TORRES, Milton Luiz *
https://orcid.org/0000-0003-1158-4876
RESUMO: Filóstrato (c. 170-247), um sofista da
época romana, escreveu, entre outras, uma
biografia de Apolônio de Tiana (c. 3 a.C.-97
AD), na qual atribui ao filósofo e curandeiro
grego feitos extraordinários que lhe teriam
valido a admiração de vários discípulos e que
lhe teriam possibilitado o exercício de um
magistério profícuo e politicamente relevante.
É, portanto, o propósito deste artigo avaliar
alguns dos princípios fundamentais do
discipulado empreendido por Apolônio,
embora sob a compreensão de que a biografia
não corresponda exatamente ao Apolônio
histórico; ela revelaria, em vez disso, os
estereótipos e as expectativas relacionadas ao
discipulado religioso da época romana,
especialmente como interpretado na era
severiana (193-235 AD).
PALAVRAS-CHAVE: Filóstrato; Apolônio de
Tiana; discipulado.
ABSTRACT: Philostratus (c. 170-247), a sophist
from Roman times, wrote, among other works,
a biography of Apollonius of Tyana (c. 3 a.C.-
97 AD) in which he ascribes to the Greek
philosopher and healer extraordinary
achievements that would have earned him the
admiration of several disciples, and that would
have enabled him to develop a teaching career
that was efficient and politically relevant. It is,
therefore, the purpose of this article to assess
some of the fundamental principles of
discipleship undertaken by Apollonius,
although on the understanding that his
biography does not correspond exactly to the
historical Apollonius; it would reveal, instead,
the stereotypes and expectations related to
religious discipleship in Roman times,
especially as interpreted in the Severan (AD
193-235) era.
KEYWORDS: Philostratus; Apollonius of
Tyana; discipleship.
Recebido em: 02/04/2021
Aprovado em: 06/10/2021
* Doutor em Letras Clássicas, USP, São Paulo, SP. Professor Permanente do Mestrado Profissional em
Educação e da Licenciatura em Letras do Centro Universitário Adventista de São Paulo (UNASP-EC). e-
mail: milton.torres@unasp.ed.
Este é um artigo de acesso livre distribuído sob licença dos termos da Creative Commons Attribution License.
O sofista Flávio Filóstrato (c. 170-247) foi um dos principais representantes de um
movimento intelectual que ocorreu durante os primeiros séculos do Império Romano
conhecido como Segunda Sofística, um termo que ele mesmo teria inventado. Não se
trata, porém, da mesma conotação pejorativa que acompanhou, séculos antes, a
designação de sofistas na época de Sócrates, Platão e Górgias. Desta vez, o termo se
emprega principalmente em relação aos mestres de filosofia que ensinavam em
ambientes abertos e que faziam com que suas lições se parecessem com espetáculos
públicos.
Arqueiro (2011, p. 10-11) descreve a Segunda Sofística como sendo “o culminar de
um sistema de educação e instrução retóricas [...], quando os sofistas eram considerados
pessoas de grande prestígio, sábios e instruídos, mestres da filosofia e eloquência, [...]
oradores possuidores de brilhante eloquência, capazes de influenciar social e
politicamente o público pela retórica.” Sendo assim, correndo o risco de simplificar
excessivamente a questão, podemos dizer que o termo “sofistas” (
sophistai
) englobava
tanto os filósofos quanto os reitores, cabendo ao primeiro título certa ênfase no modo de
pensar do professor e ao segundo, certa ênfase em sua eloquência, conforme sugere um
epigrama grego dedicado a um ateniense anônimo: “[...] era reitor (
rhêtôr
) para falar, mas
filósofo (
philosophos
) quando precisava pensar.” (BOWERSOCK, 1969, p. 12, n. 1,
tradução nossa).
1
De fato, “havia uma linha muito tênue entre o que era um filósofo e o
que era um sofista no Império Romano na época do Principado.” (SILVA, 2016, p. 121).
Embora Filóstrato tenha escrito, entre outras, uma importante obra sobre a vida
dos sofistas (PHILOSTRATUS, 1964), nossa atenção se volta, aqui, para outra de suas
obras:
A vida de Apolônio de Tiana
, cujas citações são feitas a partir do texto grego
original das edições clássicas de Conybeare (1912 e 1921) e Kayser (1964). Nosso esforço
tem, aqui, a intenção de iluminar a relação que existiu, na Roma da era severiana (193-
235 AD), entre o discipulado, isto é, a educação andragógica, e a religião, para a qual a
obra de Filóstrato é uma excelente fonte no contexto pagão. Nela, ao contrário de seus
outros escritos sem teor religioso, Filóstrato lança luz sobre o que Anderson (1986, p. 121)
chama de “um mundo de sapiência e beataria.” Esse mundo inclui, de fato, desde coisas
simples como a oração que Apolônio (4.40) costumava ensinar: ó deuses, dai-me as
coisas necessárias” (CONYBEARE, 1912, p. 444, tradução nossa),
2
até a suposta ascensão
do filósofo pagão, no final da obra.
1
No original, ν ήτωρ μν επεν, φιλόσοφος δ' χρ νοεν. (BOWERSOCK, 1969, p. 12, n. 1).
2
No original, θεοί, δοίητέ μοι τ φειλόμενα. (CONYBEARE, 1912, p. 444).
Em termos das condições de produção da obra, Filóstrato havia ido de Atenas
para Roma onde adquiriu a reputação de sofista no “círculo literário” (
kyklos
) de Júlia
Domna (160-217 AD), esposa de Septímio Severo (145-211 AD). Essa patronesse das artes
lhe entregou um relato sobre Apolônio supostamente escrito por um de seus discípulos e
lhe encomendou que o usasse para escrever uma biografia. Além dessa fonte, Filóstrato
usou ainda as anotações de certo Máximo, admirador de Apolônio, muitas cartas que
circulavam sob o nome de Apolônio, incluindo aquelas coletadas pelo imperador Adriano
(76-138 AD), e tratados, não mais existentes, supostamente escritos pelo sábio. Para
cumprir a missão da qual a imperatriz o incumbira, Filóstrato viajou para o templo
dedicado ao culto de Apolônio em Tiana e para algumas outras cidades onde Apolônio
atuara (CONYBEARE, 1912, p. VI).
Silva (2018, p. 368) fala de uma tensão entre “[...] duas memórias sobre [...]
Apolônio de Tiana [c. 3 a.C-97 AD], uma como feiticeiro charlatão e outra como homem
divino, no período do Principado romano.” Sua biografia, escrita por Filóstrato, é muito
polêmica. Até o gênero literário exato ao qual essa longa e intricada obra pertence é
passível de debates. Discute-se se seria um comentário irônico sobre a relação do
discurso filosófico com a prática, uma complexa alegoria filosófica pitagórica ou uma
combinação de retórica epideítica e romance novelístico (KEMEZIS, 2014, p. 158). Meyer
(1917), um de seus primeiros estudiosos, considerou a obra um
Reiseroman
, isto é, uma
mistura de fantasia com romance de formação, e Reardon (1971, p. 189) a classificou
como quase um romance. Porém, Bowie (1978, p. 1664) chama atenção para uma
marcante diferença entre a narrativa de Filóstrato e o gênero novelístico: a ausência de
um interesse amoroso por parte do personagem central, o que pode ser explicado pela
índole ascética do protagonista.
De fato, Filóstrato parece transformar Apolônio em um membro da Segunda
Sofística, movimento do qual Filóstrato fazia parte (SILVA, 2016, p. 121). A obra assume,
às vezes, o caráter de uma apologia de Apolônio por meio de uma biografia filosófica,
marcada, de acordo com Billault (2009, p. 16), por longos discursos, cuja originalidade
repousa principalmente em sua ênfase no magistério filosófico de Apolônio e que podem
ser resumidos, grosso modo, da seguinte maneira: preleção sobre os sacrifícios e
oferendas que são devidos aos deuses e preleção sobre a recusa de receber pagamento
por suas aulas (livro 1); preleção sobre temas vários como pintura, embriaguez e sonhos
(livro 2); audiência de Apolônio na Índia (livro 3); justificativa de sua viagem a Roma, no
período de Nero (livro 4); defesa das ações de Vespasiano para assumir o poder (livro 5);
justificativa de sua filosofia diante dos “sofistas nus” da Etiópia (livro 6); justificativa de
sua decisão de ir a Roma para enfrentar Domiciano (livro 7); e, finalmente, descrição da
petição que Apolônio preparou para comparecer perante o imperador, mas que não
chegou a proferir, pois desapareceu miraculosamente do tribunal (livro 8).
Embora a obra
A vida de Apolônio de Tiana
tenha uma vitalidade impressionante,
nossa atenção, porém, não se volta para ela como fonte de fatos bem estabelecidos, uma
vez que é considerada, geralmente, como uma quase “[...] debochada [...] mescla de
resquícios factuais com falsificação verbosa”, “uma fantasia que reflete o espírito da
época”, “uma enciclopédia de hagiografia” (ANDERSON, 1986, p. 121 e 136, tradução
nossa).
3
Em seu alcance enciclopédico, o texto consegue penetrar os limites geográficos
do mundo conhecido, para cobrir abordagens radicalmente diferentes à prática
religiosa, pesquisa filosófica e sistemas de governança, e até mesmo atravessar
o tempo e rescrever a história literária da Grécia. Trata-se de um texto que
absorve, que se apropria e que representa virtualmente cada aspecto da cultura
intelectual de sua época. (PLATT, 2009, p. 131, tradução nossa).
4
De fato, “os estudiosos de Filóstrato tendem [...] a uma abordagem sincrônica e
anedótica, que o coloca no mesmo paradigma usado para Luciano, Élio Aristides e vários
outros autores gregos, principalmente da era antonina [96-192 AD], que representam o
cânone central da Segunda Sofística.” (KEMEZIS, 2014, p. 155, tradução nossa).
5
O
Apolônio de Tiana histórico atuou pelo menos um século antes do relato idealizado de
Filóstrato sobre sua vida, no final da dinastia júlio-claudiana e durante todo o período da
dinastia flaviana (69-96 AD). De certa forma, a obra de Filóstrato reflete tanto alguns
aspectos pertinentes ao período de vida de Apolônio quanto outros aspectos
inteiramente conectados ao próprio período do autor, sendo, às vezes, difícil estabelecer
uma separação rígida entre uns e outros. Ainda assim, a obra
A vida de Apolônio de Tiana
tem o indiscutível mérito de nos revelar os estereótipos e as expectativas que povoavam
a cosmovisão que sustentava o fenômeno pedagógico do discipulado na dimensão
religiosa durante esse relativamente longo período. Por isso, mostra-se valiosa para
nosso propósito aqui, ainda que padeça das limitações mencionadas, uma vez que, em
3
No original, “[…] a debased […] blend of slender fact and garrulous forgery, a fantasy which mirrors the
times, an encyclopaedia of hagiography.” (ANDERSON, 1986, p. 121 e 136).
4
No original, “In its encyclopaedic range, the text manages to penetrate the geographical limits of the
known world, to cover radically different approaches to religious practice, philosophical enquiry, and
systems of government, and even to traverse time and rewrite Greek literary history. It is a text that
absorbs, appropriates and represents virtually every aspect of the intellectual culture of its time.” (PLATT,
2009, p. 131).
5
No original, “Scholarship on Philostratus tends […] to take a synchronic and anecdotal approach, which
places him in much the same paradigm as is used for Lucian, Aelius Aristides and a series of other mostly
Antonine-era Greek authors that represent the core canon of the modern Second Sophistic.”
(KEMEZIS,
2014, p. 155).
vários momentos, a obra assume o caráter de “exercícios de imaginação cultural”, com a
consequente criação de “mundos narrativos”, baseados apenas tangencialmente em
dados factuais (KEMEZIS, 2014, p. 156, tradução nossa).
6
Filóstrato nunca faz críticas a Apolônio, nunca expressa a menor reserva quanto
a suas palavras ou ações”; em vez disso, age como “seu apologista constante e o mantém
incessantemente no centro de sua atenção.” (BILLAULT, 2009, p. 17, tradução nossa).
7
Filóstrato lhe atribui poderes miraculosos e proféticos, representa-o como “homem
divino” (
theios anêr
), dá-lhe o crédito de ter profetizado dia e hora exatos em que
Estéfano assassinaria o imperador Domiciano (8.26) e descreve sua ascensão (8.29-31)
que, supostamente, teria permitido que Apolônio partisse desta vida sem ver a morte.
Por outro lado,
Filóstrato afirma que está usando uma série de fontes que garantem sua
autenticidade: tradições locais, inclusive relatos de templos, cartas, o
testamento do próprio Apolônio, uma biografia escrita por Máximo de Egeia, a
quem conhecemos por intermédio de outras fontes, e o problemático memorial
do fiel discípulo de Apolônio: Dâmis de Nínive. (ANDERSON, 1986, p. 123-124,
tradução nossa).
8
Ao lado da constante atuação das forças sobrenaturais que afetam a vida de
Apolônio de Tiana, o relato de Filóstrato o apresenta como educador, médico, sofista ou
filósofo de inclinações pitagóricas e cínicas (FLINTERMAN, 2009, p. 155), capaz até
mesmo de corrigir Homero. Segundo Koskenniemi (2009, p. 322, tradução nossa),
Não é fácil determinar a forma como o conceito de “mestredeve ser definido
na obra. Claro, Apolônio tem seu próprio discípulo fiel, Dâmis, e, mais tarde,
outros, cujo mestre ele se torna em um sentido estrito, ou seja, ele lhes dá parte
de sua educação formal. Por outro lado, seus ensinos claramente se voltam
também para outras pessoas, como governantes, quer estejam ou não dispostas
a ser ensinadas. Além disso, com grandes multidões em templos e cidades, ele
atua como mestre no sentido de andarilho, pregando ou agindo de uma maneira
em que suas palavras estejam intimamente entrelaçadas com seus atos.
9
6
No original, “Exercises in cultural imagination […] narrative worlds […].”
(KEMEZIS, 2014, p. 156).
7
No original, “Il ne critique jamais Apollonios, ne formule jamais la moindre réserve sur ses paroles ou sur
ses actes. Il se fait, au contraire, son apologiste constant et le maintient sans cesse au centre de son
propos.” (BILLAULT, 2009, p. 17).
8
No original, Philostratus claims to be using a number of sources to ensure authenticity: local traditions
including temple-accounts, correspondence and a testament of Apollonius himself, an otherwise attested
biographer Maximus of Aegeae and the problematic memoirs of Apollonius’ faithful disciple Damis of
Nineveh.” (ANDERSON, 1986, p. 123-124).
9
No original, “It is not easy to determine the way in which the concept of “teacher” should be defined in
the work. Of course, Apollonius has his own faithful disciple, Damis, and later others, whose teacher he is
in a narrow sense, i.e. he gives them part of their formal education. On the other hand, he clearly teaches
others, such as rulers, who are or are not willing to be taught. Moreover, with large crowds in temples and
cities he acts as a teacher in a broader sense, either preaching or acting in a manner in which his words
are intimately interwoven with his deeds.” (KOSKENNIEMI, 2009, p. 322).
Como Pitágoras, Apolônio era adepto de uma dieta que prescindia de alimentos
cárneos e não praticava o sacrifício de animais (1.1), deixava o cabelo crescer (1.8 e 32),
abstinha-se de vinho (1.8), abraçava o celibato (1.13) e preferia os banhos frios (1.16). Além
disso, observou os cinco anos de silêncio que Pitágoras exigia de seus discípulos (1.14).
Apesar das conexões explicitamente pitagóricas, o texto de Filóstrato evidencia um tipo
muito específico de sábio: o taumaturgo peregrino e racional, o guia pedagógico
(
exêgêtês
), que conduz uma série de discussões à moda de Sócrates (PLATT, 2009, p.
132). No final das contas, “o biógrafo parte para a glorificação de Apolônio não para sua
compreensão” e apresenta-o como “o super-homem dos super-homens” (ANDERSON,
1986, p. 135, tradução nossa).
10
Filóstrato faz com que Apolônio “subverta e supere seus
modelos em termos de
paideia
[cultura],
sophia
[sabedoria] e religiosidade, enquanto
demonstra suas próprias habilidades para açambarcar as realizações literárias de seus
predecessores” (PLATT, 2009, p. 131, tradução nossa).
11
O magistério de Apolônio incluía inúmeras dimensões. Entretanto, elencamos, a
seguir, os cinco principais aspectos nos quais o filósofo esperava que seus discípulos se
exercitassem. Deve ser lembrado, porém, que, ao tratar dessas dimensões, nossa
referência é sempre o Apolônio de Filóstrato e não, necessariamente, o Apolônio
histórico.
Devoção
Filóstrato afirma que Apolônio tinha muitos discípulos (1.19), mas não detalhes
de como os havia chamado para essa função. A principal exceção é Demétrio (4.25), que
encontra Apolônio em Corinto e, prontamente, torna-se seu discípulo, a história sendo
contada em duas frases que servem de prelúdio para o episódio em que Apolônio livra
um rapaz chamado Menipo de se casar com uma empusa, espécie de vampira da
Antiguidade. Segundo Koskenniemi (2009, p. 325), o sábio chega ao número máximo de
trinta e quatro discípulos na época de Nero, que passaram a usar o (
tribôn
), o manto
surrado dos cínicos, como seu mestre (4.20, 39-40; 7.14), mas o número cai
eventualmente para oito (4.37), apenas três dos quais são mencionados pelo nome:
Dâmis, Demétrio e Dioscórides.
De seus discípulos Apolônio exigia completa devoção aos templos que visitavam.
As dependências dos templos eram locais ideais para que os discípulos encontrassem um
10
No original, The biographer sets out to glorify Apollonius, not to understand him [...] a superman’s
superman.” (ANDERSON, 1986, p. 135).
11
No original, “[…] to subvert and surpass his models in terms of
paideia
,
sophia
and piety, while
demonstrating Philostratus’ own skills in outstripping the literary achievements of his predecessors.”
(PLATT, 2009, p. 131).
mestre religioso e vice-versa. Dião Crisóstomo (8.9) nos dá, em um de seus discursos,
uma detalhada descrição da vida intelectual que fervilhava ao redor do templo de Posido,
por exemplo:
Essa também era a hora de ouvir um bando de malditos
sofistas
(
sophistai
) ao
redor do templo de Posido, gritando e insultando uns aos outros, e seus assim-
chamados
discípulos
(
mathêtai
) brigando entre si, e muitos
cronistas
(
syggrapheis
) lendo suas
crônicas enfadonhas
(
anaisthêta syggrammata
) e
inúmeros
poetas
(
poiêtai
) recitando seus
poemas
(
poiêmata
) enquanto elogiam
as obras uns dos outros, e muitos
prestidigitadores
(
thaumatopoioi
) realizando
seus
truques
(
thaumata
), muitos
adivinhos
(
teratoskopoi
) interpretando
sortes
(
terata
), incontáveis
oradores
(
rhêtores
) pervertendo a justiça e não poucos
mascates
(
kapêloi
) vendendo o que quer que cada um quisesse vender.
(CHRYSOSTOMUS, 1962, s.p, tradução nossa).
12
É exatamente nesse contexto que Apolônio preferia se colocar. Durante sua
primeira visita a Antioquia, por exemplo, o filósofo (1.16) procura evitar os espaços
públicos lotados, dizendo que “não precisava de pessoas apenas, mas de homens”
(CONYBEARE, 1912, p. 44, tradução nossa).
13
De fato, Apolônio esforçava-se tanto para
proteger seus discípulos de influências externas que limitava a interação deles com
outros intelectuais (8.22):
Mas certas pessoas o acusavam de dissuadir seus
ouvintes
(
akroatai
) de visitar
os governadores, e de influenciá-los a levar uma vida de alheamento (
hêsychia
);
e uma delas fez até uma piada dizendo que ele recolhia
suas ovelhas
(
ta probata
)
a seu pasto assim que percebia que alguns oradores (
agoraioi
) se aproximavam.
“Claro, por Zeus”, dizia Apolônio, “para que
esses lobos
(
hoi lykoi
) não caiam
sobre meu
rebanho
(
poimnê
)”. (CONYBEARE, 1921, p. 384, tradução nossa).
14
Contudo, não parece que seu objetivo de gravitar em torno dos templos se
limitasse a uma melhor seleção de discípulos e ouvintes. Eshleman supõe que essa
escolha fazia parte da agenda de Apolônio por muitas outras razões:
[...] ele acampa em locais sagrados e templos destrancados, cenários em que ele
pode ditar precisamente o ritmo de sua jornada filosófica, com os participantes
sendo admitidos em cada etapa. Ele começa de madrugada com rituais solitários
12
No original, κα δ κα τότε ν περ τν νεν το Ποσειδνος κούειν πολλν μν σοφιστν
κακοδαιμόνων βοώντων κα λοιδορουμένων λλήλοις, κα τν λεγομένων μαθητν λλου λλ
μαχομένων, πολλν δ συγγραφέων ναγιγνωσκόντων ναίσθητα συγγράμματα, πολλν δ ποιητν
ποιήματα δόντων, κα τούτους παινούντων τέρων, πολλν δ θαυματοποιν θαύματα
πιδεικνύντων, πολλν δ τερατοσκόπων τέρατα κρινόντων, μυρίων δ ητόρων δίκας στρεφόντων, οκ
λίγων δ καπήλων διακαπηλευόντων ,τι τύχοιεν καστος. (CHRYSOSTOMUS, 1962).
13
No original, οκ νθρώπων αυτ δεν, λλνδρν. (CONYBEARE, 1912, p. 44).
14
No original, διαβαλλόντων δ' ατν νίων, τι τς τν γεμόνων πιδημίας κτρέποιτο κα πάγοι τος
κροατς ς τς συχίας μλλον, καί τινος ποσκώψαντος μετελαύνειν ατν τ πρόβατα, πειδν τος
γοραίους προσιόντας μάθ, ν Δί',” επεν να μ μπίπτωσι τ ποίμν ο λύκοι(CONYBEARE, 1921, p.
384).
limitados àqueles que haviam completado o período de silêncio de quatro anos.
Em seguida, vem uma conversa com os sacerdotes do templo e um período de
perguntas e respostas com seus discípulos e, finalmente, uma palestra pública
informal (1.16.3-4). Para Filóstrato, a liberdade de Apolônio de decidir quando,
onde e com quem filosofará é crucial para sua capacidade de controlar o tipo de
filosofia (e filósofos) que ele promove. (ESHLEMAN, 2012, p. 44, tradução
nossa).
15
Embora buscasse certa proximidade com os templos, Apolônio não hesitava em
criticar seus frequentadores. Assim, Apolônio (1.16) denunciou os habitantes de Antioquia
pelo mau uso que faziam do templo de Apolo, pois via “que o templo era lindo, mas que
não havia nenhum estudo sério que ocorresse nele, pois estava cheio de pessoas que
eram semibárbaras e incultas.” (CONYBEARE, 1912, p. 44, tradução nossa).
16
Filóstrato não imagina, portanto, que Apolônio estivesse promovendo algum tipo
de rompimento com a religião institucionalizada de sua época, se é que podemos, de fato,
falar em religião institucionalizada. Não ocorre uma tentativa de suplantar o
status quo
.
Pelo contrário, o que se percebe é certa diligência para reforçá-lo.
Uma das características evidentes na descrição que Filóstrato faz da vida de
Apolônio de Tiana é sua narrativa do espantoso. De fato, o biógrafo apresenta o
assombroso como um ingrediente fundamental para que o sábio arregimentasse
discípulos. Portanto, a nos feitos sobrenaturais do filósofo parece ter sido uma
característica bastante desejável naqueles que o seguiam.
Assim, enquanto admirava uma estátua de Io em Nínive, Apolônio se encontra,
pela primeira vez, com Dâmis, a figura historicamente controversa que eventual e
supostamente se tornaria um de seus principais discípulos e biógrafos. Para Bowie (1978,
p. 1653, tradução nossa), Dâmis é uma invenção de Filóstrato, que não esperava que
seus leitores o levassem a sério.”
17
No encontro com Dâmis, Filóstrato (1.19) apresenta o
sábio como sendo capaz de entender línguas estrangeiras, mesmo sem as haver
estudado:
15
No original, “[…] he camps out in holy sites and unlocked temples, settings in which he can dictate
precisely the rhythm of his philosophical day, and the participants admitted at each stage. He begins at
dawn with solitary rituals limited to those who have completed a four-year period of silence. Next comes
conversation with the temple’s priests and a question-and-answer period with his disciples, and finally an
informal public lecture (VA 1.16.34). For Philostratus, Apollonius freedom to decide when, where, and
with whom he will philosophize is crucial to his ability to control the kind of philosophy (and philosophers)
he promotes.” (ESHLEMAN, 2012, p. 44).
16
δν τ ερν χαρίεν μέν, σπουδν δ'ν ατ οδεμίαν, λλ' νθρώπους μιβαρβάρους κα μούσους.
(CONYBEARE, 1912, p. 44).
17
No original, “Damis is an invention of Philostratus, who will not have expected his readers to take him
seriously.” (BOWIE, 1978, p. 1653).
Enquanto estava e tirava conclusões mais sábias sobre a estátua do que os
sacerdotes e os profetas, certo Dâmis, natural de Nínive, passou a segui-lo
como discípulo [...]. Ele o admirava e, tendo gosto pela estrada, disse:
Vamos
embora
(
iômen
), Apolônio, você seguindo a Deus, e eu a você; porque creio que
me achará de considerável valor. Pois, se não sei mais nada, pelo menos já
estive em Babilônia e conheço todas as cidades que existem, porque estive
não faz muito tempo [...]; e, além disso, conheço as línguas das várias raças
bárbaras, e existem várias, por exemplo, a língua armênia, e a dos medos e
persas, e a dos nativos de Cados, e estou familiarizado com todas elas.” “E eu”,
disse Apolônio, “meu bom amigo, entendo todas as línguas, embora nunca tenha
aprendido nenhuma.” O nativo de Nínive se espantou ao ouvir essa resposta,
mas o outro respondeu: Não se espante com o meu conhecimento de todas as
línguas humanas; pois, para dizer a verdade, eu também entendo todos os
segredos do silêncio humano. Em seguida, o assírio o adorou, quando ouviu isso,
e o considerou um
gênio
(
daimôn
); e ele o seguiu, crescendo em sabedoria e
memorizando o que quer que fosse que aprendia. (CONYBEARE, 1912, p. 50 e
52, tradução nossa).
18
Por mais surpreendente que seja a alegada habilidade de entender línguas sem as
ter estudado ou conhecido, o relato mais inacreditável que Filóstrato conta talvez seja o
da ascensão de Apolônio, narrada nos capítulos finais da obra (8.29-31). No capítulo 28,
ao sentir que sua hora se aproximava, Apolônio envia o fiel Dâmis a Roma como portador
de uma carta para o imperador Nerva. Seu desejo era sair desta vida sem ser observado.
Como não podia ter sido de outra forma, Apolônio ascende de um templo, o santuário de
Dictina, em Creta. Filóstrato reconhece que havia outras versões que circulavam a
respeito da suposta morte de Apolônio, em Éfeso ou Rodes, que ele relata brevemente. A
narrativa mais minuciosa é, porém, aquela que o coloca nas proximidades do templo de
Dictina, em hora inapropriada, onde teria sido confundido com um ladrão e aprisionado
pelos guardas do templo. À meia-noite, o filósofo desfaz os próprios grilhões, como
supostamente havia feito em seu aprisionamento em Roma, e caminha para a porta do
templo, que se abre miraculosamente para recebê-lo, ao som de um coral de cânticos
angelicais. Mais tarde, aparecerá a um anônimo discípulo que se demonstrava um tanto
cético para lhe confirmar a doutrina da imortalidade da alma (8.31).
De fato, isso explica por que Filóstrato escolheu apresentar Apolônio de Tiana
principalmente como filósofo pitagórico. Apesar disso,
18
No original, νταθα διατρίβοντι κα πλείω ξυνιέντι περ το γάλματος ο ερες κα προφται,
προσεφοίτησε Δάμις Νίνιος, ν καταρχς φην ξυναποδημσαί [] ς γασθες ατν κα ζηλώσας τς
δο ωμεν, φη πολλώνιε, σ μν θε πόμενος, γ δ σοί, κα γάρ με κα πολλο ξιον εροις ν·
ε μν λλο τι οκ οδα, τ δ' ον ς Βαβυλνα κον, πόλεις τε, πόσαι εσίν, οδα νελθν ο πάλαι [],
κα μν κα τς φωνς τν βαρβάρων, πόσαι εσίν, εσ δ λλη μν ρμενίων, λλη δ Μήδων τε κα
Περσν, λλη δ Καδουσίων, μεταλαμβάνω δ πάσας. γ δέ, επεν ταρε, πασν ξυνίημι, μαθν
μηδεμίαν. θαυμάσαντος δ το Νινίου μ θαυμάσς, επεν ε πάσας οδα φωνς νθρώπων· οδα γρ
δ κα σα σιωπσιν νθρωποι. μν δ σσύριος προσηύξατο ατόν, ς τατα κουσε, κα σπερ
δαίμονα βλεπε, συνν τε ατ πιδιδος τν σοφίαν κα τι μάθοι μνημονεύων. (CONYBEARE, 1912, p.
50 e 52).
Não podemos encontrar nenhuma sociedade pitagórica organizada, nenhuma
irmandade real, na qual Apolônio tenha sido recebido na época; pelo contrário,
encontramo-lo, então, como Mestre: um seguidor de fato de Pitágoras, mas
ainda um Mestre ele chama discípulos e eles o seguem; ele ordena e eles
obedecem. (CAMPBELL, 1908, p. 62, tradução nossa).
19
No entanto, essa conexão tinha seu valor para os propósitos de Filóstrato, pois,
“para os seguidores de Pitágoras, os feitos miraculosos passavam a impressão de que
seu mestre tinha uma natureza sobre-humana.” (FLINTERMAN, 2009, p. 156, tradução
nossa).
20
Não obstante, essa ênfase poderia ter custado caro, fazendo com que seus
feitos fossem pejorativamente avaliados como magia ou charlatanismo, acusação que
pesou algumas vezes sobre Apolônio (SILVA, 2016, p. 120). Por isso, segundo Gyselinck e
Demoen (2009, p. 109, tradução nossa),
Filóstrato certas indicações sobre aquilo em que se deve acreditar ou não.
Tanto o narrador quanto os personagens frequentemente mostram ceticismo
em relação a eventos ou histórias sobrenaturais, um exemplo do que Whitmarsh
chamou de convergência entre narrador e protagonista, por exemplo, na
maneira como eles exercem autoridade para aceitar ou rejeitar histórias ou
explicações.
21
e crença são, portanto, atitudes extremamente necessárias no discipulado
empreendido por Apolônio. Ao se deparar com o discípulo cético, Apolônio (8.31) lhe
aparece num sonho, o que se configura como medida suficiente para que o rapaz supere
a descrença e grite a plenos pulmões: “eu creio em ti” (
peithomai soi
). Na descrição do
novo comportamento de do discípulo cético, Filóstrato revela que o rapaz agiu
momentaneamente como louco (
hôsper emmanes
), o que, entre outras coisas, leva
Gyselinck e Demoen (2009, p. 125 e 126 grifo dos autores, tradução nossa) a suporem
que o biógrafo voluntariamente se trai ao deixar implícito “que a crença na
Vida de
Apolônio
exigia certo grau de μανία [
loucura
], ou para ser franco, que só um louco
poderia crer na
Vida de Apolônio
”, o que consideram uma “ironia metafictícia” que, mais
do que solapar a credibilidade da estória, garante sua aceitação como ficção, com o
efeito de que “essa confissão de certo grau de ficcionalidade impede que Filóstrato
19
No original, “We can find no organised Pythagorean society, no actual brotherhood, into which at the
time Apollonius was received. On the contrary, we find him then Master: a follower indeed of Pythagoras,
but yet a Master. He calls disciples: they follow. He commands: they obey.” (CAMPBELL, 1908, p. 62).
20
No original, “For Pythagoras’ followers, such miraculous feats hinted at the master’s superhuman
nature.”
21
No original, “Philostratus gives certain indications about what to believe and what not. Both the narrator
and the characters frequently show skepticism towards wondrous events or stories, an instance of what
Whitmarsh has called a convergence between narrator and protagonist, for example in the way they gain
authority by accepting or rejecting stories or explanations.” (GYSELINCK; DEMOEN, 2009, p. 109).
infrinja o cabimento comunicativo e que a
Vida de Apolônio
seja tachada de falsificação
ou mentira.”
22
O caráter religioso da instrução que Apolônio preferencialmente passava aos
discípulos está em consonância com o fato de que geralmente optava pelos templos
como locais ideais para seus ensinamentos, embora não os limitasse a esse contexto
arquitetônico. Segundo Koskenniemi (2009, p. 328, tradução nossa), “Apolônio
frequentemente ensina as pessoas discutindo com elas, fazendo perguntas e dando
respostas. A primeira pergunta é feita principalmente por Apolônio [...] ou por outro
mestre, como Tespésio [...], e apenas raramente por um discípulo.”
23
Nesse aspecto,
Filóstrato faz Apolônio seguir a tradição socrática de perguntas que levam à aporia.
A se configura, portanto, como uma boa saída para as aporias. O que é possível
compreender pela racionalidade assim deve -lo. Quando, porém, os discípulos lidam
com o sobrenatural e o inexplicável, devem manter a mente aberta para as sugestivas
soluções dadas pelo seu biógrafo, únicos com autoridade bastante para confirmar e dar
sentido às alegações de milagres e prodígios.
Peregrinação
Outro elemento fundamental na educação à qual Apolônio submete seus
discípulos é a peregrinação respeitosa aos santuários e às estátuas. De fato, ele leva todo
o grupo de discípulos a uma longa peregrinação ao Ocidente distante, por ocasião do
edito de Nero que proibia o ensino público da filosofia em Roma, sob a alegação de que
queria, entre outras coisas, estudar sua religião (4.47). Para a Etiópia, no entanto, leva
apenas os dez discípulos mais bem preparados (5.43).
Se Apolônio recomenda a peregrinação aos discípulos é porque ele mesmo
recorreu a elas como forma de promover o próprio aprendizado. Segundo Koskenniemi
(2009, p. 324, tradução nossa),
A parte mais importante da educação de Apolônio são suas viagens ao Oriente.
Ele falava todas as línguas (1.19) (mas muitas vezes precisa de um intérprete, por
exemplo, em 2.26) e os árabes até lhe ensinaram a língua dos animais (1.20). Ele
consulta os
magoi
de Babilônia, que foram considerados sábios, mas não em
todos os assuntos (1.26) [...]. Ao retornar à Grécia, ele se torna um mestre
22
No original, “[…] that belief in the VA requires a certain degree of µανία, or to put it bluntly, that one
should be mad to believe the VA […] metafictional irony […] This avowal of a certain degree of fictionality
prevents Philostratus from infringing upon the communicative bienséance, and the VA from being a
forgery or a lie.” (GYSELINCK; DEMOEN, 2009, p. 125 e 126).
23
No original, “Apollonius very often teaches people through discussing with them, asking questions and
giving answers. The first question is mostly asked either by Apollonius […], or by another teacher, such as
Thespesion […], and only seldom by a pupil.” (KOSKENNIEMI, 2009, p. 328).
soberano dos helenos (livro 4), e sua estada com os etíopes prova que o homem
não tinha mais nada a aprender (6.623).
24
A maior probabilidade é que essas viagens ao Oriente empreendidas por Apolônio
tenham sido uma ficção criada por Filóstrato para conceder estatuto de sábio ao sofista,
segundo uma tradição que também se aplica a Pitágoras, um importante modelo para o
Apolônio de Filóstrato. Evidência disso é o fato de que a sabedoria por ele adquirida
nessas terras longínquas harmoniza-se perfeitamente com o pensamento filosófico
ateniense. Segundo Priaulx (1860, p. 103, tradução nossa), “no próprio coração da Índia,
ele encontra sábios [...] bem familiarizados com a geografia grega e com a navegação nos
mares gregos, adorando os deuses gregos, falando grego, pensando grego, mais gregos
do que indianos.”
25
Seria muito estranho que, tendo partido de Antioquia e sendo o
primeiro grego a viajar para a Índia com o declarado propósito de aprender dos
Brahmans e Sramans, com quem teria permanecido quatro meses, aos quarenta anos de
idade, na companhia de Dâmis, ele voltasse para a Grécia apenas com a confirmação do
pensamento grego, sem demonstrar nenhuma nítida influência do pensamento oriental.
Quer verdadeiras ou fictícias, algumas das viagens de Apolônio chegam, porém, a
alcançar dimensões épicas, seguindo os moldes da própria
Odisseia
, de Homero (DIJK,
2009, p. 176) e o filósofo (8.7) se lamentava de nunca ter podido fazer uma visita ao
Hades” (CONYBEARE, 1921, tradução nossa).
26
Em qualquer caso, para Apolônio (1.34),
o sábio es na Grécia mesmo que esteja em outro lugar e, para ele, não existe nem
lugar deserto e nem terra bárbara.” (CONYBEARE, 1912, p. 99, tradução nossa).
27
Trata-
se do que Platt (2009, p. 132) denomina de agenda hagiográfica de Filóstrato, embora
König (2014, p. 264, tradução nossa) expresse a cautela de que a frase não
necessariamente aponte para as inclinações de Apolônio como viajante, mas, em vez
disso, signifique que “o sábio sempre viverá virtuosamente, como se estivesse exposto
ao olhar julgador dos gregos, mesmo quando fora do território grego.”
28
24
No original, “The most important part of Apollonius’ education is his travels to the East. He could speak
all the languages (1.19) (but is often in need of an interpreter, for example in 2.26) and Arabs even taught
him the language of animals (1.20). He consults with the magoi of Babylon, who were considered wise but
not in all matters […]. On returning to Greece he becomes a sovereign teacher of the Hellenes (book ΙV),
and his sojourn with the Ethiopians proves that the man had no longer anything to learn.” (KOSKENNIEMI,
2009, p. 324).
25
No original, “In the very heart of India he finds its sages […] well acquainted with Greek geopgraphy and
the navigation of the Greecian seas, worshipping Greek gods, speaking Greek, thinking Greek, - more
Greek than Indian.”
26
No original, π τν γν πορευθναι. (CONYBEARE, 1921).
27
No original, σοφ νδρ λλς πάντα... οδν ρημον βάρβαρον χωρίον. (CONYBEARE, 1912, p. 99).
28
No original, “the wise man will always live virtuously, as if he is exposed to the judging gaze of the
Greeks, even when he is outside Greek territory.” (KÖNIG, 2014, p. 264).
O objetivo derradeiro da filosofia era, para Sócrates (
República
486d), a
theôria:
a contemplação de todas as coisas temporais e de toda realidade” (PLATO, 1986,
tradução nossa).
29
A viagem, a peregrinação, a visitação às estátuas sagradas e a obtenção de
sophia
, tudo isso se colocava sob a noção grega de
theôria
. Tanto quanto termo
usado para descrever peregrinações cívicas aos festivais religiosos da Grécia, o
conceito de
theôria
também se aplicava ao peregrino individual que visitava
terras estrangeiras na busca do conhecimento e da sabedoria, de natureza
geralmente religiosa. (PLATT, 2009, p. 133, tradução nossa).
30
Filóstratro considera que a visualização e a veneração das estátuas tinham um
importante papel na Grécia antiga. Ao fazer isso, o sofista demonstra sua aderência a
uma concepção que perdurava na Grécia fazia muito tempo e que encontrou um
favorável espaço de expressão durante o período imperial. De acordo com Scanlon
(2002, p. 53, tradução nossa), as
[...] manifestações de elogios às estátuas por parte de intelectuais de várias
convicções e de origem grega, romana e asiática mostram o uma mera
iconolatria ou apreciação da arte, mas um vínculo estético quase espiritual
entre os “homens de ideias” do período imperial médio, que encontravam
grande consolo no antigo culto do olimpianismo clássico.
31
Para Filóstrato (6.19), as estátuas eram produzidas com base na
imaginação
humana (
phantasia
) e não com base em uma
imitação
(
mimêsis
) das formas divinas.
Trata-se, portanto, de uma alegação de que o recurso aos antropomorfismos servia para
comunicar sabedoria divina. Por outro lado, “a pose pedagógica de Apolônio significa que
o poder e o significado das imagens são também expressos por meio de uma série de
cenas de
paideia
”, nas quais Apolônio, especialmente no livro 6, “[...] usa imagens para
comunicar seus ensinamentos religiosos e filosóficos aos seus ouvintes.” (PLATT, 2009,
p. 134-135, tradução nossa).
32
Platt apresenta alguns exemplos significativos (numerosos
demais para mencionar aqui) do contato de Apolônio com as antigas estátuas gregas e do
29
No original, θεωρία παντς μν χρόνου, πάσης δ οσίας. (PLATO, 1986).
30
No original, “Travel, pilgrimage, the viewing of sacred images and the attainment of
sophia
all come
together in the Greek notion of
theôria
. As well as a term used to describe state pilgrimages to religious
festivals in Greece, the concept of
theôria
can also apply to the individual pilgrim who visit foreign lands in
search of knowledge and wisdom, often of a religious nature.” (PLATT, 2009, p. 133).
31
No original, “[…] outpourings of praise for a statue from intellectuals of various persuasions and of
Greek, Roman, and Asian origin show not mere iconolatry or art appreciation, but an almost spiritual,
aesthetic bond among ‘idea men’ of the middle Imperial period, who could find great solace in the old cult
of classical Olympianism.” (SCANLON, 2002, p. 53).
32
No original, “Apollonius’ pedagogical pose means that the power and significance of images are also
expressed through scenes of paideia […] uses images to communicate his religious and philosophical
teachings to his companions.” (PLATT, 2009, p. 134-135).
modo como Filóstrato explora esses episódios educacionais do sábio, e chega à
conclusão de que
[...] as imagens são vistas e discutidas [...] para promover um conceito tirado da
epistemologia estoica e médio-platônica a fim de resolver a suspeita platônica
da arte mimética de modo tal que ele consegue justificar e promover a
contemplação do divino através das práticas tradicionais gregas de
representação antropomórfica. Ao fazer isso, ele une preocupações intelectuais
e religiosas em um modelo de contemplação retórica que se inspira nas próprias
estátuas cultuais que são centrais para a identidade cultural e religiosa dos
gregos, enquanto propicia um comentário pedagógico quanto aos modos pelos
quais essas imagens podem ser “vistas com inteligência” [...]. Isso permite que
nós, como leitores, visualizemos não apenas os deuses da Grécia, mas também
o próprio Apolônio, de modo que nós, como o povo da Grécia e de Alexandria,
podemos “olhar para ele como se fosse um deus” (5.24). (PLATT, 2009, p. 154,
tradução nossa).
33
Assim, também no caso das peregrinações, Apolônio endossa o
status quo
. Trata-
se de peregrinações programáticas e análogas àquelas empreendidas por outros sábios.
São viagens curriculares que conferem ao sábio o direito de se pronunciar sobre a vida,
seus costumes e, principalmente, seu significado.
Poder
Filóstrato representa o sábio Apolônio de Tiana como um paladino das forças do
bem em luta contra as forças do mal. Esse fato se torna bastante evidente em um grande
feito do filósofo: seu embate contra uma empusa em Corinto, um monstro semelhante a
um vampiro que, transformado em mulher, estava a ponto de contrair núpcias com
Menipo, um dos discípulos de Demétrio. O rapaz havia caído vítima dessas ilusões pelo
fato de que a empusa lhe proporcionava grande prosperidade, enquanto se alimentava de
sua força vital. Apolônio (4.25) triunfa e faz com que o monstro desapareça com todas as
ilusões que havia criado na vida do jovem, pois não se tratava de matéria, mas da ilusão
de matéria” (CONYBEARE, 1912, p. 406, tradução nossa).
34
Como resultado dessa
experiência, Menipo passa a seguir Apolônio.
De acordo com Koskenniemi (2009, p. 329), as condições da educação filosófica
haviam mudado, no período helenístico, em relação ao período clássico, havendo menos
33
No original, “[…] images are viewed and discussed […] to promote a concept taken from Stoic and
Middle Platonic epistemology in order to solve the Platonic suspicion of mimetic art in such a way that he
can justify and promote the contemplation of the divine through traditional Greek practices of
anthropomorphic representation. In doing so, he unites intellectual and religious concerns in a model of
rhetoric viewing that draws for its inspiration upon the very cult images that are central to Hellenic
cultural and religious identity, while providing a pedagogical commentary on the ways in which such
images can be “viewed with intelligence […]. It allows us as readers, to visualize not just the gods of
Hellas, but also Apollonius himself, so that we, like the people of Greece and Alexandria, can “gaze upon
him as if he were a god” (5.24).” (PLATT, 2009, p. 154).
34
No original, ο γρ λη στν, λλ λης δξα. (CONYBEARE, 1912, p. 406).
espaço para as discussões especulativas e mais espaço para as discussões práticas,
sendo, por isso, muito importante que o filósofo, embora mestre da retórica, estribasse
suas palavras em ações práticas e visíveis. Por isso,
Apolônio costumava ligar sua instrução prática com o que ele ocasionalmente
via na vida cotidiana (6.3), mas, mais importante, suas palavras estavam
entrelaçadas com ações, como observado por Filóstrato em 5.21. Nesse sentido,
todas as suas ações, incluindo seus milagres, como exorcismo (4.20), sua
aparição em uma cidade conturbada pela guerra durante seu período de silêncio
(1.15) e especialmente sua oposição contra Domiciano (livros 78), faziam parte
de sua missão como mestre. Um filósofo que não perseguia os ideais ascéticos
não era um filósofo e, se ele evitasse a controvérsia aberta com os tiranos, ele
trairia a própria doutrina (especialmente 7.11-15). Uma parte integrante da
instrução de Apolônio era sua missão de encontrar homens poderosos sem
temer o poder dos tiranos. (KOSKENNIEMI, 2009, p. 329, tradução nossa).
35
Era necessário, portanto, que Apolônio evidenciasse a força de suas palavras por
intermédio de atos de poder. Dessa forma, sua reputação como exorcista servia a esse
propósito. De acordo com Conybeare (1921, p. xiii, tradução nossa),
[...] a possessão demoníaca era uma característica comum na paisagem antiga, e
o exorcista que expulsava demônios de seres humanos aflitos, pelo recurso a
ameaças e invocações de nomes misteriosos, era uma figura tão conhecida na
velha sociedade pagã quanto na igreja primitiva.
36
Isso não significa que Apolônio não se deparasse com dúvidas expostas por
outras pessoas a respeito de seu poder sobre os demônios. Assim, Tigelino o questiona a
esse respeito: ó Apolônio, e sobre os demônios (
daimones
) e as aparições de espectros
(
eidôlôn phantasiai
), como você os exorciza?” (CONYBEARE, 1919, p. 454, tradução
nossa).
37
Apolônio (4.44) não titubeia na explicação: “Da mesma forma como faria com
assassinos (
miaphonoi
) e homens ímpios (
asebeis anthrôpoi
).” (CONYBEARE, 1919, p.
454, tradução nossa).
38
35
No original, “Apollonius used to link his practical instruction with what he occasionally saw in everyday
life (6.3) but, more importantly, his words were interwoven with deeds, as noted by Philostratus in 5.21. In
this sense, all his actions, including his miraculous deeds, such as exorcism (4.20), his appearance in a
strifetorn city during his silent period (1.15) and especially his opposition against Domitian (books 78),
were part of his mission as a teacher. A philosopher who did not pursue ascetic ideals was not a
philosopher, and if he avoided the open controversy with tyrants, he had betrayed his doctrine (esp. 7.11
15). An integral part of Apollonius’ instruction was his mission to meet powerful men without fearing the
power of tyrants.” (KOSKENNIEMI, 2009, p. 329).
36
No original, “[…] demoniac possession was a common feature in the ancient landscape, and that the
exorcist driving demons out of afflicted human beings by use of threats and invocations ot mysterious
names was as familiar a figure in old Pagan society as he was in the early church.” (CONYBEARE, 1921, p.
xiii).
37
No original, τος δαίμονας, επεν πολλώνιε, κα τς τν εδώλων φαντασίας πς λέγχεις;
(CONYBEARE, 1919, p. 454).
38
No original, “ς γε φη τος μιαιφόνους τε κα σεβες νθρώπους. (CONYBEARE, 1919, p. 454).
Em 4.20, Apolônio tivera a oportunidade de demonstrar a eficácia de seus
poderes de exorcista quando expulsou um
demônio
(
daimôn
) do riso ou
fantasma
(
eidôlon
) de um jovem que o ridicularizava enquanto o filósofo discursava aos atenienses
sobre a importância da consagração de objetos santos aos deuses. Diante da ordem de
Apolônio, em vão o demônio espuma, cheio de ira, mas sai do rapaz para nunca mais
voltar. Antes, porém, de partir, o demônio derruba uma
estátua
(
andrias
) existente no
pórtico real sem a intervenção de mãos humanas. Os raios de sol iluminam, então, o
rosto do rapaz que, em seguida, troca de roupa e se torna seguidor de Apolônio, diante
dos aplausos da multidão.
Antes ainda, em 3.38, Apolônio já havia exorcizado um rapaz de dezesseis anos de
idade, a pedido da mãe. O moço se via impossibilitado de sair de casa, pois “o demônio
(
daimôn
)”, isto é, “o fantasma de um homem morto em batalha” (CONYBEARE, 1912, p.
314, tradução nossa),
39
que o possuía havia dois anos, ameaçava lançá-lo num precipício.
Diante disso, Apolônio escreve uma
carta
(
epistolê
) com ameaça e intimidação ao
demônio, com a qual consegue a libertação do rapaz. Esse exorcismo por meio de um
simples objeto oriundo do filósofo nos faz lembrar da passagem bíblica em que os lenços
do apóstolo Paulo eram levados aos enfermos e endemoninhados a fim de que as
enfermidades e os demônios fossem deles expulsos (Atos 19:11-12).
Os discípulos de Apolônio estavam, portanto, familiarizados com os exorcismos e,
além disso, com as curas realizadas pelo mestre, que se dizia devoto de Asclépio, o deus
grego da medicina. Em 3.39, relata-se a cura de um coxo ferido por um leão, de um cego,
de um paralítico e de uma mulher estéril. Finalmente, em 3.40, relata-se a cura de jovens
alérgicos ao vinho. Por trás desses relatos e alegações existia a clara intenção de
representar a figura de Apolônio como a de um mestre poderoso.
Destemor
Apolônio também trata de incutir nos discípulos o destemor diante da morte. Em
31.7, uma descrição detalhada do aprisionamento de Apolônio pelos romanos e da
reação dos discípulos, especialmente Dâmis, que é descrito como
amedrontado
(
dediôs
).
Os olhos de todos se voltavam para o filósofo que viera corajosamente a Roma para
tentar salvar a vida de seus amigos e cuja aparência se mostrava
divina
(
theia
), o que lhes
infundia uma espécie de
espanto
(
ekplêxis
). A Apolônio seguia uma respeitosa escolta de
quatro soldados, que, como os discípulos, se mantinham afastados dele, enquanto o
filósofo caminhava a passos largos em direção ao seu destino.
39
No original, εδωλον νδρός, ς πολέμ ποτ πέθανεν. (CONYBEARE, 1912, p. 314).
À porta do palácio imperial, Apolônio reage ao comportamento covarde de Dâmis,
repreendendo-o: “[...] ó Dâmis, você se mostra
deficiente
(
aphyês
) em relação à morte,
embora esteja comigo há algum tempo e tenha estudado filosofia desde o início de sua
juventude. Eu imaginava que você estivesse preparado!” (CONYBEARE, 1921, p. 236,
tradução nossa).
40
Sendo assim, Apolônio toma a oportunidade de lhe ensinar sobre o
modo destemido como deviam morrer os sábios: “os filósofos devem esperar
as
oportunidades certas
(
kairoi
) para morrer; para que não sejam pegos
desprevenidos
(
ataktoi
), nem como suicidas corram para a morte, mas possam enfrentar seus inimigos
no terreno de sua própria escolha” (CONYBEARE, 1921, p. 238, tradução nossa).
41
No
caso de Apolônio, a ocasião parecia digna de um filósofo e isso vale a Dâmis uma
repreensão final. O mestre lhe diz (7.31): “[...] estou cansado de ficar lhe ensinando a
mesma coisa.” (CONYBEARE, 1921, p. 239, tradução nossa).
42
Os soldados barram a entrada de Dâmis e Apolônio segue sozinho para sua
audiência com o imperador Domiciano (7.32 e 33), durante a qual o filósofo apresenta
uma defesa de Nerva, acusado de tentar usurpar o trono. No final da audiência (7.34),
Domiciano acusa o filósofo de magia, manda que lhe cortem a barba e o sentencia à
prisão. Apolônio reclama da sentença como sendo ilógica: um
mago
(
goês
) não se
deixaria prender e se o prendem é por não ser mago. Domiciano exige, então, que se
metamorfoseie em água, animal ou árvore, mas Apolônio se diz incapaz de tais feitos. Em
7.35, Filóstrato alega que o relato da audiência de Apolônio com Domiciano teria sido
adulterado por inimigos que o queriam desacreditar e faz profissão de estar seguindo a
fonte mais segura: o próprio Dâmis. Nos capítulos seguintes, Domiciano envia um espião
à prisão, à qual também Dâmis é admitido, cuja visita culmina, em 7.38, com o milagre
que Apolônio realiza ao fazer com que suas cadeias se rompessem momentaneamente.
Filóstrato (7.38) descreve, em detalhes, a reação do discípulo a esse feito:
Dâmis diz que foi então, pela primeira vez, que ele real e verdadeiramente
entendeu a
natureza
(
physis
) de Apolônio, isto é, que era
divina
(
theia
) e sobre-
humana, pois sem realizar qualquer sacrifício [...] e sem nenhuma prece, sem
sequer uma palavra, ele riu silenciosamente dos grilhões, e então inseriu a
perna neles novamente, e se comportou como prisioneiro mais uma vez.
(CONYBEARE, 1921, p. 256, tradução nossa).
43
40
No original, […] φυής, Δάμι, πρς τν θάνατον εναί μοι φαίν, καίτοι ξυνών μοι χρόνον, κ
μειρακίου φιλοσοφν, γ δ μην παρεσκευάσθαι τέ σε πρς ατν. (CONYBEARE, 1921, p. 236).
41
No original, οτω κα τος φιλοσοφοσιν πιμελητέα τν καιρν, ν ος ποθανονται, ς μ τακτοι,
μηδ θανατντες, ξν ρίστ δ'αρέσει ς ατος φέροιντο. (CONYBEARE, 1921, p. 238).
42
No original, […] ατόν τε σ διδάσκων πείρηκα. (CONYBEARE, 1921, p. 239).
43
No original, τότε πρτον Δάμις φησν κριβς ξυνεναι τς πολλωνίου φύσεως, τι θεία τε εη κα
κρείττων νθρώπου, μ γρ θύσαντα [] μηδ' εξάμενόν τι, μηδ επόντα καταγελάσαι το δεσμο κα
ναρμόσαντα α τ σκέλος τ το δεδεμένου πράττειν. (CONYBEARE, 1921, p. 256).
Em 7.40, Apolônio ganha o privilégio da prisão domiciliar, que ele brevemente
divide com um jovem prisioneiro arcádio, em 7.42, o que encerra o livro 7. No livro 8,
ocorre o julgamento de Apolônio, no qual o filósofo nega a acusação de magia e professa
ser simplesmente um humilde sábio que estaria exortando o imperador à justiça. No final,
Apolônio fica invisível e desaparece do tribunal e esse fato deixa o imperador sem ação.
O relato serve para demonstrar o nível de credulidade exigida dos discípulos que se
dispunham a seguir os assimchamados
theioi andres
(“homens divinos”). Pelo menos, em
tese, essa credulidade valia arriscar a própria vida, mesmo em possíveis confrontações
com o
establishment
romano. Afinal de contas, a morte de um filósofo é o ponto
culminante de sua vida” (SCHIRREN, 2009, p. 170, tradução nossa).
44
Apesar de se mostrar destemido quando a ocasião o exigia, Apolônio nunca rompe
completamente seus laços com o
status quo
. Por essa razão, Madsen (2014, p. 34,
tradução nossa) descreve que
No diálogo entre Apolônio e Vespasiano, durante o qual este último busca
conselhos sobre como governar de maneira competente, Apolônio aconselha o
aspirante a
princeps
[imperador] que ele deve sempre honrar os deuses, nunca
punir os maus conselhos, governar de acordo com a lei, não transferir seu
poder para os filhos a menos que eles estejam moralmente prontos, abster-se
de acumular riquezas, mas ajudar os necessitados e proteger a propriedade dos
ricos (5.36).
45
A verdade é que Filóstrato, como o protagonista de sua obra, tolera a supremacia
romana desde que estribada em um modelo cultural helênico. Por outro lado, quando, na
obra, Apolônio se apresenta como guia político ou [...] quando imperadores como
Trajano, Antonino Pio e Marco Aurélio recebem apreciação favorável, isso ilustra a
posição influente que os gregos educados e a civilização grega como um todo haviam
assumido na corte e no Império em geral.” (MADSEN, 2014, p. 35, tradução nossa).
46
Havia, portanto, razões de sobra para que Apolônio não reivindicasse a pecha de
revolucionário ou inimigo do Estado.
Conclusão
44
No original, “The death of a philosopher is the culminating point of his life.” (SCHIRREN, 2009, p. 170).
45
No original, “In the dialogue between Apollonius and Vespasian, where the latter seeks advice on how
to rule in a competent manner, Apollonius advises the aspiring princeps that he should always honour the
gods, never punish wrong advice, rule in accordance with the law, not transfer his power to his sons
unless they were morally ready, abstain from collecting wealth but assist the needy and protect the
property of the rich (5.36).” (MADSEN, 2014, p. 34).
46
No original, “[…] when emperors such as Trajan, Pius and Marcus receive favourable notice, it
illustrates the influential position educated Greeks and Greek civilisation as a whole had assumed at the
court and in the Empire in general.” (MADSEN, 2014, p. 35).
Ser um mestre da estirpe de Apolônio era uma ambição arriscada, uma vez que
sua projeção internacional o expunha a inimizades e invejas de pares e concorrentes, e à
retaliação dos homens poderosos cujo caminho o filósofo atravessava. Não era menos
perigoso assumir a condição de um de seus discípulos. Para ser discípulo, era necessário
que o jovem demonstrasse um elevado grau de devoção, credulidade, destemor,
mobilidade e, principalmente, susceptibilidade aos jogos de poder subentendidos em
gestos dramáticos e alegações espetaculosas. Se carecesse de algumas dessas
qualidades, é possível que não se adaptasse ao papel.
Por outro lado, não é possível determinar quão factual seja o relato de Filóstrato.
Por essa razão, é melhor supor que, mais do que emanar da imaginação do autor, essas
condições aflorem dos estereótipos e expectativas da sociedade de sua época em relação
às explicações por que um grupo de três dezenas de pessoas seguiria, com riscos à
própria vida, um filósofo que se intrometia nos altos escalões da política imperial e
alegava ser capaz de derrotar os demônios, fantasmas e vampiros que rondavam à sua
espreita. Mais do que isso, esses estereótipos e expectativas nos ajudam a compreender
como foi possível que a esse mesmo homem fosse atribuída uma condição sobre-humana
por parte dessas pessoas.
No relato de Filóstrato, Apolônio, em algumas situações críticas, destemidamente
confronta alguns dos homens mais poderosos do Império. E não apenas o faz, mas o faz
dramaticamente. Porém, é preciso levar em conta que
As intervenções dramáticas de homens santos na alta política do Império [...]
ilustram o prestígio que o homem santo havia conquistado, elas não explicam
esse prestígio. Eram mais ou menos como descontar um grande cheque no
banco da reputação; e, como todas as formas de poder na sociedade romana
tardia, essa reputação era construída por meio de trabalho árduo e discreto (e,
portanto, para nós, parcialmente obscuro) entre aqueles que precisavam de uma
ministração constante e nada espetacular. (BROWN, 1971, p. 81, tradução
nossa).
47
O relato de Filóstrato ajuda a iluminar a dimensão religiosa da andragogia antiga,
que, pelo menos nesse caso, parece ter acolhido a devoção e a credulidade como traços
desejáveis a serem desenvolvidos nos discípulos. Aliás, é de se supor que o caso dos
discípulos de Apolônio não tenha sido uma situação isolada.
47
No original, Dramatic interventions of holy men in the high politics of the Empire […] illustrate the
prestige that the holy man had already gained, they do not explain it. They were rather like the cashing of a
big cheque on a reputation; and, like all forms of power in Late Roman society, this reputation was built up
by hard, unobtrusive (and so, for us, partly obscure) work among those who needed constant and
unspectacular ministration.” (BROWN, 1971, p. 81).
As comparações com Jesus Cristo são inevitáveis. Assim como o fundador do
Cristianismo, Apolônio de Tiana optou por uma vida errante, espiritualmente engajada e
profundamente marcada pela renúncia. Como no caso de Jesus, os discípulos lhe
atribuíram poderes sobrenaturais e o seguiram devotada e destemidamente. Como Jesus,
Apolônio foi encarcerado e ameaçado pelo governo vigente, o que o obrigou a
comparecer diante de autoridades constituídas que exigiam que manifestasse o seu
poder. Por outro lado, as diferenças são também evidentes. Apolônio não se viu
compelido a fundar uma nova religião, pois preferiu capitalizar o prestígio que a cultura
helênica desfrutava no Império Romano, o que teria sido impossível para Jesus Cristo,
uma vez que os judeus desfrutavam de pouco ou nenhum prestígio diante dos romanos.
Ao contrário de Jesus, Apolônio conseguiu evadir à condenação. Se os relatos de
Filóstrato merecem alguma credibilidade, é possível que a versão em que Apolônio
escapa da morte possa ter sido apenas uma invenção romana para se esquivar do
repúdio público pela execução de um homem divino”, cuja reputação excedia as
fronteiras do Império. Por outro lado, pode também ter sido uma invenção de seus
próprios discípulos para explicar o sumiço de seu mestre, assim reforçando sua fama de
“homem divino.” Finalmente, pode ter sido o resultado de uma negociação entre o
imperador e o filósofo para que este silenciasse as críticas em troca da própria vida.
Nunca saberemos ao certo. O importante, porém, é constatar de que o elemento religioso
podia desempenhar um papel proeminente nas estratégias dos filósofos gregos que
desejassem exercer influência na política imperial.
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