COSTA, Vinicius Patrocínio Pereira
*
https://orcid.org/0000-0003-0456-9352
Em 2010, dezoito trabalhadores da empresa de tecnologia chinesa Foxconn
tentaram cometer suicídio ao pularem do telhado de uma das instalações da empresa.
Quatorze deles infelizmente conseguiram. Este trágico evento foi uma das razões que
levaram o historiador norte-americano Joshua Freeman a refletir a escrever
Mastodontes: a história da Fábrica e a construção do mundo moderno
, publicado
originalmente em 2018 pela W.W. Norton, e traduzido imediatamente para o português
em 2019 pela editora Todavia. O livro faz parte do esforço da editora brasileira em trazer
para uma audiência nacional produções estrangeiras que versam sobre temas
proeminentes do mundo contemporâneo. Neste caso, a obra traduzida busca contribuir
para o debate sobre a relevância do mundo industrial nos dias de hoje e frisar o quanto
este universo
impactou e continua a impactar o presente.
No livro, Freeman nos traz uma história das fábricas. Mas não qualquer fábrica
__
como ele mesmo salienta no começo do livro
__
mas aquelas mastodônticas, que se
destacaram à época de sua construção por terem suscitado na sociedade industrial uma
miríade de questões políticas, culturais e econômicas, incorporando, a um tempo, um
imaginário de horror ancorado na exploração do trabalho, degradação ambiental e
* Bacharelado em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Rio de Janeiro -
RJ, mestrando em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro RJ. E-
mail: patrocinio97@gmail.com
Recebido em: 13/01/2021
Aprovado em: 02/02/2021
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miséria social com a esperança de um futuro glorioso pautado na abundância material.
Como o próprio autor ressalta, estas fábricas “não eram típicas” e se diferenciaram da
maior parte das unidades produtivas fabris do século XIX e XX, que eram menores tanto
em tamanho quanto em sofisticação (FREEMAN,2019, posição 134). Além disso, sua
experiência como professor do Queen’s College (um dos principais centros de história
operária dos EUA) e um representante da Nova História Social do Trabalho
1
, com vasta
produção em história do operariado estadunidense e publicações a respeito do
capitalismo norte-americano em perspectiva global, pode ser percebida no enfoque
fornecido pelo autor, que se difere dos trabalhos acadêmicos que analisam as fábricas
sob o viés arquitetônico (DARLEY, 2003), e das pesquisas que as compreendem como
uma componente secundária dentro do mundo do trabalho (LE ROUX, 1980). Freeman,
por sua vez, busca apresentá-las como uma “instituição em si mesma”, dotada de
historicidade própria, com seus aspectos políticos, culturais, econômicos e estéticos
sendo compreendidos como elementos que variaram no tempo e no espaço (FREEMAN,
2019, posição 142).
Para cumprir sua promessa de apreender de que forma o mundo industrial deixou
sua marca na sociedade para além da mera esfera produtiva, sendo responsável por
muitas de nossas dinâmicas sociais contemporâneas, ele se vale de uma imensa
variedade de fontes primárias e secundárias, empregando desde materiais escritos, como
obras literárias, jornais, revistas e relatos de observadores da época, até documentos
imagéticos (que estão reproduzidos no livro), como fotos e desenhos.
O livro é dividido em sete capítulos (fora introdução e conclusão). Em cada um
deles, o autor nos apresenta várias fábricas mastodônticas em diferentes contextos. O
primeiro capítulo aborda os primórdios do mundo fabril, nos conduzindo pela revolução
industrial britânica no século XVIII. Nele, Freeman nos apresenta o cotonifício Derby Silk
Mill de Thomas Lombe, considerado pela literatura como a primeira fábrica da Inglaterra.
A partir dessa e de outras fábricas inspiradas por ela, Freeman mapeia toda construção
desse novo universo, abordando o desenvolvimento dos primeiros teares mecânicos, das
1
A Nova História Social do Trabalho (
New Labour History
) foi um dos principais campos da historiografia
americana no século XX. Começou a ser construída nos anos 60 pelos historiadores David Montgomery e
Herbert Gutman, de quem Freeman é um dos herdeiros intelectuais. Ambos os autores, inspirados pelo
britânico Edward Thompson, buscaram superar o campo da História do Trabalho (
Labour History
)
tradicional, escrita, em sua maioria, por economistas que pensavam a história dos trabalhadores
estadunidenses tendo o conflito de classe entre sindicatos e empresários como eixo central. Ao se
distanciar desta perspectiva a Nova História do Trabalho procurou olhar para um contexto mais amplo,
indo além de uma história dos sindicatos de seus conflitos. Observou as referências intelectuais pela qual
os trabalhadores norte-americanos davam sentido a suas próprias experiências e formavam suas
sociabilidades, seja no cotidiano fabril, seja em momentos de maior tensão como greves e passeatas. Além
de pensar a classe trabalhadora a partir de outras perspectivas, tais como gênero e raça (NORRELL,1990,
p. 230-231).
máquinas a vapor, dos novos métodos de organização do trabalho
__
que apelavam para a
centralização, fiscalização (muitas vezes com o uso de castigos físicos) e coordenação
rígidas dos trabalhadores, vários deles mulheres e crianças
__
e a repercussão que estas
transformações tiveram na sociedade da época, explorando tanto o ar de surpresa e de
modernidade esboçado pelos contemporâneos do processo, quanto seu assombro pela
miséria e sofrimento social dos trabalhadores que esse novo mundo centrado na
organização industrial trazia.
Cabe ainda ressaltar neste capítulo um questionamento que será abordado ao
longo de todo o livro: por que alguns complexos fabris se tornaram tão grandes? Muito
se discutiu na academia sobre isso e as explicações foram das mais variadas. Uns
argumentaram que o desenvolvimento tecnológico e a organização científica do trabalho
aumentavam a produtividade e criavam máquinas cada vez maiores, conduzindo
necessariamente a uma área construída maior. Outros defenderam que o tamanho estava
relacionado às facilidades na coordenação dos trabalhadores e no controle da produção
por parte dos patrões. Embora Freeman não descarte nenhuma das perspectivas acima,
ele lança outra hipótese que será discutida ao longo do livro: o tamanho exagerado de
algumas unidades produtivas simbolizava o nascimento de uma nova época gloriosa e um
monumento à grandeza que a humanidade poderia atingir.
Nos três capítulos seguintes, Freeman cruza o Atlântico e aporta nos EUA. Nos é
apresentado (no capítulo 2) o desenvolvimento industrial estadunidense. Primeiramente
com os cotonifícios da região de Lowell, Massachusetts, onde o desenvolvimento
industrial da região incorpora as narrativas do excepcionalismo americano
2
, em que se
buscou forjar uma revolução industrial diferente da barbárie europeia, tentando
construir na América uma comunidade próspera que se ancorasse na abundância
material prometida pela produção fabril. A tentativa de construção de um futuro glorioso
por meio das fábricas também se refletiu no gosto pela tecnologia que o país adquiriu
(capítulo 3). Exposições e feiras de inovação mecânica, expondo o maquinário fabril e os
bens oriundos das fábricas, materializaram esta atração que o mundo industrial exercia
nas pessoas, pois encarnavam o “progresso”, a fartura e a “civilização”. Mas é apenas
com o Fordismo na indústria automobilística (capítulo 4) que, de acordo com Freeman, o
gigantismo fabril encontrou seu ápice, pelo menos em solo americano. A padronização da
2
O excepcionalismo americano é uma crença, muito disseminada na cultura estadunidense, de que o
nascimento e o desenvolvimento histórico do país teriam sido positivamente diferenciados quando
comparado com outras nações e regiões do globo. O fato de os Estados Unidos não possuírem estruturas
do antigo regime europeu (tais como monarquia e servidão) em seu território e terem se originado,
enquanto Estado Nação, a partir da primeira revolução liberal “moderna” do mundo, fariam deste uma
sociedade única no planeta destinada a realizar grandes feitos.
produção levada a cabo pela esteira de montagem Fordista elevou absurdamente a
produtividade fabril, lançando as fábricas para outros patamares em termos de tamanho.
As duas principais plantas da Ford,
High Land Park
e
River Rouge
, empregaram cerca de
53.300 e 102.811 trabalhadores, respectivamente, em seus melhores dias. Contudo, nem
tudo são flores neste EUA industrial. Os embates trabalhistas, como muito bem destaca o
autor, são tão presentes e fundamentais neste novo universo quanto a fumaça da
chaminé das fábricas, pois o cotidiano fabril também possibilitou aos trabalhadores forjar
elos de solidariedade e consciência de classe, capazes de resistir e combater a autocracia
industrial, que reprimiu sempre com violência o trabalho organizado. A sensação era de
que a industrialização trouxera, além do “progresso”, o espírito da luta de classes para os
EUA.
Os capítulos 5, 6 e 7 saem do mundo anglófono e analisam o gigantismo fabril em
regiões do mundo com ideologias políticas bem distintas daquelas expressas por EUA e
Inglaterra. Ao pensar a industrialização de locais como a União Soviética, Polônia e
China, Freeman mostra como a grande fábrica foi capaz de atingir até mesmo as
reflexões daqueles que se opunham ao capitalismo industrial. Esses rejeitavam a
sociedade de mercado, todavia, compartilhavam da visão de que a indústria simbolizava o
avanço, o futuro e o progresso, e que, portanto, deveria se tornar a norma dali por
diante. Aos oponentes do capital, cabia a função de pensar uma modernidade alternativa
àquela que estava se impondo, mas, que ainda assim comportasse o universo fabril em
seu horizonte.
Não à toa, a União Soviética (capítulo 5) viu na grande fábrica um caminho para a
superação do “atraso russo” e um passaporte em direção a uma modernidade comunista.
A fim de reproduzir esse modelo, os russos recorreram aos Estados Unidos e a figuras
como Henry Ford e seu arquiteto Albert Khan para desenvolver um plano de
industrialização centralizador ancorado em fábricas gigantes, capazes de urbanizar e
modernizar a economia soviética. Contudo, ao contrário do Velho Continente e dos EUA
onde a função das fábricas era, quase que exclusivamente, a produção de bens, na
Rússia, as unidades produtivas cumpriam também um importante papel cultural e
educacional que almejava formar não operários qualificados, mas também cidadãos
socialistas capazes de erguer, solidificar e aprofundar o comunismo. Pela primeira vez na
história, o gigantismo fabril ultrapassava a mera dimensão econômica e se tornava um
pilar cultural e ideológico para construção de um mundo alternativo ao capitalismo
ocidental.
O esfacelamento da grande fábrica (pelo menos no ocidente) e o seu
enraizamento na União Soviética são os temas do capítulo 6. Na América, o ápice do
gigantismo industrial também representou o prenúncio de sua queda. O Pós-45,
momento em que os trabalhadores, após décadas de luta sindical, conseguiram um lugar
central no pacto social estadunidense, foi o mesmo período em que empresas
começaram a pensar estratégias para reorganizar a produção em escalas menores.
Descentralização da produção, realocação para áreas sem tradição sindical e downsizing
foram as táticas utilizadas para desmobilizar o operariado e atacar seus sindicatos. O
trabalhador fabril, uma figura que havia orbitado o cerne dos debates políticos,
econômicos e culturais do passado, estava sendo esquecido, relembrado apenas quando
a desindustrialização escancarava sua miséria. Em contrapartida, na União Soviética e
em outras partes do mundo, o culto à fábrica descomunal e à modernidade que esta
representava, ainda fazia parte do horizonte de expectativa. Ao contrário dos capitalistas
norte-americanos que perceberam que a classe trabalhadora do gigantismo fabril podia
desafiá-los e atrapalhar seus lucros, os intendentes soviéticos não se opunham às formas
de articulação de seus operários. Isto mais tarde se tornou um problema, pelo menos
para o Estado russo, que a formação educacional e profissional que os trabalhadores
recebiam dentro das instituições fabris deu origem a movimentos críticos da linha
comunista soviética. Como Freeman destaca, o caso do movimento polonês
Solidariedade reflete justamente isso.
O assunto da parte final da obra confirma, mais do que qualquer outro capítulo, a
tese de Freeman de que as fábricas foram e ainda são responsáveis pela construção do
mundo moderno. Ele versa sobre o ressurgimento e a persistência do gigantismo fabril
na atualidade, simbolizado nas enormes fábricas asiáticas, tomando como exemplo o
caso da gigante de tecnologia Foxconn. Os chineses, assim como os soviéticos, também
viram nas fábricas gigantes uma instituição que deveria se preocupar com a cultura e a
educação da comunidade, mesmo que isso significasse a redução de sua eficiência
econômica. Contudo, as tentativas de pôr esse modelo em prática na China pós-
revolução não foram bem sucedidas, e, na década de 80, membros do Partido Comunista
chinês (inspirados por figuras neoliberais como Thatcher e Reagan) se voltaram para um
ideal de modernidade cada vez mais capitalista, tentando incorporar reformas de
mercado a sua economia socialista (FREEMAN, 2019, posição 5107).
Mas, se no ocidente a ortodoxia neoliberal causou a eliminação da grande fábrica
e levou à dispersão, descentralização, automação e downsizing, por que na Ásia o
gigantismo industrial se manteve mesmo com reformas pró mercado? A explicação, para
Freeman, reside no crescimento do varejo e da terceirização. No passado, as grandes
corporações concentravam grande parte dos estágios da cadeia de fabricação e de
distribuição de seus produtos em plantas fabris e em lojas revendedoras a elas
subordinadas. Entretanto, a crise econômica, a ampliação da concorrência internacional,
o aumento de pressões do capital financeiro e do trabalho organizado forçaram as
companhias a reverem suas formas de produzir e a cortarem gastos. Os incrementos
tecnológicos ajudaram nesta tarefa, auxiliando na dispersão da produção por meio da
subcontratação de empresas terceirizadas, e o crescimento de grandes varejistas, como
o Walmart, Target e Amazon, eliminou a necessidade das empresas de arcarem com os
custos de distribuição de seus bens. Nesse modelo, grandes companhias como Apple,
Disney e Nike se preocupam unicamente em gerir sua marca, o design de seus produtos
e em contratar empresas terceirizadas que possam se encarregar de fabricá-los no
menor preço e tempo possíveis. Dessa forma, o gigantismo industrial ressurge em locais
com mão de obra barata, abundante e com baixo nível de sindicalização, como a China,
para atender justamente a estas demandas. A Foxconn é capaz de responder a diversos
pedidos de diferentes marcas ao mesmo tempo com seus mais de 300.000
trabalhadores, contudo, diferentemente do passado, dificilmente será exaltada por tal
feito, pois a exploração e precarização do trabalho causados pela Foxconn prejudicariam
não somente ela, mas também todos os seus clientes internacionais.
As fábricas ocuparam um papel crucial ao longo dos séculos XIX, XX e XXI,
celebradas no passado
__
tanto no capitalismo quanto no comunismo
__
como a
encarnação da modernidade, e escondidas no presente por não simbolizarem mais um
futuro melhor. Freeman reconstrói com maestria todos os altos e baixos do mundo fabril,
enfatizando o fazer humano multifacetado por detrás desse. É um excelente guia
introdutório para diversos debates já consolidados sobre classe trabalhadora e revolução
industrial, além de contribuir também para discussões em campos mais recentes, como
de desindustrialização
3
, por demonstrar, simultaneamente, como este mundo
__
que está
morrendo no ocidente
__
foi forjado e forjou muitas das estruturas (materiais e
ideológicas) contemporâneas. Embora os casos estudados forneçam uma boa descrição
do gigantismo industrial e de sua relação com a modernidade, é uma pena que boa parte
do sul global fique de fora da obra. Seria riquíssimo para o livro analisar casos de
fábricas descomunais na América Latina, por exemplo, local que possui uma relação
3
Os estudos sobre desindustrialização (
Deindustrialization Studies
) datam de meados dos anos 70. Eles
almejam explicar
porque várias regiões altamente industrializadas (sobretudo regiões do norte global)
sofreram com fechamento de fábricas, ou com a realocação de unidades produtivas para países do sul
global
__
especialmente nações asiáticas
__
nos últimos 40 anos. Num primeiro momento, muitas das
análises se deram a partir de um viés majoritariamente econômico, destacando a mão de obra barata e
pouco organizada sindicalmente das regiões do terceiro mundo como as principais causas do fenômeno.
Contudo, com amadurecimento do campo, o leque de perspectivas analíticas se ampliou, e atualmente
muitos trabalhos abordam não somente os aspectos econômicos que motivaram estas mudanças como
também ressaltam os impactos sociais, políticos e culturais que a desindustrialização causa nas
comunidades que se organizavam fortemente em torno do trabalho fabril.
delicada com projetos nacionais de industrialização e com a própria noção de
modernidade. O mesmo pode ser dito para as questões ligadas ao meio ambiente, que
raramente são endereçadas no livro, pois quase nada é dito sobre o impacto do mundo
fabril na natureza e como esse lidou com críticas ambientais.
Referências Bibliográficas
A. A. Le Roux, The Size of Firms in the Cotton Industry: Manchester 1815-1840,
The
Economic History Review
, nova série, v. 33, n. 1, fev. 1980.
DARLEY, Gillian.
Factory.
Londres: Reaktion, 2003.
FREEMAN, Joshua.
Mastodontes:
a história da fábrica e a construção do mundo
moderno
.
São Paulo: Todavia. 2019. Edição Kindle.
NORRELL, R. J. After Thirty Years of “new” Labour History, there is still no Socialism in
Reagan Country
. The Historical Journal
, v. 33, n. 1, 227238. 1990.