RODRIGUES, Gabriel Kenzo *
https://orcid.org/0000-0003-2837-4963
RESUMO: Neste artigo procuraremos analisar
as relações entre inovação farmacêutica,
comunidade científica e crescimento
econômico. Selecionando a década de 1950,
através das lentes do periódico estadunidense
Pharmacy International
, buscamos apresentar
como a descoberta e a disseminação das
drogas ataráxicas, na comunidade médico-
farmacêutica, estavam inseridas em um
contexto de instabilidade de preços e
acirramento de concorrência no setor em
destaque. Ao mesmo tempo, a própria
psiquiatria encontra nos referidos
medicamentos a possibilidade de ter a sua
condição de cientificidade e aprimoramento
garantidas, em decorrência da possibilidade de
legitimar a teoria das doenças mentais como
desequilíbrios químicos. Assim, em sentido
amplo, iremos analisar os pontos de contato e
retroalimentação entre os escopos científico e
econômico, tendo como objetos principais os
medicamentos tranquilizantes e as publicações
periódicas.
PALAVRAS-CHAVE: História das Ciências;
História da Saúde; História da Farmácia;
História Econômica.
ABSTRACT: In this article we aim to analyze
the relations between pharmaceutical
innovation, scientific community and
economic growth. Selecting the 1950s, through
the lens of the american periodical, Pharmacy
International, we seek to present how the
discovery and the dissemination of the
ataraxic drugs, within the medical-
pharmaceutical community, were inserted in a
context of price instability and increasing
competition in the highlighted sector. At the
same time, psychiatry itself finds in these
medicinal products the possibility to legitimate
the theory of the mental disease as chemical
imbalances. Thus, in a broad sense, we will
analyze the points of contact and the feedback
process between the scientific and economic
scopes, having as the main objects the
tranquilizer drugs and the periodical
publications.
KEYWORDS: History of Sciences; History of
Health; History of Pharmacy; Economic
History.
Recebido em: 19/07/2021
Aprovado em: 08/10/2021
* Mestre em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo-SP. Doutorando
do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade de São Paulo. Bolsista CAPES. Email:
gabrielk.rod@gmail.com
Este é um artigo de acesso livre distribuído sob licença dos termos da Creative Commons Attribution License.
Introdução
No presente trabalho utilizaremos duas linhas téorico-metodológicas que
acreditamos estar em franco diálogo com o objeto de pesquisa selecionado: a primeira
delas será a concepção de
coletivos de pensamento
elaborada por Ludwik Fleck (2010) e
por ele atribuída às comunidades científicas enquanto redutos de produção de
conhecimento. Nas palavras do próprio:
Se definirmos o “coletivo de pensamento” como a comunidade das pessoas que
trocam pensamentos ou se encontram numa situação de influência recíproca de
pensamentos, temos, em cada uma dessas pessoas, um portador do
desenvolvimento histórico de uma área de pensamento, de um determinado
estado do saber e da cultura, ou seja, de um estilo específico de pensamento.
(FLECK, 2010, p. 82).
Para Fleck, o processo de construção do conhecimento possui certos
condicionamentos sociais regidos por dinâmicas próprias aos coletivos. O conhecimento,
então, é a constatação dos resultados sob determinadas condições, as quais possuem a
sua dimensão ativa e passiva, sendo, a primeira, aquela concernente a tudo que é
produzido coletivamente sobre o objeto em questão, e a segunda, a esfera de apreensão
do indivíduo em relação àquilo que foi produzido. Nesse encontro tem-se o que é
convencionado chamar de realidade objetiva ou “[...] aquilo que é para ser conhecido.”
(FLECK, 2010, p. 83).
O indivíduo claramente tem a sua importância como elemento que conhece, a
partir de sua fisiologia sensorial e psicológica próprias, mas Fleck atribui uma
importância maior para o estudo da comunidade de pensamento, como sendo aquela que
confere estabilidade aos seus alicerces epistemológicos:
Permitam-me uma comparação um tanto trivial: o indivíduo pode ser
comparado a um jogador de futebol, o coletivo de pensamento ao time treinado
para colaborar e o conhecimento ao andamento do jogo. Será que esse
andamento só pode ser analisado a partir de cada chute individual? Perder-se-ia
todo o sentido do jogo! (FLECK, 2010, p. 88).
Não adentraremos nas especificidades do que o autor considera um
fato
científico,
mas procuraremos analisar como um fato científico se dissemina em um
determinado coletivo de pensamento, levando em consideração um instrumento próprio
das comunidades científicas: o periódico. Para Fleck, o periódico, assim como os
manuais, é uma das principais ferramentas da ciência especializada, no que diz respeito
ao diálogo do(s) indivíduo(s) com o coletivo mais amplo, devido à busca pelo
estabelecimento de um determinado fato científico. Em relação às produções nesses
instrumentos:
É como se cada pesquisador sério quisesse reivindicar, não do próprio
controle da adequação de seu trabalho ao estilo, mas também o seu controle e
processamento coletivos. É como se ele tivesse consciência que apenas o
tráfego intracoletivo de pensamento poderia levar da insegurança cautelosa à
certeza. (FLECK, 2010, p. 172).
Portanto, serão as publicações nos periódicos e, eventualmente, a constituição
dos manuais que reforçarão as dinâmicas internas dos coletivos de pensamento, dos
quais a sociedade como um todo obterá referenciais a partir do momento em que o
conhecimento científico se tornar público.
Dessa forma, analisaremos o periódico da classe farmacêutica estadunidense,
intitulado
Pharmacy International
1
, para compreendermos como foi comunicado
intracoletivamente os auspícios em relação a uma nova classe de medicamentos
tranquilizantes, chamados de drogas ataráxicas, termo que será melhor analisado
adiante. Assim, através da análise dos artigos presentes nesse periódico, pretendemos
demonstrar o processo de validação desses medicamentos nas comunidades médica e
farmacêutica do período.
Por se tratar de uma nova classe terapêutica, traremos a análise inserida em um
contexto mais amplo, qual seja, o das alterações econômicas e tecnológicas na indústria
farmacêutica da década de 1950. Desse modo, o segundo referencial teórico-
metodológico adotado é o da teoria evolucionária econômica, sobretudo no que diz
respeito às perspectivas adotadas por Sidney Winter e Richard Nelson (2005), assim
como as de Franco Malerba e Luigi Orsenigo (2015).
Para Winter e Nelson (2005, p. 32), a sobrevivência de determinadas empresas
ocorreria apenas na adoção de um conjunto de padrões regulares sintetizados em um
termo chamado
rotina
. Nessa rotina estariam as cnicas para produção, procedimentos
de relação com funcionários, estratégias de elaboração de itens de alta demanda,
políticas de investimento, estratégias de diversificação produtiva e, enfim, foco
estratégico em pesquisa e desenvolvimento (P&D) (WINTER; NELSON, 2005, p. 33). Esse
último aspecto seria determinante para a criação de inovações tecnológicas que,
seguindo a tradição schumpeteriana dos autores, configura-se no componente basilar
para transformação dos rumos do crescimento econômico. De acordo com os autores:
1
Periódico nova-iorquino mensal, publicado pela
Business Publishers International Corp.
, criado em 1930 e
dirigido por Richard T. Turner. Era distribuído gratuitamente e possuía uma versão em espanhol com o
intuito de ser distribuída na América Latina, nomeada
El Farmaceutico
. Conjugava em suas páginas artigos
científicos, notícias de cunho econômico, propagandas de medicamentos e de equipamentos para
indústrias e laboratórios farmacêuticos. Entre as marcas que anunciavam seus produtos estavam Merck,
Pfizer, Lilly, Johnson & Johnson, Squibb, Lederle, entre outras.
Se todas as firmas têm a mesma política de P&D [...], e se essa política é definida
em termos de dispêndio em inovação e em imitação por unidade de capital, as
firmas grandes gastam mais em P&D do que as pequenas. A probabilidade de
uma firma surgir com uma inovação é proporcional ao seu dispêndio em P&D e,
portanto, ao seu tamanho; consequentemente, as firmas grandes têm maior
probabilidade de surgir com uma nova técnica em qualquer período, e na média
elas tendem a estar mais próximas da fronteira de técnicas, e tendem a
experimentar um progresso mais estável que as firmas pequenas. (WINTER;
NELSON, 2005, p. 445).
Nesse sentido, sendo o setor farmacêutico altamente dependente de inovações
para garantir a sobrevivência de suas empresas e por analisarmos um período histórico
em que uma reconfiguração de mercado, centrada especialmente nas últimas
descobertas farmacológicas, adotamos a perspectiva da teoria evolucionária econômica.
Aplicada especificamente para o setor em questão, essa teoria foi descrita como
uma empreitada útil, de acordo com Malerba e Orsenigo (2015, p. 664), por conta dos
seguintes fatores: primeiro, o setor farmacêutico obedece ao princípio schumpeteriano
da mudança constante, respondendo a choques exógenos e endógenos, a descobertas
científicas, a variações tecnológicas, a oportunidades e restrições tanto políticas quanto
comerciais. Segundo, as variações no setor também decorrem da grande diversidade de
agentes envolvidos, como consumidores, empresários em busca de lucro, agências
regulatórias, universidades, centros de pesquisa, agentes políticos etc. Terceiro, as
performances das empresas são moldadas por processos que envolvem fatores internos
de tecnologia e organização, em sua relação com fatores como financiamento externo e
determinações políticas, resultando no processo de seleção ou obsolescência. Quarto, a
indústria farmacêutica é altamente dependente de inovações, sendo esse um dos
principais aspectos para a garantia da vantagem competitiva de uma empresa
(MALERBA; ORSENIGO, 2015, p. 665).
Portanto, ao aliarmos essas duas perspectivas metodológicas (fleckiana e
evolucionária), buscamos compreender como ocorreu o processo de aceitação das
drogas ataráxicas dentro do coletivo de pensamento que, por sua vez, estava inserido em
uma dinâmica mais ampla de reconfiguração de mercado a partir de inovações
farmacêuticas. Desse modo, esperamos clarificar quais os pontos de contato e de
retroalimentação entre a instância científica e a econômica
2
.
2
Outra forma de abordar a indústria farmacêutica e a produção de medicamentos seria através da lógica
de acumulação de capital, enfatizando a relação entre a busca pelo lucro, as inovações farmacêuticas e a
infiltração capilar dessas empresas nas comunidades médico-farmacêuticas. Infelizmente, por uma
questão de espaço a análise político-econômica da expansão das transnacionais farmacêuticas não
integrará o presente trabalho. Sobre essa temática existe rica literatura, da qual indicamos as seguintes
O surgimento e a produção das
wonder drugs
nos EUA
O período que abarca a Segunda Guerra Mundial e o pós-guerra é largamente
descrito como sendo bastante prolífico no que diz respeito às inovações tecnológicas,
centradas principalmente na decorrência dos esforços perpetrados pelas empresas
privadas, em aliança com o governo dos Estados Unidos da América. As ciências
farmacêuticas refletem esse momento e são, ao mesmo tempo, permeadas,
impulsionadas e motivadoras das alterações que consagram as décadas de 40, 50 e 60.
Na era das
wonder drugs
, o princípio da atuação seletiva de Paul Ehrlich parece
ter encontrado vazão máxima na realidade clínica observável e mensurável. Ehrlich, um
biólogo e bacteriologista alemão do começo do século XX, pesquisador de corantes para
roupas, percebe que determinados corantes possuíam a capacidade de “tingir” certas
células, formulando a hipótese de que as mesmas possuíam moléculas que se projetavam
no meio e que determinados corantes poderiam se encaixar nesses receptores, tal qual
uma chave se encaixa em uma fechadura (WHITAKER, 2017, p. 55). Dsurgirá a ideia da
bala mágica, da atuação seletiva e, principalmente, da quimioterapia.
O início da década de 1930 verá substâncias de atuação seletiva serem
descobertas e comercializadas. O alemão Gerard Domagkor, pesquisador da Bayer,
descobrirá a sulfonamina, uma substância antibacteriana, atuante no combate às
infecções causadas por bactérias gram-positivas, que será comercializada pela Bayer
com o nome de Prontosil (EDLER, 2006, p. 102-103). No entanto, será com a descoberta
e produção em larga escala da penicilina que a era das
wonder drugs
ganhará impulso de
fato, tendo em vista a sua potente eficácia seletiva contra as bactérias gram-positivas,
sua baixa toxicidade e o seu efeito bactericida, e não apenas bacteriostático, como as
sulfas descobertas até então.
Nos EUA, durante a Segunda Guerra Mundial, a associação entre o
Comitte for
Medical Research
- uma subdivisão do
Office of Scientific Research and Development
,
órgão responsável pelo Projeto Manhattan -, com 58 laboratórios de pesquisa,
acadêmicos e industriais, somados a 4 empresas farmacêuticas, a saber, Pfizer, Lederle,
Merck e Squibb (WONGTSCHOWSKI, 2002, p. 109), irão compor um enorme complexo
técnico-científico. Ali, não apenas será desenvolvido um método para extração da
penicilina em quantidades suficientes para aplicação terapêutica, conforme elaborado
obras: BERMUDEZ (1992), BORTONE (2018), COSER (2010), DUPUY; KARSENTY (1980), EVANS (1980),
GIOVANNI (1980), PACHECO (1978).
pelos pesquisadores de Oxford (GAYNES, 2017, p. 850), como também será operado um
método de produção em larga escala através de fermentação submersa.
A patente do processo de fabricação ficou reservada ao governo estadunidense,
de modo que até o final da Segunda Guerra Mundial a comercialização civil da penicilina
estava proibida, sendo toda a produção direcionada para os militares em combate. Os
laboratórios industriais tinham seus estoques comprados diretamente pelo governo, o
que lhes garantia uma alta margem de lucro. Com o término da guerra, as unidades de
produção foram vendidas a esses mesmos laboratórios com preços vantajosos. O
reinvestimento do capital em P&D, aliado aos conhecimentos obtidos no período, fizeram
com que muitos desses laboratórios de pesquisa e empresas farmacêuticas tomassem a
dianteira na descoberta e patenteamento dos próximos medicamentos que seriam
comercializados em todo o mundo. Por exemplo, Pfizer e Lederle desenvolveram e
patentearam os antibióticos de largo espectro, oxitetraciclina e clortetraciclina
respectivamente, que possuíam uma ação bactericida ainda mais efetiva
(CYTRYNOWICZ, 2007, p. 103), tomando a dianteira no que diz respeito à segunda
geração de antibióticos.
Dessa forma, além dos antibióticos, as ciências farmacêuticas desse período
desenvolveram outros produtos intitulados de
wonder drugs,
como as vitaminas
sintéticas, os hormônios sintéticos, os anti-histamínicos, os anti-hipertensivos, as sulfas
mencionadas e os medicamentos psiquiátricos. Em sua maioria, e principalmente no
período do pós-guerra, as pesquisas e o patenteamento desses medicamentos estavam
nas mãos de laboratórios industriais estadunidenses. Consequentemente, isso resulta em
acumulação de capital que será revertido em P&D para garantir a sua primazia
tecnológica, mas também para tornar-se um referencial em termos do que esperar dos
laboratórios industriais farmacêuticos a partir de então.
Os investimentos em P&D, o patenteamento e o desenvolvimento de tecnologias
de produção em larga escala fazem com que o comércio varejista doméstico de
medicamentos nos EUA atinja a cifra de US$ 3.573.000.000 em 1945, representando um
aumento de 18% em relação ao ano anterior (PHARMACY INTERNATIONAL, jun. 1947, p.
35). No gráfico 1 demonstra-se como essa produção não atende apenas à demanda
doméstica, mas quebra barreiras recordes de exportação, sobretudo em um contexto de
fragilidade industrial europeia, que ainda sofria os impactos econômicos decorrentes da
Segunda Guerra Mundial. Além disso, os principais produtores de medicamentos até
então, os alemães, haviam acabado de sofrer uma massiva perda de patentes e de
estabelecimentos físicos por conta dos conflitos em seu território.
Gráfico 1. Exportação de medicamentos dos EUA, 1938-1946 (em milhões de dólares)
Fonte:
Pharmacy International,
n. 1, junho de 1947, p. 35.
Em relação aos principais produtos exportados, os antibióticos ficaram em
primeiro lugar, sendo seguidos pelas vitaminas e pelos produtos químicos medicinais,
conforme exposto na Tabela 1. Os medicamentos psiquiátricos ainda não figuram na lista,
pois a sua comercialização ampla ocorrerá a partir da década seguinte.
Tabela 1. Principais itens exportados pela indústria farmacêutica dos EUA (1946)
Vitaminas
US$ 26.979.337
Produtos glandulares
US$ 8.568.658
Drogas à base de sulfa
US$ 12.700.000
Antibióticos
US$ 28.277.868
Químicos medicinais
US$ 24.887.824
Especialidades
farmacêuticas
US$ 6.374.786
Fonte:
Pharmacy International,
n. 1, junho de 1947, p. 35.
Concorrência e crise de preços
em 1949 é possível notar que o estado de coisas garantido às indústrias
farmacêuticas estadunidenses, no imediato pós-guerra, não seria mantido sem
concorrência acirrada e obstáculos mais ou menos transponíveis, que a produção em
larga escala de medicamentos acarretaria na disseminação e apropriação das tecnologias
de produção por parcelas cada vez mais amplas do mercado. Como resultado, mais
laboratórios industriais, não apenas nos EUA, passariam a investir em maquinário para
0
20
40
60
80
100
120
140
160
1938 1942 1943 1944 1945 1946
produção e também em P&D, ocorrendo um aumento de competitividade e a
consequente queda de preços.
O periódico
Pharmacy International
fazia o acompanhamento detido das cifras
concernentes ao setor, de modo que na seção
New York Drug Market
apresenta que o
preço das vitaminas nos EUA sofrera uma queda, por conta do aumento da produção da
vitamina A sintética. Também aponta que era esperado que o preço da penicilina caísse
em breve, devido ao excesso de estoque do medicamento, dizendo que, na primeira
metade de 1949, havia sido produzida quase tanta penicilina quanto estreptomicina em
todo o ano de 1948 (PHARMACY INTERNATIONAL, nov. 1949, p. 11). Em abril de 1950, a
mesma seção do periódico anunciava:
Os preços dos antibióticos foram reduzidos drasticamente. Parke, Davis & Co. e
o Laboratório Lederle anunciaram reduções de 20% no preço de seus
respectivos produtos cloromicetina e aureomicina. Preço da penicilina em sal
vendida em altas quantidades também foi reduzido (PHARMACY
INTERNATIONAL, abr. 1950, p. 7, tradução nossa)
3
.
No entanto, ao mesmo tempo em que as reduções são anunciadas, a Pfizer, maior
produtor mundial de penicilina e estreptomicina, apresenta uma nova
wonder drug
, o
antibiótico terramicina. Essa
wonder drug
foi descoberta após terem sido testados mais
de 100.000 amostras de solo de todo o mundo, para que fosse possível controlar o fungo
do qual se extrairia a substância antibiótica, o
Streptomyces rimosus
(PHARMACY
INTERNATIONAL, abr. 1950, p. 7).
Apesar disso, a tendência da queda de preços, de uma forma geral, seguia
constante. A própria Pfizer, que havia contribuído para a redução de preços das
vitaminas, ao iniciar a comercialização da vitamina A sintética em 1951, reduz o preço da
mesma em 15% em 1952 (PHARMACY INTERNATIONAL, fev. 1952, p. 11). Isso, em um
contexto de congelamento de preços imposto pelo governo dos EUA, em uma tentativa
de frear o crescimento inflacionário, relacionado ao início dos conflitos com a Coreia
(PHARMACY INTERNATIONAL, abr. 1951, p. 13).
A recuperação econômica da Alemanha e do Japão
4
também contribuiu para a
diminuição no preço das vitaminas, tendo em vista que o Japão passa a ser um grande
3
[No original] “Prices of the antibiotics have been cut sharply. Parke, Davis &Co. and Lederle Laboratories
have announced 20 percent price reductions in their respective products Chloromycetin and
Aureomycin. Bulk quantity prices on penicilin salts were also cut”
(PHARMACY INTERNATIONAL, abr.
1950, p. 7).
4
Após a Segunda Guerra Mundial ambos os países são “auxiliados” pelo governo estadunidense para
retomarem sua produção econômica e a geração de empregos. Os EUA tornam-se o maior credor mundial
no pós-guerra, como fica patente na elaboração do Plano Marshall que irá financiar a recuperação
econômica dos países da Europa Ocidental. Ali, assim como no Japão, a intenção estadunidense era a de
exportador de tiamina (vitamina B1) e a Alemanha de ácido ascórbico (vitamina C). No
ano de 1954, a primeira passa de US$ 335,00 para US$ 100,00 o quilo, enquanto a
segunda passa de US$ 21,00 para US$ 16,00 o quilo (LA PHARMACIE INDUSTRIELLE, n.
30, 1954, p. 71). Também os hormônios progesterona, testosterona, propianato de
testosterona e metiltestosterona sofrem uma redução de 24% nos EUA, a partir do
momento em que novos distribuidores aparecem no mercado internacional (PHARMACY
INTERNATIONAL,
set. 1953, p. 9).
Em 1953, a Associação Nacional de Droguistas Atacadistas já possui um balanço
dos anos anteriores, demonstrando claramente a queda geral dos preços. Apesar do
aumento nas vendas em 5,64% no ano de 1951, a curva de lucros dos atacadistas caiu
1,69% nas vendas totais, comparada com uma queda de 1,86% nos 12 meses anteriores.
Despesas aumentaram 2,46% e lucro bruto teve queda de 1,3%. Os lucros antes dos
impostos caíram 13,08% em relação ao ano anterior (PHARMACY INTERNATIONAL,
out.
1953, p. 10). A Associação Nacional de Droguistas Atacadistas declara que foi decorrência
do aumento de impostos, aumento nos custos e declínio da margem de lucro bruta.
Os sete maiores laboratórios industriais estadunidenses tiveram uma média de
crescimento de vendas de 14% entre os anos 1939-1951. As vendas de medicamentos
prescritos lhes garantiram um aumento nos lucros de US$ 150.000.000 para US$
1.100.000.000, no mesmo período (LA PHARMACIE INDUSTRIELLE, n. 31, 1954, p. 90-
91). Entretanto, no primeiro semestre de 1954 o montante de vendas foi inferior ao do
primeiro semestre de 1953, e o montante total das vendas desse ano foi inferior àquelas
efetivadas em 1951. Os únicos laboratórios que tiveram lucro nesse período foram Merck,
Parke, Davis e Pfizer, ainda assim, de forma dessemelhante ao ritmo de crescimento nos
anos anteriores. Em 1954, o periódico francês
La Pharmacie Industrielle
anunciava:
A moda é a responsável. Os medicamentos, do outro lado do Atlântico, devem
se renovar como as coleções de alta costura: não novidades comparáveis às
quantidades daquelas dos anos 1939 a 1953, que compreendiam as vitaminas, as
sulfamidas, os hormônios, a penicilina e os antibióticos. (LA PHARMACIE
INDUSTRIELLE, n. 31, 1954, p. 91, tradução nossa).
5
A queda de preços caminhava
pari passu
ao aumento da competitividade com os
países europeus, agora com seus parques industriais restabelecidos. No cenário global,
atrelar as economias ao seu mercado, no intuito de afastar a influência soviética, em um contexto de
Guerra Fria. Cf. GASPAR, 2015.
5
[No original] “La mode est responsable. Les médicaments, outre-atlantique, doivent se renouveler comme
les collections de grands couturiers: il n’y a pas de nouveautés comparables à la gamme de celles des
années 1939 a 1953, qui comprenait les vitamines, les sulfamides, les hormones, la péniciline et les autres
antibiotiques”.
(
LA PHARMACIE INDUSTRIALLE, n. 31, 1954, p. 91)
estes possuíam uma facilidade maior de entrada nos países com baixa reserva de dólares.
Assim, as diretrizes para os laboratórios estadunidenses eram que ampliassem as filiais
transnacionais, que estipulassem um preço uniforme para todos os países, que
melhorassem a qualidade de seus produtos, assim como de seus métodos de promoção e
de vendas e, por fim, que diversificassem a linha de produtos, investindo pesadamente
em P&D (PHARMACY INTERNATIONAL
,
jan. 1954, p. 16-17). A indústria farmacêutica
estadunidense gastava anualmente cerca de 60 milhões de dólares, o equivalente a 1/3 de
toda a pesquisa médica no país.
Dessa forma, a descoberta dos novos tranquilizantes, nesse momento, surge
como uma importante promessa de novas
wonder drugs
com o potencial de recobrar os
altíssimos lucros do pós-guerra e fazer frente à competitividade europeia que se
intensificava; ainda que os laboratórios estadunidenses estivessem muito distantes de
qualquer coisa que lembrasse o termo crise. Mas, obviamente, o fator econômico não
encerra os motivos pelos quais os tranquilizantes tornaram-se amplamente aceitáveis no
período; apesar de ter a sua devida importância, que será retomada mais adiante. O fato
é que a propagação dos resultados clínicos dos tranquilizantes dissemina-se com grande
velocidade nas comunidades médica e farmacêutica, e a percepção de que se tratava de
mais uma classe de drogas miraculosas se encaixa perfeitamente no cenário econômico
de então, ou seja, um cenário de queda de preços dos medicamentos e aumento de
competitividade.
Reserpina, clorpromazina e meprobamato
Antes mesmo da Segunda Guerra Mundial ter início, o Serviço de Saúde Pública
dos EUA publica um relatório contabilizando a quantidade de dias de trabalho perdidos
no país em decorrência de enfermidades (LA PHARMACIE INDUSTRIELLE, n.8, 1948, p.
126). Assim, em 1937, as afecções nervosas e mentais foram as principais causas de
afastamento do trabalho, contabilizando 132.500.000 dias perdidos naquele ano. Vale
ressaltar que em segundo lugar estava o reumatismo, causando 95.200.000 dias
perdidos.
As enfermidades mentais vinham em uma crescente nos EUA, havendo
recrudescimento no pós-Segunda Guerra Mundial, uma vez que muitos soldados
retornavam às suas casas sofrendo o conhecido estresse pós-traumático, que também
havia acometido muitos na Primeira Guerra Mundial. Em 1940, a população
estadunidense era da ordem de 131.669.275, tendo 600.000 enfermos hospitalizados por
problemas mentais. Em 1947, em uma população de 144.708.000, havia mais de 800.000
doentes mentais hospitalizados em asilos ou instituições psiquiátricas. Entre 1847-1957 a
população estadunidense aumentou 670%, enquanto os seus doentes mentais
aumentaram mais de 23.000% (LA PHARMACIE INDUSTRIELLE, n.12, 1950, p. 147). Com
a chamada Revolução Psicofarmacológica
6
, que trouxe os medicamentos psiquiátricos
tidos como
wonder drugs
, o número de doentes mentais hospitalizados teve mais um
crescimento importante, de modo que em 1955 uma pessoa em cada 468 era internada
por doença mental nos EUA (WHITAKER, 2017, p. 24).
Além disso, até aquele momento, a psiquiatria valia-se quase que integralmente
das chamadas terapias biológicas, em que a cura das doenças mentais se supunha poder
ser encontrada nas circunvoluções anatômicas e conexões do cérebro, tratando de
buscá-la através de choques ou então cirurgias incisivas (FRANÇA, 2012, p. 244). Por
isso, nesse período eram tão praticados os tratamentos de eletrochoque, coma
insulínico, lobotomia, malarioterapia e choques cardiazólicos. Dessa forma, a
possibilidade de atuação química sobre o cérebro mostrava-se altamente tentadora,
sobretudo por conta das dificuldades de manuseio e controle sobre os doentes mentais
nos hospitais psiquiátricos.
Em um artigo intitulado
Good News for Hypertension Sufferers
(PHARMACY
INTERNATIONAL
,
mai. 1954, p. 20-21), é abordado o isolamento de um alcaloide chamado
reserpina, a partir de uma planta indiana milenar chamada
Raulwolfia serpentina
. O
artigo a anuncia como uma droga promissora para redução da pressão sanguínea,
trazendo também que promove um estado de relaxamento generalizado. Diz que a planta
é utilizada na Índia desde o século XVII, tendo sido usada inclusive por Gandhi para
acalmar os nervos. O extrato de sua raiz sempre fora utilizado contra picadas de cobras,
disenteria, ansiedade, insônia e insanidade, no entanto, apenas recentemente os seus
alcaloides começaram a ser isolados. Também apresenta que naquele momento 12
empresas estavam explorando a planta para produção de anti-hipertensivos, entre elas
Squibb, Merrel, Riker e Ciba.
Ainda no mesmo artigo (PHARMACY INTERNATIONAL, mai. 1954, p. 21), o Dr.
Robert W. Wilkins, da Universidade de Medicina de Boston, atesta que o uso da reserpina
demonstrou-se particularmente útil no alívio de hipertensões psiconeuróticas em jovens
instáveis com taquicardia. O Dr. J. Hafkenschiel, da Universidade de Medicina da
Pensilvânia, também apresenta que testou a reserpina intravenal em 20 pacientes com
hipertensão essencial, sendo que 18 deles tiveram queda significativa na pressão
6
Esse termo é utilizado para designar o período que inaugura a descoberta e a utilização de drogas
atuantes no sistema nervoso central com atuação seletiva e poucos efeitos colaterais, conforme será
detalhado adiante.
sanguínea, acrescentando que o efeito colateral mais comum fora uma sensação de
relaxamento.
Em uma amostragem mais ampla, o psiquiatra Nathan S. Kline testou a reserpina
em 700 de seus pacientes acometidos de doenças mentais, descobrindo que a frequência
cardíaca e a pressão sanguínea haviam diminuído, mantendo-se estáveis por mais de um
mês após o término do tratamento. Afora isso, notou um efeito sedativo estatisticamente
importante em seus pacientes.
No editorial da edição de janeiro de 1955 da
Pharmacy International
(1955, p. 11), o
título
The Golden Age of Pharmacy
reflete o entusiasmo da classe farmacêutica com
todos os adventos recentes, como os antibióticos, os fármacos radioativos, os
dedetizantes e a reserpina, que provou ser um sedativo efetivo e um substituto para a
terapia de eletrochoque. Também cita a clorpromazina com o seu efeito tranquilizante
sobre os doentes mentais, voltaremos a ela em breve. Ainda nessa edição, o Dr. A.
Molina, médico-editor do laboratório Abbot, publica um artigo tratando da
Raulwolfia
.
Apresenta que 20% de todas as mortes nos EUA são causadas diretamente ou
indiretamente pela hipertensão, de modo que o hipotensivo ideal, que não apresenta
nenhum tipo de efeito colateral é o adquirido da planta referida (PHARMACY
INTERNATIONAL
,
jan. 1955, p. 20).
Informa que a reserpina foi isolada em 1952 e, após terem sido comprovados seus
efeitos anti-hipertensivos, ela passou a ser utilizada na psiquiatria, revolucionando o
campo ao produzir efeitos sedativos nos doentes e uma “reorganização da
personalidade”, que simplificaria a psicoterapia e as medidas de reabilitação. Diz que,
caso os estudos de longo prazo se confirmem, a reserpina será o maior avanço
terapêutico na história da psiquiatria (PHARMACY INTERNATIONAL
,
jan. 1955, p. 32).
Até aquele momento, seus efeitos haviam sido claros nos casos de ansiedade e tensão
emocional, sendo sugerida em alguns casos como uma substituta para o eletrochoque e a
leucotomia em esquizofrênicos.
No entanto, segundo Molina, a dosagem correta ainda não podia ser estipulada,
uma vez que ela parecia agravar os quadros de depressão e de parksonismo. Traz ainda
que alguns autores preferem utilizar o termo “agente calmante” no lugar de “sedativo”, e
que Howard D. Fabing, em um artigo publicado no mesmo ano no
Journal of the
American Medical Association
,
prefere utilizar o adjetivo “ataráxico”, que “[...] significa
paz perfeita e tranquilidade da mente” (PHARMACY INTERNATIONAL
,
jan. 1955, p. 32,
tradução nossa)
7
.
Em 1956, o termo “drogas ataráxicas” já compõe o léxico do periódico, de modo
que um artigo que trata exclusivamente dos principais tranquilizantes, a saber, reserpina,
clorpromazina, meprobamato e frenquel, apresenta que nenhuma classe de
medicamentos teve tanta repercussão recentemente quanto as mencionadas
(PHARMACY INTERNATIONAL, abr. 1956, p. 8). O artigo, escrito pelo médico e editor
técnico, Linwood F. Tice, traz uma diferenciação entre os termos drogas ataráxicas,
sedativos e hipnóticos, tendo em vista que as primeiras teriam o único intuito de acalmar
o paciente emocionalmente perturbado ou agitado, sem produzir efeitos de estupefação
ou torpor mental.
Tice enfatiza que os pacientes mais agressivos e violentos não podiam
desenvolver nenhum tipo de relação satisfatória com o psiquiatra ou os médicos, devido
às dificuldades emocionais. Também aponta que enfermeiras e cuidadores estavam
sempre em perigo por conta das constantes agressões ao efetivo humano ou mesmo às
acomodações físicas dos hospitais psiquiátricos. Apresenta que muitos dos pacientes
tratados com drogas ataráxicas, agora não necessitam nem ao menos de hospitalização.
Eles tornam-se calmos e cooperativos e podem se ajustar ao ambiente
doméstico e familiar de uma maneira satisfatória [...] Os ataques físicos em
atendentes, o barulho, a confusão e a destruição, uma vez tão comuns em
hospitais psiquiátricos, deram lugar a uma atmosfera calma [...] Alguns hospitais
dizem que as economias em roupa de cama cobrem o custo de todas as drogas
desse tipo. (PHARMACY INTERNACIONAL, abr. 1956, p. 8, tradução nossa)
8
.
O autor igualmente traz explanações acerca da clorpromazina, também conhecida
como torazina ou largactil. Esse fármaco foi lançado inicialmente como um antiemético,
servindo também para produção de hipotermia. Sua atuação no diencéfalo, no
hipotálamo e na formação reticular é capaz de controlar o vômito, a regulação de calor, o
estado de alerta, o tônus vasomotor, a secreção pituitária anterior e os estados
emocionais. Quimicamente é próximo aos anti-histamínicos dos tipos relacionados às
fenotiazinas. Além disso, a clorpromazina é capaz de potencializar os efeitos de
anestésicos, analgésicos, hipnóticos e do álcool. Tice salienta que em pacientes sob a
7
[No original] “[...] meaning perfect peace and calmness of mind” (PHARMACY INTERNACIONAL, jan.
1955, p. 32).
8
[No original] “They become calm and cooperative and can fit into their family and home environment in a
satisfactory manner [...] The physical assaults on attendants, noise, confusion, and destructiveness once so
common in mental hospitals have given way to a much quieter atmosphere [...] Some hospitals claim that
the saving in bed linens alone covers the cost of all the drugs of this type” (PHARMACY INTERNACIONAL,
abr. 1956, p. 8).
influência de álcool ou barbitúricos, a combinação com a clorpromazina pode ser
perigosa devido sua ação hipotensora, mas a questão poderia ser resolvida com uma
injeção de norepinefrina (PHARMACY INTERNATIONAL, abr. 1956, p. 9).
Na edição do periódico de junho de 1956, em um artigo escrito por Howard D.
Fabing, é trazido que o Dr. Douglas Goldman, diretor-médico de uma instituição estadual
chamada Longview Hospital, em Cincinnati, com superlotação e poucos funcionários,
havia feito testes com a clorpromazina em seus pacientes.
A redução nas agressões, a redução no uso de contenções, o aumento na
concessão de privilégios para pacientes da ala fechada, a diminuição na
necessidade de reiterados eletrochoques para controlar comportamentos
explosivos, e o começo de uma melhora nas taxas de quitação do hospital, tudo
se originou do uso dessa droga em suas mãos e correlaciona-se com o tipo de
estado de melhora que Kline reportou com a reserpina em Rockland.
(PHARMACY INTERNACIONAL, jun. 1956, p. 11, tradução nossa)
9
.
Fabing traz um caso específico, relatado pelo Dr. Goldman, em que um garoto
chamado Willie, que era “[...] descabelado, mudo, desorganizado e esquizofrênico, que
precisava ser alimentado com colher e que conseguia rasgar qualquer roupa que
colocassem nele.” (PHARMACY INTERNATIONAL, jun. 1956, p. 11, tradução nossa)
10
, após
8 semanas de tratamento com clorpromazina não havia apresentado melhora. Goldman
decidiu então por retirar a medicação do jovem paciente.
No entanto, um funcionário o advertiu, dizendo que Willie estava completamente
diferente e para provar ele retorna com o irmão gêmeo de Willie, que apresentava o
mesmo quadro clínico. O irmão, Johnny, encontrava-se com o cabelo sobre o rosto, sujo,
com as calças rasgadas e os pés descalços. Willie, por sua vez, estava vestido, com a
barba feita e usava sapatos. Goldman diz que a diferença era óbvia; assim, ao invés de
retirar a clorpromazina de um paciente, ele a prescrevera ao outro.
Além dos quadros esquizofrênicos, Fabing pontua que a clorpromazina em altas
dosagens, aplicada por longos períodos, provou-se efetiva no tratamento de mania
aguda, assim como em desordens psiquiátricas menores, como insônia, hipocondria,
introversão e ansiedade. No entanto, ela não possuiria valor nos casos de depressão,
podendo inclusive acentuá-los. Também causaria efeitos indesejáveis como o
9
[No original] “The reduction in assaults, the lessened use of restraint, the increased granting of privileges
to locked-ward patients, the lessened need for repeated electroshock treatment to control explosive
behavior, and the beginnings of improved discharge rate of patients from the use of this drug in his hands
and parallel the kind of improved state of affairs which Kline reports with reserpine at Rockland”
(PHARMACY INTERNATIONAL, jun. 1956, p. 11).
10
[No original] “[...] dishevelled, mute, untidy, schizophrenic who had to be spoon-fed and who managed to
tear off just about all the clothes anyone tried to put on him” (PHARMACY INTERNATIONAL, jun. 1956, p.
11).
parksonismo, irritações cutâneas, icterícia, excesso de sonhos durante o sono e
agranulocitose. O autor não discorre ou concede mais informações a respeito dos efeitos
colaterais (PHARMACY INTERNATIONAL, jun. 1956, p. 11).
Abordando outro composto, ao tratar das drogas úteis nas psiconeuroses, Fabing
traz o meprobamato como um potente medicamento para solucionar as enfermidades
que os fenobarbitais e os barbitúricos buscaram resolver nos últimos 40 anos
(PHARMACY INTERNATIONAL, jun. 1956, p. 35). Esse derivado da mefesina foi utilizado
amplamente nos EUA, no ano anterior:
[...] no controle de tensões nervosas, ou agitação, acompanhada de suas reações
corporais como tensão, dor de cabeça, sensação de na garganta, palpitação,
sensação pesada no peito, falta de ar, anorexia, distúrbios digestivos,
“borboletas” no abdômen, frequência urinária, tensão muscular e tremor, e
outros distúrbios subjetivos acompanhados de ansiedade que todos nós
sentimos uma vez ou outra. (PHARMACY INTERNATIONAL, jun. 1956, p. 36,
tradução nossa)
11
.
O autor diz que para a maior parte das pessoas esses sentimentos são
passageiros, mas quando os sintomas persistem, então uma ansiedade neurótica se faz
presente. O meprobamato não seria uma substância milagrosa que curaria todos esses
sintomas, mas valeria a pena o teste por conta do alívio que ele poderia proporcionar.
Diz ainda que o único efeito colateral seria um relaxamento excessivo da musculatura e,
ocasionalmente, um pouco de tontura. E, assim como a reserpina e a clorpromazina, o
meprobamato não teria utilidade nos casos de depressão (PHARMACY
INTERNATIONAL, jun. 1956, p. 36).
O meprobamato foi sintetizado em 1950 pelo químico da Tchecoslováquia, Frank
Berger, no laboratório Wallace, em Nova Jersey, que passou a comercializá-lo em 1955
sob o nome fantasia de Miltown. Diferentemente das outras drogas ataráxicas, os efeitos
do meprobamato seriam mais brandos, um tranquilizante leve. As pesquisas de Berger o
teriam levado a relatar que os experimentos em macacos os deixaram mais facilmente
domesticáveis devido ao relaxamento, chegando inclusive a deixá-los insensíveis à dor, e
isso sem efeitos colaterais significativos (WHITAKER, 2017, p. 67).
Tendo em vista esse conjunto de características, o meprobamato torna-se um
medicamento amplamente utilizado pela população estadunidense, uma vez que o corpo
médico passa a defender cada vez mais as ligações entre distúrbios nos estados
11
[No original] [...] for the control of nervous tension, or “jitteriness” along with its accompanying bodily
reactions of tension, headache, globus sensation in the throat, palpitation, heavy feeling in the chest, air
hunger, anorexia, digestive disturbance, “butterflies” in the abdomen, urinary frequency, muscle tension
and tremor, and the other disturbing subjective accompaniments of anxiety which all of us have
experienced at one time or another” (PHARMACY INTERNATIONAL, jun., 1956, p. 36).
emocionais e enfermidades físicas. Um artigo intitulado
Anxiety Plays Important Role in
Many Diseases
(PHARMACY INTERNATIONAL
¸
abr. 1957, p. 25-32) traz os relatórios de
diversos médicos em um evento no
Boston’s New England Medical Center
, cujo tema
central era justamente as relações entre quadros emocionais e doenças:
[...] médicos notáveis citaram a artrite e o reumatismo, infertilidade, doenças do
coração, asma, desordens gastrointestinais e doenças de pele como algumas das
doenças para as quais existem evidências de componentes emocionais.
Stress mental e tensão podem alterar a química corporal, mudar o fluxo dos
hormônios, afetar a circulação sanguínea e a função de certos órgãos vitais.
[...] Medo e ansiedade também podem afetar os órgãos do corpo produzindo
sérias dificuldades fisiológicas. (PHARMACY INTERNATIONAL
¸
abr. 1957, p. 25,
tradução nossa)
12
.
O Dr. Louis A. Selverstone, da Universidade Tufts e cardiologista no
New England
Center Hospital
, enfatiza que a redução de tensão emocional em pacientes com angina e
outras condições cardíacas pode ser considerada uma grande causa de reabilitação.
Selverstone pontua que o diagnóstico de doenças cardíacas orgânicas não implica
necessariamente que as causas sejam igualmente orgânicas, dizendo que em muitos
pacientes a preocupação e o medo em relação ao diagnóstico produzem mais problemas
do que a doença em si (PHARMACY INTERNATIONAL
¸ abr. 1957, p. 25).
o Dr. Joseph Rogers, também médico no
New England Center Hospital
, diz que
evidências de que a infertilidade em alguns casais seja fruto de tensões emocionais.
Defende ainda que muitos dos sintomas atribuídos à menopausa são relacionados à
ansiedade e à depressão, que ocorrem nesse momento de vida específico e não são
necessariamente relacionados às questões hormonais (PHARMACY INTERNATIONAL
¸
abr. 1957, p. 32).
Dessa forma, através do tratamento médico dos sintomas emocionais, a cura da
enfermidade poderia ser obtida. Mas, para além do uso do meprobamato e de outras
drogas ataráxicas no controle dos sintomas emocionais que geram enfermidades físicas,
o Miltown tornou-se um sucesso comercial para o público amplo, sendo largamente
consumido para se obter um torpor emocional frente às dificuldades cotidianas, ou
mesmo sendo prescrito irrestritamente por médicos para doenças com possível fundo
emocional (LA PHARMACIE INDUSTRIELLE, n. 40, 1957, p. 6). Em Nova Iorque, o Miltini,
12
[No original] “[...] noted clinicians cited arthritis and rheumatism, infertility, heart-disease, asthma,
gastrointestinal disorders and skins ailments as some of the diseases for which there is evidence of
emotional components.
Mental stress and tension can alter body chemistry, change the flow of hormones, affect blood circulation
and the function of certain vital organs.
[...] Fear and anxiety may so affect body organs as to produce serious physiologic difficulties”.
(PHARMACY INTERNATIONAL¸ abr. 1957, p. 25)
um drinque composto por Miltown e gim, caricaturizou o uso desenfreado do
meprobamato pela população.
A validação das drogas ataráxicas sobre outros tratamentos
Os barbitúricos eram alvo de controvérsias nas páginas da
Pharmacy
International
desde 1949. O artigo de nome
The Barbiturate Problem
, escrito por
Linwood F. Tice (PHARMACY INTERNACIONAL, dez. 1949, p. 18-9), versa sobre as
exigências para que a comercialização de barbitúricos fosse restringida, devido ao fato
de serem vendidos naquele momento como aspirinas nos balcões das farmácias.
Tice aponta que os barbitúricos eram usados como hipnóticos que deprimem o
sistema nervoso central, de modo que o seu uso mais frequente seria na indução de
sono. Além disso, aponta os seus usos nas combinações com analgésicos, para
potencializá-los; em estados de ansiedade, para promover calma; na remediação de
ataques epiléticos; em momentos de hipertensão para manter o paciente quieto; como
um anticonvulsivante em casos de envenenamento por estricnina; para administração
em pré-anestesias; e, por fim, como um anestésico intravenoso (PHARMACY
INTERNATIONAL
,
dez. 1949, p. 18).
Apesar dessa variedade de funções terapêuticas, de acordo com Tice, os
barbitúricos causariam dependência física e psicológica em seus usuários, de modo que
esses não mais conseguiriam dormir sem os medicamentos, podendo ocorrer também
crises de abstinência que poderiam gerar ataques convulsivos. O uso continuado
chegaria a alterar a estrutura cerebral, ocasionando doenças mentais como, por
exemplo, a paranoia. Além disso, aproximadamente 2% dos usuários teriam algum tipo de
toxicidade crônica, sendo essas, em alguns casos, fatais.
O autor também aponta para o fato de que muitos médicos prescreviam os
medicamentos para acalmar estados emocionais, dessa forma, a produção ampliava-se
sobremaneira, chegando a 100 mil quilos de fenobarbital produzidos anualmente nos
EUA. Por conta de todos esses fatores, Tice advoga por uma restrição maior em relação
ao comércio de barbitúricos, de modo que haja maior ênfase nas prescrições médicas
relacionadas a eles, a partir da elaboração de leis estaduais que normatizassem o seu
consumo (PHARMACY INTERNATIONAL
,
dez. 1949, p. 19). No entanto, ele acredita que
esses fármacos não deveriam ser regulados como a morfina, por exemplo, uma vez que o
excesso de restrições faria com que o mercado ilegal de barbitúricos se fortalecesse.
Seis anos após a publicação desse artigo, Tice novamente aborda a questão dos
danos ocasionados por esses medicamentos, dizendo que “[...] apesar dos barbitúricos
serem drogas extremamente úteis, seu mau uso ocasional levando à adicção, morte
acidental e até mesmo suicídio, levou a uma busca por outras drogas que tenham ação
sedativa.” (PHARMACY INTERNATIONAL
,
dez. 1955, p. 16). Ao trazer os medicamentos
que estavam sendo testados para substituição dos barbitúricos, Tice traz medicamentos
antigos que estavam sendo reavaliados como o paraldeído, o hidrato cloral e o
carbromal, assim como novas drogas hipnóticas e sedativas que estavam sendo
desenvolvidas nos EUA, como o metil-parafinol, Noludar, Doriden e o meprobamato. Em
relação a esse último, diz que vinha sendo usado para induzir relaxamento e promover o
sono, tendo demonstrado ser muito útil e, portanto, largamente prescrito (PHARMACY
INTERNATIONAL
,
dez. 1955, p. 31).
Além dos barbitúricos, as drogas ataráxicas também poderiam vir a substituir as
terapias biológicas, conforme mencionado anteriormente. O entusiasmo em relação a
essa substituição é tanto que, em 1959, um artigo apresenta que teria início o primeiro
experimento mundial de um hospital psiquiátrico com tratamento baseado
exclusivamente em tranquilizantes e estimulantes (PHARMACY INTERNATIONAL, fev.
1959, p. 15). O experimento ocorreria no Instituto Psiquiátrico do Haiti, em Porto
Príncipe, em uma associação entre o governo haitiano e três empresas farmacêuticas
estadunidenses: Schering, Hoffman-LaRoche e Wyeth. O consultor principal seria Nathan
Kline, o diretor de pesquisas do Hospital Estadual de Rockland, que havia sido um dos
primeiros a testar a reserpina nos doentes mentais.
Além de investirem capital no instituto psiquiátrico, as empresas mencionadas
entregariam as principais drogas a serem utilizadas, os tranquilizantes perfenazina
(Schering) e meprobamato (Wyeth), além do estimulante psíquico, iproniazida (Hoffman
LaRoche). Nas palavras de Nathan Kline:
Nosso primeiro objetivo é melhorar o cuidado e o tratamento dos doentes
mentais no Haiti. Ao fazer isso, esperamos determinar se as drogas disponíveis
presentemente e as instalações de tratamento adequadas, especialmente para
os ambulatórios, não são economicamente e socialmente métodos melhores de
tratamento do que o método tradicional de institucionalização de doentes
mentais. Pode ser aprendido, por exemplo, que hospitais psiquiátricos
multimilionários são desnecessários. (PHARMACY INTERNATIONAL, fev. 1959,
p. 15, tradução nossa)
13
.
Para Kline, a chance de êxito possibilitaria que um novo modelo de tratamento
pudesse ser exportado para todo o mundo, gerando grande benefício para a humanidade.
13
[No original] “Our first objective is to improve the care and treatment of mentally ill persons in Haiti.
While doing this, we hope to determine if presently available drugs and adequate treatment facilities,
especially for out-patients, are not a more economical and more socially constructive method of treatment
than the traditional method of institutionalizing mental patients. It may be learned, for example, that multi-
million-dollar mental hospital are unnecessary”
(PHARMACY INTERNATIONAL, fev. 1959, p. 15).
De acordo com os autores da
Pharmacy International,
esse novo modelo não atingiria
apenas os tratamentos físicos e invasivos praticados nos hospitais psiquiátricos, mas
também colocaria em xeque o método psicanalítico, uma vez que as doenças mentais
seriam tratadas unicamente como desequilíbrios químicos cerebrais. Segundo o chefe da
divisão de medicina química do laboratório Lakeside, Dr. John H. Biel, as pesquisas
acerca das causas e curas das doenças mentais trouxeram uma “[...] reviravolta
dramática em nosso modo de pensar.” (PHARMACY INTERNATIONAL, out. 1956, p. 15).
Na figura de presidente do simpósio
Drugs Affecting Mental State
, organizado
pela Sociedade de Química Americana, Biel apresentou evidências que indicariam que as
doenças mentais teriam raízes químicas e que essa teoria havia sido levantada no
século passado. Não obstante com as novas pesquisas realizadas ela estaria mais
próxima de ser confirmada, suplantando assim o método psicanalítico que não possuiria
experimentos confirmatórios suficientes. Para John Biel, quatro seriam as causas que
trariam novamente à tona a teoria das doenças mentais como distúrbio químico:
1. Descoberta de drogas que tranquilizam sem hipnose ou depressão
cortical e com o seu campo de ação no hipotálamo.
2. Isolamento da serotonina seguido da teoria de que ela é essencial para o
funcionamento normal do cérebro e que a doença mental poderia ser um reflexo
do desequilíbrio desse metabólito.
3. Confirmação da teoria de que a serotonina está implicada na função
cerebral como um agente neuro-humoral.
4. Desenvolvimento de uma teoria preocupada com o modo de ação da
reserpina e da clorpromazina que se relaciona bem com o conceito
neurofarmacológico de etiologia da neurose. (PHARMACY INTERNATIONAL,
out. 1956, p. 32, tradução nossa)
14
.
Outro artigo, no mesmo ano, com o título
Tranquilizers Point to New Approach in
Psychiatry (
PHARMACY INTERNATIONAL, dez. 1956, p. 19) e baseado em artigo
apresentado no periódico
Chemonomics
, diz que Freud angariou para si uma amarga
oposição, ao descrever os problemas mentais como resultados de conflitos sexuais
gerados na infância, contrariando conceitos tradicionais e religiosos. Entretanto, apesar
de apontar que não seria sábio negar as contribuições da psicanálise freudiana, as
últimas pesquisas vinham apontando para o funcionamento do cérebro como atrelado à
química do sistema nervoso.
14
[No original] 1. Discovery of drugs which tranquilize without hypnosis or cortical depression and with
their site of action in the hypothalamus. 2. Isolation of serotonin followed by the theory that it is essential
for normal brain function and that mental disease may thus reflect an imbalance of this metabolite. 3.
Confirmation of the theory that serotonin is implicated in brain function as a neurohumoral agent. 4.
Development of a theory concerning the mode of action of reserpine and chlorpromazine which ties in
well with the neuropharmacological concept of the etiology of neurosis”. (PHARMACY INTERNATIONAL,
out. 1956, p. 32).
Em 1958, o Dr. Frank Berger, que havia descoberto o meprobamato e tornara-se
diretor dos laboratórios Wallace, anuncia no Sexto Simpósio Nacional de Medicina
Química, da Sociedade de Química Americana, um artigo em que separa três principais
escolas de psiquiatria: a freudiana ou analítica, que atribui às doenças mentais as
memórias reprimidas na infância; a pavloviana, que culpa o aprendizado errôneo pela
aquisição imprópria de reflexos condicionados; e, uma terceira, que seria a química, que
acredita que as doenças mentais são decorrentes de venenos formados no corpo ou
introduzidos externamente (PHARMACY INTERNATIONAL, out., 1958, p. 23).
Por fim, Berger diz que as críticas feitas aos tranquilizantes são as mesmas feitas
aos anestésicos quando esses foram implementados, e muitas delas teriam sido
exageradas, chegando ao ponto de dizerem que uma grávida tratada com tranquilizantes
não amaria seu próprio filho, por conta dos efeitos do medicamento, de modo que
abandonaria o filho assim que pudesse. Obviamente, à época e até os dias atuais, são
muitas as críticas ao modelo neurofarmacológico de tratamento de doenças mentais
15
. A
atenção devida a elas não caberia no espaço deste artigo, no entanto, destacamos duas
críticas pontuais que surgiram naquele período.
A revista inglesa,
The Economist
, publica um artigo em 1957 com o nome
Os
Modernos Comedores de Lótus
, criticando o amplo e irrestrito consumo de
tranquilizantes e hipnóticos pela população em geral (LA PHAMACIE INDUSTRIELLE, n.
40, 1957, p. 5-6). Alega que a
Food and Drug Administration
(FDA) não faz esforços
necessários para controlar o consumo desses medicamentos nos EUA. Também critica
os médicos que prescrevem medicamentos sem ter completo conhecimento do quadro
do paciente. Apresenta um estudo da Universidade de Medicina de Oregon, em que
8.200 pessoas foram tratadas com tranquilizantes, das quais 80 tiveram um quadro de
depressão a ponto de tentarem o suicídio. Também aponta que as taxas de doentes
mentais nos hospitais vinham sofrendo aumento e não diminuição, de modo que o
tratamento dos pacientes envolveria questões mais complexas do que a simples
administração de medicamentos. Termina por dizer que o objetivo era transformar um
espírito atormentado em uma molécula atormentada, que poderia ser controlada pela via
medicamentosa.
A segunda crítica que selecionamos vem da Organização Mundial da Saúde
(OMS), que em 1957 diz que os medicamentos ataráxicos devem ser considerados, a
partir de então, como passíveis de gerar dependência. A definição aparece no relatório
15
Para uma análise histórica de dia duração acerca do uso de neurolépticos e seus prejuízos para os
doentes mentais ver WHITAKER, 2017.
do Comitê de Especialistas de Drogas que Geram Toxicomania onde é apontado que o
seu consumo excessivo pode gerar síndromes de abstinência, assim como no caso dos
barbitúricos, e que as drogas ataráxicas devem ser submetidas a um controle nacional. O
relatório também diz que, tanto as drogas tranquilizantes quanto as estimulantes, podem
gerar dependência devido à sensação de bem-estar causada por elas, e que a
dependência leva a um abuso prolongado sem atenuar a doença (LA PHARMACIE
INDUSTRIELLE, n. 40, 1957, p. 7-8).
Considerações finais
Conforme descrito no início deste artigo, a indústria farmacêutica estadunidense
passava por um período de instabilidade de preços, relacionado em grande medida com o
excesso de produção dos medicamentos descobertos no período da Segunda Guerra
Mundial e no pós-guerra. Além da expiração de algumas patentes, a recuperação
econômica dos países europeus e o surgimento de novos concorrentes no cenário global
também forçam a diminuição dos preços e estabelecem uma nova dinâmica de
competição. Nesse sentido, inovações farmacológicas seriam extremamente necessárias
para a manutenção das empresas farmacêuticas estadunidenses na liderança de
mercado. Ou, dito de outra forma, os pesados investimentos em P&D deveriam, em curto
espaço de tempo, revelar uma nova classe de
wonder drugs
que seriam incorporadas
pelas comunidades médicas e farmacêuticas oficiais para, consequentemente, serem
comercializadas em todo o mundo.
Esses novos medicamentos deveriam também atender a uma ampla demanda
ociosa, ou seja, deveriam ir de encontro às necessidades terapêuticas de enfermidades
que vinham se ampliando na sociedade. Nesse caso, o aumento das doenças mentais, e o
próprio alargamento do que poderia ser considerado um distúrbio mental, vão de
encontro aos objetivos de produção de uma nova classe de medicamentos que tivesse
infiltração capilar tanto nos hospitais, quanto no cotidiano urbano de uma sociedade
eivada de contradições, que se reproduzem tanto no nível macro quanto nas
subjetividades afetivas.
O sucesso das drogas ataráxicas é tão grande que a revista
Time
destaca que, no
ano de 1957, elas tiveram venda de 150 milhões de dólares, chegando a competir com os
antibióticos, como os medicamentos mais vendidos da indústria farmacêutica (LA
PHARMACIE INDUSTRIELLE, n. 44, 1958, p. 134). Esse mesmo ano haveria de ser um dos
mais lucrativos para o setor, sendo seus lucros 17,5% maiores do que no ano anterior.
Para a Pfizer, o aumento foi de 16%, Eli Lilly 12%, Parke, Davis 41%, Mead Johnson
23% e assim por diante. Como resultado do crescimento, houve também maiores
investimentos em P&D como, por exemplo, no caso da Lederle que investiu 6 milhões de
dólares na descoberta de novos princípios ativos.
Na
Pharmacy International,
a seção
Classified Directory of Products,
que
apresenta todas as empresas do país em relação ao tipo de medicamentos que produzem,
demonstra um aumento nas empresas que fabricam drogas ataráxicas e tranquilizantes,
de 18 empresas para 25, em apenas um ano (PHARMACY INTERNATIONAL, set. 1957, p.
21; set. 1958, p. 23), prenunciando o surgimento de novos medicamentos e mais pesquisa
direcionados para essa classe de fármacos.
Dessa forma, não queremos com isso simplesmente reduzir o desenvolvimento da
psiquiatria aos imperativos econômicos da concorrência capitalista. Ao mesmo tempo em
que as empresas buscavam manter a sua hegemonia de mercado, a própria psiquiatria
buscava atingir o seu estatuto de ciência (FRANÇA, 2012, p. 244) e uma revolução no seu
corpo teórico e prático, embasada na neurofarmacologia possibilitadora do controle
químico do cérebro. Este seria o instante fundador da conquista do espaço desejado pela
psiquiatria no
hall
das ciências médicas. Portanto, procuramos deixar claro como os
setores especializados da neurofarmacologia e da psiquiatria foram alimentados e
alimentaram o crescimento econômico do setor farmacêutico, tendo o periódico como
um dos meios onde o entrelaçamento pode ser observado e analisado. Nesse sentido, o
limiar entre a pesquisa científica e a necessidade de expansão econômica das empresas
farmacêuticas estadunidenses torna-se turvo, uma vez que o periódico é o espaço onde
simultaneamente ocorre o convencimento da classe médico-farmacêutica como coletivo
de pensamento, e a publicidade dos laboratórios, que se alterna entre a mera propaganda
dos seus medicamentos e os resultados das pesquisas, que são emitidas pelos próprios
médicos e farmacêuticos aos seus pares.
Para ilustrar, encerramos com um trecho de artigo recente de Steven Shapin
(2019):
Quando a ciência se torna tão amplamente ligada ao poder e ao lucro, as
suas condições de credibilidade assemelham-se cada vez mais às das
instituições nas quais se envolveu. Os problemas de uma passam a ser
os problemas da outra. (SHAPIN, 2019, tradução nossa)
16
.
Referências
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Remédio:
saúde ou indústria?
A produção de medicamentos no
Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1992.
16
[No original] “When science becomes so extensively bonded with power and profit, its conditions of
credibility look more and more like those of the institutions in which it has been enfolded. Its problems are
their problems.
(SHAPIN, 2019).
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