QUIEZI, Simone Aparecida
*
https://orcid.org/0000-0002-3428-5839
ARRUDA, Gilmar
**
https://orcid.org/0000-0002-7249-2775
RESUMO: Analisamos a trajetória dos
pescadores em Porto Ubá (Lidianópolis-PR),
um povoado que surgiu com a ocupação
privada das terras entre os rios Ivaí e
Corumbataí (1930-1960). Nesse mesmo
cenário, emergiu a atividade pesqueira no
médio Ivaí, a partir de algumas famílias
que encontraram no rio e na pesca alternativas
de renda. Evidenciamos a trajetória desses
pescadores que, inicialmente, foram balseiros
e criadores de porcos (safristas), e
protagonizaram transformações da atividade
de pesca: a primeira fase informal, não
legalizada e não reconhecida (1930-1980); a
segunda, quando a pesca foi regulamentada no
rio e os pescadores se tornaram profissionais
(1980-2000); a última fase, quando a pesca foi
proibida e os pescadores se reinventaram,
criando a Patrulha Ambiental do Rio Ivaí
(2000-2020). A história oral foi a principal
fonte documental, mas não a única, permitindo
demonstrar a metodologia como suporte para
a história ambiental.
PALAVRAS-CHAVE: Pescadores; Rio Ivaí;
Porto Ubá; História Ambiental
ABSTRACT: We analyze the trajectory of the
fishermen in Porto Ubá (Lidianópolis-PR,
Brazil), a village that originated from the
private occupation of land between the Ivaí
and Corumbataí rivers (1930-1960). In this
same scenario, fishing activity emerged in the
middle Ivaí, from some families who found
income alternatives in the river and in fishing.
We highlight the trajectory of these fishermen
who, initially, were rafters and pig farmers
(safristas), and led to transformations in
fishing activity: the first informal, non-
legalized and unrecognized phase (1930-1980);
the second, when fishing was regulated in the
river and the fishermen became professionals
(1980-2000); the last phase, when fishing was
prohibited and fishermen reinvented
themselves, creating the River Ivaí
Environmental Patrol (2000-2020). Oral
History was the main documentary source, but
not the only one, allowing to demonstrate the
methodology as a support for environmental
history.
KEYWORDS: Fishermen; Ivaí River; Port Ubá;
Environmental History.
Recebido em: 09/02/2021
Aprovado em: 05/03/2021
* Mestre em História pela Universidade Estadual de Maringá, Maringá-PR, doutoranda em História pela
Universidade Estadual de Maringá, Maringá-PR. Professora da Educação Básica da Rede Estadual do
Paraná. Integrante e pesquisadora do Laboratório de Estudos Históricos do Contemporâneo
(LABEHCON/UEL). E-mail: simonequiezi@gmail.com.
**
Doutor em História. Professor aposentado do Departamento de História da Universidade Estadual de
Londrina (UEL). Membro dos Programas de Pós-graduação em História da Universidade Estadual de
Londrina (UEL) e da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Integrante e pesquisador do Laboratório de
Estudos Históricos do Contemporâneo (LABEHCON/UEL). E-mail: garruda@uel.br.
Este é um artigo de acesso livre distribuído sob licença dos termos da Creative Commons Attribution License.
Introdução
O campo da história ambiental cresceu significativamente no Brasil nas duas
últimas décadas, tanto em relação à diversidade, acerca de temporalidades e temáticas,
quanto aos lugares de origem dos pesquisadores, podendo-se afirmar que esse campo
historiográfico está presente em todo o território brasileiro (FRANCO
et al
., 2012, 2016,
2020; PÁDUA; CARVALHO, 2020). Dentro da diversidade temática, é perceptível a
ampliação de análises abordando a história dos rios, um enfoque que tinha recebido
pouca atenção por parte dos pesquisadores na área de História, apesar da intrínseca
relação entre as sociedades humanas e os corpos hídricos, em particular os cursos
d´água.
Em recente dossiê sobre rios e sociedades, publicado na Revista Brasileira de
História, seus organizadores, José Augusto dua e Rafael Chambouleyron (2019, p. 17),
afirmaram que: “No período mais recente, sob influência da nova história ambiental
que emergiu a partir da década de 1970, a literatura histórica específica sobre os rios
cresceu muito, tanto em termos quantitativos quanto no aspecto da diversidade
temática.”. Os rios, nessa perspectiva historiográfica, têm sido “[...] introduzidos no
corpo da história, nos seus movimentos endógenos. A materialidade dos rios, incluindo
suas transformações ao longo da história, expressa em si mesma a rede de interações
sociais, tanto culturais quanto tecnoeconômicas, que com ela vem interagindo [...]
(PÁDUA; CHAMBOULEYRON, 2019, p. 17). Torna-se nítido, como apontaram os
organizadores do dossiê, o aumento de interesse por essa temática dentro do campo da
história ambiental, desde, talvez, o aparecimento dos livros de Victor Leonardi (1999) e
de Janes Jorge (2006); de coletâneas, como a organizada por Gilmar Arruda (2008); e,
ainda, publicado mais recentemente, do livro de Gabriel Pereira Oliveira (2019).
Em uma revisão historiográfica sobre a história ambiental acerca do Brasil, feita
ou não por brasileiros, Pádua e Carvalho (2020), em suas considerações finais,
chamaram a atenção para o pouco uso das fontes orais, da história oral, nas pesquisas
nesse campo. Esse tipo de fonte ainda tem ínfimo aproveitamento pelos historiadores
ambientais.
[...] é fato que a metodologia da história oral ainda tem muito a contribuir nas
pesquisas de história ambiental. Avaliamos que incorporar as narrativas dos
caiçaras, dos quilombolas, dos indígenas, dos pequenos agricultores, dos
ribeirinhos, dos assentados, enfim, desses tantos sujeitos que vivem em contato
direto com a natureza e que são capazes de nos dizer por si mesmos como
produzem sentido para o contexto socioambiental em que estão inseridos
entre tantas outras informações e perspectivas valiosas que não encontramos
nos documentos oficiais , pode ser um dos caminhos mais promissores para o
desenvolvimento da área. (PÁDUA; CARVALHO, 2020, p. 1335).
O presente artigo trata exatamente da história das relações humanas e dos rios
dentro do campo da história ambiental, utilizando-se, especialmente, das fontes orais:
depoimentos de pescadores e de ribeirinhos do rio Ivaí, da localidade de Porto Ubá, no
município de Lidianópolis (PR).
O distrito de Porto Ubá, às margens do rio Ivaí (Imagem 1), caracteriza-se como
uma comunidade ribeirinha. Está localizado no município de Lidianópolis, na região
central do estado do Paraná (Imagem 2). Trata-se de um povoado surgido em
decorrência da ocupação não indígena, a partir do fim da década de 1930, à margem
esquerda do rio. Evidências arqueológicas e as narrativas locais demonstram que até
1930 esse espaço era ocupado por povos indígenas, assim como toda a Bacia
Hidrográfica do Rio Ivaí pelo menos 8.000 anos Antes do Presente (AP), conforme
colocam Mota (2013, 2014), Mota e Novak (2008) e Noelli (1999, 2017). De origens
diversas, no fim do século XIX, não indígenas também se faziam presentes ao longo
das margens do médio Ivaí, praticavam a agricultura conhecida como safrista
1
e a
travessia de um lado ao outro do rio Ivaí, utilizando as canoas ubá como meio de
transporte. Ademais, eram chamados de posseiros e/ou canoeiros.
De acordo com Parolin
et al.
(2010), o rio Ivaí, integralmente paranaense, percorre
798 km no sentido sudeste-noroeste. Ele nasce a partir da confluência dos rios Dos
Patos (principal curso de origem) com o Jordão, na Serra da Boa Esperança (próximo ao
município de Ivaí), e deságua no rio Paraná, entre os municípios de Querência do Norte e
Icaraíma. O território às suas margens compõe a Bacia Hidrográfica do Rio Ivaí (Imagem
1), que cobre área total de 36.646,36 km². Os estudiosos o subdividem em
alto
,
médio
e
baixo
,
por apresentar diferentes características morfométricas, ambientes naturais e
processos produtivos de ocupação e usos antrópicos (PAROLIN
et al.
, 2010). Os
pescadores de Porto Ubá atuam nos 110 km do médio curso do rio Ivaí.
Pode-se considerar que um dos primeiros grupos não indígenas que se
estabeleceram à margem esquerda do rio Ivaí (Porto Ubá) foi o dos chamados posseiros,
vindos de diversas regiões do Paraná, atraídos também por inúmeros interesses, um
deles a possibilidade de apropriação de terras férteis para a prática da agricultura. O
médio rio Ivaí, no fim da década de 1930, somente era transposto por canoas; depois, por
1
A partir das narrativas de Francisco Rodrigues (2019), os safristas eram grupos humanos não indígenas
que se apropriavam de pequenos espaços, construíam e estabeleciam-se em ranchos, plantavam pequenas
roças de milho, mandioca e abóbora, destinadas à engorda de porcos, os quais, em condições de abate,
eram conduzidos a pé até os centros de comercialização mais próximos, geralmente localizados em
Apucarana e em Ponta Grossa, no Paraná. Ressalta-se que a ocupação de terras por esse grupo humano
não se dava por posses tituladas e demarcadas (por isso, eram também denominados “posseiros”)
.
balsas; finalmente, em 1967, por uma ponte no trecho 466S0605PRC
2
(Rodovia PRC-
466).
Nesse período (1930-1960), Porto Ubá foi ocupado pelos não indígenas e tornou-
se uma das principais referências para o acesso a essa região do médio “Vale do Ivaí”
(ver Imagem 2)
3
. Esse espaço estava, no período, em processo conflituoso de
apropriação pelo mercado privado de terra, apenas após quase cinquenta anos de
conflitos e litígio entre o Estado, posseiros, indígenas e a companhia Sociedade
Territorial Ubá Ltda, a área foi legitimada em favor da companhia de terras, em 1950
(FARIAS, 2020). Porto Ubá, então, surgiu e cresceu devido à atividade de balsas,
restaurantes e inúmeros outros comércios oriundos do processo de ocupação privada.
Delineia-se, assim, o objetivo principal deste artigo: analisar a trajetória dos atuais
pescadores de Porto Ubá e suas relações com o rio Ivaí, demonstrando-a em três fases: a
primeira, quando a pesca foi exercida na informalidade pesca não legalizada e não
reconhecida (1930-1980) ; a segunda, momento em que a pesca foi regulamentada e os
pescadores reconhecidos como profissionais foi nesse período, de 1980 a 2000, que,
ao obterem com os órgãos federais o reconhecimento e o registro como profissionais,
organizaram-se em Associação e Colônia de Pescadores Z-17 ; e a terceira, quando a
pesca foi proibida no rio Ivaí em decorrência dos preceitos da preservação e das
disputas pelo rio, momento em que os pescadores se reinventaram e criaram a Patrulha
Ambiental do Rio Ivaí (2000-2020).
Entendemos que os rios, espaços naturais com “história, memória e territórios”
que desafiam e possibilitam as pesquisas em história ambiental, são “territórios em
disputas” por diversos sujeitos sociais (ARRUDA, 2008). Stephen Mosley (2006)
conclamava os historiadores sociais para se voltarem aos problemas levantados pela
história ambiental, incorporando as contribuições que haviam conseguido anteriormente.
Para ele, o mais importante desafio para a nova geração de historiadores sociais seria
procurar um “chão comum” entre a história social e a história ambiental.
Nós ainda temos muito que aprender sobre como conflitos, diferenças e o poder
sobre o acesso à natureza e aos recursos naturais bem como práticas
2
De acordo com o Sistema Rodoviário do Paraná, 466 é o número da rodovia; S é a característica do
trecho, no caso “trecho principal pavimentado, pista simples”; a sequência numérica 0605 corresponde ao
número do trecho, antecedendo a sigla PRC: PR refere-se ao estado do Paraná e C refere-se a coincidente.
Por estar sob jurisdição estadual, os traçados coincidem com as diretrizes de rodovias federais planejadas
e, conceitualmente, satisfazem as condições de rodovias estaduais, por isso é classificada como “trecho
estadual coincidente” (PARANÁ, 2019, p. 8-11;54).
3
Atualmente, a região é ocupada pelos municípios de Lidianópolis, Jardim Alegre, Ivaiporã, Arapuã,
Ariranha do Ivaí, Godoy Moreira, Jardim Alegre e São João do Ivaí. Evidentemente, a denominação “Vale do
Ivaí” estende-se a outros municípios fora dos limites dos rios Ivaí e Corumbataí.
rotinizadas e comportamento de consumo moldaram as relações ambientais
humanas ao longo do tempo e do espaço. (MOSLEY, 2006, p. 920, tradução
nossa
4
).
Em meio a outros temas, o estudo das classes populares, dos protestos sociais e
das relações entre movimentos sociais e a natureza estaria na pauta desses
historiadores.
Em nosso caso, os pescadores são um desses grupos sociais para os quais
necessitamos de recursos metodológicos de pesquisa, para além da documentação
escrita ou formal. Embora muitos sejam alfabetizados, poucos fazem uso da escrita,
então nossa atitude foi recorrer à história oral
5
.
A história oral nos permitiu acessar um conjunto de informações e interpretações
sobre a trajetória desses homens e dessas mulheres, o que não seria possível de outra
forma. Efetivamente, o mais importante no uso da história oral é perceber a própria
interpretação de vida de cada um desses sujeitos históricos (PORTELLI, 1996, 1997, 2010;
ALBERTI, 2004). Nesse sentido, as narrativas dos pescadores Maurício de Oliveira
6
,
Francisco Rodrigues
7
e Marildo Oliveira
8
foram essenciais para evidenciar as
transformações vivenciadas pelos pescadores e as suas relações com o rio Ivaí,
especialmente no seu médio curso.
Porto Ubá na Bacia Hidrográfica do Rio Ivaí: delimitações geográficas
O distrito de Porto Ubá está inserido na Bacia Hidrográfica do Rio Ivaí, que é a
segunda maior do estado, com área total de drenagem de 36.646,36 km². A Imagem 1, a
qual delimita a Bacia Hidrográfica do Rio Ivaí, toma como referência as pesquisas, as
subdivisões e a definição geográfica de Parolin
et al.
(2010).
4
[No original] “We still have a good deal to learn about how conflict, difference, and power over access to
nature and natural resources - as well as routinized day-to-day practices and consumption behaviours -
have shaped human environment relationships over time and space.” (MOSLEY, 2006, p. 920).
5
Pesquisa registrada no Conselho de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos da Universidade
Estadual de Londrina (UEL), sob 3.389.362, com parecer favorável em 13 de junho de 2019. Cabe
ressaltar que as falas dos entrevistados foram transcritas da forma mais fiel possível, respeitando o
linguajar informal/regional, fundamentando-se em Portelli (1997, p. 26-27), a fim de não obscurecer os
significados da “palavra falada”.
6
Maurício de Oliveira (1942/2020) foi pescador profissional do rio Ivaí. Sua atividade profissional sempre
esteve ligada ao rio Ivaí: sendo balseiro, retirando areia e atuando como pescador. Desde que chegou a
Porto Ubá, nunca morou em outro local. Vivenciou e protagonizou todas as fases da trajetória do grupo de
pescadores, até 14 de agosto de 2020, quando faleceu, aos 78 anos de idade.
7
Francisco Rodrigues nos informou que nasceu em Porto Ubá no ano de 1945. Atualmente, é pescador
aposentado e residente no distrito.
8
É o filho mais velho de Francisca Pereira de Oliveira e Maurício de Oliveira. Nasceu na década de 1960, no
distrito de Porto Ubá. É membro da Patrulha Ambiental do Rio Ivaí e responsável pela guarda, organização
e elaboração dos documentos institucionais dos pescadores.
Imagem 1. Bacia Hidrográfica do Rio Ivaí (PR)
Fonte: QUIEZI e SILVA (2020 apud QUIEZI, 2020, p. 33)
Porto Ubá, desde 1993, é distrito do município de Lidianópolis (PR). Antes dessa
data, era chamado “Ubá do Sul”. Conforme demonstra a Imagem 2, o distrito está
localizado na margem esquerda a jusante do rio Ivaí. Para adentrar o território de
Lidianópolis via margem esquerda a jusante do Ivaí, é preciso cruzar a ponte e passar
pelo povoado de Porto Ubá.
A saber, a palavra “Porto” faz referência à condição portuária do povoado; “Ubá”
pode significar canoas feitas de um único tronco e que eram chamadas pelos indígenas
de
ubá,
ou devido à existência de plantas herbáceas por todo o leito e nas margens do rio
Ivaí denominadas
huibá
(canas bravas)
pelos indígenas. Além disso, o nome “Ubá” faz
referência ao território localizado entre os rios Ivaí e Corumbataí, denominado
Fazenda
Ubá
,
Grilo Ubá
,
Gleba Ubá
,
Bendengó do U
,
associado ao processo de ocupação
privada das terras. Em relação às nomenclaturas, no fim, “[...] apesar da guerra de
conquista que destruiu os antigos territórios habitados pelos kaingang e guarani, o nome
de seus rios, serras, campos são originários das línguas daqueles grupos.” (ARRUDA,
2008, p. 21).
Imagem 2. Distrito de Porto Ubá (Lidianópolis-PR)
Fonte: QUIEZI e SILVA (2020 apud QUIEZI, 2020, p. 210)
Posseiros e balseiros e a pesca exercida na informalidade (1930-1980)
Até meados de 1930, o médio Ivaí era transposto e navegado somente por canoas.
A partir da análise de documentações que contêm os relatos de muitas dessas
expedições exploratórias e das narrativas dos pescadores de Porto Ubá, sabe-se que
muitos não indígenas foram registrados como moradores das “barrancas” do rio Ivaí.
Estes, a partir de suas interações com os indígenas e com as condições naturais locais,
aprenderam a confeccionar e passaram a utilizar comercialmente as canoas, a fim de
transportarem os membros de expedições exploratórias e seus pertences, bem como
para fazerem o transporte de um lado a outro do rio Ivaí.
Na localidade onde se configurou o distrito de Porto Ubá, segundo o pescador
Francisco Rodrigues (2019), em 1939, quando o pai dele chegou, encontrou o posseiro
“Juca Grande”, quem atuava como canoeiro na região e fazia uso comercial. Foi o pai de
Francisco, Lázaro José Rodrigues de Lima, que, nesse mesmo ano, passou a ofertar os
serviços de transporte no rio Ivaí por meio de uma pequena balsa. “Juca Grande”, então,
seguiu a montante do rio Ivaí e se estabeleceu para continuar seus serviços como
canoeiro. Em Porto Ubá, iniciaram-se os serviços de transporte por meio da balsa do
posseiro Lázaro.
O nome do meu pai era Lázaro José Rodrigues de Lima. Ele chegou, eu não
posso dizer mês pra você e nem data, mas o ano, fim de 38 pra entrar em 39.
Primeira coisa, quando ele chegou e se estabilizou ali, que conseguiram fazer: a
casona. Naquele tempo, rachavam marfim, aquelas casonas de lasca de marfim.
Tiravam a tabinha do cedro e cobriam, né? Assim que ele estabilizou, eles se
abolaram de ponha, a tar da bendita”. Então ficava os piá trabaiando [...].
(Francisco Rodrigues, entrevista, 10 set. 2019).
A expressão “tar da bendita” faz referência à balsa que o pai de Francisco
Rodrigues construiu e em que passou a atuar no translado de pessoas pelo rio Ivaí, na
atual localidade de Porto Ubá. Essa balsa, segundo o pescador Francisco, não suportava
muito peso, por isso o translado era somente de pessoas e suas bagagens.
Imagem 3. A balsa e a canoa em Porto Ubá na década de 1950
Fonte: PROENÇA (2020 apud QUIEZI, 2020, p. 124)
Conforme demonstra a Imagem 3, na década de 1950, as canoas ainda eram
utilizadas. O pescador Maurício de Oliveira (2016) narra sobre as habilidades dos
indígenas em confeccionar as canoas e que era com elas que praticavam a pesca no rio
Ivaí nesses anos. Maurício, na fala a seguir, destaca as habilidades e o saber quanto ao
confeccionar, o equilíbrio para permanecer na canoa feita pelos indígenas com “fundo
roliço”, para navegar e pescar com ela.
Maurício: [...] os índios faziam canoa. Derrubavam uma árvore, aí, dali uma
semana, já tava com a canoa feita, né?
Entrevistadora: Que madeira eles usavam?
Maurício: Cedro. Cedro, peroba.
Entrevistadora: Como que eles faziam?
Maurício: Ah! Os índios, sabe como que é, né? Os índios faziam, tinham coisa
de pedra. Eles faziam um troço de pedra, pra cortá. Depois começô vim as
outras coisa pra cortá. Então, os índios era demais. Inclusive eu memo tinha
uma canoa que foi eles que fizeram. Era de peroba. Nem disso tenho uma foto
pra coisá. Peroba que era a mema coisa do cê um pau. que tem uma coisa.
A que eles fazia cê num pudia entrá de quarquer jeito, não. Só quem sabia memo
pra entrá. O fundo dela era roliço. Ah, cê num sabe! Nóis largava a canoa, assim,
quando vê, os cara entrava lá, o cara curioso [risos]. Rá! Era entrá. Era igual
caiaque. Então aquela era do índio. Depois lavrava em baixo, igual bote.
andava, dava certo. Mas aquelas umas... (Maurício de Oliveira, entrevista, 25
nov. 2016).
Nos relatos do pescador Francisco Rodrigues (2019), evidencia-se a confecção de
canoas para a pesca pelos não indígenas.
Então, esse cumpadi Antonho [Antônio] morava cum nóis dentro da ilha. o
que acontece? Ele foi lá, derrubou aquela paineira... Foi lá, derrubou, tirou,
trabaiou o que pôde nela de machado. Eles eram bom de machado. Naquele
tempo nem se falava em motosserra... Ele deixou mais ou menos o corpo dela,
paineira não afunda. Vai afundar de que jeito? Ele jogou na água e acompanhou,
trouxe no bico da ilha, fez uma canoinha pra mim, assim, ó. eu, porque eu
armava anzol na corredeira a pé, sabe? Era piazão nessa época. fez aquela
canoa. Mas ficou um “brinco” aquela canoinha, levinha, levinha. Ela enxugou e
ficou que era uma delícia [...]. (Francisco Rodrigues, entrevista, 10 set. 2019).
A narrativa acima está inserida nas memórias de Francisco da década de 1950,
quando seu pai retornou para a localidade de Porto Ubá, alguns anos depois de ter se
retirado por não conseguir adquirir terras da empresa imobiliária que havia conseguido
os direitos de propriedade na região, a Sociedade Territorial Ubá Ltda. Ao retornar,
segundo Francisco, seu pai foi residir na chamada “Ilha dos Padres”, a fim de viver da
atividade da pesca. Na família de Francisco Rodrigues, eles vivenciaram a condição de
posseiros e de balseiros para, depois, estabelecerem-se como pescadores.
De acordo com o pescador Francisco Rodrigues (2019), seu pai, Lázaro José
Rodrigues de Lima, atuou de 1939 até 1947 ofertando os serviços de balsa e, em
simultâneo, era safrista e praticava a pesca para consumo doméstico. Porém, em 1947,
chegou a Porto Ubá, segundo Maurício de Oliveira (2019), o senhor Gregório Agostinho
do Rosário
9
, quem substituiu o pai de Francisco Rodrigues na atividade de balseiro.
Maurício de Oliveira (2016, 2019) narra que chegou com sua família a Porto Ubá no ano
de 1954, então passou a trabalhar como balseiro e, simultaneamente, como pescador.
Maurício: E daí, quando nóis viemo pra cá, o pai veio pra trabana barsa. Ele
chegô aí... chegô aí, tinha uns cara trabaiando, então o véio Gregório falô: “ó,
Otávio, ocê aguarda aí, até que sai uma vaga na barsa, daí vai trabaiá”.
Então o pai começou a quebrar mio [milho] aqui por dia, sabe? Aqui pro véio
Gregório. Puxá abóbora pros porcos, dava muita abóbora aí, sabe? E ficô, daí ele
pegô e entrô na barsa. Daí ele ficô 14 anos trabaiando na barsa. E eu junto. Daí
eu saí pra trabaiá com o véio Moisés, pra pescá.
Entrevistadora: Foi aí que se iniciou a organização dos pescadores? Com vocês?
Ou já tinha outros pescadores aqui no Porto Ubá?
Maurício: Não. Aqui não existia pescador. Existia pescador, mas não
profissional. Então, quando eu tava com dezessete ano, eusumia pra esse rio,
com o patrão meu. Então era só mato, sertão [...]. (Maurício de Oliveira,
entrevista, 06 set. 2019).
9
Avô de Francisca Pereira de Oliveira, a qual nos confidenciou que ele “[...] era balseiro experiente, de
posses e boas relações, oriundo do estado de São Paulo [...]” e teria ido para Porto Ubá ao fazer negócios
com a Sociedade Territorial Ubá Ltda.
Maurício conta, também, que o movimento na balsa era bem intenso em
decorrência do loteamento imobiliário privado das terras à margem esquerda, a jusante
do rio Ivaí, o que possibilitou, além de todo o crescimento econômico de Porto Ubá, a
instalação de outra balsa. Segundo ele, tratava-se da balsa do Moisés, patrão” a que ele
se refere acima. Essa nova balsa passou a funcionar do lado de baixo da balsa do
Gregório.
Por meio das informações recolhidas nos depoimentos, concluímos que essa
segunda balsa não era de Moisés, mas, sim, foi instalada em suas terras (margem
esquerda). Na verdade, a balsa pertencia aos proprietários das terras da outra margem
do rio Ivaí (margem direita). Moisés teria cedido suas terras para ancorar a balsa por
conta de desentendimentos com a família de Gregório Agostinho do Rosário.
Ademais, Maurício de Oliveira (2016, 2019) relatou que Moisés atuava no ramo de
extração de areia do rio Ivaí e era pescador. Maurício afirmou que sua experiência como
pescador e exímio conhecedor do leito do rio no seu médio curso vem de suas
“aventuras” de pescaria quando trabalhava com o “véio Moisés”. A análise dos
depoimentos permite considerar o Sr. Moisés como tendo sido o primeiro pescador a
exercer a atividade com fins comerciais.
Assim, foi no período de 1947 a 1967 que a apropriação privada das terras da
região colocou Porto Ubá na rota da lógica do capitalismo. Para atender a essa nova
demanda, foram necessárias diversas técnicas e infraestruturas, tais como balsas com
capacidade de transporte de veículos e instalação de inúmeros comércios. Famílias que
não conseguiram negociar a compra de terras com a companhia imobiliária e,
posteriormente, outras que ficaram desempregadas em decorrência do fim da atuação
das balsas, após a construção da ponte em 1967, passaram a viver informalmente da
pesca no rio Ivaí. Elas encontraram no rio, espaço conhecido, e na pesca, atividade
praticada para uso doméstico, alternativas de renda.
Observa-se, no entanto, que a atividade pesqueira no rio Ivaí em Porto Ubá
possuía caráter comercial a partir da atuação de Moisés e de Maurício de Oliveira, na
década de 1950. Essa atividade comercial seguiu sendo exercida na informalidade, ou
sem reconhecimento legal, até 1984.
Então, pro como que era [...] então eu pescava com oito anzol. Naquele
tempo, a empresa Francovig que fazia aqui. Ali tinha um restaurante que era
famoso, que era da dona Filinha... Aí o que acontece? Ali o ônibus fazia ponto de
parada da Francovig, eu entregava. A média era oito quilos. Teve um dia que
eu peguei nos oito anzol, nunca faiou nenhum, tinha peixe demais. Vendia pra
eles, aí eles levavam embora. (Francisco Rodrigues, entrevista, 10 set. 2019).
A narrativa de Francisco Rodrigues (2019) evidencia o exercício da pesca para
comercialização utilizando poucos apetrechos (canoa, linha e anzol), em um rio com
abundância de peixes. Nesse sentido, Maurício de Oliveira reforça:
Maurício: O véio vendia. Na época ele pegava esses peixes e trazia. ele dava
prô juiz, ele dava prô promotor esses peixes. Dava não sei pra quem, não sei pra
quem, no fim cabava, que era muito peixe demais. Era tudo tipo de peixe.
Sargava muito peixe. Num tinha viveiro naquele tempo. Então nóis amarrava
uma corda no rio, sabe? Varado dum lado do outro e ia amarrando tudo os
peixe. Era dourado, era curimba. Amarrava e ia ponhando naquela corda.
Entrevistadora: Mas eles já estavam mortos?
Maurício: Não, vivo. Os que iam morrendo, levava dois saco daqueles de 30
quilos de sar grosso. E o véio Moisés mandou fazê uma prensa, bem-feita,
furada assim. Então ia morrendo, ia coisando eles, ponhava tudo ali dentro,
metia sal assim, pegava uma pedra que três pessoas pudia pegá, ponhava em
cima daquela tampa. Aquilo descia pra baixo assim que cê via sarmora
voando pra aqueles buraco, assim. No outro dia tava sequinho igual bacanhau
[bacalhau]. Então trazia pra pra comê. Mas ele trazia pouco. Daí comecemo
pescá memo a valê. Daí, sim. Aí nóis, pro véio vendê, sabe? [...]. (Maurício de
Oliveira, entrevista, 06 set. 2019).
As memórias dos dois pescadores (Francisco e Maurício) informam que eles
exerciam a pesca para fins comerciais desde, pelo menos, a década de 1950, introduzindo
um novo item da natureza na lógica da apropriação privada do mundo natural, a qual
estava se instalando pelo processo de parcelamento das terras em propriedades
privadas. O não indígena apropriou-se do rio, utilizando-se da linha, da canoa, do anzol,
do sal, da corda, da pedra e do conhecimento técnico de conservação do pescado, vivo
ou morto, para a extração dos peixes e sua comercialização. Analisando a narrativa de
Maurício de Oliveira (2019), é possível ainda considerar que, em alguns momentos, a
pesca foi um instrumento de barganha, utilizado por Moisés para extrair areia do leito do
rio sem ser incomodado pelas autoridades judiciais.
Dessa forma, até meados da década de 1980, essa atividade da pesca e a
comercialização de peixes eram feitas na informalidade. Não havia, ainda,
regulamentação específica para o exercício da pesca profissional no rio Ivaí, tampouco o
reconhecimento legal do pescador como profissional. Maurício de Oliveira (2019) relata
as dificuldades para pescar nessas condições:
Quando eu cheguei aqui, a gente pescava tudo corrido, né? Tudo corrido. Que
aqui era assim, não tinha luz, não tinha nada. Então, eu ia pescá de noite e trazia
o peixe pra limpá ali, ó, naquele poção ali. Então, quando eu pontava, quando eu
vinha saindo por lá, a muié saía com o lampião com óleo, e ia ajudá. Então,
eu limpava aquele peixe ali. Não existia caixa de isupor aquele tempo. Quando
era mais bastante, assim, eu ponhava na lata de vinte litro. Quando era mais
pouco, colocava naquela de nove. E daí levava em ‘Borrazopi’ [Borrazópolis],
tudo dia [...]. (Maurício de Oliveira, entrevista, 06 set. 2019).
O “poção” a que se refere o entrevistado é o córrego chamado Guaiambê,
localizado logo abaixo de sua casa e que deságua no rio Ivaí. Sua narrativa indica que ele
pescava na informalidade durante a noite, para evitar a fiscalização, e limpava os peixes
nesse local, para desfazer-se das pistas que indicavam a pescaria. Para comercializar,
Maurício de Oliveira (2019) segue narrando as dificuldades:
Entrevistadora: Por que lá em Borrazópolis?
Maurício: Porque lá... pra nóis era mior [melhor] lá.
Entrevistadora: Vocês vendiam na rua ou entregavam em algum lugar?
Maurício: Comecemo vendedo na rua. Fiscar ruim que tinha da prefeitura lá.
Chamava véio João. Tratava ele. Quando ele tava bêbado, era fácil mexer com
ele. Mas quando tava são? ele falava, sempre ele falava pra nóis: “Rapaz,
não venda peixe na frente da peixaria”. Ele sempre falava pra nóis. Tamém nóis
custumemo com ele. Ele falava: “ó, minha casa é em tar lugar, assim, então
leva meio quilo pra mim lá, entrega pra muié lá”. Aí nóis levava, né? Chegava lá,
entregava um peixinho pra ele lá, entregava pra muié. Daí ajudava ele a fazê
uma vista grossa com nóis lá. Mais assim memo... Pra nóis vender o peixe, nóis
ia em dois. Eu e um outro rapaz. Ele levava o peixe dele e eu levava o meu.
Chegava lá, deixava o peixe, nóis combinava se era eu que ia vendê primeiro.
Chegava lá, um ia na frente, o outro ia pra tráis. Oiava pra se não tinha
fiscar... Quantas vez de nóis largar lá o peixe e sair correndo. (Maurício de
Oliveira, entrevista, 06 set. 2019).
Maurício de Oliveira (2019) contou também sobre as dificuldades de transportar
os peixes nos ônibus que circulavam de Porto Ubá até o município vizinho de
Borrazópolis (PR). Para conseguir embarcar, os pescadores tinham de esperar o
motorista descer para tomar um cano restaurante em Porto Ubá, quando, então, eles
entravam no ônibus e escondiam as latas de peixe, pois, se o motorista visse, não
transportava.
Entretanto, as pressões advindas dos atos regulatórios para os recursos hídricos
e ambientais no Brasil e no Paraná, em decorrência das demandas da “Era da Ecologia”,
conforme foi caracterizada por Donald Worster (1996), passaram a ameaçar ainda mais
os pescadores, os quais se viram acuados diante das fiscalizações constantes. Foi
quando, então, treze famílias de pescadores
10
se organizaram e intensificaram ações com
10
De acordo com as narrativas de Maurício de Oliveira (2019), esse grupo corresponde a treze pescadores
que, na década de 1980, organizaram-se para viabilizar com o Instituto de Terras e Cartografia (ITC) o
registro de pescadores profissionais, para atuarem formalmente na atividade da pesca. Nasce desse grupo
o processo que deu origem à Associação de Pescadores de Porto Ubá - APPU (1995), à Colônia de
Pescadores Z-17 (2001) e à Patrulha Ambiental do Rio Ivaí - P-A-R-I (2012). Marildo Oliveira, com seu pai,
Maurício de Oliveira, lembram os nomes desses treze pescadores: Maurício de Oliveira, Pedro Correa
Neto, José Carlos Pereira, José Benedito Albino, Celso Albino, Vantuir Machado, Ailton Correia, Alício
Correia (falecido), Israel Estevão (falecido), Francisco Rodrigues, Ciro Carneiro Teodoro, Sergio Mendes e
Tito Carvalho (falecido).
o Instituto de Terras e Cartografia (ITC)
11
, com escritório regional instalado no município
de Ivaiporã, para também se regulamentarem como pescadores profissionais.
Até o momento, vimos como as transformações ocorridas no processo de
ocupação do espaço natural pela propriedade privada fizeram diversos sujeitos sociais
que ali estavam não tendo conseguido ou não querendo se incorporar incorporarem-
se a esse novo momento do capital, como proprietários ou assalariados reinventarem-
se, apropriando-se não da terra, mas do rio, a fim de sobreviverem. Criadores de porcos,
balseiros e canoeiros tornam-se pescadores. A presença do rio abriu essa possibilidade
de sobrevivência e permanência no local.
A regulamentação da pesca e dos pescadores no rio Ivaí (1980-2000)
O fim da atividade balseira foi também fomento para ampliação da pesca como
atividade comercial. Como foi mencionado anteriormente, em 1967, foi inaugurada a
ponte sobre o rio Ivaí, na estrada que liga Borrazópolis a Lidianópolis (PR)
12
. De 1967 a
1984, um grupo de famílias de Porto Ubá passou a sobreviver da pesca no rio Ivaí. Sem
regulamentação da atividade, tanto a pesca como sua comercialização foram praticadas
na informalidade, conforme narrou Maurício de Oliveira (2019).
Ao analisar as legislações de cunho nacional e estadual que foram elaboradas em
decorrência de um cenário movido pelas demandas da “Era da Ecologia” (WORSTER,
1996), da redemocratização do Brasil e da Constituição Federal de 1988, observa-se que
esses mesmos atos regulatórios
13
também abrem a possibilidade da regulamentação da
pesca no rio Ivaí e o reconhecimento dos pescadores como profissionais.
11
Primeiro nome do Instituto de Terras, Cartografia e Geologia do Paraná (ITCG), que também teve o
nome Instituto de Terras, Cartografia e Florestas (ITCF). Atualmente, está vinculado ao Instituto Água e
Terra (IAT).
12
Atual PRC-466.
13
Lei Delegada 10/1962 (criação da SUDEPE); Decreto-Lei 58.696/1966 (pesca como indústria de
base); Lei 221/1967 (Código da Pesca); Decreto-Lei 60.401/1967 (Programa de Pesquisa e
Desenvolvimento Pesqueiro do Brasil); Decreto-Lei 51.868/1968 (Grupo de Trabalho da Pesca);
Decreto-Lei 1.376/1974 (fundos de investimentos para o setor pesqueiro); Lei 7.735/1989 (extinção da
SUDEPE); Leis 8.287/1991 e 10.779/2003 (seguro-desemprego no período do defeso - piracema);
Decreto 1.697/1995 (Grupo Executivo do Setor Pesqueiro - GESPE); Lei 9.649/1998 (criação do
Departamento de Pesca e Aquicultura - DPA, vinculado ao MAPA); Lei 10.849/2004 (Profrota
Pesqueira); Lei 11.380/2006 (Registro Temporário Brasileiro para embarcações estrangeiras); Leis
10.849/2004 e 11.524/2007 (pescador artesanal como produtor rural); Lei 11.699/2008 (Colônia de
Pescadores como órgão de classe); Lei 11.958/2009 (criação do Ministério da Pesca e Aquicultura); Lei
11.959/2009 (Política Nacional da Pesca); Medida Provisória 696 e Lei 13.266/2016 (extinção do
Ministério da Pesca e Aquicultura); Lei 13.844/2019 e Decreto 9.667/2019 (transferência da pesca
para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento); Lei 4588/1962 (Serviço de Caça e Pesca
para a Secretaria de Agricultura - PR); Lei 5001/1965 (CODEPAR); Lei 6364/1972 (ICM para
comercialização de peixe no Paraná); Lei nº 9917/1992 (Política Estadual do Paraná de Pesca); Lei nº
11670/1997 (torna de utilidade pública a Associação de Pescadores de Porto Ubá - APPU); Decreto
6589/1990 (criação da SUREHMA - PR); Lei nº 10066/1992 (criação da SEMA e IAP - PR); Lei nº 12726/1999
(Política Estadual do Paraná de Recursos Hídricos); Lei 16.242/2009 (Instituto das Águas - PR); Lei
Conforme analisaram Goularti Filho (2017) e Giulietti e Assumpção (1995), no
Brasil, a institucionalização e o fomento para o setor pesqueiro ganharam força com a
criação da Superintendência de Desenvolvimento da Pesca (SUDEPE), em 1962, uma
autarquia de jurisprudência federal. Na sequência, décadas de 1960 e 1970, a pesca
passou a ser considerada indústria de base e foram elaborados planos nacionais para a
atividade. Contudo, o financiamento e o fomento ainda permaneceram muito centrados
no setor industrial, criando um “fosso” entre os pescadores industriais e os artesanais.
Soma-se a isso o fato de que todas as políticas para o setor pesqueiro tinham como foco
a pesca marinha e litorânea.
No período da redemocratização, vários segmentos civis e sociais se organizaram
e se mobilizaram para se fazerem representar e estavam presentes no cenário de
debates e elaboração da Constituição Federal de 1988. Os pescadores do Brasil
14
também
se fizeram representar nesse processo e, entre as conquistas, conseguiram: legitimar as
Colônias de Pescadores como livre organização e representação da categoria; incluir a
pesca como política agrícola
15
, podendo receber subsídios; garantir a seguridade social
aos pescadores profissionais.
Amparados pela Constituição Federal
16
e pelo cenário
político nacional das décadas de 1980 a 2000, ampliaram-se as políticas públicas para o
setor da pesca, incluindo a pesca em rios de água doce, no mesmo compasso em que
fluíam as políticas públicas de preservação e proteção ambiental e dos recursos hídricos
nacionais.
No Paraná, os atos regulatórios foram influenciados pela lógica nacional. Entre as
décadas de 1940 e 1970, não foram identificados atos regulatórios específicos para a
atividade pesqueira nos rios do Paraná, tampouco para os pescadores profissionais
artesanais. Somente na década de 1980, com a atuação da Superintendência de
Desenvolvimento da Pesca (SUDEPE), uma autarquia federal que, no Paraná, estava
15.622/2007 (Dia do Rio Ivaí); Lei 17.794/2013 (Semana Estadual do Rio Ivaí); Lei 17.613/2013
(Padroeira do Rio Ivaí); Lei 18.509/2015 (Cidade-capital do Rio Ivaí); Lei 20070/2019 (criação do
Instituto Água e Terra - PR); Portaria do IAP 135/2018 (regulamentação da pesca no rio Ivaí); Lei
Estadual n° 19.789/2018 (proibição da pesca do Dourado); Portarias do IAP nº 218 e nº 220/2004 (proibição
da pesca no rio Ivaí).
14
Dentre os movimentos de pescadores, citam-se: o Conselho Pastoral de Pescadores de Pernambuco,
ligado à Igreja Católica de Base; os pescadores da Colônia Z-20 de Santarém (Pará); e o movimento
chamado “Movimento Constituinte da Pesca” (1985), o qual congregava diversos outros movimentos e
ONGs com o objetivo de “[...] articular os pescadores para garantir mudanças na legislação e a
transformação das colônias de pescadores em sindicados [...]”. (PARÁ, 2004, p. 10).
15
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 187, § 1º, inclui a pesca na política agrícola e reconhece os
pescadores como pequenos produtores. Também prevê que os estados promovam a regulamentação do
setor. No Paraná, em 1992, por meio da Lei nº 9.917, a qual estabelece a Política Estadual de Agricultura, os
pescadores foram incluídos como pequenos produtores. Essa condição lhes assegurou o direito de fazerem
parte e serem beneficiados em programas e projetos de subsídios para o setor agrícola, como o chamado
“Paraná 12 Meses”.
16
Ver artigos 8º, 24, 187, 195 e 201 da Constituição Federal do Brasil (BRASIL, 1988).
vinculada ao Instituto de Terras e Cartografia (ITC) , é que se observa atenção para a
pesca nos rios, entre eles o Ivaí. E é justamente nesse período, exatamente em 1984,
conforme narra Maurício de Oliveira (2016, 2019), que o grupo dos treze pescadores de
Porto Ubá conseguiu o registro de pescadores profissionais via escritório regional do
Instituto de Terras e Cartografia (ITC). Ademais, nas décadas de 1990 e 2000, eles se
organizaram na Associação e Colônia de Pescadores Z-17.
Entretanto, Maurício de Oliveira (2019) ressalta que a obtenção do registro
profissional de pescador não foi fácil. Ele narra uma trajetória de reivindicações perante
o escritório regional do Instituto de Terras e Cartografia (ITC) em Ivaiporã:
Chegava lá, tuda segunda-feira nóis tava lá, e eles brabo [bravos], sabe? [...] Ele
nem oiava, nem adeus dizia, tão brabo que tava [...], nem mandô nóis sentá, ficô
de assim: ó, hoje nóis vai um jeito nisso aí. Ou nóis ruma isso ou nóis
acaba com isso aqui” [...]. Lembro que ele ligou para Paranavaí. Num deu certo.
Ligou pra Cianorte. Aí, em Cianorte, ele veio de lá, ligou, proseou, proseou e
falou: “ó, cêis pode ir embora. Pode ir embora que eu mandá um cara lá, que
certo, ficou certo lá, cêis vão ser filiado na Colônia Z-14, Porto Rico”.
viemo embora, né? falou isso tamém, viemo embora. (Maurício de Oliveira,
entrevista, 06 set. 2019).
Os registros profissionais se deram por meio da Superintendência de
Desenvolvimento da Pesca (SUDEPE), com filiação dos pescadores na Colônia de
Pescadores Z-14, de Porto Rico (PR). Foi o primeiro ato regulatório dos pescadores de
Porto Ubá. Contudo, a pesca no rio Ivaí ainda não estava regulamentada. Eles podiam
pescar nos rios de jurisprudência da Colônia de Porto Rico. Tal situação, segundo
Marildo Oliveira (2019), incentivou-os a se mobilizarem para a criação da Associação de
Pescadores de Porto Ubá APPU (1995) e da Colônia de Pescadores Z-17 de Porto U
(2001).
De acordo com Marildo Oliveira (2019), a APPU foi a primeira no Paraná, com
jurisprudência em rios de água doce, a conseguir que seus filiados recebessem, a partir
de 1996, o seguro-desemprego no período da piracema, conforme previa a Lei Federal
8.287/1991. O próximo passo, narrou Marildo Oliveira (2019), foi o da criação da Colônia
de Pescadores Z-17 de Porto Ubá.
Cada colônia no Paraná tem uma jurisdição. A nossa colônia, eu fiz o quê? Pra
podê criar a colônia, se eu fizesse rio Ivaí, não dava 100 pescadô. Eu criei
Ivaí, Tibagi e Paranapanema. Eu criei nos três rios. [...] porque, se eu tivesse
criado só Ivaí, Ivaí não tinha pesca, fechada, tava proibido a pesca. Como que eu
ia criar uma colônia num rio proibido? [...]. (Marildo Oliveira, entrevista, 06 set.
2019).
A afirmação de Marildo Oliveira (2019) de que “não tinha pesca” revela a ausência
de atos regulatórios específicos para a atividade pesqueira no rio Ivaí, situação que levou
os pescadores a ampliarem a jurisprudência da colônia para outros dois rios, o Tibagi e o
Paranapanema. Ele esclarece, no mais, que, para se criar uma colônia de pescadores, é
necessário o mínimo de cem pescadores. Como, na ocasião, não havia esse número em
Porto Ubá, aumentou-se a jurisprudência da Z-17 para esses outros dois rios. Marildo
Oliveira (2019) explica também que a nomenclatura “Z-17” significa que se trata da
colônia de número 17 no Paraná (ver Tabela 1 e Imagem 4).
Tabela 1. Relação das Colônias de Pescadores no Paraná
Colônia/Município
Criação*
Atividade
Colônia de Pescadores Z-1 de Paranag
05/04/1978
Associação de defesa de
direitos sociais
Colônia de Pescadores Z-2 de Guaraqueçaba
20/06/1979
Associação privada
Colônia de Pescadores Z-3 de Jataizinho
04/05/2005
Associação privada
Colônia de Pescadores Z-4 de Matinhos
03/03/1975
Associação de defesa de
direitos sociais
Colônia de Pescadores Z-5 de Pontal do
Paraná
23/02/2005
Associação privada
Colônia de Pescadores Z-6 de Carlópolis
01/02/2008
Associação privada
Colônia de Pescadores Z-7 de Guaratuba
12/03/1975
Associação privada
Colônia de Pescadores Z-8 de Antonina
18/04/1985
Associação privada
Colônia de Pescadores Z-9 de Querência do
Norte
17/08/2007
Associação privada
Colônia de Pescadores Z-10 de Marilene
03/06/2005
Associação privada
Colônia de Pescadores Z-11 de São Miguel do
Iguaçu
28/08/1997
Associação privada
Colônia de Pescadores Z-12 de Foz do Iguaçu
16/10/1966
Associação privada
Colônia de Pescadores Z-13 de Guaíra
08/01/1982
Associação privada
Colônia de Pescadores Z-14 de Porto Rico
21/10/1985
Associação privada
Colônia de Pescadores Z-15 de Marechal
Cândido Rondon
23/04/1986
Associação privada
Colônia de Pescadores Z-16 de Nossa Senhora
dos Navegantes de Santa Helena
29/03/2005
Associação privada
Colônia de Pescadores Z-17 de Porto Ubá
(Lidianópolis)
09/03/2001
Pesca de peixes em águas
salgada e doce
Colônia de Pescadores Z-18 de Porto Camargo
(Icaraíma)
15/04/2003
Associação privada
Colônia de Pescadores Z-19 de Inajá
14/03/2008**
Associação privada
Fonte: QUIEZI (2020, p. 179)
Imagem 4. Colônias de Pescadores no Paraná
Fonte: QUIEZI e SILVA (2020 apud QUIEZI, 2020, p. 180)
Ampliar a jurisprudência da Colônia de Pescadores Z-17 de Porto Ubá para outros
rios também foi uma estratégia, segundo Marildo Oliveira (2019), diante da
desregulamentação e do histórico de proibições da pesca profissional no rio Ivaí desde
1985. Essa estratégia, afirmou ele, ocasionou problemas. Com uma jurisprudência tão
ampla, a colônia chegou a comportar 800 filiados, contou Marildo Oliveira (2019). Ele
explicou que ficou impossível atender e acompanhar tantos filiados com essa
jurisprudência abrangente, então passou a incentivar a criação de novas colônias. De
fato, a Tabela 1 e a Imagem 4 demonstram que as colônias de pescadores estão
concentradas na região litorânea e nos rios Paraná e Paranapanema. Não colônias de
pescadores em outras regiões nos rios do Paraná, exceto a Z-17 de Porto Ubá, no rio Ivaí.
Após a criação da Z-17, somente mais duas novas colônias foram criadas: a Z-18, em
Porto Camargo, próximo da foz do rio Ivaí no rio Paraná; e a Z-19, em Inajá, no rio
Paranapanema. As duas concentram-se em regiões com histórico característico de
atividade profissional da pesca.
De acordo com Marildo Oliveira (2019), a Colônia de Pescadores Z-17 de Porto
Ubá continua tendo os rios Ivaí, Tibagi e Paranapanema como jurisprudência, mas agora
com menos filiados. Ele contabilizou um total de 280 filiados e, desse número,
aproximadamente 70 residem nos municípios lindeiros à Bacia Hidrográfica do Rio Ivaí,
no seu médio curso. Marildo Oliveira (2019) justifica que a jurisprudência da colônia não
foi alterada devido à trajetória de proibições da pesca no rio Ivaí. Assim, os pescadores
de Porto Ubá ficam aptos a pescarem nos outros dois rios.
Elencam-se duas questões para fundamentar a narrativa de Marildo Oliveira
(2019) quanto à pesca proibida no rio Ivaí: a primeira diz respeito à ausência de atos
regulatórios até o fim da cada de 1980; a segunda se trata do fato de que os
pescadores tiveram sua filiação inicial na Colônia de Pescadores Z-14 de Porto Rico, a
qual não comportava o rio Ivaí na sua jurisprudência. Adicionalmente, analisa-se que a
legislação sobre a pesca no Paraná e a política de gestão dos recursos hídricos e naturais
são muito recentes e tardias, datam da última metade do século XX em diante; em
relação à Bacia Hidrográfica do Rio Ivaí, é possível afirmar que ainda estão sendo
elaboradas, em um cenário composto por segmentos de sujeitos e grupos sociais que
nutrem e disputam diversos interesses de usos do rio.
Nota-se que as mesmas condições regulatórias advindas das políticas federal e
estadual que propiciaram o reconhecimento profissional dos pescadores de Porto Ubá os
tornaram agentes da pesca predatória e uma ameaça à ictiofauna do Ivaí, em decorrência
das demandas ambientais que passaram a influenciar a normatização e as políticas
públicas para o setor a partir de 1980, sobretudo com a Constituição Federal de 1988.
A proibição da pesca e a Patrulha Ambiental do Rio Ivaí (2000-2010)
A primeira década do século XXI foi marcada pela proibição da atividade
pesqueira no rio Ivaí, conforme Portaria do IAP 220/2004. Essa situação, em primeira
instância, levou os pescadores, orientados por segmentos e programas de políticas
públicas federal, estadual e municipal, à criação de peixes em tanques e à realização de
arrastões de limpeza no leito e nas margens do médio Ivaí. Na sequência, conduziu-os a
criarem, em 2012, a Patrulha Ambiental do Rio Ivaí (P-A-R-I).
[...] a Colônia faz a parte da documentação, da legalidade do pescador. A
Patrulha faz o trabalho de investigação, o trabalho de educação ambiental, um
trabalho de acompanhamento pra podê o pescadô tê essa liberdade de
exercendo a pesca. [...] vamos buscar fazer algo em prol do meio ambiente, para
que as pessoas possa enxergar que o pescadô, mesmo tando proibido de
exercer a função, o deixô de cuidando do meio ambiente. Então foi com
essa condição que a gente conseguiu fazê com que a opinião pública voltasse
um melhor olhar para com o pescador. (Marildo Oliveira, entrevista, 06 set.
2019).
Conforme narrou Marildo Oliveira (2019), os pescadores precisaram,
estrategicamente, reinventar-se e passaram, então, a atuar como sujeitos de fiscalização
na preservação do rio. Desde 2004, num processo de reinvenção, inseriram-se nos
espaços deliberativos e mobilizados entre os segmentos públicos e civis, para se
representarem perante as demandas ambientais que vinham sendo provocadas pela “Era
da Ecologia” (WOSRTER, 1996), no Brasil e no Paraná, desde a década de 1980.
Tal inserção não foi tranquila, confidencia Marildo Oliveira (2019). Segundo ele, os
pescadores, agora também patrulheiros ambientais, sofreram resistências dentre as
pessoas da sociedade local, que os acusavam de fazer um discurso de proteção do rio,
mas, em simultâneo, continuar praticando a pesca predatória. Há, ainda, conflitos com a
Polícia Ambiental Força Verde, para a qual, afirma Marildo, a Patrulha Ambiental se veste
igual e quer fazer o serviço que pertence a ela. Marildo Oliveira (2019) relata, inclusive,
que esse desacordo entre eles, os patrulheiros e a Polícia Ambiental Força Verde,
desencadeou ação e audiência no Ministério Público do Paraná. Sobre essa audiência e
os resultados dela, narrou:
[...] fizemo um documento desse tamanho [sinaliza com as mãos]. “Cêis assina
aqui?” [promotor]. Falei: “Assina”. Daí aqui que nóis assina. Eu não trabaio com
eis [eles] e nem eis [eles] não trabaia com nóis. Só que no papel tá escrito ali ó: a
florestal tem que ir aonde a patrulha fô. No papel está escrito. (Marildo Oliveira,
entrevista, 06 set. 2019).
Observa-se que houve um acordo verbal para um não interferir no trabalho do
outro. Assim, os pescadores inseriram-se nos cenários regional e estadual de debates
para usos e atos ambientais regulatórios destinados à Bacia Hidrográfica do Rio Ivaí
17
.
Graças a essa reinvenção que os transformou em patrulheiros ambientais, sem deixar de
serem pescadores, eles obtiveram o direito de pesca em aproximadamente 110 km no
médio rio Ivaí, por meio da Portaria do IAP 135/2018. Esses 110 km no médio Ivaí
(Imagem 5) passaram a ser um espaço delimitado de atuação dos pescadores e
patrulheiros ambientais. Portanto, tem-se um espaço em disputa, visto que outros
agentes fazem uso dele ou projetam fazer; ou as atividades e os projetos de atividades
para outros pontos do rio (alto e baixo Ivaí) podem ser afetados pelos usos que se fazem
ou se pretende fazer do médio Ivaí.
Em todo o processo de institucionalização dos pescadores, desde o registro
profissional em 1984 até à Patrulha Ambiental do Rio Ivaí em 2012, está explícita a
intencionalidade da regulamentação da atividade pesqueira profissional no rio Ivaí. O
objetivo central dos pescadores como patrulheiros não é apenas a defesa ambiental, mas
também a pesca profissional legalizada, e a Portaria do IAP nº 135/2018 é resultado dessa
reinvenção. Como patrulheiros, atuam de forma política e representativa, tanto nos
17
De acordo com Marildo Oliveira (2019), os pescadores se fizeram representar nos movimentos e nas
organizações que deliberam sobre os usos dos recursos naturais e dricos na Bacia Hidrográfica do Rio
Ivaí, dentre eles: o movimento Pró Ivaí/Piquiri, que se mobiliza contra os projetos de construção de
barragens para Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) e Usinas Hidrelétricas (UHEs) nos rios Ivaí e
Piquiri; a Rede Ambiental das Bacias Hidrográficas, coordenada pelo Ministério Público e que atua na
preservação e em usos sustentáveis dos recursos dricos e naturais; os Comitês de Bacia, compostos
pelas representações da sociedade civil organizada e pelo poder público, para discussões e deliberações
quanto aos usos e à sustentabilidade dos recursos dricos e naturais do território das bacias; e o Grupo
Gestor de Pesca, fruto do processo de regulamentação da pesca do rio Ivaí, específico para deliberar sobre
essa atividade.
espaços de deliberações pelo uso do rio quanto em ações pontuais de educação e
fiscalização ambiental, no trecho do médio Ivaí, em que a pesca foi regulamentada pela
Portaria do IAP mencionada.
A saber, a Patrulha Ambiental do Rio Ivaí (P-A-R-I) foi institucionalizada em 2012
como Organização Não Governamental (ONG) de caráter associativo. É composta pelos
pescadores profissionais artesanais de Porto Ubá e agrega algumas pessoas do município
de Lidianópolis e da região do médio Ivaí, as quais, por afinidade com os objetivos, dão
apoio. Suas ações pautam-se no artigo 301 do Código Processual Brasileiro, o qual prevê
que “[...] qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão
prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito [...]” (BRASIL, 1941). Nas
palavras de Marildo Oliveira (2019), “[...] qualquer um pode e a polícia deve prender quem
tiver em flagrante. Aonde o Estado não pode estar presente a sociedade pode tá.
Fazendo o quê? Fiscalizando, prendendo quem cometer crime.”.
As ações da patrulha são de fiscalizações, notificações e apreensões
18
. Desde
2006, segundo Marildo Oliveira (2019), os pescadores se mobilizam para realizar ações
de caráter ambiental, sobretudo de preservação e conservação do trecho de atuação dos
pescadores, o médio Ivaí, conforme previsto na Portaria do IAP 135/2018 (Imagem 5).
De acordo com Marildo Oliveira (2019), nesse trecho não apenas no leito do rio, mas
por todo o território dos municípios lindeiros , os pescadores desenvolvem ações
educativas e ambientais. Dentre elas, destacam-se os arrastões ecológicos anuais de
limpeza; fiscalização da pesca amadora e de subsistência, com apreensão de petrechos
ilegais de pesca ou com autuação de pescadores em geral em épocas e locais de pesca
proibidos; fiscalização e autuação de proprietários rurais que desmatam e não preservam
as minas d’água; realização de palestras de conscientização; participação em eventos
ambientais locais e regionais; participação no movimento de resistência à instalação de
hidrelétricas no rio Ivaí; plantio de árvores (reflorestamento); fiscalização,
conscientização e combate ao uso abusivo de agrotóxico e ao descarte incorreto das
embalagens. Como conhecedores do rio Ivaí, eles também atuam em parceira com o
Corpo de Bombeiros na busca de vítimas de afogamento. São comumente parceiros em
campanhas e ações de saúde pública e vigilância sanitária dos municípios lindeiros ao
médio Ivaí.
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Marildo Oliveira (2019) mantém arquivo com documentos da Patrulha, os quais possuem slogan, CNPJ e
formulários padronizados para registros das apreensões e notificações. Todo o material apreendido é
destinado ao Instituto Água e Terra (IAT), acompanhado de relatórios, notificações e da ciência do
autuado. O Ministério Público também é acionado oficialmente.
Imagem 5. Locais de pesca proibida no rio Ivaí (2018)
Fonte: QUIEZI e SILVA (2020 apud QUIEZI, 2020, p. 193)
Recentemente, em 14/08/2020, faleceu o pescador Maurício de Oliveira e, em
15/11/2020, a comunidade de Porto Ubá elegeu o pescador e presidente da Colônia de
Pescadores Z-17, André Faian Delfino, como vereador. A morte do pescador Maurício de
Oliveira pode ser analisada como o fim de um ciclo, especialmente quanto às lutas
narradas na primeira e na segunda fase, para serem reconhecidos como pescadores
profissionais artesanais, com atuação regulamentada para a pesca em água doce, no rio
Ivaí.
A eleição de André Faian Delfino como vereador pelo município de Lidianópolis
demonstra que a comunidade do distrito de Porto Ubá mantém suas relações com esse
grupo social, os pescadores, cuja trajetória está em curso. Agora, eles se mantêm não
apenas como pescadores profissionais artesanais, mas, também, como patrulheiros
ambientais. Entre as demandas, está a necessidade de repensar os usos do rio Ivaí, bem
como compreendê-lo como natureza que age e reage, de forma autônoma e/ou sob a
interferência das ações humanas.
Conclusão
Os pescadores são originários do processo de ocupação não indígena de Porto
Ubá, ocorrido a partir da década de 1950. Como algumas famílias não conseguiram
adquirir terras da companhia privada ou ficaram sem trabalho em decorrência do
encerramento das atividades das balsas em 1967 quando a ponte foi construída uma
das alternativas foi apropriarem-se do rio e praticarem a pesca como fonte de renda.
Evidenciamos as relações entre os pescadores e o rio Ivaí ao analisarmos suas trajetórias
em busca da regulamentação, do registro profissional e de atos regulatórios para o
exercício da atividade pesqueira no rio Ivaí. Essas trajetórias demonstraram fases
distintas: a informal (1930-1980); a reconhecida/regulamentada (1980-2000); e quando a
pesca foi proibida, compreendida como uma atividade predatória que impacta a
ictiofauna (2000-2020).
As narrativas do pescador Francisco Rodrigues (2019) evidenciaram a trajetória
inicial dos pescadores como posseiros e balseiros. “Juca Grande” e Lázaro José
Rodrigues de Lima são dois personagens desse processo. No mais, a pesca e a
comercialização na informalidade foram narradas por Maurício de Oliveira (2016, 2019).
Ele próprio, com o “véio Moisés”, fundamentaram essa fase. Francisco Rodrigues (2019)
e Maurício de Oliveira (2016, 2019) foram agentes das atividades de posseiros (safristas),
balseiros, pescadores e patrulheiros. Os dois vivenciaram todas as fases dessa trajetória.
Marildo Oliveira (2019), por sua vez, filho do pescador Maurício, é um agente que atuou
no processo de regulamentação, reconhecimento e registro dos pescadores como
profissionais artesanais. Sua atuação se destaca especialmente no processo de
legalização da jurisprudência: rios e locais permitidos para o exercício da pesca como
atividade profissional. No entanto, todos os pescadores, os entrevistados e os não
entrevistados, compõem um grupo social que constantemente precisa se reinventar para
permanecer no exercício da profissão. São sujeitos que precisam se impor para estar e
ficar no rio Ivaí, bem como para compor, deliberar e usar o rio. Esse uso, para eles,
traduz-se na pesca profissional artesanal de forma legal.
O diferencial na trajetória dos pescadores de Porto Ubá é que eles estão inseridos
geograficamente na Bacia Hidrográfica do Rio Ivaí, especificamente localizados e com
atuação no médio Ivaí. São pescadores artesanais, em um rio de água doce, com tardia
regulamentação para os usos do rio. Nota-se que eles foram impactados pelo processo
regulatório: ao mesmo tempo que este os possibilitou o reconhecimento profissional,
colocou-os na condição de predadores da ictiofauna, em decorrência de um cenário
macro que se voltou para as questões ambientais e os usos dos recursos dricos no
Brasil, no Paraná e, consequentemente, na Bacia do Hidrográfica do Rio Ivaí. Para todas
as fases e os cenários, a trajetória dos pescadores foi e continua sendo de reinvenções
pelo direito de pescar.
No presente, os pescadores se reinventaram como patrulheiros ambientais. Tem-
se uma Organização Não Governamental (ONG) com ações de cunho associativo de
conscientização, fiscalização, notificação e apreensão em relação a ilegalidades contra o
meio ambiente. A criação da Patrulha Ambiental do Rio Ivaí foi uma estratégica dos
pescadores para se inserirem nos cenários de debates e deliberações de atos
regulatórios de usos do rio Ivaí, bem como para se apresentarem socialmente como um
grupo de tradição e de cultura ribeirinha a ser reconhecido e preservado.
O uso da história oral como metodologia para a pesquisa em história ambiental foi
imprescindível para analisar a trajetória desses personagens sem escrita. Temos um
ganho historiográfico ao incorporar as narrativas dos pescadores, os quais estão em
contato direto com a natureza. Suas narrativas, preservando-se a forma falada,
propiciaram informações e perspectivas sobre o rio Ivaí que não encontramos em
documentos oficiais escritos.
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