BRITO, Fernanda Kelly Silva de
*
https://orcid.org/0000-0001-9172-0721
RESUMO: O artigo apresenta o manual de
encadernação como fonte de pesquisa,
apontando as
Séries Metódicas de Ofício
s,
metodologia utilizada pelo Serviço de
Aprendizagem Industrial SENAI, para a
produção de seus manuais, na década de 1950.
Para isso, traz uma breve caracterização dos
manuais, apresenta o conjunto de publicações
da pesquisa realizada, que juntos formam uma
rede de documentos, além de um breve debate
a respeito dos conceitos de técnica e
tecnologia, presente na metodologia das
Séries
Metódicas
. Nas considerações são expostos
possíveis desdobramentos da pesquisa dos
manuais, como no estudo de terminologia,
vocabulário controlado, além de uma reflexão
sobre a tradição do ensino do ofício no Brasil.
PALAVRAS-CHAVE: história da ciência;
manual; encadernação; SENAI, serie metódica
de ofício.
ABSTRACT: The article presents the binding
manual as a source of research, pointing out the
Methodical Series of Crafts, a methodology
used by the Industrial Learning Service
SENAI, for the production of its manuals, in the
1950s. For this, it provides a brief
characterization of the manuals, presents the
set of publications of the research carried out,
which together form a network of documents,
as well as a brief debate on the concepts of
technique and technology, present in the
methodology of the Methodical Series. In the
considerations, possible developments in the
research of manuals are exposed, as in the
study of terminology, controlled vocabulary, in
addition to a reflection on the tradition of
teaching the craft in Brazil.
KEYWORDS: history of science; manual;
binding; SENAI, methodical craft series.
Recebido em: 20/07/2021
Aprovado em: 09/10/2021
*
Doutora e mestra em História da Ciência pela PUC-SP. Professora adjunta da Universidade Federal de
Minas Gerais. E-mail: fernandabrito@ufmg.br. Parte dessa pesquisa constitui a dissertação de mestrado
intitulada:
Vestígios da tradição dos ofícios na indústria: o ensino da encadernação no Brasil até as séries
metódicas do SENAI, nos anos 50,
sob orientação da professora Maria Helena Roxo Beltran.
Este é um artigo de acesso livre distribuído sob licença dos termos da Creative Commons Attribution License.
Introdução
O manual, pelo próprio nome e pela sua natureza, geralmente caracteriza-se como
um texto voltado para as práticas, ou manualidades.
Em seu artigo intitulado
Divulgação de conhecimentos sobre as artes e sobre as
ciências: os manuais práticos
, Maria Helena Roxo Beltran (2005) diz que, durante o séc.
XIX, incrementaram-se novas técnicas de impressão e de produção de papel que
aumentaram significativamente a rapidez e a tiragem das publicações, diminuindo seus
custos. Então neste movimento “[...] manuais, tratados e receituários tradicionais formas
de registro de conhecimentos observados tanto na literatura relativa às ciências da
matéria, quanto nas referente às artes visuais e decorativas passariam por interessantes
reconfigurações.” (BELTRAN, 2005, p. 140 e 141).
Historicamente, a publicação dos tratados se inicia por volta do séc. XIV, mantendo
sua tradição até o séc. XVIII, quando no séc. XIX temos a configuração e força dos
manuais. Como exemplo de uma publicação sobre o fazer da “arte” da encadernação na
história ocidental, podemos citar o tratado publicado em 1772 e intitulado
L’art du relieur
doreur de livres,
do autor francês René Martin Dudin.
Dentro da perspectiva histórica da publicação de tratados, entendemos melhor a
presença dos manuais no séc. XIX, já no contexto das ciências modernas e das
especializações, esclarecendo talvez a divisão dos saberes e fazeres que inicia fortemente
neste período, e onde o manual se encontra dentro da história como forma de aprendizado
e prática, rompendo também a tradição entre mestres e aprendizes, que se dava dentro
das próprias oficinas: aprender vendo e ouvindo, através da observação e tradição oral.
A fragmentação do ofício, através da aplicação de metodologias como as
Séries
Metódicas de Ofícios
utilizadas pelo SENAI, também será apresentada aqui, com
abordagem sobre a técnica e tecnologia na história e sua utilização na metodização do
conhecimento.
Dessa forma, trataremos todas as publicações que serão aqui apresentadas como
Manuais, mesmo algumas delas não levando esse título, mas por considerar sua vocação
e tradição que seu texto ca
13
rrega na história da publicação de textos voltados ao ensino.
Os manuais de encadernação como fonte de pesquisa
No contexto do Brasil, a busca inicial por manuais de encadernação se deu dentro
do contexto do ensino dos ofícios, por não haver registro até o presente momento, de
escolas que pudessem apresentar materiais didáticos ou recursos de ensino.
Dessa forma, as escolas de ofícios e, posteriormente, de ensino técnico, foram o
ponto de partida dessa pesquisa, sendo o SENAI e sua metodologia, a principal fonte.
Durante a pesquisa realizada, uma rede de documentos se constituiu, um
remetendo ao outro, gerando muitas possibilidades de pesquisa. Porém, dentro da
perspectiva da história da ciência, da técnica e tecnologia, optou-se em aprofundar na
análise da metodologia utilizada pelo SENAI
,
chamada de
Série Metódica de Ofícios.
O material didático produzido e publicado pelo SENAI, intitulado
Cursos de
encadernação
, vol. I e II (imagem 1)
foi
utilizado por seus alunos para a aprendizagem do
ofício da encadernação, que estava estruturado e inserido dentro do curso de “Tipografia
e Encadernação”, onde aprendiam também composição manual, composição mecânica,
impressão, estereotipia, pautação, douração, encadernação, e desenho técnico.
Além dessas publicações, foi preparado o livro
Curso de Encadernação: Guia
do
Professor
(imagem 1), direcionado a todos os professores que utilizariam os
Cursos de
Encadernação
como material didático, para aprendizado e aplicação das tarefas.
Imagem 1. Capa do
Curso de Encadernação, vol I e II, e do Guia
do Professor
.
Fonte: Biblioteca “Josep Brunner” Escola SENAI Theobaldo de Nigris.
Os
Curso de Encadernação,
vol. I e vol. II
,
além do
Guia do Professor
, foram
escritos
pelo autor suíço Anton Dakitsh, professor contratado em 1941 para atuar como mestre em
encadernação na rede federal de ensino industrial, através de uma proposta que atendia
as necessidades do Brasil em relação ao ensino profissional e trazido, junto com outros
professores suíços contratados pelo governo brasileiro, durante a gestão de Gustavo
Capanema, que foi nomeado para o cargo de Ministro da Educação e Saúde Pública, em
1934 (ALMEIDA, 2013, p. 8).
Anton Dakitsh escreveu muitas obras para o SENAI, além de traduzir outras, porém
no livro
Guia do Professor
, o autor indica aos professores manuais de encadernação
(imagem 2), publicados em língua portuguesa, que foram consultados para a preparação e
organização dos
Cursos
, além de serem
utilizados pelos alunos do SENAI durante o ensino.
Imagem 2. Capas dos Manuais de Encadernação.
14
Fonte: Acervo pessoal da autora.
Vale a pena destacar que, nos anos de 1950, os alunos do SENAI eram
majoritariamente meninos, brasileiros, com idade entre 8 e 13 anos. Então, a escolha de
obras em língua portuguesa também facilitaria, de certa forma, o acesso ao conteúdo.
No decorrer do estudo dos
Cursos de Encadernação
, também obtivemos
conhecimento sobre a parceria realizada entre Brasil, Estados Unidos e Ministério da
Educação e Saúde, chamada Comissão Brasileiro-Americana de Educação Industrial
CBAI, o que nos levou aos livros publicados através dessa parceria, chegando até às
Séries
Metódicas de Ofícios
, metodologia utilizada pelo SENAI nos anos de 1950, para a análise
dos ofícios da escola.
As
Séries Metódicas de Ofícios
tratam da metodização da aprendizagem de um
ofício, seja ele qual for, através de um conjunto de tarefas ou projetos a serem executadas
pelos alunos, contendo suas tarefas e operações básicas, dispostas sempre da operação
14
Da esquerda para a direita: FREITAS, Maria B. Barjona,
A arte do Livro: manual do encadernador e do
Dourador
, 2.ed. Lisboa: Livraria da Costa, 1937. BERGER, Leopoldo.
Manual Prático e Ilustrado do
Encadernador.
Rio de Janeiro
,
Ao Livro Técnico, 1938. MENEGAZZI, Jorge.
Manual do Aprendiz
Encadernador
. Escola Industrial Dom Bosco, Niterói, 1944. MORF, F..
Cartonagem e Encadernação.
Rio de
Janeiro, Editôra Gertrum Carneiro S/A, 1947.
mais fácil, para a mais difícil. No conteúdo do
Guia do Professor
,
temos a descrição do
significado de
Série Metódica de Ofício,
para a CBAI
:
São escolhidos uma série de peças, tarefas, trabalhos ou exercícios,
convenientemente ordenados e colocados numa sequência natural e progressiva.
Este conjunto de trabalhos, devidamente selecionados e graduados é chamado de
“Série metódica do Ofício (CBAI, 1950, p. 20-21).
O conteúdo e detalhamento sobre as
Séries Metódicas de Ofício
foi publicado em
um livro chamado
Organização das Séries Metódicas,
bastante presente e citado no
Guia
do professor
, ajudando na orientação da análise do ofício e estrutura dos cursos por eles
organizados.
Essa rede de documentos permitiu realizar conexões entre as obras e trabalhar
nas pesquisas de forma remissiva, um livro levando ao outro, chegando então na
organização que o autor Anton Dakitsh realizou para a construção dos
Cursos de
Encadernação
a partir da referência dos 4 manuais de encadernação e, por fim, como o
autor realizou a aplicação da
Séries Metódicas,
aos ofícios do SENAI.
Na descrição visual do
Curso
de Encadernação
, vol. 1 (imagem 3), podemos dizer
que são livros que possuem grande formato, medindo cerca de 30 cm de altura por 20 cm
de largura, divididos por “blocos” de folhas coloridas, onde cada cor trata de um assunto,
embora todos estejam interligados.
Imagem 3. Curso de Encadernação Vol. 1
Fonte: Biblioteca “Josep Brunner” Escola SENAI Theobaldo de Nigris.
Cada bloco de folhas coloridas, no total 4, nos apresenta uma organização que
ocorre da seguinte forma: folha de estudo = cor branca; folha de tarefa = cor amarela;
folha de operação = cor rosa; e folha de informação = cor azul (imagem 4).
Imagem 4.
Curso de Encadernação,
Vol. 1, folhas coloridas
Fonte: Biblioteca “Josep Brunner” – Escola SENAI Theobaldo de Nigris.
Para analisar as folhas coloridas, seu uso e como foram dispostas nos dois volumes
do
Curso de Encadernação,
recorreremos ao conteúdo do
Guia do professor
:
O curso de Encadernação” contém a matéria básica para o preparo do
encadernador. Assim, tem 39 tarefas ou exercícios a serem executados (Fôlhas
de tarefa, cor amarela); contém estudo minucioso sôbre tôdas as operações
necessárias à execução das tarefas (Fôlhas de Operação, cor de rosa, em número
de 167), bem como informações minuciosas sobre as tarefas e operações em geral
(Fôlhas de Informação, cor azul, em número de 40). Antes de cada tarefa, foi
colocada uma folha branca, chamada “Fôlha de Estudo”, que tem duas finalidades:
primeiro a de auxiliar na motivação da feitura da tarefa e do estudo das operações
e da folha de informações: em segundo lugar, servem estas folhas para orientar e
controlar a aprendizagem do aluno. Nestas quatro “Fôlhas”, denominadas folhas
de instrução, está distribuída toda a matéria fundamental do curso (CBAI, 1950,
p. 25).
Como percebemos, as folhas coloridas são “Folhas de Instrução”, utilizadas pelo
professor para análise do ofício que seria ministrado, ou seja, o estudo, tarefa, operação e
informação de determinado ofício, em nosso caso, da encadernação.
Novamente os autores referem-se ao material da seguinte maneira:
Sendo o material em folha solta, geralmente em folha simples, apresenta-se com
certas características peculiares de seu uso. Por exemplo, cada folha é mais ou
menos completa em si mesma; tem um título próprio e introdução curta e se
restringe a uma única unidade de ensino (por exemplo: como usar uma
determinada ferramenta). Na prática escolar estas folhas geralmente são
grupadas sob três (1) títulos diferentes:
1. Fôlha de Tarefa
2. Folha de Operação
3. Folha de Tecnologia (CBAI, 1950, p. 25).
Por serem alunos com idade entre 8 e 13 anos, como informamos, a escolha de
uma metodologia com divisão de tarefas permitia também a oportunidade de cada aluno
executar uma parte do ofício, além das folhas coloridas facilitarem a associação do
conteúdo.
Ainda no
Guia do Professor
, o autor Anton Dakitsh descreve os ramos que o curso
abrange, totalizando 4: Encadernação Industrial, Encadernação Manual, Encadernação de
Livro em Branco e Douração por folha. O autor comenta que “[...] são estes os ramos de
maior procura e que mais se desenvolveram na indústria do Brasil, segundo estudo feito
de nossa indústria da Encadernação e segundo os professores e técnicos consultados”
(CBAI, 1950, p. 22).
Anton Dakitsch analisou os 4 ramos indicados, e os mesmos foram decompostos
em suas operações fundamentais, com a indicação dos conhecimentos teóricos ligados a
essas operações. Foram definidas, no total, 169 operações, que em seguida foram dispostas
numa ordem conveniente para o ensino, apresentadas numa
Folha de análise do ofício
.
A
Folha de análise do ofício
está inserida no
Guia do Professor
, apresentando-se
como uma folha grande e larga, dobrada para que caiba no
Guia
, mas que também se
desdobra em 5 partes (ou cinco folhas), para que caibam todas as 169 operações.
Trazemos aqui somente a primeira e segunda parte da
Folha de análise do ofício
(imagem 5), por não conseguir disponibilizar todas de forma sequencial ao mesmo tempo,
que somam no total, cinco folhas. Essas imagens ajudarão a entender como eram
distribuídas as tarefas e as operações, além da aplicação da
Série Metódica de Ofício.
Vejamos a seguir a descrição da
Folha de análise do ofício
realizada pela CBAI, e
na sequência a imagens das folhas:
No gráfico temos as 169 operações colocadas em linha horizontal, na ordem
crescente das dificuldades e de modo que as primeiras sirvam de base a execução
das subseqüentes. Foram escolhidos, em seguida, 39 trabalhos e tarefas, que
estão na primeira coluna a esquerda do quadro de análise. Fazendo estes
exercícios o aluno aprende as 169 operações fundamentais do oficio. Na seriação
dessas tarefas, partiu-se da mais fácil bloco de notas colado, para as mais
difíceis. Estas tarefas constituem propriamente, a série metódica do oficio de
encadernação (CBAI, 1950, p. 24).
Imagem 5. Folha de Análise de Ofício.
Fonte: Biblioteca “Josep Brunner” Escola SENAI Theobaldo de Nigris.
A sequência pensada da tarefa simples para a mais complexa, muitas vezes, é
necessária por levar em consideração alunos com diversas experiências e habilidades.
Uma operação simples não significa que seja fácil de executar. Além do que, a
Série
Metódica
possui sua organização pautada em bases racionais de trabalho, método trazido
da parceria entre Brasil e Estados Unidos, apresentado e publicada, em 1911, por Frederic
Winslow Taylor em sua obra intitulada
Princípios da Administração Científica
, conhecido
posteriormente como
Taylorismo.
Outra questão trazida dos manuais e que sem ela seria mais difícil a preparação das
tarefas e operações é a Terminologia da área. Sem a terminologia definida e estabelecida,
como publicar os
Cursos
? A série metódica era um mesmo método utilizado para qualquer
um dos ofícios oferecidos pelo SENAI, porém era necessário o técnico em determinada
área para desenvolver o curso do seu ofício.
Em dois, dos cinco manuais de encadernação consultados por Anton Dakitsch, os
de autoria de Leopoldo Berger e Maria B. Barjona, apresentam glossários e/ou
vocabulários sobre termos técnicos da área, e apesar dessa informação não ser
evidenciada durante a pesquisa, provavelmente foi realizado um estudo do vocabulário
utilizado na encadernação para definição principalmente das operações, onde a exigência
de termos técnicos é maior.
Anton Dakitsch talvez nos faça refletir sobre sua própria formação e dos critérios
utilizados na escolha de uma bibliografia, pensando em técnicas que seriam utilizadas e
possuíam demanda para a grande produção de livros do país onde estava e como
desenvolver os
Cursos
partindo desse ponto. A forma, inclusive, como a tradição se
mantém, está presente não somente no ensino do ofício, mas também na própria formação
dos mestres.
Considerando todos estes elementos em relação à análise de um oficio, partindo da
Série Metódica de Ofícios
, o estudo das tarefas, operações e terminologia, podemos tentar
compreender o significado da palavra “tecnologia”, muito presente nos
Cursos de
Encadernação
.
Em outra publicação dessa rede de documentos, intitulada
Metodologia do Ensino
Industrial
,
os autores tratam
sobre a
Análise de um ofício para o preparo da tecnologia
correspondente
, dizendo que as operações que se executam num ofício são, na verdade, a
espinha dorsal desse ofício. Informam que, para poder realizar essas operações com
inteligência, não basta saber muito bem a técnica; mas que é preciso, igualmente, possuir
conhecimento e informações que permitam a melhor compreensão do trabalho, ou seja,
sua tecnologia. Para os autores, não é suficiente saber fazer, mas, sim, saber por que se
faz, e nos informam que “Os conhecimentos indispensáveis à prática de um ofício são
mesmo chamados de informações relacionadas com o ofício’, de ‘ensino teórico
correspondente’, comumente chamado no Brasil, de ‘tecnologia’” (BOLLINGER; WEAVER,
1962, p. 85-86).
A questão trazida durante a apresentação dos manuais, dos cursos e das séries
metódicas, diz respeito a um método aplicado a um ofício e como se o desenvolvimento
e a análise desse ofício para sua aplicação, desmembrando, como descrito na citação
acima, suas tarefas, operações e tecnologia correspondente.
A questão da técnica e da tecnologia na história da ciência
Um dos questionamentos que surgiu desde o início desta pesquisa foi: com tantos
anos de tradição, com continuidades e descontinuidades em relação às práticas e à
aprendizagem, como o ofício da encadernação conseguiu ao longo de tanto tempo manter
sua técnica e sua tecnologia?
A permanência de práticas e fazeres dos ofícios, partindo do séc. XV no Ocidente,
depois com as origens das ciências modernas entre os séculos XVI e XVIII e a publicação
dos tratados e manuais, logo após com o desmembramento de grandes campos e com a
consolidação das especialidades no séc. XIX, trouxe a ciência dentro do campo da pesquisa
básica, e a tecnologia passou a ser vista como pesquisa aplicada, além da divisão das Artes,
Belas Artes e Técnica.
O autor Eric Schatzberg (2012), em seu artigo
From Arts to Applied Science
, nos
informa sobre a divisão entre “Artes liberais” e “Artes mecânicas”, ligando essas últimas
ao artesanato. O autor diz que a arte serviu como uma categoria fundamental para a
compreensão da cultura material e sua relação com o conhecimento natural, mas que esse
conceito se perdeu no séc. XIX, começando no séc. XVIII, bem antes da industrialização,
quando o termo perde a sua utilidade no discurso teórico sobre a relação entre
conhecimento e prática. E a mudança de “arte” para “ciência aplicada” e depois
“tecnologia”, ajudou a legitimar a nova ordem social da indústria, apagando a maior parte
da ação humana por trás dessa nova ordem, ou seja, o trabalho dos artesãos
(SCHATZBERG, 2012, p. 557).
Maria Helena Roxo Beltran e Fumikazo Saito (2014), em seu artigo intitulado
Revisitando as relações entre ciência e “techné”: ciência, técnica e tecnologia nas origens
da ciência moderna
,
indicam-nos sobre o que entendemos hoje por tecnologia, não
corresponder bem ao que os antigos, os medievais e os estudiosos da natureza dos séculos
XVI e XVII entendiam por esse termo. Os autores informam que a
techné
foi durante muito
tempo ignorada, mas que isso não significa, entretanto, que ela não fosse importante, visto
que esse tipo de conhecimento estava presente nas construções, na agricultura e nas artes
em geral. Foi somente a partir do século XV que esse tipo de conhecimento passou a ser
valorizado. Até então, por se tratar de um conhecimento que requeria mais da perícia e da
destreza (isto é, da experiência) de quem era portador desse saber do que do próprio
conhecimento, ele foi durante muito tempo colocado à margem de algumas das grandes
classificações do conhecimento desde a antiguidade. Mas isso também não era regra, visto
que épocas diferentes entenderam a
techné
de formas diferentes (BELTRAN; SAITO, 2014,
p. 1-7).
Ruy Gama, em seu livro
A Tecnologia e o Trabalho na História
,
publicado em 1987,
dedica um dos capítulos ao assunto e tenta responder à pergunta
O que é Tecnologia?
tratando da definição nas línguas: portuguesa, inglesa, alemã e francesa.
Na língua portuguesa, o autor diz que a palavra aparece na obra de Rafael Bluteau,
autor português, que no prólogo de sua obra
Vocabulário Português e Latino
, qualifica seu
Vocabulário de
Technológico
(de
Techni,
arte, porque
trata de todas as artes liberais e
mecânicas
),
abrindo, dessa forma, diversas possibilidades para seu vocabulário
(BLUTEAU, 1716, prólogo).
Sobre a língua francesa, o autor discorre sobre a encomenda de Colbert, em 1675 à
Academia de Ciências de Paris, e de um estudo sobre as artes e ofícios.
15
A enciclopédia de
Diderot e D’Álembert
também é comentada como um esforço
nesse campo e Gama cita
Diderot
, dizendo que ele aborda o tema na
Encyclopédie ou
Dictionnaire Raisoné dês Artes et Métiers,
e transcreve (transcrição do autor) um trecho
da abordagem, como consta a seguir:
Divisão entre artes liberais e mecânicas:
Examinando as produções das artes, percebeu-se que uma era mais do espírito
do que das mãos e que ao contrário outras eram mais produtos da mão do que do
espírito. Esta é, em parte, a origem da proeminência que se atribui a certas artes
sobre outras e da divisão que se faz das artes em artes liberais e artes mecânicas.
Esta divisão, ainda que bem fundamentada, produziu em resultado mau, alvitando
pessoas bastante dignas de estima e muito úteis e fortalecendo em nós uma
preguiça natural, de um tipo que não sei identificar, e a partir da qual acreditamos
fortemente dedicar-se constantemente e continuamente à experiências e a
objetos específicos, sensíveis e materiais, era desrespeitar a dignidade do espírito
humano (GAMA, 1986, p. 57-58).
Essa investigação talvez nos auxilie no entendimento de uma das principais
questões encontradas na pesquisa da dissertação realizada, que é sobre a divisão entre
teoria e prática. As indicações nos levaram ao caminho que se inicia no ensino dos ofícios
mecânicos, ou artes mecânicas no Brasil.
E dentro do contexto do Brasil, que é onde nossa pesquisa se desdobra, Cunha
(2005) nos diz que o ensino de ofícios no Brasil ocorreu a partir de várias demandas sociais
e em relação ao trabalho. Mas em sua publicação
O ensino de ofícios artesanais e
manufatureiros no Brasil escravocrata,
trata de duas questões essenciais para
entendermos esse contexto, que é sobre “O (des) valor do trabalho na cultura ocidental”
e a “Escravidão e trabalho manual na cultura brasileira”. Logo no início do 1º capítulo, ele
nos diz:
Na formação da cultura brasileira, exerceu uma influência marcante a herança da
antiguidade clássica no tocante ao trabalho manual representado como atividade
indigna para um homem livre. Essa herança aqui chegou com os colonizadores
ibéricos, provenientes de uma região da Europa onde a rejeição do trabalho
manual era especialmente forte, como também, pela ação pedagógica dos padres
jesuítas, que elaboraram à sua maneira a herança clássica (CUNHA, 2005, p. 7).
Com a Abolição da Escravatura (1888) e a Proclamação da República (1889) temos
então outro contexto, com mudanças significativas no ensino primário e secundário e com
15
Dessa encomenda resultou a
Descriptions s Arts et Métiers Faites ou Approuvées par Messieurs de
l’Académie Royale dês Sciences, avec Figures
, onde estavam representadas todas as ferramentas e figuras,
sendo iniciada em 1691.
um forte preconceito contra o trabalho manual, gerado pela herança escravista (QUELUZ,
2001, p. 25).
Por um longo período, encadernadores estrangeiros ou com formação em outro
país, como Anton Dakitsh, que no Brasil se estabeleceram, trouxeram de seus países
técnicas de sua origem e formação, e aqui trabalharam com o ofício da encadernação na
indústria, em coleções particulares ou ministrando aulas e tornando-se mestres de muitos
encadernadores brasileiros.
Porém, destes encadernadores, Dakitsh talvez elucide a divisão que perdura até
hoje, pois esse mestre encadernador ensinou a vários aprendizes encadernadores sua arte
e a vários trabalhadores e operários seu ofício.
Essas reflexões tencionam a existência de uma conexão entre o saber e o fazer de
um ofício, palavra essa que também é suprimida e se torna obsoleta, e que nos conduz a
dois pontos que consideramos importantes e que buscamos desenvolver desde o início: a
primeira é que com as ciências modernas e as especialidades tivemos também a
fragmentação dos saberes e fazeres e talvez a divisão da matéria com a separação da
técnica. E a segunda é que nessa separação a forma se torna comprometida e a tecnologia
da encadernação, tratada na análise desse trabalho como processo, torna-se interrompida.
Temos então a ciência e a técnica dentro de um contexto de forte mudança, onde a
teoria (o saber) e a prática (o fazer) se separam, e talvez como resposta direta atualmente
temos uma vulgarização do saber, resultando na capitalização do fazer, com as divisões
que hoje tão bem estabelecem os lugares das profissões e dos profissionais, talvez nos
levando para outra obviedade: a urgência e o retorno dessa união ou tradição, para que
esse processo se torne mais fluído e consigamos talvez compreender as etapas que hoje
nos faltem e nos distanciem, principalmente a respeito dos conceitos da ciência e da
Techné'
, ou da técnica e da tecnologia, onde tentamos buscar evidências e referências
que ao longo da história somente fortaleceram essa divisão.
Considerações Finais
Na busca de uma abordagem que tratasse sobre a cnica da encadernação,
entendendo sua tecnologia enquanto processo, chegamos então aos manuais de
encadernação e as metodologias utilizadas no ensino do ofício da encadernação.
Percebemos durante a pesquisa que esses manuais tiveram a intenção de tratar de
técnica, processos e procedimentos, com a encadernação ocupando seu lugar na
indústria. Porém, sabemos que os manuais em sua grande maioria são publicações para
iniciados e não iniciantes, o que nos remete a presença dos mestres, em nosso caso Anton
Dakitsh.
Se nos manuais constam técnicas e tecnologias de uma determinada época,
precisamos saber como proceder à aplicação dessa técnica, pois a encadernação envolve
todos os processos da produção de um livro e, por isso, todos esses processos somam
uma tecnologia complexa.
Outro ponto que podemos considerar importante é o estudo de terminologia sobre
a bibliografia material do livro e termos técnicos. Os próprios manuais analisados possuem
glossários ou vocabulários, como no caso do
Manual do Encadernador,
de Leopoldo
Berger (1957), que consta inclusive um
Vocabulário de termos técnicos usados na
encadernação em português, francês e alemão
e esse estudo pode auxiliar no uso e
conjunto de termos específicos ou sistema de palavras para o ensino, e também no
processo de aprendizagem das técnicas/operações.
No texto aqui apresentado, tratamos sobre a década de 1950 e a análise proposta
aqui se deu sobre uma seleção de publicações e documentos desse período,
principalmente os manuais, pois a partir deles é que se constituiu uma rede de documentos
e fontes de pesquisa a fim de compreender sobre a formação dos profissionais que
trabalharam e desenvolveram métodos específicos para a prática do ofício da
encadernação e sua tecnologia.
A prática do ofício da encadernação permeou e continua permeando todos os
lugares onde o livro está presente, seja como suporte para escrita, como objeto ou como
prática. A divisão desses lugares por vezes se torna apenas uma conveniência, que a
encadernação do ponto de vista da técnica e de sua tecnologia é exatamente a mesma,
independente do lugar que ocupará.
Como vimos através de perspectivas na história da ciência, essas divisões se
fundamentam numa separação histórica muito antiga, que mantêm sua tradição desde a
divisão das artes liberais (dignas do homem livre) com as artes mecânicas, até o forte
preconceito contra o trabalho manual, gerado legitimamente por uma herança escravista.
Resgatar essa memória através dos manuais como fontes e possibilidades de pesquisa faz
parte da história da tradição do ensino do ofício da encadernação no Brasil.
Referências
ALMEIDA, Wania Manso. A contratação de professores suíços para o ensino industrial
brasileiro: fragmentos de trajetórias docentes.
Revista Contemporânea de Educação
8, n.
15, 2013. Disponível em: http://www.revistacontemporanea.fe.ufrj.br. Acesso em: 19 de
jul. 2021.
BELTRAN, Maria Helena Roxo. Divulgação de conhecimentos sobre as artes e sobre as
ciências: os manuais práticos
.
In:
COLÓQUIO CESIMA ANO X
, org. José Luiz Goldfarb &
Maria H. R. Beltran, p. 140-145. São Paulo, 2005.
BELTRAN, M. H. R; SAITO, F. Revisitando as relações entre ciência e “techné”: ciência,
técnica e tecnologia nas origens da ciência moderna.
In: SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA
CIÊNCIA E DA TECNOLOGIA,
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2014, Belo Horizonte. Anais Eletrônico. Belo
Horizonte: UFMG, 2014. p. 1-13.
BERGER, Leopoldo.
Manual Prático e Ilustrado do Encadernador.
Rio de Janeiro
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Técnico, 1957.
BOLLINGER, E. W; LIVINGSTONE, H..
Metodologia do Ensino Industrial
. Rio de Janeiro:
Ministério da Educação e Saúde; Comissão Brasileiro Americana de Educação Industrial,
1962.
BRITO, Fernanda Kelly Silva de.
Vestígios da tradição dos ofícios na indústria:
o ensino
da encadernação no brasil até as séries metódicas do SENAI, nos anos 50
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