MURGUIA, Luis Alberto*
https://orcid.org/0000-0003-2621-8211
Resumo: A narração do evento da praça de
Cajamarca e a captura do inca Atahualpa
pelos espanhóis foi várias vezes relatada
em diversas crônicas do período colonial
inicial. Elas constituíram uma
representação sobre os fatos em que se
reforçava certas imagens sobre como os
espanhóis tinham sido capazes de impor
sua hegemonia sobre os indígenas. Dentro
das narrativas pertencentes à tradição
historiográfica hispânica, o momento em
que o inca Atahualpa jogou o “livro” no
chão, adquiriu um papel importante no qual
condensava a suposta superioridade
política e religiosa dos conquistadores, mas
também era um sinal da incompreensão
sobre o próprio sentido do “livro” por parte
do Inca. O objetivo deste artigo é analisar a
presença de outras narrativas sobre o
evento de Cajamarca e do papel do “livro”,
que podem ser parcialmente identificadas
como pertencentes a uma tradição
historiográfica indígena. Procura-se neste
artigo problematizar a relação entre a
tradição historiográfica espanhola e
indígena em torno de um único evento e o
lugar que ocupa na existência de outras
narrativas.
Palavras-chave: Historiografia. Crônicas da
Conquista. Fontes históricas.
Abstract: The narration of the event in the
square of Cajamarca and the capture of the
Inca Atahualpa by the Spaniards has been
reported several times in different
chronicles of the early colonial period. They
constituted a representation of the facts
that reinforced certain images about how
the Spaniards had been able to impose their
hegemony over the indigenous people.
Within the narratives belonging to the
Hispanic historiographical tradition, the
moment when the Inca Atahualpa threw the
“book” on the floor, acquired an important
role in which the supposed political and also
religious superiority of the conquerors was
condensed, but it was also a sign of the
misunderstanding about the very meaning
of the “book” by the Inca. The aim of this
article is to analyze the presence of other
narratives about the event in Cajamarca
and the role of the “book”, which can be
partially identified as belonging to an
indigenous historiographical tradition. The
aim of this article is to problematize the
relationship between the Spanish and
indigenous historiographic tradition around
a single event and the place it occupies in
the existence of the other narratives.
Key words: Historiography. Chronicles of
Conquest. Historical source.
Recebido em: 02/09/2021
Aprovado em: 13/12/2021
*Bacharel em História pela Unicamp, Mestre em História pela Universidade Federal Fluminense
doutorando do Programa de Pós-graduação em História da Unisinos / RS. E-mail:
murguia68@gmail.comErro! A referência de hiperlink não é válida..
Este é um artigo de acesso livre distribuído sob licença dos termos da Creative Commons Attribution License.
O objetivo deste trabalho é analisar a problemática das fontes históricas e
apontar para a existência de duas tradições dentro da historiografia peruana sobre
o período colonial inicial no século XVI: uma tradição hispânica e uma tradição
indígena. Estas duas tradições de produção de conhecimento histórico tiveram uma
longa trajetória e passaram a se entrelaçar a partir do processo iniciado com a
conquista do Império Inca. Esse entrelaçamento teve caraterísticas peculiares e
permanentes na produção do conhecimento histórico, em que a tradição hispânica
se enriqueceu a partir da progressiva introdução de histórias indígenas e suas
informações, enquanto a tradição indígena andina se apropriaria lentamente das
formas, conteúdos e argumentos aceitos dentro de um cânone historiográfico
ocidental. Esse movimento deu-se não isento de uma forte assimetria e hegemonia
do elemento hispânico, levando adiante um processo de silenciamento, ocultamento
e tentativa de eliminação da tradição indígena, assim como de outras narrativas.
A tradição indígena relativa à produção de conhecimento histórico, assim
como em geral todo o sistema de registros, representação e comunicação, não
desapareceram, mas entraram numa longa crise, caraterizada por uma substituição,
adequação e transformação dessa antiga tradição pré-hispânica (MARTINEZ, C.,
2007). Por isso, mesmo que não se entre na análise dessa tradição, é importante
mencionar informações englobadas nessa tradição, registradas em
quipus
,
tocapus
,
quillcas
e outras formas gráficas, além das representações teatrais e musicais que
tinham como objetivo registrar a história dos reis incas.
1
Essa longa tradição
anterior à hegemonia inca no território dos Andes centrais se encontrava
amparada por um marco cultural e institucional
2
que seria substituído depois da
chegada dos espanhóis. Dessa maneira, as informações sobre como os índios
registravam seu passado as fábulas e histórias, o
quipu
e
taqui
apareceriam
1
O
quipu
ou
khipu
era um sistema de registro de informações que tomava como suporte um
instrumento feito a partir de cordas coloridas e de diversos tamanhos onde se registravam as
informações usando nós. O
tocapu
ou
t’uqapu
eram símbolos abstratos que, com frequência, eram
encontrados em roupas e tecidos cerimoniais, assim como em
queros
ou copos cerimonias. a
quillca
aparece em dicionários coloniais relacionada à escrita e o livro, e nas crônicas se menciona que eram
espécies de tábuas de madeira ou metal que registravam informações (MOSCOVICH, 2017). em
relação à existência de narrativas de corte dramático, Jean-Philippe Husson ao estudar as partes
relacionadas à captura e cativeiro de Atahualpa na crônica de Felipe Guamán Poma de Ayala,
Nueva
corónica y buen gobierno
[1615], destaca a presença de
cantos
ou
harahui
que formariam parte de um
ciclo dramático maior chamado de
hatun taqui
, que teria como centro de sua argumentação a morte
do Inca e que era representado através de cantos e representações e transmitido de forma oral
(HUSSON, 2017, p. 39-75).
2
Além das referências dos
amautas
como indígenas sábios que possuíam registros de memória oral e
conservada através de cantares (CIEZA, 1985, p. 30-33), também era comum encontrar referências
de especialistas que levavam o computo do calendário e dos movimentos das estrelas e das estações
(GUAMAN, [1615], f. 883 (897)). Tanto os
amautas
quanto os
quipucamayoc
precisavam de uma
formação especial para que os preparasse para utilizar os
quipus
e as
quillcas
, com a finalidade de
registrar a tradição oral, em especial, a relacionada à história dos incas governantes.
dentro de crônicas da tradição hispânica com a finalidade de estabelecer um
contraponto cultural e destacar a superioridade da escrita.
A classificação das crônicas do período inicial colonial no Peru esteve
marcada pela reflexão de Raul Porras Barrenechea encontrada em
Los cronistas del
Perú
[1962]. Sua classificação acompanhava os ciclos históricos do estabelecimento
do domínio colonial e exaltava esse conjunto como sendo a única tradição
historiográfica válida. Para ele, as crônicas indígenas se aproximavam mais das
recopilações de mitos e fábulas do que de uma verdadeira história (PORRAS
BARRENECHEA, 2010).
Com a finalidade de nos determos no processo de contato e conflito das duas
tradições, a análise deste trabalho se deterá principalmente no acontecimento da
captura do Inca Atahualpa na praça da cidade de Cajamarca em 16 de novembro de
1532. A história da captura do Inca por Francisco Pizarro foi rapidamente relatada
nos primeiros textos escritos pelos espanhóis
3
e a trama da história narrada foi
repetidamente reproduzida em histórias escritas sobre a conquista espanhola do
Império Inca.
4
A tradição hispânica
Quando aconteceu a captura do Inca em Cajamarca, pelo pequeno grupo de
soldados espanhóis, um reduzido número deles sabia escrever e ler. A capacidade
de leitura e o exercício da escrita era, na maioria dos casos, um indicador claro de
3
A relação dos cronistas é longa, mas é importante mencioná-los porque elaboraram narrativas sobre
a captura, assim como aqueles que fizeram comentários curtos: Cristóbal de Mena, Francisco de
Xerez, Diego de Trujillo, Hernando Pizarro, Miguel de Estete, Juan Ruiz de Arce, Francisco López de
Gómara, Agustín de Zárate, Pedro de Cieza de León, Juan de Betanzos, Pedro Pizarro, o italiano
Girolamo Benzoni, o mestiço Garcilaso de la Vega, e os índios Diego de Castro Titu Cusi Yupanqui,
Felipe Guamán Poma de Ayala e Joan de Santa Cruz Pachacuti Yamqui Salcamaygua. Sobre os
cronistas e suas obras, se utilizaram três trabalhos importantes. O mais recente é o trabalho conjunto
organizado por Joanne Pillsbury (ed.),
Fuentes documentales para los estudios andinos, 1530-1900
,
editado em inglês em 2008 e em espanhol em 2016, que constitui o trabalho mais completo publicado
até o momento. O livro de Franklin Pease,
La crónica y los Andes
, de 1995, reúne importantes ensaios
e uma rica informação bibliográfica. Ainda que publicado pela primeira vez em 1962, o livro de Raúl
Porras Barrenechea,
Los cronistas del Perú (1528-1650)
continua sendo uma importante obra de
referência sobre o tema das crônicas.
4
Além de Prescott (1851) e Hemming (2000), é importante primeiro mencionar uma obra de caráter
de divulgação sobre a conquista espanhola, de Carmen Bernand e Serge Gruzinski,
História do Novo
Mundo
. É de destacar-se que em relação à captura de Atahualpa, os historiadores ainda que utilizando
a maior parte das fontes pertencentes à tradição hispânica, introduzem alguns testemunhos de
indígenas que estiveram presentes, mas que foram dados décadas depois do acontecido (BERNAND;
GRUZINSKI, 1997). Gonzalo Lamana, incorpora na sua narrativa sobre os acontecimentos da
Cajamarca fontes indígenas, ainda que posteriores aos acontecimentos, o que permite uma narrativa
diferente dos acontecimentos, em especial, dando destaque a uma ação mágico-política por parte do
Inca (LAMANA, 2016).
uma posição social privilegiada e de destaque.
5
Esse fato ganha importância ao
analisarmos a tradição hispânica em relação à descrição dos acontecimentos de
Cajamarca, como um exercício de poder, não em relação aos indígenas, mas
também dentro do próprio grupo de espanhóis.
Um primeiro grupo de cronistas desse período inicial estava conformado por
espanhóis que estiveram presentes no acontecimento de Cajamarca ou que
chegaram imediatamente depois. Seus escritos têm objetividade resultante de terem
sido produzidos por alguém que presenciou ou por ter escutado a alguém que esteve
presente, adquirindo assim uma qualidade de veracidade e autoridade.
A primeira crônica sobre a conquista, publicada de forma anônima, teve por
título
La conquista del Perú llamada la Nueva Castilla
e foi editada em Sevilha em
1534. Posteriormente, a autoria foi atribuída a Cristóbal de Mena, capitão com
experiência em guerra contra os índios, as famosas
rancherías
na Nicarágua, se
juntando a Pizarro em 1531 (PORRAS BARRENECHEA, 1986, p. 85-94; PEASE, 2016,
p. 1437-1441). Mena participou da captura do Inca em Cajamarca, mas não da sua
execução em 26 de julho de 1533, já que, devido a um crime, ele seria enviado como
degredado
ao Panamá, para logo depois voltar para a Espanha. Mesmo estando
presente no momento da captura, Mena se mostraria “econômico” em seu relato:
E um frade da ordem de Santo Domingo, com uma cruz na mão
querendo-lhe dizer as coisas de Deus, foi lhe falar que os cristãos eram
seus amigos, e que o senhor Governador lhe queria muito e que ele poderia
entrar em sua tenda para ver-lhe. O Cacique respondeu que não iria mais
adiante até que os cristãos lhe devolvessem tudo o que lhe tinham tomado
da sua terra, e que depois faria o que lhe desse na vontade. O frade deixou
aquela conversa, com o livro que trazia nas os falando sobre as coisas
de Deus; o outro não quis escutar, mas lhe pediu o livro; o frade lhe deu,
pensando que o queria beijar, porém, pegou e jogou-o sobre sua gente. E
o moço que era o “língua”, que estava falando aquelas coisas, foi
correndo, pegou o livro e o devolveu ao padre, que se voltou dando vozes:
“Saiam, saiam cristãos e venham contra estes cães inimigos, que não
querem as coisas de Deus, aquele cacique jogou na terra o livro de nossa
Santa Lei”. (MENA, 1987, p. 102-103, tradução nossa).
6
5
Do total de 168 homens, a partir da análise de documentos e das assinaturas, James Lockhart
concluiu que 51 homens sabiam ler e escrever, enquanto o resto tinham evidentes dificuldades para
escrever, para assinar documentos ou eram totalmente iletrados (LOCKHART, 1972, p. 35).
6
[No original] “Y un fraile de la orden de Santo Domingo, con una cruz en la mano queriéndole decir
las cosas de Dios, le fue a hablar, y le dijo que los cristianos eran sus amigos, y que el señor
Gobernador le quería mucho, y que entrase en su posada a verle. El Cacique respondió que él no
pasaría más adelante hasta que le volviesen los cristianos todo lo que le habían tomado en toda la
tierra, y que despues él haría todo lo que le viniese en voluntad. Dejando el fraile aquellas pláticas,
con un libro que traía en las manos le empezó a decir las cosas de Dios que le convenían, pero él no
las quiso tomar, y pidiendo el libro, el padre se lo dio, pensando que lo quería besar, y él lo tomó y lo
echó encima de su gente. Y el mochacho que era la lengua, que allí estaba diciéndole aquellas cosas,
fue corriendo luego, y tomó el libro y diolo al padre; y el padre se volvió luego dando voces, diciendo:
«Salid, salid cristianos y venid a estos enemigos perros, que no quieren las cosas de Dios, que me ha
echado aquel cacique en el suelo el libro de nuestra santa ley»”. (MENA, 1987, p. 102-103).
Em 1534, na cidade de Sevilha, seria publicada outra crônica, cujo tulo era
Verdadera relación de la conquista del Perú y provincia del Cuzco, llamada la Nueva
Castilla
por Francisco de Xerez. A
Verdadera relación
de Xerez foi, em parte, a
resposta ao texto publicado por Mena, versão anônima e não oficial, motivo pelo qual
Xerez destacava seu caráter de
verdadera
(BRAVO, 1985; PEASE, 2016, p. 2005-2011)
A posição como secretário alcançada por Xerez respondia não apenas a sua
habilidade na escrita, mas sobre tudo a sua lealdade a Pizarro. Tendo participado das
duas primeiras viagens exploratórias, havia conquistado o cargo de secretário, sendo
responsável pela produção de documentos que registravam informações
fundamentais para serem apresentadas à Coroa, como eram as atas de fundação de
cabildos
ou o levantamento das peças de ouro e prata fundidas. Junto a essas
responsabilidades, também era da sua alçada o registro dos acontecimentos da
campanha realizada contra os indígenas, motivo pelo qual poderia ser considerado
como o “cronista oficial” da expedição. Sua participação ativa durante toda a
expedição até o momento da captura de Atahualpa lhe proporcionou à sua
Verdadera
relación
um elemento de vivacidade na descrição dos eventos narrados. A descrição
de Xerez da captura é caracterizada, também, por ser “minuciosa” e “objetiva” nas
informações que traz:
O Governador, vendo isto, perguntou a frei Vicente se ele queria falar com
Atahualpa com um “língua”; ele falou que sim. Foi com uma cruz na mão e
com a Bíblia na outra, entrou e passou pela gente até onde Atahualpa
estava, e diz através do “língua”: “Eu sou sacerdote de Deus, ensino para
os cristãos as coisas de Deus, assim como venho a ensinar a vocês. O que
ensino é o que Deus falou e que está neste livro. Por isso, da parte de Deus
e dos cristãos suplico que seja seu amigo, porque assim o quer Deus e terá
proveito disso; fale com o Governador, que ele está esperando”.
Atahualpa, então, diz que lhe desse o livro para -lo e frei Vicente lhe deu
fechado; e, não conseguindo abri-lo, o religioso estendeu o braço para
fazê-lo, mas Atahualpa, com grande desdém, lhe deu um golpe no braço,
não querendo ajuda, teimando em abri-lo. Ao abri-lo, não se maravilhou
com as letras nem com o papel como outros índios, o jogou a cinco ou seis
passos de si. E, às palavras que o religioso tinha dito, através do “língua”,
lhe respondeu com muita soberba dizendo: “Bem sei o que vocês fizeram
pelo caminho, como trataram meus caciques, pegando a roupa dos
depósitos”. O religioso respondeu: “Os cristãos não fizeram nada; alguns
índios trouxeram roupa sem que eles soubessem; e mandaram devolvê-
las”. Atahualpa falou: “Não partirei daqui até que devolvam todas as
coisas”. O religioso voltou, então, com esta resposta ao Governador.
(XEREZ, 1985, p. 111, tradução nossa).
7
7
[No original] El Gobernador, que esto vio, dijo al padre frey Vicente que si quería ir a hablar a
Atabaliba con un faraute; él dijo que sí, y fue con una cruz en la mano y con la Biblia en la otra, y entró
por entre la gente hasta donde Atabaliba estaba, y le dijo por el faraute: «Yo soy sacerdote de Dios, y
enseño a los christianos las cosas de Dios, y asimesmo vengo a enseñar a vosotros. Lo que yo enseño
es lo que Dios nos habló, que está en este libro. Y por tanto, de parte de Dios y de los christianos te
Tanto na narrativa histórica de Mena quanto na de Xerez sobre a captura do
Inca, aparecem bem constituídos elementos principais. É detalhado que a missão
outorgada a frei Vicente de Valverde consistia em encontrar-se com o Inca, em
companhia de um
lengua
ou tradutor chamado Felipillo e que o Frei leria o
requerimiento
para o Inca e lhe apresentaria um
breviario
como sendo a palavra de
Deus”. Descreve as tentativas malsucedidas do Inca de abrir o livro e que depois de
abri-lo, ele não ficou “maravilhado” pelas páginas e suas letras (SEED, 1991). Depois,
narraria os impropérios e acusações de Atahualpa contra os espanhóis por terem
roubado e saqueado os pertences reais.
Havendo fixado os passos da trama da captura, os cronistas que
testemunharam os acontecimentos de Cajamarca reforçaram ainda mais o papel do
“breviário” e da incompreensão de Atahualpa. O capitão Diego de Trujillo escreveria
suas memórias sobre os acontecimentos em 1571 e relataria isso através de um
diálogo improvável (PORRAS BARRENECHEA, 1986, p. 146-152; REGALADO, 2016, p.
1868-1872):
E falando com ele palavras do Santo Evangelho, Atahualpa lhe perguntou:
Quem diz isso? O religioso respondeu: Deus o diz. E Atahualpa
perguntou: Como Deus diz? E frei Vicente falou: Podes vê-las aqui
escritas. E então lhe mostrou um breviário aberto e Atahualpa o tomou e
o jogou depois que o viu, como a trinta passos daí, dizendo: Que não fuja
ninguém! (TRUJILLO, 1985, p. 202, tradução nossa).
8
Miguel de Estete,
veedor
de Pizarro e autor de um importante relato sobre a
expedição de Hernando Pizarro ao templo de Pachacámac, o qual foi incluído por
Francisco de Xerez na sua
Verdadera relación
, escreveu por volta de 1540 sua
crônica
Noticias del Perú
, na qual também relatava o momento da captura de
ruego que seas su amigo, porque así lo quiere Dios; y venirte ha bien dello; y ve a hablar al Gobernador,
que te está esperando». Atabaliba dijo que le diese el libro para verle y él se lo dio cerrado; y no
acertando Atabaliba a abrirle, el religioso estendió el brazo para lo abrir, y Atabaliba con gran desdén
le dio un golpe en el brazo, no queriendo que lo abriese; y porfiando él mesmo a abrirlo, lo abrió; y no
maravillándose de las letras ni del papel como otros indios, lo arrojó cinco o seis pasos de sí. E a las
palabras que el religioso había dicho por el faraute respondió con mucha soberbia diciendo: «Bien sé
lo que habéis hecho por ese camino, cómo habéis tratado a mis caciques y tomado la ropa de los
bohíos». El religioso respondió: «Los christianos no han hecho esto; que unos indios trujeron ropa sin
que él lo supiese; y él la mandó volver». Atabaliba dijo: «No partiré de aquí hasta que toda me la
traigan». El religioso volvió con la respuesta al Gobernador.” (XEREZ, 1985, p. 111).
8
[No original] “Y hablando con él palabras del Santo Evangelio, le dijo Atabalipa: ¿Quién dice eso?
Y él respondió: Dios lo dice.Y Atabalipa dijo: ¿Cómo lo dice Dios? Y Frei Vicente le dijo: Veslas
aquí escritas. Y entonces le mostró un breviario abierto, y Atabalipa se lo demandó y le arrojó después
que le vio, como un tiro de herrón de allí, diciendo: —¡Ea, ea, no escape ninguno!(TRUJILLO, 1985, p.
202).
Atahualpa (PORRAS BARRENECHEA, 1986, p. 116-126; PEASE, 1995, p. 17-19;
GRAUBART, 2016, p. 1101-1107):
Voltando a dizer-lhe que mirasse o que Deus mandava, e que estava escrito
naquele livro que levava na mão, se admirou, a meu parecer, mais da
escritura do que daquilo que estava nele; lhe pediu o livro e o abriu e
folheou, olhando sua forma e ordem, e, depois de tê-lo visto, o jogou por
entre a gente. (ESTETE, 1987, p. 296, tradução nossa).
9
o capitão Hernando Pizarro, irmão de Francisco, que tinha se encontrado
com Atahualpa antes da sua captura (PORRAS BARRENECHEA, 1986, p. 79-84;
VARON GABAI, 2016, p. 1621-1626), repete os acontecimentos e afirma que frei
Valverde: “e como disse que era sacerdote e enviado pelo Imperador para que
ensinasse as coisas da fé, se quisessem ser cristãos. E lhe disse que aquele livro era
sobre as coisas de Deus. E Atahualpa pediu o livro e o jogou na terra […]”
(CANILLEROS, 1964, p. 53, tradução nossa).
10
Temos, assim, diversas testemunhas presenciais de um momento que se abre
a múltiplas interpretações, mas todas elas coetâneas. Todos os textosm a mesma
estrutura de narração de eventos permitindo agrupar suas informações. Isso
possibilita transitar para um outro aspecto das narrações. Patricia Seed sinaliza que
o “encontro” de Cajamarca pode ser visto como um exemplo em que a narrativa dos
acontecimentos procura refletir a “superioridade” cultural de uma sociedade letrada
sobre uma sociedade iletrada. Essa sociedade letrada, dominante e colonizadora,
possui os instrumentos necessários para fixar uma narrativa histórica que pudesse
ser aceita pelos próprios núcleos de poder e que servisse de padrão para todas as
narrativas posteriores, constituindo-se com o tempo numa tradição historiográfica.
Dentro dos elementos que constituem a tradição hispânica, no período colonial
inicial, se encontra aquilo que Seed denomina de “realismo histórico”. Este realismo
se apresenta como sendo um discurso neutro, objetivo e veraz (SEED, 1991).
Esse conjunto narrativo é propício a uma leitura objetiva”, lineal, sem
contradições e incongruências. Os elementos estranhos não surgem acompanhados
das lamentações dos cronistas espanhóis, porque eles se inseriam dentro de uma
tradição consolidada a partir do exercício da escrita, a qual significava
9
[No original] Tornándole a decir que mirase lo que Dios mandaba, lo cual estaba en aquel libro, que
llevaba en la mano, escripto, admirándose, a mi parecer, más de la escriptura que de lo escripto en
ella, le pidió el libro y le abrió y hojeó, mirando el molde y la orden dél, y después de visto, le arrojó
por entre la gente”. (ESTETE, 1987, p. 296).
10
[No original] “E díjole mo era sacerdote e que era enviado por el Emperador para que les enseñase
las cosas de la fe, si quisiesen ser cristianos. E díjole que aquel libro era de las cosas de Dios. Y el
Atabaliba pidió el libro e arrojóle en el suelo […]” (CANILLEROS, 1964, p. 53).
fundamentalmente um exercício de poder e hegemonia. Essa verdade
inquestionável”, evidente na produção de diversos tipos de documentos escritos, é a
que analisa Patricia Seed e a que ela denomina como realismo histórico” (SEED,
1991). Os cronistas mencionados e seus textos constituem um primeiro momento da
tradição hispânica dentro da historiografia peruana do período colonial inicial. A
importância do eu vi” confere uma objetividade esmagadora à própria produção dos
textos historiográficos. Escrever a história dos primeiros anos da conquista, relatar
a própria captura do Inca, constitui um exercício de poder e de perpetuação de uma
narrativa que impõe uma verdade única.
11
Um segundo grupo de cronistas corresponde a um período de consolidação
dessa tradição e se daria duas décadas depois. São cronistas que estiveram no Peru,
mas chegaram anos depois e não participaram dos primeiros anos da conquista e,
portanto, não estiveram no momento da sua captura. Destaco Pedro Cieza de León
e Agustín de Zárate e, também, dentro desse momento, é importante mencionar
cronistas que não estiveram no Peru, mas que, a partir de relatos obtidos sobre os
acontecimentos da captura do Inca e da conquista, escreveram suas crônicas. É o
caso de Francisco López de Gómara. Esses autores construíram suas narrativas a
partir da recopilação de depoimentos orais e de documentos produzidos pelas
autoridades coloniais, como cartas e
relaciones
. A aparente debilidade do “eu ouvi”
é reforçada no exercício da escrita histórica através da seleção e verificação dos
depoimentos, assim como com a utilização de documentos (LOZANO, 1994, p. 15-39).
O tesoureiro Agustín de Zárate chegaria nas terras peruanas na expedição
que traria o desafortunado primeiro vice-rei do Peru, Blasco Núñez de Vela, em junho
1544; e com ele a incumbência de impor as
Leyes Nuevas
12
que levariam à explosão
da grande rebelião de Gonzalo Pizarro. Desta forma, se veria envolto nas disputas
entre o bando rebelde e os partidários da Coroa, motivo pelo qual permaneceria
no Peru até julho de 1545, chegando na Espanha em julho de 1546. na Espanha,
11
A
Verdadera relación
de Francisco de Xerez se constitui numa “verdade oficial” frente ao desafio de
duas narrativas coetâneas. Primeiro, frente à crônica de Cristóbal de Mena que, em suas entrelinhas,
expressa seu desgosto frente às decisões de Francisco Pizarro em relação ao reparto do tesouro de
Atahualpa. Segundo, frente à crônica de Pedro Sancho de la Hoz, que sendo secretário de Pizarro,
seria também testemunha contra o conquistador em processos relacionados ao outorgamento de
mercês de índios. A crônica de Sancho, terminada em 1534, foi conhecida na tradução ao italiano
feita em 1556, que o original, que demorou em ser publicado devido a impedimentos pessoais e
políticos, se perdeu definitivamente num incêndio em 1557.
12
As
Leyes Nuevas
de 1542 foram a resposta da Coroa aos maus-tratos dos indígenas por parte dos
colonizadores, em que se procurou regulamentar o sistema de encomenda. Suas disposições proibiam
a escravização dos nativos e previam a extinção do sistema, proibindo-se que pudesse ser outorgada
à mercê em herança. Devido à forte oposição dos encomenderos, o governo decidiu em 1545 anular
algumas das disposições mais importantes das
Leyes
.
enfrentaria acusações que o levariam duas vezes à prisão por roubo do erário real e
por ser partidário dos rebeldes.
13
Absolvido das acusações e livre da prisão, Zárate
dedicou-se a organizar seu manuscrito.
14
Publicada na Antuérpia em 1555, sua
Historia del descubrimiento y conquista
del Perú
, descreve o momento da captura seguindo o “roteiro” que tinha sido
consagrado pelos primeiros cronistas. Zárate possui mais informações, adicionando
nomes de deidades indígenas “Que ele não sabia nada daquilo nem que ninguém
criasse nada, somente o sol, a quem eles tinham por Deus, e à terra por mãe, e a suas
guacas, e que Pachacama tinha criado tudo o que existia” (ZÁRATE, 1995, p. 75,
tradução nossa).
15
As observações transmitidas abriam um espaço para contradizer
aspectos registrados da tradição hispânica em que se inseria a
Historia
de Zárate.
Como se pode ver no seguinte fragmento:
E perguntou ao bispo como ele sabia se era verdade tudo o que tinha dito
e como o explicaria. O bispo lhe respondeu que aquele livro estava escrito,
que era a escritura de Deus. Atahualpa lhe pediu o breviário ou Bíblia que
tinha na mão. E tendo-o nas mãos, o abriu, passando as folhas de um lado
a outro, falou que aquele livro não lhe dizia nada nem lhe falava nenhuma
palavra; e o jogou no chão (ZÁRATE, 1995, p. 75, tradução nossa).
16
A concatenação dos acontecimentos segue o padrão estabelecido, mas
Zárate desliza uma observação importante e que não tinha sido registrada por seus
antecessores. A aproximação de Atahualpa não era nem poderia ter sido um ato de
leitura. Não se pode deixar de pensar que estamos frente a uma sociedade em que
os sistemas de registros eram diferentes. Ante a declarada sacralidade do objeto que
o religioso portava, a aproximação do Inca foi condicente com o objeto, anunciado
13
Teodoro Hampe Martínez (1991) destaca que durante o tempo que esteve na prisão, Zárate procurou
organizar tanto os manuscritos que tinha elaborado desde sua volta do Peru, assim como testemunhos
que tinha obtido de conquistadores. Ele também destaca que, nesse período, estabeleceu importantes
contatos com livreiros e impressores da cidade de Medina del Campo. Depois de inocentado das
acusações, se reintegraria em suas funções de tesoureiro, recebendo a incumbência, em 1554, de levar
metais preciosos a Flandres para cunhar moedas. Aproveitando sua passagem pela Antuérpia,
publicaria sua
Historia
em 1555 (HAMPE MARTINEZ, 1991, p. 146-151).
14
Franklin Pease chama a atenção às coincidências na publicação da
Historia
de Zárate e a
Historia
general
de Francisco López de Gómara. A presença dos dois cronistas nas mesmas cidades entre 1546
e 1555 e de terem tido os contatos com editores em Medina del Campo e Antuérpia, fazem com que
Pease arrisque a hipótese que entre os dois cronistas ou entre os editores, existiu algum tipo de
intercâmbio de informação, como o relacionado à captura do Inca (PEASE, 1995, p. 171).
15
[No original] que él no sabía nada de aquello ni que nadie criasse nada sino el sol. A quien ellos
tenían por Dios, y a la tierra por madre, y a sus guacas, y que Pachacama lo auía criado todo lo que
allí auía” (ZÁRATE, 1995, p. 75).
16
[No original] “Y preguntó al Obispo que cómo sabía él ser verdad todo lo que auía dicho o por dónde
se lo daría a entender. El Obispo le dixo que aquel libro estaua escripto, que era escriptura de Dios. Y
Atabaliba le pidió el breuiario o Biblia que tenía en la mano. Y como se lo dio, lo abrió, boluiendo las
hojas a vn cabo y a otro, y dixo que aquel libro no le dezía a él nada ni le hablaua palabra y le arro
en el campo” (ZÁRATE, 1995, p. 75).
como sendo portador da palavra de Deus”. Portanto, na medida em que o Inca não
conseguiu estabelecer uma comunicação com o objeto sagrado e o conseguiu
escutá-lo, ele o rejeitou porque não era para ele um deus.
Em 1552, sem ter nunca pisado o Novo Mundo, Francisco López de Gómara
escreveu
La Historia de las Indias y conquista de México
, ampliada em uma nova
edição em 1554, com informações sobre a conquista do Peru e recebendo o título de
La historia general de las Indias, y todo lo acaescido en ellas dende que se ganaron
hasta agora y la conquista de México, y de la Nueva España
. Da análise da
Historia
general
, Sabine MacCormack destaca a observação que López de Gómara sugeria
que a raiva de Atahualpa se devia à expectativa frustrada por querer escutar o livro
17
:
Como o frade sabia que o Deus dos cristãos tinha criado o mundo? Frei
Vicente respondeu que aquele livro o dizia e lhe deu o breviário. Atahualpa
o abriu, olhou, folheou e, dizendo que a ele não dizia nada daquilo, o jogou
na terra. (LÓPEZ DE GÓMARA, 1979, p. 171, tradução nossa).
18
Mesmo com as diferenças de ênfase entre Zárate e López de Gómara, o fato
concreto era que os dois autores tinham destacado a expectativa frustrada de
Atahualpa. O Inca esperava por uma possível comunicação oral com o livro” que era
visto pelos estranhos como sendo Deus” ou a palavra de Deus”. A tradição
historiográfica hispânica tendia a dar espaço de comunicação somente à palavra que
tivesse como suporte o documento. Para os espanhóis, a expectativa do Inca de
escutar a “palavra de Deus” era um sinal da barbárie e irracionalidade dos indígenas,
motivo de ironia e sinal de sua inferioridade.
Considerado como o
príncipe de los cronistas
, Pedro de Cieza de León
também realizou observações importantes sobre a captura do Inca na terceira parte
da sua
Crónica del Perú
, conhecida como
Descubrimiento y conquista del Perú
, livro
concluído por volta de 1553, mas que não foi publicado em vida (PORRAS
BARRENECHEA, 1986, p. 281-305; PEASE, 1995, p. 191-226; MILLONES F., 2001).
Enquanto que, nos dois primeiros livros da sua
Crónica
, Cieza se serviu de
depoimentos indígenas com a finalidade de informar-se sobre a história dos incas e
17
Sabine MacCormack destaca que a descrição do relato de López de Gómara seria produto de
“mezcla de realidad y fantasía también caracteriza su interpretación de la historia de Atahualpa y el
libro” (1988, p. 698), ao fazer de López de Gómara o inspirador do texto de Zárate na medida que o
primeiro publicou seu livro em 1552. Por isso ganha destaque as observações realizadas por Hampe
Martínez (1991) e Pease (1995) que permitem apontar que as anotações de Zárate serviram para as
informações escritas posteriormente por López de Gómara sobre os acontecimentos de Cajamarca.
18
[No original] “¿Cómo sabia el fraile que su Dios de los cristianos criara el mundo? Frei Vicente
respondió que lo decía aquel libro, y dióle su breviario. Atabaliba lo abrió, miró, hojeó y diciendo que
a él no le decía nada de aquello, lo arrojó en el suelo”. (LÓPEZ DE GÓMARA, 1979, p. 171).
suas crenças e religião, nesse terceiro livro ele se encontra com os sobreviventes
espanhóis participantes nas primeiras campanhas e com os que chegaram depois,
assim como teve acesso às informações oficiais através da ajuda do governador
Pedro de la Gasca. Mesmo sendo reconhecido como um historiador” cabal, realizava
uma reflexão sobre a importância da escrita dos acontecimentos relativos às
primeiras décadas da presença espanhola e uma análise crítica e comparativa da
documentação e das informações orais que ia obtendo, suas informações sobre o
momento da captura deixam transparecer uma fina ironia em relação à possibilidade
de um entendimento das palavras de Valverde referentes ao significado concreto do
breviário”. Frei Valverde se apresentou ante o Inca como “sacerdote de Deus” e
pregador de sua doutrina e:
Atahualpa o escutava com zombaria. Entendeu bem com o intérprete tudo
e pediu a frei Vicente o breviário. Ele o entregou em suas mãos com algum
receio por encontrar-se entre essa gente. Atahualpa o olhou atentamente
e o folheou várias vezes. Sem entender para que serviam tantas folhas,
jogou-o para o alto sem saber o que era, porque para entender do que se
tratava, tinham de dizê-lo de outra maneira. (CIEZA, 1987, p. 132, tradução
nossa).
19
A referência a Agustín de Zárate e a Pedro de Cieza de León, como cronistas
da década de 1550 no Peru e pertencentes à tradição hispânica, pareceria incompleta
se não se mencionasse a figura de Juan Diez de Betanzos. É com Betanzos um
espanhol que chegou ao Peru depois da conquista e que aprendeu o quéchua nos
claustros dominicanos e em suas relações com os membros da nobreza cuzquenha
que percebemos um conhecimento aprofundado da história e das “crenças e
costumes” dos indígenas, em parte, adquiridos com base em sua função de tradutor
do quéchua e de contínuas relações com setores indígenas.
A tradição indígena e as outras narrativas
Frank Salomon observou que as crônicas indígenas não poderiam ser
identificadas como aquelas sendo escritas por indígenas. Estabelecer a identidade
das “crônicas índias” ou indígenas a partir da etnia do cronista procura
principalmente sujeitá-las a normas e regras de uma tradição historiográfica
estranha, mesmo que em seu desenvolvimento colonial elas tenham sido obrigadas a
19
[No original] Atabalipa oyalo como cosa de bulra [sic]. Entendió bien con el yntrépete todo ello;
pidió a frei Vicente el breviario. Púsoselo en las manos, con algún reçelo que cobró de verse entre tal
jente. Atabalipa lo miró e remiró, hojeólo una vez y otra. Pareçiéndole mal tantas hojas, lo arronjó en
alto sin saber lo que hera, porque para que lo entendiera avíanselo de decir de otra manera”. (CIEZA,
1987, p. 132).
adaptar-se e a utilizar mecanismos narrativos e temáticos que as aproximassem da
tradição hispânica. O objetivo destas crônicas era o de construir uma narrativa sobre
a conquista que, além de ser inteligível em termos da tradição hispânica, também
pudesse ser depositária de uma cosmovisão indígena tradicionalmente registrada em
cantares
ou nos seus testemunhos orais (SALOMON, 1984).
Essa observação é a que nos permite analisar a obra de Juan de Betanzos, não
como parte da tradição hispânica, mas, também, compartilhando elementos e
caraterísticas da tradição indígena. O espaço oferecido para se expressarem outras
narrativas, permite pensar que sua obra possui elementos da tradição historiográfica
indígena.
20
Sua chegada ao Peru pouco tempo depois da execução de Atahualpa em 26
de julho de 1533 com apenas quatorze anos, sua proximidade com o clã dos Pizarro
servindo como
paje
ou criado, seu casamento com Angelina Yupanqui, que com o
nome de Cuxirimay Ocllo tinha sido esposa principal de Atahualpa, e logo concubina
de Francisco Pizarro, sua proximidade com o bispo de Cuzco, frei Vicente de
Valverde e com outros dominicanos, explicariam que adquirisse destreza no uso do
quéchua. Ele participaria na elaboração de uma doutrina cristã e de dois
vocabulários, documentos que ainda não foram encontrados, assim como na
elaboração das
Informaciones de los Quipucamayos
(1543), a pedido do licenciado
Vaca de Castro, governador do Peru. Como tradutor, serviria pessoalmente ao
arcebispo Jerónimo de Loayza. Em 1551 receberia o mandato do novo vice-rei,
Antônio de Mendoza, para preparar uma história sobre os incas. É nessa
circunstância que ele usaria suas habilidades como tradutor e suas relações
familiares e de serviço para ter acesso aos membros restantes da nobreza inca
estabelecida no Cuzco a fim de obter informações sobre a história dos incas e a
conquista espanhola (PORRAS BARRENECHEA, 1986, p. 309-314; PEASE, 1995, p.
227-243; DOMINGUEZ, 2015).
Um elemento importante é como se apresenta o próprio cronista. Na
dedicatória da
Suma y Narración
ao vice-rei Antonio de Mendoza, ao colocar o título
da sua obra, Betanzos afirma: “Esta suma contêm a vida e os fatos passados dos
incas
capac cuna
, novamente traduzidos e recopilados da língua índia, dos nativos
20
Ainda que utilizada por outros cronistas de forma parcial no século XVII, a obra de Betanzos
seria conhecida de forma ainda incompleta em 1880. Esse longo período de silêncio da sua obra
reforça a ideia de uma intencionalidade de apagar e silenciar as
vozes índias
dentro da constituição
de um cânone hispânico colonial.
do Peru, por Juan de Betanzos.” (BETANZOS, 2015, p. 119, tradução nossa).
21
Mais
adiante, ao explicar sobre o estilo da sua obra, guardando a maneira como os
indígenas transmitiam suas informações sobre o passado, afirma que “[…] para ser
verdadeiro e fiel tradutor tenho que guardar a maneira e a ordem de falar destes
índios […] porque não a traduzi e recopilei de um só, mas fui informado por muitos e
dos mais antigos e com muito crédito que encontrei entre eles.” (BETANZOS, 2015,
p. 120, tradução nossa).
22
Betanzos, antes de apresentar-se como um cronista ou
historiador, afirma que sua tarefa ao escrever seu livro sobre a história dos incas foi
a de um
tradutor
. Mas não é tradutor, que a própria tarefa de organizar os
relatos
de muchos
indicava o trabalho de seleção e organização de fontes e relatos
que incluiria em sua obra.
Betanzos por sua história pessoal, se encontrava num espaço que conectava
duas línguas, duas culturas e duas visões de mundo diferentes. Mas que também ele
pertence por sua pertença étnica e por sua história ao mundo hispânico. Como
espanhol e desempenhando a tarefa de tradutor ao serviço da Coroa, o posicionaram
de forma privilegiada para produzir um texto que narrava a história dos incas
governantes para um blico espanhol, com a particularidade de incorporar
elementos da visão de mundo indígena. Sua narrativa se caracteriza por selecionar e
utilizar elementos de uma visão de mundo indígena de setores da nobreza inca
cuzquenha dentro de sistemas de registros e suportes ocidentais (a escrita
alfabética e o livro), e incorporando de forma controlada, alguns elementos de um
conjunto maior de vozes” indígenas que procuravam transmitir sua própria visão
da história e dos acontecimentos da conquista.
23
Um exemplo do controle que
Betanzos realizava sobre seu manuscrito pode ser encontrado neste fragmento:
“Muitas outras coisas poderiam ser escritas aqui sobre Viracocha, segundo o que
21
[No original] En la qual suma se contienen las vidas y hechos de los
yngas capac cuna
pasados,
nuevamente traduzido e recupilado de lengua yndia de los naturales del Pirú por Juan de Betanços.”
(BETANZOS, 2015, p. 119).
22
[No original] “[…] para ser verdadeiro y fiel traduçidor tengo de guardar la manera y horden del
hablar destos naturales. […] porque no la traduje y recopile siendo ynformado de uno solo sino de
muchos y de los más antiguos y de crédito que hallé entre estos naturales.” (BETANZOS, 2015, p. 120).
23
Mazzotti ao estudar os
Comentarios Reales
de Garcilaso de la Vega, afirma que dentro da tradição
historiográfica indígena existia um tipo de discurso ao qual denomina de
cortesano
, que tinha um
caráter eminentemente oral e com a finalidade de constituir uma narrativa que
cantase
as histórias
de seus ancestrais e de suas
panacas
. Estas composições eram cantadas e recitadas dentro de um
contexto ritual e sagrado (MAZZOTTI, 1996, p. 32). Posteriormente, o autor classificaria a obra de
Betanzos como um subgênero historiográfico, o qual denomina de
escritura coral
, consistindo num
conjunto de narrativas historiográficas que inscritas dentro dos gêneros historiográficos tradicionais
hegemônicos, como seria o caso da tradição hispânica, “violentariam” as próprias fronteiras do
gênero devido a seu substrato, estrutura e conteúdo oral (MAZZOTTI, 2018, p. 108-109).
estes índios me informaram, mas, para evitar prolixidade, grandes idolatrias e
bestialidades, não as registrei […]” (BETANZOS, 2015, p. 127, tradução nossa).
24
Betanzos também relata a história da captura do inca Atahualpa em
Cajamarca,
estando [Atahualpa], venho frei Vicente de Valverde, trouxe consigo
um intérprete e tenho bem entendido que ele não soube declará-lo ao Inca,
porque os senhores que se encontravam, junto às suas liteiras, dizem
que quando o padre pegou o livro e o abriu, o “língua” disse ao Inca que
aquele padre era filho do sol, que tinha sido enviado para lhe dizer que ele
não lutasse e que fosse obediente ao capitão, que também era filho do sol
e que tudo isso estava naquela pintura, que eles chamavam assim ao livro.
E como ele falou pintura, o Inca pediu o livro e o pegou de suas mãos, o
abriu e viu apenas as linhas com letras, e falou: “Isto fala e diz que és filho
do sol? Eu também sou filho do sol!”. E os índios, quando escutaram,
responderam juntos em voz alta: “Assim é
Sapa Inca
!”. E o Inca voltou a
dizer em voz alta “que ele também vinha de onde o sol estava”. E tendo
dito isto jogou o livro longe e sua gente respondeu outra vez: “Assim é,
nosso senhor!”. (BETANZOS, 2015, p. 401, tradução nossa).
25
No relato de Betanzos, sua palavra se apoia no coro de vozes dos senhores
principais presentes no evento na praça de Cajamarca e que haviam afirmado que o
Inca não compreendera as palavras de Valverde porque foram traduzidas
incorretamente. Assim sendo, os testemunhos indígenas arrolados por Betanzos
deixam espaço à ideia da existência de outras narrativas existentes sobre os
acontecimentos de Cajamarca.
A tradição hispânica tinha destacado a centralidade do livro, aponta para
diversas formas de compreender essa importância que lhe tinha sido outorgada
(MAC CORMACK, 1988). Da incompreensão surge um momento no qual o Inca se
mostra como um sujeito à procura de elementos que permitam a compreensão e é
quando o tradutor estabelece uma relação entre livro” e pintura”. Lembrando
novamente a Betanzos, “[…] que tudo isso estava naquela pintura, que eles
chamavam assim ao livro. E como ele falou pintura, o Inca pediu o livro […]” (2015, p.
24
[No original] “Otras muchas cosas uviéramos aqui escrito deste
Viracocha
según que estos yndios
me na ynformado del, sino por evitar prolixidade y grandes ydolatrías y bestialidades no las puse […]”
(BETANZOS, 2015, p. 127).
25
[No original] “Y estando en esto vino a él frai Viçente de Balberde y trajo consigo un yntérprete y
lo que le dijo el frai Viçente al yndio bien tengo yo que el yntérprete no se lo supo declarar al Ynga
porque lo que dizen los señores que allí se hallaron y pegados a las andas del Ynga que lo que la lengua
dijo al Ynga fue que el padre sacó un libro y abriolo y la lengua dijo que aquel padre hera hijo del sol
y que le enbiava el sol a él a le dezir que no peleasse y que le diese obediençia al capitán que tanbién
hera hijo del sol y que allí estava en aquel libro aquello y que ansí lo dezía aquella pintura por el libro.
E como dijo pintura, pidió el Ynga el libro y tomolo en sus manos, abriolo y como él biese los ringlones
de la letra, dijo: ¿Esto habla y esto dize que heres hijo del sol?; yo soy tanbién hijo del sol; respondieron
a esto sus yndios y dijeron en alta boz todos juntos: Ansí es Çapa Ynga. Y tornó a dezir el Ynga en
alta boz que tanbién él benía de donde el sol estava. Y diziendo esto arronjó [sic] el libro por ay y
respondiole otra vez toda su gente: Ansí es, solo señor.” (BETANZOS, 2015, p. 401).
401, tradução nossa).
26
Nos dicionários da época,
pintura
é traduzida como
quillca
,
mas tendo uma conotação sagrada.
27
Portanto, a ação que Atahualpa realiza de tomar
o livro em suas mãos tinha o objetivo de replicar a mesma relação que como
hijo del
sol
, ele estabelecia com os objetos sagrados indígenas, como as
huacas
ou com as
quillcas
. As
huacas
falavam para o Inca que ele era filho de Deus, mas aproximando
o “livro” a seus ouvidos, Atahualpa não conseguiu escutar absolutamente nada. D
sua frustração e o ato de jogar as
Escrituras
no chão como sinal de rejeição e do
descobrimento da “mentira” dos cristãos (CURATOLA, 2016).
Filho de Manco Inca (o qual encabeçou a grande rebelião inca contra os
espanhóis em 1536 e, depois, frente a sua derrota, se refugiou e estabeleceu o estado
inca em Vilcabamba), Titu Cusi Yupanqui formava parte de um grupo da nobreza
cuzquenha que se negara, a princípio, sujeitar-se ao domínio colonial espanhol, e que
lutara por reconquistar territórios e a reconstituir as antigas alianças com outros
grupos étnicos (HEMMING, 2000). Entronizado como novo inca, Titu Cusi assumiria
o governo de Vilcabamba em 1561 para, logo depois, iniciar negociações no período
do governador Lope García de Castro, com a finalidade de abandonar o território. O
documento em questão, conhecido como
Instrucción al licenciado Lope García de
Castro
, foi ditado em quíchua e contou com a colaboração do agostiniano frei Marcos
García e, na tradução para o castelhano, do escrivão mestiço Martín de Pando
(REGALADO, 1997). Segundo Franklin Pease, a
Instrucción
esescrita como sendo
uma
probanza de servicios
e uma reclamação de agravos (PEASE, 1995, p. 35) e tinha
como um de seus objetivos estabelecer uma relação de paridade com o rei espanhol
Filipe II, tendo como objetivo negociar os acordos para paz.
Diferentemente das narrativas de tradição hispânica sobre a captura do Inca
em Cajamarca, Titu Cusi deslocaria o momento da incompreensão entre espanhóis
e indígenas para o que aconteceu um dia antes da captura:
Uns yungas trouxeram dois viracochas ao meu tio Atahualpa, que se
encontrava em Cajamarca, o qual os recebeu muito bem; e, dando de beber
a um deles com um copo de ouro da bebida que tomávamos, o espanhol,
recebendo da sua mão a derramou, fato pelo qual meu tio se enfadou
muito; e, depois disso, os dois espanhóis lhe mostraram uma carta, livro
26
[No original] “[…] que ansí lo dezía aquella pintura por el libro. E como dijo pintura, pidió el Ynga el
libro […]” (BETANZOS, 2015, p. 401).
27
No primeiro dicionário escrito em quíchua, el
Lexicon o Vocabulario de la lengua general del Perú
(1560), frei Domingo de Santo Tomás registra
quillcani
como sendo
pintar
, mas adiciona o sentido de
escrever (1560, 57f, 85v, 170f). Em
Vocabulario de la lengua general de todo el Peru llamada lengua
quíchua o del Inca
(1608) do jesuíta Diego González Holguín, aparece a entrada de
quellcca
com o
significado tanto de
escrita
quanto de
suporte
, de
papel
(1608, libro 1, p. 299, libro 2, p. 193). Estas
duas definições de González Holguín nos permitem evidenciar a influência do processo de
evangelização na constituição dos sentidos e significações na
lengua general
ou quíchua.
ou não sei qual coisa, dizendo que aquela era a
quillca
de Deus e do rei; e
meu tio, como se sentiu desonrado por eles terem derramado a
chicha
, que
assim se chama nossa bebida, pegou a carta ou o que era e a jogou longe,
dizendo “se eu sei o que me dás aí? Vão embora!”; e os espanhóis voltaram
com seus companheiros, os quais iriam dar a notícia daquilo que tinham
visto e o que tinha acontecido com meu tio Atahualpa. (YUPANQUI, 1992,
p. 5-6, tradução nossa).
28
Patricia Seed tinha observado a intencionalidade do inca Yupanqui de
estabelecer um paralelismo narrativo tendo como centro o oferecimento de copos
qeros
e
aquillas
para beber a
azua
ou
chicha
, uma bebida cerimonial que se ajustava
às normas de reciprocidade dos incas (SEED, 1988, p. 13).
29
O oferecimento se
estabelecia dentro dos critérios do
tinkuy
, encontro dos contrários, e que servia para
o estabelecimento de relações de reciprocidade, as quais poderiam ser simétricas ou
assimétricas (GODENZZI, 2017). Não haver aceitado o oferecimento simbólico de
parte do Inca significava uma ofensa grave e uma transgressão da reciprocidade
digna de bárbaros e ladrões (LAMANA, 2016, p. 46). A tradição hispânica tinha
mencionado os protestos do Inca em relação aos agravos feitos contra sua
hospitalidade, na qual os espanhóis tinham
robado
roupas e comidas dos depósitos
estatais, assim como
ultrajado
as
acllas
, as mulheres escolhidas.
Na
Instrucción
de Titu Cusi Yupanqui se produz um processo pelo qual o
narrador afirma que se os espanhóis não conseguiram entender o significado do
oferecimento do Inca, da parte do Inca ele sim conseguiu plenamente entender os
espanhóis e seu oferecimento do “livro”. Não é por acaso que o “livro” não entra no
relato do momento da captura do Inca na
Instrucción
. O “livro” é deslocado com a
finalidade de introduzir um novo elemento: o oferecimento da bebida. A relação de
reciprocidade que o Inca procurou estabelecer tinha como um dos objetos de troca
a
bebida
(SAIGNES, 1993). Esse intercâmbio de “objetos estabelecia, dentro da
cosmovisão indígena, uma intrincada rede de relações de poder e dependência. Ao
28
[No original] “Destos viracochas traxeron dos dellos unos yugan [sic: yungas?] a mi tio Ataguallpa
que a la sazon estava en Caxamarca, el qual los resçiuio muy bien; y dando de beuer al uno dellos con
un vasso de oro de la beuida que nosotros usamos, el español en rresçibiendolo de su mano lo
derramo, de lo qual se enojo mucho mi tio; y despues desto, aquellos dos españoles le mostraron al
dicho my tio una carta o libro o no se que, diziendo que aquella hera la quillca de Dios y del rrey; e mi
tio, como se sintio afrentado del derramar de la chicha, que ansy se llama nuestra beuida, tomo la
carta o lo que hera y arrojolo por ay, diziendo «¿que se yo que me dais ay? ¡anda, bete!»; y los españoles
se boluieron a sus conpañeros, los quales yrian por bentura a dar rrelaçion de lo que auian visto y les
auian pasado con mi tio Ataguallpa.” (YUPANQUI, 1992, p. 10).
29
Os
qeros
eram copos de madeira usados em brindes rituais e que serviam para estabelecer laços
de reciprocidade entre comunidades e esferas de poder, neste caso, entre o Inca e os espanhóis. As
aquillas
são o mesmo tipo de copo, mas feitos de ouro ou prata. Sobre a bebida
chicha
que se
destacar que com esse termo se designa, em grande parte da América, todo um conjunto de bebidas
alcoólicas feitas principalmente de milho germinado e mascado. Em quíchua, chama-se
azua
e em
aimará
cusa
(SAIGNES, 1993).
deslocar o “livro” da centralidade do encontro de Cajamarca, Titu Cusi afirmava a
superioridade simbólica dos indígenas frente aos espanhóis: enquanto os indígenas
sabiam da importância sagrada das
Escrituras
para os espanhóis, os cristãos não
conseguiram reconhecer em absoluto o sentido do oferecimento da
bebida
por parte
do Inca.
Titu Cusi Yupanqui reconheceu que o livro” e a escrita ocupavam uma
posição de poder dentro desse novo mundo colonial que se estava gestando. Isso
explicaria seu desejo de escrever para o governador e para o rei da Espanha com a
finalidade de explicar-lhes que foram os espanhóis os que se mostraram incapazes
de compreender o oferecimento simbólico de Atahualpa.
Conclusões
Ao questionar-se a leitura da tradição hispânica dos eventos de Cajamarca à
luz de outras narrativas presentes em Juan de Betanzos e em Titu Cusi Yupanqui,
podemos ampliar os elementos da interpretação que os indígenas realizaram sobre
os ditos eventos. Através de Betanzos, percebemos um processo de ressignificação
do “livro” associado agora a
quillca
, elemento sagrado que por suas caraterísticas
atribuídas era capaz de estabelecer uma comunicação com os homens. O livro”
apresentado pelos espanhóis como sendo a palavra de Deus”, era tido pelos
indígenas como uma
huaca
com capacidade de comunicação oracular (CURATOLA,
2016). A tentativa de comunicação se desfez no momento em que o Inca não
conseguiu comunicar-se com o livro”, ou seja, quando a
huaca
dos espanhóis não
conseguiu comunicar-se com Atahualpa. Ao dar espaço a outras narrativas,
Betanzos contribuiu no questionamento de uma verdade tida como objetiva”
constituída dentro da tradição historiográfica hispânica.
Yupanqui substitui a interpretação hispânica contida na figura do “livro” no
chão pela ofensa cometida pelos espanhóis ao rejeitarem o
brindis
oferecido pelo
Inca. Apoiando-se em narrações orais de membros da nobreza incaica, que estiveram
em Cajamarca, Yupanqui oferece uma interpretação em que ressalta a superioridade
dos indígenas em compreender o significado que o livro”
tinha para os espanhóis,
destacando sua incapacidade de compreender o
brindis
. E essa substituição se
fundamentava na compreensão por parte de Titu Cusi Yupanqui, inca legítimo e
rebelde ao mesmo tempo, do papel subversivo da escrita como o novo instrumento
de empoderamento nas mãos dos indígenas.
A tradição historiográfica hispânica da história do Peru colonial inicial
construiu um panorama histórico único, apresentando o campo de visibilidade dos
espanhóis, como seria o “livro” jogado em Cajamarca e a objetividade e veracidade
dos registros, bem como impondo uma “única leitura”
desses acontecimentos. Essa
interpretação que se apresentava como monolítica, viria a ser questionada pela obra
de Juan de Betanzos, quem evidenciou a existência de outras narrativas,
questionando, assim, a própria
“objetividade” dos eventos narrados sobre
Cajamarca. Titu Cusi Yupanqui, além de trazer para a história um registro sobre
os eventos que se inseriam dentro de uma visão de mundo andina, que de forma
sistemática e persistente procurou ser silenciada, traz o claro entendimento da
necessidade de que os indígenas também procurassem dominar os novos registros e
suportes hegemônicos trazidos pelos espanhóis.
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