com esta finalidade, acreditava que a música atuaria
como um agente integrador dos povos. Neste sentido, seu primeiro objetivo foi estreitar
relações entre o Brasil e o Uruguai, para atuarem em conjunto. Após trocar algumas
correspondências com musicólogos brasileiros, Lange foi convidado, por Luis Heitor
Corrêa de Azevedo, a proferir uma palestra sobre o seu Americanismo Musical no
Instituto Nacional de Música no Rio de Janeiro. Dela resultou um artigo, em 1935, na
Revista Brasileira de Música, no qual expôs suas intenções:
Neste momento, que não deixa de ser histórico, o Brasil e o Uruguay estão
construindo, em nossa paizagem artistica, uma ponte indestructível, que
deve servir de exemplo às demais artes. Enquanto na Europa os horizontes
carregam-se de nuvens obscuras, que parecem annunciar uma nova
hecatombe, procuremos eliminar semelhantes possibilidades do Continente
Latino-Americano, contribuindo com nossa arte (LANGE, 1935a, p.113).
7
No primeiro número do Boletín Latino Americano de Música, editado também
em 1935, Lange afirmou que vinha trabalhando no seu ideal americanista desde 1933 e
reforçou o desejo de aliar seus esforços aos trabalhos em desenvolvimento no nosso
7. A ortografia das fontes consultadas para este artigo será mantida nas citações tal como estão no ori-
ginal.
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país. Para essa aproximação, afirmou serem necessários tanto um contato periódico
com possíveis colaboradores brasileiros quanto a organização de um Congresso latino-
americano de Música, “destinado a fortificarnos mutuamente al conocer valores y
confortarnos viendo una multitud de artistas bien inspirados, sanos de spíritu y alma...
(LANGE, 1935b, p.12).
Como já ressaltamos, Lange vislumbrava a organização de eventos e instituições
supranacionais e, por isso, considerou que a língua portuguesa não seria um empecilho
para os propósitos de cooperação entre os países latino-americanos. Sendo assim, no
ideário do Americanismo Musical, não seria adotado um idioma comum:
En el Boletín, los trabajos brasileños aparecerán en su idioma original. Sea
este no solamente un propósito de la dirección, basado en la importancia del
movimiento artístico de aquel país hermano, sino en la justicia más estricta
al obrigar a nuestros suscriptores a la lectura de un idioma que en el suelo
americano ha servido de elemento de expresión a cientos de grandes hombres
cuyo nombres deben sernos tan familiares como aquellos de las demás
Repúblicas del continente (LANGE, 1935b, p.11).
musicólogo teuto-uruguaio ainda chamou atenção ao fato de os povos
americanos desconhecerem características geográficas, econômicas e culturais do seu
próprio continente, enquanto conheciam perfeitamente particularidades do continente
europeu, por entenderem como uma espécie de complemento cultural indispensável
percorrer os países principais do Velho Continente. Para ele, o nosso continente
precisava despertar sua consciência artística e, nos planos políticos e burocráticos,
percebeu que havia um contexto favorável a isso.
Segundo Luis Merino Montero, no período em que Curt Lange se estabeleceu
em Montevidéu, a América Latina via em vários países o “surgimiento de un sistema
estatal fuertemente impulsador de la educación y la cultura” (MONTERO, 1998, p.11).
Este cenário era favorável à organização de institutos estatais musicais de acordo
com as reivindicações de organismos similares que surgiram anos antes na Europa.
O contexto latino-americano também relacionava-se aos propósitos do pesquisador
teuto-uruguaio, uma vez que este defendia que
(...) una sólida educación musical constituye la condición sine qua non
del desarrollo de la música y la musicología de un país, siempre que pueda
irradiarse a todos los sectores de la población, de acuerdo al así llamado
‘proyecto democratizador’ de la modernidad (MONTERO, 1998, p.11).
O Americanismo de Lange, segundo Montero, não se dava apenas em termos de
cooperação regional ou sub-regional entre os países americanos, mas buscava também
uma consciência de nacionalidade a partir do processo histórico de organização destes
países (MONTERO, 1998, p.11). Após essa consciência, o musicólogo americanista
propunha então uma fusão absoluta de sentimentos raciais distintos “para a eliminação
de diferenças nacionais de diferentes caracteres, rumo à estruturação inseparável de
um pensamento orgânico e disciplinado” (BUSCACIO, 2009, p.17). Seus propósitos
valorizavam, portanto, os elementos etnológicos e sociológicos dos povos estudados
relacionando-os com suas próprias histórias (BUSCACIO, 2009, p.20) o que viabilizaria
Francisco Curt Lange e o Americanismo Musical nas décadas de 1930 e 1940.
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o entendimento da relação entre o passado e o futuro das sociedades latino-americanas
e o fortalecimento da identidade de cada país, para que atingissem a consciência de sua
própria identidade e dos interesses coletivos em detrimento aos interesses das elites
locais (CAROZZE, 2012, p.84). Sobre as características emancipadoras e, ao mesmo
tempo, integralizadoras e universalizantes do Americanismo Musical de Francisco Curt
Lange, Rui Mourão escreve:
Numa hora em que o nacionalismo se impunha como a tendência mais
difundida nas artes e uma originalidade principalmente temática vinha sendo
a arma utilizada na tentativa de neutralizar as persistências do colonialismo
europeu, a pregação de Francisco Curt Lange estabelecia um ponto de vista
divergente, ao se posicionar contra os redutos do sectarismo. Ele queria ver
cada país entregue a si mesmo, consciente dos seus valores próprios, mas
sem se isolar dos vizinhos, antes fazendo uso da sua individualidade para
buscar a integração e o intercâmbio, para alcançar a unidade supranacional
do americanismo (MOURÃO, 1990, p.22).
O território musical da América, ao entender do pesquisador teuto-uruguaio,
era indivisível e a ocorrência de diversas línguas dentro do continente não devia ser
obstáculo ao seu ideal integracionista que estava interessado em “promover a síntese
das influências indígenas, ibéricas e anglo-saxônicas” (MOURÃO, 1990, p.22). Ao elemento
negro, muito presente na música brasileira e estadunidense, Francisco Curt Lange
deu atenção especial na década seguinte à criação do seu Americanismo Musical,
quando estudou a música colonial mineira, que é essencialmente mulata, e também ao
empreender pesquisas nos Estados Unidos, país onde recebeu acolhimento e patrocínio
financeiro.
Entre 1933 e a década de 1940, Lange apresentou nos seus escritos algumas
metas centrais do seu americanismo: a integração musical e musicológica do continente;
incentivos às publicações no campo musical e musicológico; a fundação de instituições
culturais, discotecas e bibliotecas responsáveis pela guarda da cultura musical e
musicológica das Américas.
No documento Americanismo Musical, escrito por ele em 1934, em um primeiro
momento, músicos, musicólogos e compositores latino-americanos têm sua atenção
chamada para a importância da obtenção e do intercâmbio de informações acerca
das origens e produção da música em cada país da América, como fator fundamental
para a formação e expressão artística no âmbito musical. O americanista defendia
ainda a necessidade do conhecimento da evolução da música no nosso continente e
a urgência de se resgatar as tradições nacionais e folclóricas de cada região, a fim de
que se evitasse a mera repetição de padrões europeus nas nossas composições. Lange
apontava uma falha nos compositores latino-americanos que era a ignorância acerca
das manifestações musicais dos países vizinhos e, muitas vezes, do seu próprio país e
afirmava que precisariam atuar nesse sentido – resgatando, recuperando, organizando,
fazendo conhecer obras musicais que poderiam cair no esquecimento. Para tanto,
considerava a criação de Bibliotecas, Museus, Escolas de Música, Institutos Musicais e
Discotecas imprescindíveis.
Para o musicólogo teuto-uruguaio, muitos reconheciam as possibilidades do
continente americano, porém poucos protegiam seu desenvolvimento. Assim, clamava
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por uma fé na América “y ante todo, en aquellas latitudes que calificamos, con orgullo,
de latino-americanas” (LANGE, 1934, p.5). Sobre essa unidade latino-americana e o
sentimento de pertencimento a ela, escreveu:
Naturaleza y ambiente, paisaje y clima, el pasado histórico y la vida del
presente conjuntamente con otros tantos factores distintos, imprimirán a las
obras de arte de cada país su sello proprio. Pero en todos ellos vibrarán, cual
bajos profundos, el alma latina y la conciencia de pertenecer a una comunidad
de naciones unidas por la misma sangre e impulsadas por idénticos anhelos
[anseios] (LANGE, 1934, p.5).
De todas as manifestações artísticas, segundo Lange, a música era a predestinada
a realizar o intercâmbio entre o espírito, as características peculiares e a cultura de cada
país, bem como responsável por despertar os sentimentos de autonomia e liberdade
do continente. Todo passado histórico da América e as tensões dele provenientes
poderiam servir de elementos construtores da arte musical americana. Essa nova música
contribuiria para o desaparecimento da “figura trágica del indio, que cederia lugar ao
“luchador de nuestros días”, “forjador de nuevos destinos” que, unido aos intelectuais
e artistas, “conquista el suelo contra las inclemencias de una naturaliza ruda y las
desventajas económicas que sufre su país frente a las naciones poderosas del presente”
(LANGE, 1934, p.5-6). Frente ao autóctone americano se erguia a figura cosmopolita,
que vivia segundo os parâmetros europeus. Lange apontava que nesse cenário havia
um processo insensível, porém latente, de uma transformação, de uma nacionalização
indispensável, que estabeleceria manifestações culturais próprias, originais e novas.
Nesse ambiente, chamado por ele de época trágica, viviam os artistas americanos e
muitos intervinham nele de maneira consciente, outros inconscientemente:
Los primeros no tienen fe y aceptan las cosas tal como sobrevienen: los
poderosos medios de que dispone la prensa en nuestros días y que facilitan
el establecimiento de aspectos equívocos, la negación de elementos de valor,
el aniquilamiento de luchadores sinceros y el triunfo de la mediocridad. Todo
ello es posible en ambientes donde los problemas económicos tienden a
devorar las aspiraciones del artista. Los otros parecen ignorar el proceso de
transformación a que estamos sujetos. Desconocen que el destino nos obliga
no sólo a aceptarla sino a conducir del confucionismo del momento (LANGE,
1934, p.6).
O Americanismo, afirmava o musicólogo teuto-uruguaio, seria a base sólida
ao estabelecimento da autonomia artística frente à Europa desde que os artistas latino-
americanos deixassem de contemplá-la em detrimento do próprio continente, assim
como as metrópoles e as capitais, “con su exposición ficticia de valores e mediocridades”
deixassem de servir de paradigma à criação artística em prol da valorização do
momento histórico no qual vivia a América. Por mais diversos que fossem os meios
técnicos disponíveis músicos, professores, investigadores, compositores e diretores
de conjuntos sinfônicos e corais deveriam salientar a seguinte premissa: la música
americana para los americanos.8 Somente com esses esforços, segundo Lange, cairia o
8. Por simpatia, ou ironia, a formulação dessa frase por Curt Lange fazia uma alusão à Doutrina Monroe
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mito da falta de capacidade dos artistas do nosso continente no qual, se eliminado seus
aspectos exteriores e momentâneos, revelar-se-ia um “inmenso laboratório espiritual”.
Para tanto, os que se queixavam da falta de apoio das autoridades e do público, dos
meios de publicação e difusão da cultura, deveriam se organizar, servir de exemplo,
para serem compreendidos (LANGE, 1934, p.7-8). E prosseguiu:
Si tenemos en cuenta una serie de factores relacionados con la evolución
musical y cultural de Sudamérica, comprenderemos que ya es tempo pensar
en el establecimiento recíproco de relaciones que no sólo facilitarían el
conocimiento de lo que sucede más allá de las fronteras en el terreno musical,
sino que servirían de estímulo a músicos creadores y ejecutantes, aficionados
y autoridades, para intensificar la cultura artístico-musical de las respectivas
naciones hermanas (LANGE, 1934, p.9).
Lange também chamava atenção para o hábito dos latino-americanos de criticar
duramente suas produções artísticas e comparou nosso continente, artisticamente,
a uma criança insegura da sua capacidade e valor frente às manifestações culturais
europeias, tornando-se imitador delas. Nesse sentido, fez um alerta: “Nunca há llegado
nación alguma a la cúspide [pico, auge], imitando culturas que hubieran alcanzado otras
naciones” (LANGE, 1934, p.12). Apontou, ainda, que a invasão desmedida de culturas
estrangeiras facilitadas pela mecanização da música e pelos meios modernos de difusão
cultural, perturbava o desenvolvimento natural e ameaçavam a cultura nacional e
continental. O musicólogo afirmou também que nos anos 1930 a música comercial já
se fazia presente no cotidiano das pessoas em pelo menos 16 horas diárias e em nota
apontou que esta falta de medida e controle não se dava nos países da Europa, pois no
velho continente a difusão radioelétrica era fiscalizada pelo Estado, que restringia o
número de estações transmissoras e a porcentagem relativa de programação musical
(LANGE, 1934, p.13). Na Europa, as rádios-educativas, surgidas após a Primeira Guerra
Mundial, atuavam na educação popular a partir dos moldes nacionalistas.
Lange concluiu a primeira parte do seu texto de divulgação do Americanismo
Musical apontando que a união que se dava muitas vezes entre os países latino-
americanos nos terrenos político e econômico, jamais transcendia à arte e à música. O
autor ainda nos fez dois alertas. Em primeiro: “En nuestro continente, las manifestaciones
musicales fallecen antes do tempo, por abandono o asfixia, indiferencia o propósitos
deliberados, por mil otros motivos de una tierra llena de peligros y conductas extrañas”.
E por último: “Al darles [às obras musicais] el valor que les corresponde (...) no solo
hacemos justicia, sino obra constructiva” (LANGE, 1934, p.15).
Na segunda parte do texto, explicou como se organizava institucionalmente o
seu “projeto americanista” e listou os principais motivos que o fizeram criar uma Seção
de Investigações Musicais, em 1933, no Uruguai. São eles:
1º Desamparo de la mayoria de las fuerzas vivas.
que revelava a aversão estadunidense ao colonialismo/ intervencionismo europeu – princípio guia, em
conjunto com a ideia de destino manifesto, para o ideário lançado pelo presidente James Monroe, em
1823.
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2º Desconocimiento, en muchos casos absoluto, en otros considerable, de los
esfuerzos de profesores y compositores en países hermanos del Continente
Latino Americano.
3º Desaliento e indiferencia manifestas a raíz de las causas citadas.
(LANGE, 1934, p.16).
Todos os fatores descritos acima, em conjunto a outros, apontavam para
a criação de institutos que reunissem “los valores dispersos en el Continente. A
criação da Seção de Investigações Musicais também foi motivada pela necessidade de
se organizar cursos sobre aspectos científico-musicais e de se estabelecer contatos
“mais definitivos” com todos os centros de cultura do continente (LANGE, 1934, p.16).
Entre as finalidades da Seção estavam, portanto, o estudo e publicação de pesquisas
relacionadas às questões musicais latino-americanas e a aplicação dessas investigações
na educação musical continental.
No ano seguinte, em 1935, novos textos de divulgação do Americanismo
Musical são editados. Trata-se de um artigo na Revista Brasileira de Música e do texto
de abertura do primeiro tomo do Boletín Latino Americano de Música, que já foram
citados. Nesse último, Curt Lange pediu a colaboração dos pesquisadores dos países
vizinhos para que se estabelecessem laços que facilitassem a divulgação dos trabalhos
musicológicos no continente. As correspondências trocadas entre os pesquisadores,
apontou Lange, eram cruciais nesse aspecto:
Apenas iniciado el movimento de dignificación del arte musical latino-
americano, de una fructificación recíproca de ideas y hechos, y viendo
despierta subitamente la conciencia artística de nuestro continente, creciendo
diariamente el número de aderentes incondicionales a nuestro sanos
propósitos, era preciso crear, por encima de una copiosa correspondencia
de hombre a hombre, de instituición a instituición, un órgano que fuese no
solamente el defensor de nuestros esfuerzos y desvelos, nuestras legítimas
aspiraciones y fundadas esperanzas. (LANGE, 1935b, p.9).
O movimento criado por Lange, dentre outras metas, objetivava principalmente
incentivar publicações musicais, que aproximassem dentro desse campo artístico os
países americanos. Nesse aspecto, o Boletín Latino-Americano de Música foi muito
importante, pois, segundo seu idealizador, a publicação seria responsável pela “(...)
difusión de valores indiscutibles, (...) elevación de los mismos, a la obtención del respeto
que ellos merecen dentro y fuera de los limites regionales, nacionales e continentales”
(LANGE, 1935b, p.10).
Buscando fortalecer sua proposta, Lange também planejava apoiar a fundação
de institutos culturais voltados à integração cultural latino-americana: uma biblioteca
que respaldasse a produção musical do continente, uma discoteca e um museu musical
latino-americano. O pesquisador preocupava-se também com o ensino musical
promovido nas escolas e defendia que ele deveria estar articulado a outras manifestações
artísticas: “La colaboración de destacados pintores, representa una iniciativa que más
adelante tomará la importancia que merece la creácion de las artes anexas a la música”
(LANGE, 1935b, p.11). Lange entendia, ainda, que o ensino de artes deveria estar atrelado
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à valorização do estudo etnológico e sociológico de cada povo latino-americano bem
como de sua história:
Los problemas de educación latino-americanos deben ser estudiados en
estrecha relación con la historia, los fatores etnológicos y sociológicos de los
respectivos paises. Ellos son problemas enteramente nuestros, su solución
solo puede encararse partiendo de la base nacional, de los antecedentes
raciales y la estructura del ambiente físico, de clima e sociedad, economía,
administración y hasta de la política (LANGE, 1935c, p.13).
A partir de uma perspectiva cultural-sociológica que evocaria o passado dos
povos latino-americanos, Curt Lange acreditava que as próximas gerações teriam
instrumentos para transformar sua realidade e realizar a comunhão dos povos: “Los
niños de hoy serán los ejecutores de la unificación del pensamiento ibero-americano,
al través de ellos conquistaremos nuevamente el respeto por un espíritu constructivo y
poderoso que está latente en nueva humanidad que viene formando nuestro continente”
(LANGE, 1935c, p.26).
O alemão também apontou que os esforços em despertar o interesse da juventude
pela arte musical só teriam resultados se entendêssemos os problemas da educação
latino-americana. Mas, para tanto, seria necessário também compreender todas as
características que constituíam um país, desde os seus aspectos físicos e climáticos aos
sociais, econômicos, administrativos e políticos. Era necessário, para Lange, analisar
a situação psicológica da massa – sua posição social, seus interesses culturais e sua
composição racial (LANGE, 1935c, p.13 e 14).
Sobre o povo que constituía os países latino-americanos Lange observou que, nas
maiores cidades americanas, a população autóctone era muito escassa.9 Em contrapartida,
a maioria da população era composta por estrangeiros, que muitas vezes entendiam sua
cultura como superior – ainda que estivessem rodeados nessas metrópoles por grandes
expoentes artísticos da cultura nacional e por aparatos como teatros, rádios, cinemas
que pudessem reverter tal preconceito. Já nas cidades interioranas ocorria o oposto: os
autóctones estavam em maior número e, então, os estrangeiros – devido à falta de grandes
núcleos de compatriotas e por causa de um ambiente mais “cordial” – assimilavam melhor
os costumes locais (LANGE, 1935c, p.15-17).
Esses estrangeiros, que na sua maioria abandonaram a Europa com a eclosão da
Primeira Guerra Mundial, se encontravam, nas palavras de Curt Lange, “en la primera
fase de su existencia de inmigrantes aún no separados espiritualmente de la patria de
origen ni adaptados a la nueva” (LANGE, 1935c, p.21) e, por isso, seus filhos e netos,
muitas vezes, tinham a tendência de ignorar as manifestações culturais locais em prol
da manutenção das características culturais de suas famílias. Era necessário que as
escolas públicas fossem responsáveis pela “fusión absoluta con nuestro solo, de los
hijos extranjeros” (LANGE, 1935c, p.23). Neste sentido, o musicólogo teuto-uruguaio
defendia o ensino de canto coral (orfeônico). A instrução musical, para tanto, deveria ser
pouco apoiada na música universal e mais na música autóctone, servindo de estímulo à
fusão das raças, ao nascimento de um sentimento nacional e à criação de uma cultura
latino-americana (LANGE, 1935c, p.26).
9. O pesquisador chama de autóctone o habitante do qual sua árvore genealógica iniciava-se na época da
fundação, ou na primeira fase do desenvolvimento da cidade em que vivia.
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FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.2, nº1, p. 17-37, jan.-jun., 2015.
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Nessa conjuntura, Lange questionava a função pedagógica das orquestras que,
inseridas em um cenário de competição com teatros e cinemas, incorporavam aos seus
programas obras comerciais ou de efeito, mas de escasso valor artístico e, por isso, não
contribuíam com a elevação musical da população. Pensando nisso, em 1931, Francisco
Curt Lange criou a OSSODRE, a Orquestra Sinfónica del Servicio Oficial de Difusión
Radio Electrica – que, a princípio, tinha interesses artísticos de caráter nacionalista.
Como o ensino musical era tido como forma de fundir a cultura estrangeira à
nacional, Francisco Curt Lange defendia a prática do canto orfeônico. Por isso, nos
anos 1930, nutriu profunda admiração pelo trabalho que Heitor Villa-Lobos desenvolvia
no Rio de Janeiro. Em tom de homenagem e cobrando reconhecimento ao brasileiro, o
alemão escreveu o artigo Villa-Lobos, un pedagogo creador, dando notícias do trabalho
deste com corais infantis. Curt Lange considerava o canto “una expresión suprema
del bienestar colectivo” que, utilizado de maneira pedagógica, educaria e prepararia
as crianças para o futuro artístico do continente. A obra deste compositor e maestro
brasileiro trazia consigo, segundo o americanista, não só aspectos musicais, mas
também sociológicos, raciais, nacionais e continentais. Por isso, deveria ser valorada
em todos os projetos de iniciação artística musical (LANGE, 1935d, p.189-194).10
Dentro do seu projeto musical americanista a pedagogia teve um papel de
destaque tanto no ensino infantil como vimos, quanto no ensino de estética musical
em liceus e escolas secundárias. Lange dava palestras, desde 1932, aos professores de
escolas públicas, criava planos de aulas e de estudos sempre observando o papel dos
discos, discotecas e bibliotecas musicais na iniciação musical dos alunos. Em todas
essas iniciativas, destacava a atenção que deveria ser dada à música latino-americana
(LANGE, 1935e, p.197-262).
Além do ensino musical nas escolas, Lange também defendia a difusão radiofônica
como meio de educação das massas, graças ao seu poder de atingir um grande número
de pessoas. Contudo, questionava o modelo radiofônico americano no qual prevalecia
as estações comerciais que não nutriam interesse em contribuir com “la mejora de
la cultura de la nación” (LANGE, 1936, p.134). O teuto-uruguaio defendia o controle
da indústria radiofônica nos moldes europeus, nos quais os governos reduziam o
número de estações e fiscalizavam as transmissões. Para Curt Lange, possivelmente
os países europeus tinham reconhecido o “peligro que encerraba este nuevo invento e
inmediatamente se contrarrestó sus posibles efectos” (LANGE, 1936, p.134). O aumento
da potência das estações de rádio comerciais e consequentemente do seu círculo de
irradiação, faria crescer a decadência cultural principalmente nas cidades interioranas,
guardiãs da cultura autóctone. A difusão pedagógica orientada iria contra esse cenário,
pois, como apontou Lange, atuaria na educação principalmente da população que não
tinha acesso às escolas. Servindo às necessidades culturais americanas, as rádios
teriam que dispor de uma discoteca que contasse com exemplares de música americana
e da literatura musical mundial (LANGE, 1936, p.136-141).
Outro aspecto importante do Americanismo Musical, e que merece ser salientado,
é o incentivo à investigação das tradições folclóricas. O professor Curt Lange defendia
o emprego de elementos da cultura popular na música artística. Por isso, militava
10. Na década seguinte, 1940, Curt Lange e Villa-Lobos entraram em atrito. O musicólogo teuto-alemão
passou a questionar as relações entre Villa-Lobos e o governo Vargas, principalmente no episódio que
envolveu a publicação do VI tomo do Boletín Latino Americano de Música, dedicado ao Brasil – no qual
o compositor brasileiro foi acusado de atrasar propositalmente a edição da obra.
Francisco Curt Lange e o Americanismo Musical nas décadas de 1930 e 1940.
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acerca de uma “arqueologia musical”, sempre dando sugestões teóricas (pensadores
europeus) e técnicas (uso de aparatos tecnológicos para a gravação das manifestações
musicais) à investigação musical. Por fim, salientava que a música americana deveria ser
tratada como um patrimônio de todos e que os investigadores musicais necessitavam
do respaldo de instituições culturais que precisavam ser criadas com urgência (LANGE,
1936, p.149-156). O pesquisador teuto-uruguaio, neste sentido, fez sua parte criando
instituições musicais que atendiam seus propósitos americanistas.
Em 1948, para efeito de propaganda do seu Instituto Interamericano de
Musicologia, fundado dez anos antes em Montevidéu, Francisco Curt Lange traduziu em
cifras a atuação do Americanismo Musical na IX Conferência Internacional Americana
de Bogotá. Segundo o pesquisador, desde 1934, ano da formulação dos seus propósitos,
foram um total de 40 mil cartas, entre enviadas e recebidas, com interlocutores do seu
projeto; 1567 audições ou concertos parciais ou integralmente compostos de música
americana na América e na Europa (muitas obras sendo inéditas); 90 obras publicadas
e 20 que ainda estariam no prelo.11
Desde 1940, escreveu, foram realizadas aproximadamente 150 missões conferidas
aos membros do Instituto Interamericano de Musicologia.12 Tal instituto, apontou o
autor, atingiu, em janeiro de 1948, o número de 25000 colaboradores vinculados – entre
profissionais e instituições (LANGE, 1948).
O Americanismo Musical, ao longo da década de 1940, passou a se confundir
com a atuação de cada uma das instituições fundadas por Curt Lange em especial, o
Instituto Interamericano de Musicologia – que tinha como principais tarefas fomentar o
intercâmbio de obras e estimular a produção musicológica do continente. Acreditamos
que tal fator tenha ocorrido principalmente pelo contato desse pesquisador com outras
correntes de pensamento musicológico que estavam sendo formuladas em cada país
americano. Para muitos músicos, compositores e demais pensadores da música, talvez
tenha se dado como prioridade discutir em primeiro plano os projetos que visavam
à criação de uma música nacional e não os propósitos americanistas de Lange. No
caso do Brasil, o Americanismo não conseguiu “competir” com o nacionalismo musical
elaborado por Mário de Andrade e nem com a releitura desse nacionalismo feita pelos
membros do grupo Música Viva. Cabe ressaltar que o Americanismo sobreviveu à virada
da década de 1930 graças, principalmente, às diversas instituições fundadas por Lange.
As instituições musicais uruguaias e o Americanismo Musical
Em 1928, o Uruguai aprovou uma lei que regulamentava o funcionamento das
estações de radiodifusão e, no ano seguinte, criou o Servicio Oficial de Difusión Radio
Electra (SODRE). Curt Lange, em 1930, tornou-se seu diretor e iniciou a organização
de um arquivo discográfico que serviria à programação musical de sua emissora C.X.6
(inicialmente denominada como CWOA). Deste trabalho nasceu a Discoteca Nacional
em Montevidéu.
11. Essa “música americana” citada por Lange seria a música erudita inspirada nas tradições e na musica-
lidade dos povos americanos, sem a influência dos modismos estrangeiros, e que viesse ao encontro do
devir histórico de cada um dos países que compunham o continente.
12. O pesquisador teuto-uruguaio não entrou em detalhes a respeito dessas missões. Acreditamos que
tenham sido de registros e gravações de manifestações folclóricas, ou ainda, missões relacionadas ao
intercâmbio musical.
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O americanista defendia a difusão radioelétrica como meio de educar as massas
divulgando cultura e ciência. Era necessário, no seu ponto de vista, que o Estado tomando
a cargo a educação do povo organizasse a transmissão radiofônica da música, a exemplo
do cenário europeu – no qual havia um controle que fiscalizava as transmissões e um
monopólio estatal que reduziu o número de estações (LANGE, 1936, p.134).
Em julho de 1931, a sala do ex-teatro Urquiza foi transformada em um estúdio
com auditório e sediou o primeiro concerto da Orquestra Sinfónica do Servicio
Oficial de Difusión Radio Electra (OSSODRE). Os concertos também passaram a ser
transmitidos pela emissora supramencionada. Essas atividades foram acompanhadas
de medidas educativas de e para músicos e ouvintes. Com este trabalho, o musicólogo
alemão converteu-se, então, em um entusiasta da difusão radioelétrica como meio de
educar as massas e de difusão artística e científica (LANGE, 1935f, p.111-117). Para atuar
na orquestra, Francisco Curt Lange convidou, ainda no ano de 1931, o regente italiano
Lamberto Baldi, que vivia em São Paulo.13
A OSSODRE, inicialmente, priorizava nos seus concertos a música nacional,
contudo, após a contratação de Baldi, que tinha grande inclinação pela música moderna,
o público montevideano e os ouvintes da emissora C.X.6 passaram a conhecer uma
vasta literatura musical de diversas origens estéticas. As audições, ao vivo, tornaram-
se concorridas neste período, o que resultou no aumento do número de apresentações.
Assim, além de fazer conhecer a nascente música uruguaia, os concertos da OSSODRE,
segundo Lange, promoviam “la protección de artistas de verdad y la elevación del nível
cultural del país” (LANGE, 1935f, p.117). A experiência dessa orquestra, para o alemão,
deveria servir de incentivo aos outros países latino-americanos.
Retomemos, por um instante, a criação da Discoteca Nacional uruguaia em 1930.
Ela surgiu graças à militância de Francisco Curt Lange ao emprego do disco na educação
da população. O alemão, mesmo vivendo na América do Sul, não deixou de acompanhar
os resultados das discotecas que tinham essa finalidade na Europa. Na Discoteca de
Lange nunca funcionou um serviço de consultas públicas diretas, como ocorre em uma
biblioteca, por isso, seus trabalhos permaneceram, de certo modo, unilaterais servindo
quase que exclusivamente à radiodifusão, dando suporte as irradiações do SODRE.
Ainda assim, em 1938, Lange apontou que o seu funcionamento, a serviço da difusão
musical de “qualidade, foi responsável por mudar os hábitos musicais do povo uruguaio:
Solamente los que recuerdan el nivel de cultura musical del Uruguay em 1930
y el gusto predominantemente operístico del público en geral, podrán darse
cuenta precisa de la enorme evolución experimentada (LANGE, 1938, p.100 e
101).
Graças à coleção da Discoteca Nacional, frisou Lange, o SODRE pôde organizar
audições de qualidade da literatura musical clássica, moderna e contemporânea. Para
tanto, os programas foram impostos ao público, sem haver nenhum tipo de concessão.
Assim o SODRE constituiu-se como um “árbitro de los destinos musicales del país”
responsável por formar uma nova geração de ouvintes de música (LANGE, 1938, p.101).
13. Lamberto Baldi chegou a São Paulo no ano de 1927, como membro de uma companhia de ópera italiana.
Participou de atividades da Sociedade de Concertos Sinfônicos, deu aulas no conservatório e dirigiu a
Rádio Educadora antes de mudar-se para o Uruguai.
Francisco Curt Lange e o Americanismo Musical nas décadas de 1930 e 1940.
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Como a Discoteca do Uruguai não trabalhou de maneira autônoma para executar
os propósitos musicais do professor Curt Lange, sua função primordial, segundo
o próprio, foi dar respaldo às onze horas de transmissão diária da rádio da SODRE.
Com o tempo, esse número de horas foi diminuindo, pois a rádio passou a variar suas
atividades, incorporando nas suas transmissões audições da orquestra sinfônica criada
neste serviço, conferências e cursos sobre música e um programa informativo diário.
Ainda assim, a discoteca era responsável por 75% da programação diária em 1938
(LANGE, 1938, p.101).
A Discoteca do Uruguai contava com um departamento de gravações que dava
suporte às pesquisas principalmente de música autóctone uruguaia. Esse material,
unido ao restante do acervo, formava uma coleção de 15 mil discos até o ano de 1938.
Francisco Curt Lange apontou que neste período a discoteca fazia poucas aquisições de
novos discos por motivos econômicos. Todavia, esse cenário não diminuía sua vocação
principal – a de funcionar como um arquivo de discos. Lange acreditava que:
El aumento constante de su caudal la transformará en fuente de consulta
para aficionados y profesionales y en una especie de museo histórico de los
sonidos registrados en las diversas épocas que señala la técnica en materia de
impresión fonográfica” (LANGE, 1938, p.102).
Tendo em vista as necessidades musicais essenciais para elevar a cultura musical
de um povo, a Discoteca Nacional direcionava suas aquisições para suprir os seguintes
gêneros que Lange pontuava como fundamentais:
1. Fragmentos y obras completas de música artística antigua, clásica, moderna
y contemporánea.
2. Música popular.
3. Música autóctona.
4. Música ligera (operetas, música de salón, música para niños etc.).
5. Cursos de linguaje.
6. Discursos y conferencias.
7. Impresiones auxiliares: ruídos (para representaciones teatrales y la
simulación de efectos) (LANGE, 1938, p.101).
Todo esse material serviu às transmissões e audições radiofônicas do SODRE
assim como também foi utilizado, no ensino de música em escolas e universidades
uruguaias o que tornou a Discoteca Nacional, nas palavras de Lange, uma “Biblioteca
Musical” (LANGE, 1938, p.125).
Voltemos à nossa visão geral acerca das instituições musicais criadas no
Uruguai. No ano de 1933, Curt Lange criou em Montevidéu a Sección de Investigaciones
Musicales do Instituto de Estudios Superiores e esboçou a necessidade de estimular
pesquisadores e músicos considerados isolados dentro de cada país do nosso continente
a coordenarem esforços a favor da música americana. Essa proposta foi desenvolvida,
no ano seguinte, no livreto editado pela Seção de Investigações Musicais do Instituto
de Estudos Superiores intitulado Americanismo Musical, considerado o primeiro arauto
deste movimento.
Em 1935, o pesquisador teuto-uruguaio publicou o primeiro volume do Boletín
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Latino Americano de Música (BLAM), edição que corroborava também na difusão do
seu Americanismo Musical e que apresentou obras inéditas de compositores latino-
americanos. O financiamento do volume inaugural do boletim deu-se graças ao
entusiasmo dos brasileiros Anísio Teixeira, Guilherme Fontainha, Luiz Heitor Corrêa
de Azevedo, Walter Burle Marx e Heitor Villa-Lobos. Em seu primeiro editorial neste
periódico, Lange já apontava o papel central de Montevidéu como cidade irradiadora
de uma nova cultura musical: “Montevideo será para el arte musical latino-americana
el terreno de la objetivación de las luchas locales, el eje [eixo] de un intenso movimento
emancipador y el centro de su vasta organización e propaganda” (LANGE, 1935b, p.11).
Ainda em 1935, na Revista Brasileira de Música, utilizando fatores linguísticos e
geográficos como decisivos, o alemão radicado no Uruguai, novamente explica porque
“escolheu” a capital deste país como cidade-sede das instituições que dariam respaldo
aos seus propósitos:
Creio sinceramente que a situação topographica de Montevidéo não podia
ser mais favoravel á realisação de nossos propositos. Paiz visinho do Brasil,
ao qual está unido por vinculos inseparaveis e uma grande sympathia, elle é o
eixo das communicações com o Pacifico e o facto da Colombia, o Equador, a
Venezuela, Cuba e o Mexico se acharem muito afastados não tem impedido a
aproximação sempre crescente dessas nações (...). A centralisação no Brasil
offereceria, certamente, difficuldades, devido ao idioma (...) (LANGE, 1935a,
p.103).
14
Fatores financeiros possivelmente contribuíram também para a escolha de
Lange, afinal, o Uruguai, à época, vivia grande prosperidade. Durante as primeiras
décadas do século XX, as exportações de carne e lã sustentavam o desenvolvimento do
país pouco populoso e que atraia estrangeiros europeus. O cenário era tão promissor
que o Uruguai no período, recebeu a alcunha de “Suíça da América do Sul”. Sobre este
período da história do Uruguai e dos fatores que levaram Montevidéu a assumir um
papel integrador na musicologia, Rui Mourão escreve:
A nação atravessava aquela fase de excepcional equilíbrio econômico e
político que lhe valeu o designativo de Suíça latino-americana. José Battle y
Ordones, por duas vezes presidente da república [1903 a 1907 e 1911 a 1915] e
político influente até sua morte, conseguiu neutralizar o predomínio de forças
externas que dominavam o Uruguai. Estabeleceu o controle do Estado sobre
os serviços públicos essenciais, sobre alguns setores manufatureiros e deu
todo apoio às atividades agropastoris, para a exploração das excepcionais
terras que constituíam a maior riqueza nacional. Livre da inflação, com grande
equilíbrio social baseado numa remuneração justa, alcançando alto índice de
alfabetização, o país pôde cuidar com seriedade do desenvolvimento científico
e cultural. Passou a atrair sumidades do mundo inteiro que começaram a
pontificar na universidade e nos demais centros voltados para o crescimento
intelectual (MOURÃO, 1990, p.18).
Já se correspondendo com grandes músicos e musicólogos latino-americanos,
em 1938, Francisco Curt Lange fundou um instituto com a intenção de reuni-los em
torno do seu Americanismo Musical: a Sociedade Interamericana de Musicologia (ou
14. A grafia original foi mantida.
Francisco Curt Lange e o Americanismo Musical nas décadas de 1930 e 1940.
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Instituto Interamericano de Musicologia) com sede também em Montevidéu.15 Fundado
por recomendação da VII Conferência Internacional de Lima, que ocorreu no Peru no
mesmo ano, este instituto intentava promover uma rede de cooperação interamericana
no âmbito musical, tal como ocorria com o Boletín. Conforme o decreto de fundação,
assinado pelo presidente uruguaio naquele período, Alfredo Baldomir e pelos ministros
Alberto Guani e Toribio Olaso, ministros de Relações Exteriores e de Instrução Pública e
Previdência Social, respectivamente, suas finalidades do instituto recém-fundado eram:
a) el fomento de las relaciones interamericanas en el arte musical;
particularmente el intercambio de obras y la realización de conciertos de
música americana.
b) la incorporación temporaria al Instituto, de profesores y estudiantes
superiores que deseen profundizar sus conocimientos en los Archivos del
Instituto y hacer conocer sus investigaciones.
c) la organización de un Centro de Investigaciones que atienda el estudio del
pasado musical del continente y estimule su actual producción folklórica,
musicológica y pedagógica.
d) la formación de la Biblioteca Interamericana de Música, del Archivo Nacional
de Partituras y del Museo Interamericano de Instrumentos Musicales.
e) la publicación de estudios individuales y colectivos en los órganos oficiales
de publicación del Instituto, y la edición de música inédita americana.
f) la preparación de un plan para constituir la Asociación Interamericana
de Compositores Contemporáneos, de la Asociación Interamericana de
Musicología y de la Asociación Interamericana de Pedagogía Musical.
g) la organización de Congresos periódicos que faciliten las reuniones de los
profesionales más representativos de cada país y la exhibición y discusión de
sus trabajos y proyectos.
h) contribuir en las actividades que corresponden a la Cooperación Intelectual
Internacional que desarrollan los países americanos, en cumplimiento de los
diferentes acuerdos suscritos.
16
Curt Lange foi um dos principais colaboradores, em 1939, do Congresso
Internacional de Musicologia, realizado em Nova York, e da Conferência das Relações
Interamericanas no Campo da Música, realizado pelo Departamento de Estado dos
Estados Unidos, em Washington, D.C.. Nos dois eventos, foi reconhecida a necessidade
de colaboração, inclusive financeira, ao Instituto Interamericano de Musicologia
(LANGE, 1948).
No ano de 1941 criou-se, neste instituto uma subseção, a Editorial Cooperativa
Interamericana de Compositores, que incentivava a publicação de estudos sobre música
do nosso continente. Essa seção do instituto também era dirigida por Francisco Curt
Lange e contou com a colaboração direta de Hans Joachin Koellreutter, criador do grupo
Música Viva no Brasil. A própria revista de divulgação deste grupo de compositores
e musicólogos brasileiros, também fundada em 1941, estava vinculada à Editorial
Cooperativa. Contudo, a aproximação de Koellreutter ao Americanismo Musical rendeu
poucos frutos, principalmente porque este passou a ser perseguido, chegando a ser
preso pelo governo brasileiro, sob suspeita de que os auxílios financeiros da Editorial
Cooperativa (uma instituição estrangeira fundada por um alemão) – necessários para
15. Oficializado pelo governo uruguaio apenas em 26 de junho de 1940. Ver: LANGE, 1948.
16. Decreto de Oficialización del Instituto Interamericano de Musicología. In: Boletín Latino Latino-Ame-
ricano de Música. Vol. 5. Montevideo: Instituto Interamericano de Musicología, 1941, p. 9 e 10.
MOYA, Fernanda Nunes
FACES DA HISTÓRIA, Assis-SP, v.2, nº1, p. 17-37, jan.-jun., 2015.
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efetuar os custos da publicação da revista do grupo Música Viva (também fundado por
outro alemão) e de outras impressões musicais da cooperativa – encobrissem atividades
nazistas (KATER, 2001, p.52). Muitas obras de Guerra-Peixe e de outros compositores
dodecafônicos brasileiros foram editadas e graças à publicação e circulação promovidas
pela Editorial Cooperativa, muitos deles foram convidados a participar de concertos da
Pan American Union (ASSIS, 2010, p.69).
Na década de 1940, Francisco Curt Lange e as instituições por ele criadas
estreitaram relações com os Estados Unidos. Muito dessa aproximação deu-se graças aos
recursos financeiros que o pesquisador conseguia lá com mais facilidade que nos outros
países do continente. Para a então potência do norte, o respaldo dado estava inserido
dentro das conjecturas da política de boa vizinhança. O Americanismo Musical foi, devido
às suas necessidades econômicas, abocanhado aos poucos pelo pan-americanismo
“made in U.S.A.. Para coroar essa “união”, em 1943, realizou-se em Montevidéu o Ciclo
de Música de Cámara de los Estados Unidos de Norte. Com a colaboração de Francisco
Curt Lange foram realizados 11 concertos e diversas conferências ministradas por
pesquisadores estadunidenses. Em 1947, o presidente eleito do Uruguai, Don Tomás
Berreta, em viagem aos Estados Unidos, foi quem recebeu os montantes doados ao
Instituto Interamericano de Musicologia. Destacaram-se entre os financiadores o
Dr. Carleton Sprague Smith, ex-presidente da American Musicological Society, e as
seguintes instituições: American Council of Learned Societies, Carnegie Endowment
for International Peace e Unión Pan Americana, todas situadas em Washington D.C.;
e a Rockefeller Foundation, de Nova York, N.Y.17 Ainda assim, em 1948, Lange clamava
por financiamento dos países latino-americanos, chamando atenção para a seriedade
dos seus propósitos: “El Instituto Interamericano de Musicologia no es una ficción, un
proyecto o una obra que debe comenzar. Es una realidad, una institución en marcha.
Falta apenas una base económica para que multiplique su labor” (LANGE, 1948).
O alemão naturalizado uruguaio desejava que os recursos financeiros do Instituto
fossem votados por todos os países americanos e seus valores calculados de acordo
com o número total dos habitantes de cada um deles. Essa verba seria destinada às
publicações, investigações de campo, concertos e reuniões periódicas de compositores,
musicólogos e pedagogos musicais. Segundo Lange, essa instituição lutaria pela inclusão
de uma obra nacional e outra americana em todo programa musical público, para que
se combatesse “la indiferencia o el desdén hacia los creadores de este hemisferio y el
conformismo de solistas, empresarios y auditores” (LANGE, 1948).
É possível que o Americanismo proposto por Lange tenha sido sufocado pela
própria integração do continente – levada a cabo pelos norte-americanos: a dependência
econômica atrelada ao “american way of life” e à “política de boa-vizinhança”. Cabe
ressaltar, porém, que as instituições organizadas pelo alemão naturalizado uruguaio
abriram caminhos para os futuros musicólogos e compositores que iriam surgir em
17 A Rockefeller Foundation, como se sabe, envolveu-se diretamente com a política de boa vizinhança na
década de 1940. Em um memorando encaminhado à presidência dos Estados Unidos intitulado “Hemisphere
Economic Policy”, o grupo Rockefeller propunha a adoção de medidas que tornassem a economia latino-
americana mais dinâmica – para diminuir as relações comerciais destes com países do Eixo e impedir revoluções
nacionalistas ou socialistas no continente –. A segurança dos Estados Unidos, segundo este documento,
dependia de uma estreita cooperação, econômica e cultural, com todos os demais países da América. Em 16
de Agosto de 1940, foi criado o Ofce for Coordination of Comercial and Cultural Cultural Relations between
the Americas (nomeado no ano seguinte como The Ofce of the Coordination of Inter-American Affairs), com
Nelson Rockfeller a frente da diretoria. (TOTA, 2000, p.47-72).
Francisco Curt Lange e o Americanismo Musical nas décadas de 1930 e 1940.
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vários países sul-americanos. Ainda em conjunto com as premissas defendidas por
Curt Lange no seu movimento denominado Americanismo Musical, essas instituições
corroboraram no estabelecimento da pesquisa folclórica no nosso continente,
contribuíram no florescimento de movimentos musicais nacionalistas em diversos
países latino-americanos e ajudaram também a organizar as primeiras instituições
culturais sólidas na América do Sul.
Considerações Finais
Na América, antes de Francisco Curt Lange organizar o seu “Americanismo
Musical” em meados de 1933, o pan-americanismo ecoava tanto quanto os nacionalismos
de cada região do continente. No século XIX, no contexto de lutas pela independência, uma
tentativa de união foi preconizada pelo venezuelano Simón Bolívar que, a partir de 1812,
tornou-se porta-voz de um projeto de unidade latino-americana na qual todas as colônias
espanholas se articulariam em uma única confederação intentando sua autonomia em
relação à metrópole. Contudo, as elites criollas sentiram-se mais motivadas a defender
seus poderes locais em cada região e então, à sua maneira, conduziram o processo de
independência do seu território. A Carta da Jamaica, de 1815, na qual Bolívar expõe todo o
seu ideário de união das colônias hispano-americanas, fez surgir, ainda, as oposições da
Inglaterra e dos Estados Unidos a uma América Latina unida.
Ao longo do tempo, como sabemos, a proposta de se criar vínculos entre os
territórios americanos sofreu modificações quanto aos seus objetivos. Em 1881, o
secretário de estado dos Estados Unidos - James G. Blaine - planejou uma conferência
pan-americana em Washington, que tinha como premissa unificar a opinião dos países
americanos em relação ao comércio e à arbitragem de possíveis conflitos. A ideia,
porém, fracassou devido à oposição chilena. Uma segunda tentativa ocorreu com êxito
em 1889 e, então, nesta Primeira Conferência Internacional Americana, os Estados
Unidos puderam demonstrar seu interesse em minimizar a influência econômica da
Europa na América e também em intervir no Caribe, onde a Espanha mantinha, ainda
sob seu domínio, Porto Rico e Cuba. O território cubano, à época, estava lutando por
sua emancipação (ARTEAGA, 2002, p.98-99). Nesta Conferência, que teve sessões
entre 10 de outubro de 1889 e 19 de abril de 1890, o termo pan-americanismo apareceu
na imprensa norte-americana pela primeira vez. A partir de então passou a ser utilizada
para definir a soma das políticas de incentivo à integração – principalmente econômica
– dos países americanos, sob a liderança dos Estados Unidos. À época, este país buscava
fundamentalmente o crescimento das exportações dos seus produtos (ARCANJO
JÚNIOR, 2000, p.126). Nesse evento, também foi acordada a criação, em Washington,
de uma “União Internacional das Repúblicas Americanas” que depois foi batizada como
União Panamericana e impulsionou a origem da Organização dos Estados Americanos
(OEA) (ARTEAGA, 2002, p.99).
O conceito de “política de boa vizinhança”, que passou a complementar a ideia
de pan-americanismo, foi moldado na gestão do presidente republicano Hebert Hoover
que, em um discurso em Honduras, em 1928, usou a expressão good neighbor (TOTA,
2000, p.28). Essa política, adotada também pelo seu sucessor Franklin Delano Roosevelt,
aos poucos, foi substituindo ações de força, como o Big Stick, por estratégias culturais,
com o objetivo de reforçar a hegemonia estadunidense na América Latina. Roosevelt,
MOYA, Fernanda Nunes
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na VII Conferência Panamericana (antiga Conferência Internacional Americana), no ano
de 1933 em Montevidéu, tornou a política de boa vizinhança um programa oficial do
governo norte-americano.
Contudo, o pan-americanismo e a política de boa vizinhança não deixaram menos
tensas as relações entre os países hispano-americanos e os Estados Unidos. O próprio
Uruguai, por exemplo, fez duras críticas à intenção norte-americana de espalhar bases
militares na América Latina durante a Segunda Guerra Mundial (ARTEAGA, 2002, p.190).
Neste período, quanto mais questionamentos foram surgindo a respeito da intervenção
dos Estados Unidos nos assuntos políticos, econômicos e sociais dos outros países
do continente, mais este estimulava o american way of life e o apoio às propostas que
favorecessem as suas ambições hegemônicas.
As décadas de 1920 e 1940 foram marcadas pela organização dos saberes na
América Latina e nos Estados Unidos. As iniciativas musicais desse país, a disseminação
de bibliotecas musicais e discotecas especializadas como a de Washington e a atuação
de nomes como Carleton Sprague Smith – musicólogo, flautista e adido cultural dos
Estados Unidos, que militava sobre a importância dos acervos musicais na América
do Sul – resultaram em uma gama de intelectuais e músicos cooperando tanto com a
divisão de Música da União Pan-Americana de Washington quanto com os Institutes of
Latin American Studies (CAROZZE; TONI, 2013, p.193 - 194).
Assim, Francisco Curt Lange, como importante pesquisador das manifestações
musicais latino-americanas, logo foi cooptado pelos Estados Unidos dentro desse
contexto, atraído principalmente pelas promessas de financiamento do seu mais caro
projeto – o Americanismo Musical. Além disso, o pesquisador teuto-uruguaio uniu suas
atividades como musicólogo às atividades políticas, que passou a desempenhar quando
recebeu postos diplomáticos do governo uruguaio. A presença frequente de Lange nos
Estados Unidos, principalmente devido à organização de um número do Boletín Latino-
Americano de Musica dedicado a esse país, em 1941, e o seu incessante desejo em
promover a aproximação cultural entre os Estados Unidos e a América Latina aumentou
ainda mais a desconfiança de boa parcela dos intelectuais latino-americanos quanto às
reais intenções do musicólogo, embora este tenha deixado claro seu interesse ao apoio
norte-americano nas questões relacionadas principalmente a pesquisa, organização e
financiamento de acervos musicais (LANGE, 1941, p.12-19). Consequentemente, dentro
da grande efervescência cultural no nosso continente acompanhado pela necessidade
dos intelectuais de se posicionarem politicamente, seu projeto de integração musical
americana passou a ser associado, a partir da década de 1940, ao pan-americanismo nos
moldes norte-americanos, e visto como um empecilho aos nacionalismos na América
Latina (principalmente no Brasil, que historicamente nunca se alinhou aos seus vizinhos
hispano-americanos).
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