GIROTTO, Breno
https://orcid.org/0000-0002-8875-4290
RESUMO: O cinema tem na história uma fonte
inesgotável para seus filmes, representando
personagens e eventos. Dentre estes eventos, um
dos que mais chamou a atenção de Hollywood foi a
Batalha do Álamo, travada em março de 1836 entre
colonos texanos e o governo do México. Com uma
produção vasta ao longo de quase um século, o
conflito serviu de inspiração para diversos
diretores, dentre eles John Wayne, sempre
lembrado por suas atuações em filmes do gênero
western
.
O Álamo
, lançado em 1960, foi sua
primeira experiência como diretor e a escolha deste
tema não foi fortuita. O mito construído em torno
deste conflito possui todos os elementos que
Wayne julgava constituírem a
América
: a luta
contra um governo tirânico e a defesa incondicional
da liberdade. A hipótese explorada em nossa
pesquisa pensa a Batalha do Álamo, um conflito
entre colonos texanos rebelados contra o governo
mexicano, como um evento fundador do Texas
independente e apenas por extensão assimilado
pelos Estados Unidos e alçado à categoria de mito
nacional na lógica da produção de uma comunidade
imagina nos moldes explorados por Benedict
Anderson e Ernest Gellner. Este processo se
evidencia no que o historiador argentino Fabio
Nigra define como “situações invariáveis”,
elementos presentes em filmes históricos para
construir um discurso identitário-nacional. O
presente artigo tem como objetivo analisar os
elementos presentes no filme
O Álamo
que servem
de base para a construção de uma identidade
nacional estadunidense e como o cinema tem papel
relevante neste processo.
PALAVRAS-CHAVE: História do Estados Unidos;
Cinema e História; Identidade Nacional; O Álamo;
John Wayne
ABSTRACT: The cinema has in history an
inexhaustible source for its films, representing
characters and events. Among these events one
that most caught the attention of Hollywood was
the Battle of the Alamo, fought in March 1836
between Texan settlers and the Mexican
government. With a vast production over almost a
century the conflict served as inspiration for
several directors among them John Wayne, always
remembered for his acting in films of the western
genre. Released in 1960
The Alamo
was his first
experience as a director and the choice on this
theme was not random. The myth built around this
conflict has all the elements that Wayne thought
constituted America: the struggle against a
tyrannical government and the unconditional
defense of liberty. The hypothesis explored in our
research considers the Battle of the Alamo a
conflict between Texan settlers rebelling against
the Mexican government as a founding event of
independent Texas and only by extension
assimilated by the United States and raised to the
category of national myth in the logic of the
production of a community imagines along the lines
explored by Benedict Anderson and Ernest Gellner.
This process is evident in what the Argentine
historian Fabio Nigra defines as "invariable
situations", elements present in historical films to
build a national identity discourse. This article aims
to analyze the elements present in the film The
Alamo that serve as a basis for the construction of
an American national identity and how cinema
plays a relevant role in this process.
KEYWORDS: American History; Film and History;
National Identity; The Alamo; John Wayne
Recebido em: 16/01/2022
Aprovado em: 26/05/2022
Mestre em História pela Unesp, Assis-SP, doutorando do Programa de Pós-Graduação da Unesp. Professor
da rede privada de ensino no estado de São Paulo. Bolsista Capes. E-mail: breno.girotto@unesp.br. Artigo
proveniente da dissertação intitulada
A Vitória dos Vencidos
: Política e identidade norte-americana no filme
O Álamo
, de John Wayne. Disponível em: http://hdl.handle.net/11449/181854
Este é um artigo de acesso livre distribuído sob licença dos termos da Creative Commons Attribution License.
Introdução
A produção cultural estadunidense faz questão de lembrar dos grandes feitos e
seus heróis. uma infinidade de produções audiovisuais que se baseiam em guerras,
batalhas ou em temáticas históricas em geral com o intuito de mobilizar a nação e difundir
o sentimento patriótico. O historiador Marcos Napolitano (2005) afirma que o cinema
descobriu a história antes da história descobrir o cinema. Isso porque os estudos sobre a
relação cinema e história são relativamente recentes, a partir dos anos 1960 e 1970 com
Marc Ferro e a terceira geração da
Escola dos Annales
. o cinema se apropria da temática
histórica desde seu início, sendo o “filme histórico” quase sinônimo para a ideia de cinema
e diversos filmes se baseiam em eventos históricos como pano de fundo para suas
narrativas e chamar a atenção do público (NAPOLITANO, 2005, p. 6).
Um dos eventos mais lembrados pelo cinema estadunidense é a Batalha do Álamo
1
,
travada entre fevereiro e março de 1836 e considerada o ponto de virada na Revolução do
Texas
2
. Se tornando um evento chave para a nacionalidade estadunidense, o mito do Álamo
adentrou o século XX como um produto cultural valioso. Livros, músicas, histórias em
quadrinhos, séries para tv e, principalmente filmes, foram produzidos baseados na batalha
e atestam sua importância para a sociedade estadunidense. Com uma quantidade de
produções que atravessa o século XX e adentra o século XXI, foram produzidos 12 filmes
que tratam diretamente da batalha de 1836 ou de seus personagens mais icônicos, como
Sam Houston, Jim Bowie e Davy Crockett. O que chama atenção, além da quantidade de
obras sobre o conflito, é sua longevidade: a primeira película a tratar do tema foi lançada
em 1911 e a mais recente é de 2004, dirigida por John Lee Hancock. Neste caminho,
percebe-se que as representações do mito do Álamo no cinema, independente do ano de
lançamento, apresentam aspectos importantes para a análise do período e temporalidade
1
A Batalha do Álamo ocorreu entre 23 de fevereiro e 6 de março de 1836. Inserida no contexto da Revolução
do Texas, um grupo de texanos se rebela contra o governo mexicano e tomam o forte Álamo, uma velha
missão abandonada nos arredores de San Antonio. Por 13 dias, por volta de 180 rebeldes resistiram aos
ataques das tropas mexicanas lideradas pelo presidente Antonio López de Santa Anna. O final do conflito é
controverso, com algumas correntes defendendo que nenhum rebelde sobreviveu ao conflito, mas estudos
recentes apontam para a captura de rebeldes pelo exército mexicano e sua posterior execução. Para mais,
conferir. CRISP, 2014; FLORES, 2002; TUCKER, 2010.
2
A Revolução do Texas foi um conflito que levou a então província mexicana do Tejas, na grafia original em
espanhol, à independência após revoltas e batalhas entre outubro de 1835 e abril de 1836. As causas que
levaram ao conflito são motivos de debate entre a historiografia. O conflito teria como motor a revogação
da Constituição Mexicana de 1824, de cunho federalista e que dava mais liberdade as províncias, e a
promulgação de uma nova em 1833, de cunho centralista, pelo recém-empossado presidente Antonio López
de Santa Anna. Dessa forma, a revolta seria pela defesa da liberdade das províncias. No entanto, alguns
autores argumentam que a defesa da constituição de 1824 pelos colonos tejanos, principalmente os de
origem estadunidense, seria pelo fato desta não proibir abertamente a escravidão no país, deixando que cada
província decidisse sobre o tema. A partir de 1827 a escravidão passou a ser proibida no México e a
Constituição de 1833 tirava a possibilidade de as províncias decidirem se a proibiriam ou não. Isso levou os
colonos da província a se revoltarem e declararem a região independente em abril de 1836. Dez anos mais
tarde, o Texas seria anexado ao Estados Unidos após a guerra contra o México entre 1846 e 1848.
que fazem parte, sendo produtos de suas épocas e revelando elementos para compreendê-
las.
É importante destacar que ao se analisar as produções sobre a batalha, alguns
pontos são recorrentes. Em primeiro lugar, o mito do Álamo sempre é abordado em um
aspecto dicotômico, uma luta entre forças antagônicas e tendo uma roupagem particular
a cada período, algumas vezes de forma maniqueísta, outras vezes com um discurso ético
entre integridade em detrimento da corrupção e ainda outras a retratam com uma
roupagem política entre república contra tirania. Nesse sentido, os estadunidenses,
independente da abordagem, representam os aspectos virtuosos enquanto os mexicanos
representam a degeneração de tais valores. Outro elemento importante para compreender
o Álamo é o mito do auto sacrifício, o ato dos homens que defendiam a missão entregarem
suas vidas por algo maior, elemento muito importante para sustentar a ideia de que todos
os homens, reforçando sua virilidade, eram bravos e heroicos.
Para Napolitano, um dos grandes valores dos filmes históricos é entender sua
interpretação sobre o presente momento de sua produção (NAPOLITANO, 2005, p. 9). Na
mesma linha, o historiador Eduardo Morettin (2003) nos lembra que Marc Ferro
atestava o valor dos filmes históricos como ferramenta de compreensão do momento de
sua produção: “As películas de reconstituição histórica são importantes também pelo que
dizem a respeito do seu presente, no momento que foram feitas e não propriamente pela
representação do passado em si” (MORETTIN, 2003, p. 31). Indo além das considerações
de Ferro, Morettin sustenta que para a utilização de filmes como fontes históricas o
historiador tem que percebê-lo além da dicotomia entre “análise” e “contra análise” da
sociedade, buscando uma abordagem polissêmica da obra.
Nosso entendimento é de que a batalha do Álamo, um conflito travado entre
colonos texanos de diversas origens
3
rebelados contra o governo mexicano, e, dessa
forma, não envolvendo os Estados Unidos, foi apropriado pelos estadunidenses e alçado à
categoria de mito nacional. o filme
O Álamo
(1960), dirigido e produzido por John Wayne,
seria a adaptação deste mito nacional ao contexto dos anos 1950/1960 durante a Guerra
Fria e traz elementos constituidores da identidade nacional estadunidense do período.
Aqui partimos das premissas de Ernest Gellner e Benedict Anderson a respeito do
nacionalismo e identidade nacional.
3
O historiador Richard Flores (1998) traz uma relação da origem dos rebeldes que lutaram na velha missão
abandonada. Dos 187 combatentes 13 eram cidadãos texanos de origem mexicana, 41 europeus, dois judeus,
dois negros e os demais eram estadunidenses. Apesar de serem a maioria, a batalha do Álamo está longe de
ser um conflito unicamente entre estadunidenses e mexicanos.
Para Gellner (1983), o nacionalismo é o encontro de um Estado, protetor e difusor
de uma cultura dita nacional para todos os indivíduos que estão sob sua tutela e uma
nação, representando um conjunto de desconhecidos e anônimos que professam uma
cultura comum que a define. Desse modo, na perspectiva do autor, a nação seria
“fabricada” ou mesmo “inventada” em um processo consciente de formação e
constituição:
[...] a nação é criada pelo nacionalismo, pelas mãos de “agentes do despertar”, um
movimento consciente de transformação de uma cultura inferior em uma
superior padronizada e normativa, previamente etnografada e possível de ser
adotada e protegida por um Estado, que, quando conquistado, a transmite por
meio da educação universal. (SCANDALORA, 2019, p. 11).
Aqui um ponto chama atenção, na perspectiva de Gellner, o nacionalismo sempre
está associado a um componente étnico de um grupo que impõe sua cultura para os demais
componentes deste Estado-nação, transformando em uma cultura superior e padronizada.
Para ele, o nacionalismo seria um dos grandes mitos do século XIX e XX pelo aspecto
perene e imemorável da nação estabelecido como inevitáveis, mas fabricados.
Benedict Anderson (2008), em uma linha parecida, define que as nações são uma
comunidade política imaginada, limitada e soberana. Primeiro, imaginada porque nem os
membros da menor das nações conhecerão a maioria de seus compatriotas, ou mesmo
ouvirão falar de todos os seus componentes, mas todos estão em comunhão nesta
comunidade nacional. Em segundo lugar, ela é imaginada limitada porque até as maiores
nações do mundo possuem fronteiras e limites e não tem pretensões de alcançar toda a
humanidade. Ela é concebida como soberana por ser fruto teórico do Iluminismo e das
lutas burguesas contra o
Antigo Regime
e a soberania dos reis. E por fim, as nações são
imaginadas como comunidades porque, apesar do desconhecimento entre seus membros,
todos possuem uma sensação de união e conexão formados por este Estado-nacional
(ANDERSON, 2008, p. 14-15).
O filme
O Álamo
(1960), dirigido por John Wayne, aparece como um documento
importante para entender dois aspectos: o primeiro, a visão de mundo de seu diretor, um
dos principais atores de Hollywood e conhecido pelos seus filmes do gênero
western
e
que teve em
O Álamo
sua primeira experiência em direção de filmes; e o segundo aspecto
diz respeito à relação que se pode estabelecer entre adaptação que Wayne faz do mito do
Álamo com a sociedade estadunidense do pós-Segunda Guerra Mundial, período da
história que revela suas contradições e conflitos. Entendemos, na mesma linha de Morettin
e Napolitano, muito além de tratar da Batalha do Álamo travada em 1836, que o filme de
Wayne trata de sua visão sobre o que era (ou deveria ser) o conflito entre Estados Unidos
e União Soviética e em que valores a sociedade e a nação estadunidense eram
fundamentados. Estes aspectos são percebidos pela presença de situações que o
historiador argentino Fabio Nigra (2015) define como
invariáveis
, elementos sempre
notados em filmes de temática histórica por serem constituidores da nacionalidade
estadunidense. Temas como a fronteira, a
excepcionalidade
do seu povo e suas
instituições, a dicotomia entre
bem e mal
e o patriotismo se conectam em determinados
níveis para compor a nacionalidade estadunidense e funcionam como fundamentos
agregadores da identidade de seu povo. Neste artigo, exploraremos a relação entre o filme
O Álamo
, dirigido e produzido por John Wayne, e a construção da identidade nacional
estadunidense a partir de seus elementos.
O Álamo
, segundo John Wayne: a produção do mito e do filme.
O filme
O Álamo
dirigido, produzido e estrelado por John Wayne em 1960 é uma das
várias versões para o cinema do conflito que levou à independência do hoje estado
americano do Texas. Porém, Wayne acreditava que a sua versão do conflito era algo
totalmente diferente das demais filmadas ao longo das décadas. Para ele, o Álamo
representava a história de homens que sacrificaram suas vidas em nome de algo maior, a
liberdade, e nenhuma das versões anteriores teria conseguido representar com
grandiosidade este trecho da história americana.
Na sua percepção, a batalha do Álamo foi um conflito que representava as maiores
qualidades dos Estados Unidos:
Eu sempre me inspirei por esta história porque não conheço nenhum outro
momento da história Americana que sustenta tanta coragem. É a coragem desses
homens que me move. Desde então homens - e mulheres - tem mostrado muitos
grandes atos de coragem em face a adversidades. Mas para mim o momento que
mais define quando os homens colocaram suas vidas em detrimento das demais,
foi quando Travis diz a todos os voluntários que estão em seus cavalos prontos
para partir do Álamo que eles sabem que não podem vencer e que eles podem partir
sem medo de críticas ou vergonha. E todos esses voluntários descem de seus
cavalos e ficam atrás de Travis. Esta é uma história para todo o mundo, mas uma
história especial para os americanos (WAYNE apud MUNN, 2001, p. 216, tradução
nossa)
4
.
4
“I was always inspired by the story because I don’t know of any other moment in American history which
portrays the courage of men any better. It’s the courage of those men that always moved me. Since then
menand womenhave shown many great acts of courage in the face of adversity. But what for me was
the defining moment when men put their lives before all else, was when Travis tells all the volunteers who
are on their horses and ready to withdraw from a battle they know they can’t win, that they can leave the
Alamo without fear of criticism or shame. And every one of those volunteers got off their horses and stood
behind Travis. It’s a story for all the world, but it is a special story for the patriots of America.”
O interesse pela batalha não era algo exclusivo de Wayne. Pelo contrário, o conflito
ainda hoje é visto como um dos elementos definidores da identidade nacional
estadunidense e chamou atenção logo após o seu fim. Relatos como os de Richard Penn
Smith e William P. Zuber deram o tom heroico que está presente em todo imaginário e nas
representações sobre a batalha. O livro
Colonel Crockett’s Exploits and Adventures in
Texas
escrito por Smith foi supostamente baseado no próprio diário de Davy Crockett,
5
que teria sido recuperado por um oficial mexicano e adquirido pelo autor. O curioso sobre
este livro, lançado apenas oito semanas após o fim do cerco ao Álamo, é que Smith o
escreveu direto da Filadélfia a quase mil quilômetros de distância de San Antonio.
Colonel
Crockett’s
foi e ainda é tratado por muitos como um documento legítimo sobre os
acontecimentos da Batalha do Álamo. Em suas páginas que encontramos as primeiras
referências ao comportamento bravio dos rebeldes texanos amotinados no velho forte,
como a suposta frase do Coronel William Travis que teria dito a seus subordinados para
lutarem “até o último suspiro e tornar sua vitória ainda mais difícil para eles do que para
nós" (TUCKER, 2010, p. 2).
William P. Zuber, um historiador amador contemporâneo ao conflito, foi um dos
grandes responsáveis por propagar (ou propagandear) a batalha do Álamo como um mito
de auto sacrifício. Para combater o rumor de que alguns defensores, incluindo Davy
Crockett, teriam se rendido enquanto outros teriam se escondido em vez de lutar até o
fim, Zuber sustentou a ideia de que nenhum membro “escapou ou se rendeu, ou tentou
fazê-lo; mas todos os homens morreram lutando” (TUCKER, 2010, p. 3).
Não evidência que Zuber, à época do conflito com 15 anos de idade, tivera
contato direto com a Revolução do Texas ou seus combatentes. do outro lado do
conflito, existem relatos substanciais de que a narrativa do auto sacrifício dos rebeldes da
missão não passa de uma invenção. Sobre isso, os relatos de Juan Nepomuceno Almote,
oficial das tropas de Santa Anna que lutou na batalha do Álamo e foi capturado por tropas
texanas na Batalha de San Jacinto, são esclarecedores. O diário de Almonte, tomado pelas
tropas texanas após sua captura, foi publicado no jornal
New York Herald
em 27 de junho
de 1836 e continha relatos sobre a tentativa dos homens que defendiam o Álamo de deixar
a missão durante a batalha para salvar suas vidas: O inimigo tentou em vão fugir [do
Álamo], mas foram alcançados e executados” (TUCKER, 2010, p. 4).
5
David Crockett foi caçador e congressista tennessiano. Eleito para o legislativo do Tennesse em 1821 e para
o Congresso Americano em 1825 e 1833, onde fez forte oposição ao Presidente Andrew Jackson, Crockett
foi derrotado nas eleições de 1835 e decidiu partir em direção ao Texas. Atraído pelas terras abundantes da
província mexicana, ele se envolveu no conflito e lutou na batalha do Álamo ao lado dos revoltosos texanos.
Os relatos do tenente José Enrique de La Peña, outro oficial de Santa Anna que
participou do cerco final ao Álamo em 6 de março de 1836, falam de alguns sobreviventes
ao último ataque das tropas mexicanas ao Álamo:
Sete homens sobreviveram à carnificina da Batalha do Álamo e, sobre proteção
do general Castrillón, eles foram levados a Santa Anna. Dentre eles estava um de
grande estatura, grande proporção [...] Ele era o naturalista David Crokett, bem
conhecido na América do Norte pelas suas aventuras incomuns [...]. (CRISP, 2005.
p. 103 e 104, tradução nossa)
6
.
Apesar de ser motivo de grandes debates na historiografia estadunidense sobre a
Revolução do Texas, mesmo não havendo espaço para dúvidas quanto a sua legitimidade,
os relatos de La Peña vão de encontro com fontes estadunidenses contemporâneas ao
conflito. As primeiras notícias recebidas por Sam Houston, líder das tropas texanas,
tratavam da captura de sete homens pelas tropas de Santa Anna que em seguida foram
executados (FLORES, 2002. p. 135). Dessa forma, é evidente que determinados elementos
do mito do Álamo são criações literárias posteriores para engrandecer o conflito e seus
combatentes. Estes elementos foram explorados pelo cinema ao longo das décadas,
inclusive em
O Álamo
(1960).
Wayne sonhava em filmar sua própria versão do conflito desde 1945, quando
procurou alguns amigos que pudessem se interessar pelas suas ideias, mas apenas em
1950 conseguiu lhe dar forma. A sua versão da batalha de março de 1836 foi o filme mais
caro produzido nos anos 1960. Estimado em um custo de 7,5 milhões de dólares, valor
elevado para a época, a produção teve custo final de 12 milhões de dólares. A
United Artists
aceitou distribuí-lo com a condição de Wayne atuar em um papel de destaque e sua
produtora, a
Batjac Project
, financiar a maior parte do projeto. Ele aceitou as condições
do estúdio e decidiu interpretar o papel do tennessiano Davy Crockett, figura icônica da
fronteira americana que também lutou no Álamo. A produção do filme foi um processo
longo e conturbado. Fascinado pelo exemplo de bravura e coragem dos homens que
defenderam a velha missão, Wayne se dedicou a produção do filme sobre o conflito desde
1950, quando tinha contrato com a
Republic Studios
. Ele encomendou uma versão inicial
do roteiro para Jimmy Grant, roteirista com quem tinha trabalhado em diversos filmes
como
Iwo Jima O Portal da Glória
(
Sands of Iwo Jima
, 1949),
Aventura Perigosa
(
Big Jim
McLain
, 1952) e
Hondo Caminhos Ásperos
(
Hondo
, 1953).
6
“Some seven men had survived the general carnage [of the Battle of the Alamo] and, under the protection
of General Castrillón, they were brought before Santa Anna. Among them was one of great stature, well
proportioned, [...]. He was the naturalist David Crockett, well known in North America for his unusual
adventures [...].”
Wayne levou a sua ideia para Herbert Yates, proprietário da
Republic
, e pediu um
orçamento de 3 milhões para as filmagens, valor que o executivo achou impraticável para
uma única produção. Sem acordo, John Wayne deixou o estúdio e partiu na busca por
algum que aceitasse o seu projeto. No entanto, o roteiro escrito por Grant legalmente
pertencia a Yates pois foi escrito enquanto Grant trabalhava para o seu estúdio. Anos mais
tarde, em 1955, a
Republic
resgatou este roteiro e lançou seu próprio filme sobre a Batalha
do Álamo com o título de
A Última Barricada
(
The Last Command
, 1955), sem John Wayne
e com Sterling Hayden como protagonista interpretando o papel de Jim Bowie. Dessa
forma, Wayne esteve envolvido direta e indiretamente em dois filmes sobre o Álamo, o que
atesta sua fascinação sobre o tema, visto por ele como um dos principais eventos da
história estadunidense (FLORES, 2002).
No acordo com a
United Artists
ficou decidido que o estúdio investiria 2,5 milhões
de dólares, a
Batjac
mais 2,5 milhões e o restante deveria ser levantado com investidores.
Para diminuir os custos de produção, John Wayne considerou filmar em locações fora do
Estados Unidos, como México, Panamá ou Peru, porém, temendo que filmar tal episódio
da história texana e estadunidense em outro país pudesse trazer represálias e boicotes ao
seu filme, Wayne decidiu rodá-lo no Texas. E visando cortar custos, ele considerou utilizar
o mesmo set de filmagens de
A Última Barricada
, uma réplica da missão do Álamo
construída pela
Republic Studios
, mas a ideia logo foi descartada pela produção por julgar
o espaço muito pequeno para as filmagens.
A saída então foi construir um set novo a partir do zero. Um rancho nas redondezas
de Brackttville de propriedade de James T. Shahan foi o local escolhido para construir a
réplica de toda a estrutura da missão e Al Ybarra, conhecido diretor de arte que trabalhou
com John Wayne em filmes como
Um Fio de Esperança
(
The High and Might
, 1954),
Os
Comancheros
(
The Comancheros
, 1961) e
Rota Sangrenta
(
Bloody Alley
, 1955). A réplica da
estrutura da capela do Álamo foi de 75% do tamanho original, tudo para chegar o mais
próximo possível do real. No entanto, a réplica da cidade de San Antonio não foi acurada,
enquanto as cidades mexicanas do século XIX eram construídas em volta de praças, a
reprodução seguiu o modelo de uma cidade convencional do velho oeste americano, com
ruas paralelas.
Quanto ao elenco, Wayne foi atrás de jovens atores com carreiras sólidas, como
Laurence Harvey, ator inglês indicado ao Oscar de melhor ator pelo filme
Almas em Leilão
(
Room at the Top
, 1959) para o papel de William Travis. Richard Windmark, indicado ao
Oscar de melhor ator coadjuvante por seu trabalho em
O Beijo da Morte
(
Kiss of Death
,
1947), aceitou interpretar Jim Bowie. Wayne ainda contratou Frankie Avalon, uma jovem
estrela em ascensão para atrair o público jovem. Os demais papeis foram ocupados por
atores amigos de John Wayne e familiares, como seus filhos Patrick no papel de James
Butler e Aissa como filha do Capitão Dickenson. Para o papel da donzela e par romântico
de Davi Crockett no filme, ele contratou Linda Cristal, atriz argentina com certa fama no
México, mas desconhecida em Hollywood (ROBERTS & OLSEN, 2001).
Terminada a pré-produção, as filmagens iniciaram em 9 de setembro de 1959 e se
encerraram em 15 de dezembro do mesmo ano. Do ponto de vista técnico o filme possui
problemas, a primeira montagem ficou com uma duração de 210 minutos, muito longo e
sem sentido. Roberts e Olsen (1995) definem que as primeiras duas horas desse corte “se
referiam a assaltos sem sentido contra as fileiras inimigas, piadas sobre embriaguez, com
ocasionais mixagem de som
7
realmente boas para quebrar o tédio” (ROBERTS & OLSON,
1995, p. 276). Para o seu lançamento, a metragem foi reduzida para 162 minutos, o que não
resolveu os problemas do filme e tornou algumas cenas mais desconexas ainda. Críticos
de cinema estadunidenses e mexicanos rechaçaram fortemente o filme, chegando a
classificá-lo como sem graça, tolo e até banal, como fez a revista
Newsweek
: "o lugar na
história ocupado [por
O Álamo
] será de maior filme B já feito... B de banal" (NEWSWEEK,
1960 apud ROBERTS & OLSON, 1995, p. 46). Tudo isso fez o filme não ser bem-sucedido
nas bilheterias. O seu primeiro ano de circulação arrecadou menos de 7 milhões de dólares
e até 1967 faltavam 2 milhões para a United Artists, que comprou integralmente os direitos
do filme, fechar as contas da produção (EYMAN, 2014).
As intenções que o motivaram a filmar sua versão do conflito texano, bem como a
escolha dos atores e equipe técnica, deixa claro que este era um projeto particular para
Wayne e manifestava muito de sua visão de mundo, crenças políticas e patriotismo. Ele
encarava
O Álamo
como um marco na história do cinema, um filme que deveria ser
lembrado por décadas e tocar os corações e mentes dos estadunidenses. Wayne sabia do
potencial ideológico que seu filme possuía e como ele poderia influenciar na forma que as
pessoas entenderiam o que era o Estados Unidos da América, bem como o papel desta
nação no cenário geopolítico internacional.
O filme histórico e seus elementos
invariáveis
.
O mito do auto sacrifício
é uma das bases do imaginário sobre o Álamo e cria toda
a atmosfera épica que está envolto. É por conta disso que a batalha ficou conhecida como
a
Termópilas do Texas
, uma referência a batalha das Termópilas, conflito épico em que
7
O Álamo
ganhou o Oscar de melhor mixagem de som em 1960, além desta categoria concorreu em mais
seis: melhor filme, melhor ator coadjuvante para Chill Wills, melhor fotografia, melhor montagem, melhor
trilha sonora e melhor canção original.
300 espartanos enfrentaram um contingente muito maior de persas e assim como os
voluntários do Álamo, também foram mortos (TUCKER, 2010). Não é incomum a utilização
de elementos da cultura greco-romana na constituição da nacionalidade estadunidense.
Desde imediatamente após a independência, o Estados Unidos da América se apoiou nas
culturas da antiguidade clássica para forjar sua identidade tanto política, adotando a
República mesmo que em moldes diferentes da instituição romana, quanto estética com
prédios públicos em estilo neoclássico (JUNQUEIRA, 2018). A comparação entre o evento
do Álamo e das Termópilas segue essa mesma lógica e além do modelo de bravura e
heroísmo também traz a questão da luta entre a barbárie e a civilização, os primeiros sendo
os persas e os mexicanos e os segundos sendo os espartanos e os estadunidenses.
Praticamente todas as versões da batalha para o cinema preservam a ideia do auto
sacrifício dos combatentes, bem como a encarnação do embate entre o bem e o mal. São
eles que tornam o mito do Álamo tão atrativo para Hollywood e para os cidadãos
estadunidenses, fazendo com que fosse refilmado ao longo de quase um século. Wayne
sabia que seu filme poderia se tornar apenas mais uma versão da batalha de março de 1836,
mas acreditava também que poderia ser uma versão única que levaria sua identidade e
valores. Muitos elementos que Wayne entendia serem essenciais à nação estadunidense
era visto por ele neste mito:
Eu quero lembrar os amantes da liberdade do mundo que não muito tempo atrás
houve homens e mulheres na América que tiveram coragem para se levantar e
lutar por coisas que eles acreditavam... Estas pessoas do Álamo entenderam que
para viver com dignidade, um homem deve estar preparado para morrer com
dignidade. (ROBERTS & OLSON, 2001, p. 272, tradução nossa)
8
.
Para Wayne, o mito do Álamo representava a luta de homens e mulheres contra um
governo autoritário e tirânico. Mais profundamente, era uma metáfora para os Estados
Unidos da América, uma nação construída por colonos que ao longo de toda sua história
lutava pela liberdade de seu povo. Todos os elementos que constituíam a
América
estavam
presentes neste mito, em sua visão. O filme faz questão de pontuar esses aspectos desde
seus minutos iniciais, em um texto que introduz o espectador ao conflito:
No ano de 1836, o Texas, que já esteve sob várias bandeiras, estava sob domínio
do México. Apesar de ser constituído por colonizadores de vários países e de todo
os Estados Unidos, todos eram considerados cidadãos mexicanos. Generalíssimo
Santa Anna, estava seguindo ao norte em sua direção, massacrando todos que se
opusessem a seu reino tirânico. Eles enfrentaram a decisão que todos os homens
8
“I want to remind the freedom-loving people of the world that not too long ago there were men and
women in America who had the guts to stand up and fight for the things they believed in... The people of
the Alamo realized that in order to live decently a man must be prepared to die decently.”
em todas as eras enfrentaram... a eterna escolha entre subjugar-se a opressão,
ou resistir (
The Alamo
, 1960, 2 min).
O objetivo deste pequeno texto introdutório é colocar o espectador a par do
contexto em torno da batalha do Álamo. Feito para simplificar toda condição da Revolução
do Texas, algo que é nada simples, o filme silencia muitas vozes omitindo as verdadeiras
causas do confronto e subvertendo fatos. O tom heroico está presente, tratando a
batalha como uma escolha que os texanos devem fazer entre a liberdade e a opressão.
Dois pontos chamam atenção neste trecho: o primeiro em determinar o Texas como uma
província desprendida da República do México, a apresentando como uma região de
fronteira ainda em disputa e a ser colonizada; e o segundo é estabelecer o caráter
dicotômico do conflito, deliberando o General Santa Anna, presidente mexicano, como
uma figura opressora.
Estes elementos são apresentados pelo historiador argentino Fabio Nigra (2015)
como
situações invariáveis
. Nigra, quando se debruça sobre os filmes históricos, mais
especificamente sobre as produções hollywoodianas, destaca pontos que estão presentes
invariavelmente em diversas películas. Esses pontos têm o objetivo de construir uma visão
e ideologia sobre a nação estadunidense. Neles, a história se reduz a um drama de aventura
em um passado longínquo, privilegiando indivíduos e seus atos heroicos em detrimento a
grupos e processos mais profundos, em um esquema de início, desenvolvimento e um final,
no qual o espectador testemunha a redenção da humanidade, que caminha para um destino
melhor. A fronteira é o primeiro destes elementos, pelo apelo ideológico que possui para
a sociedade estadunidense, e por ser representada nos filmes como um fato histórico
inquestionável, “como se fosse um manual primário” sobre a gênese da nação, no caso de
O Álamo
, sobre o caminho do Texas até a incorporação ao Estados Unidos (NIGRA, 2015,
p. 385).
A fronteira possui um lugar de destaque na historiografia estadunidense. Ainda no
século XIX, a historiografia estadunidense, com destaque para o texto de Frederick
Jackson Turner (1893)
O significado da fronteira na história americana
, defende que a
expansão da fronteira de colonização oeste do Estados Unidos explicaria todo avanço e
desenvolvimento do país. Seria que os valores da nação teriam sido gestados: o
individualismo, pragmatismo, otimismo e a democracia, funcionando também como uma
“válvula de escape” para o excedente populacional do Leste. A fronteira promoveria todos
esses valores e instituições estadunidenses e seria o “berço da americanização”, tornando
qualquer tipo de colono, das mais diversas origens, em um potencial cidadão
estadunidense (FOHLEN, 1981, p. 284).
E a fronteira também aparece para o cinema com esse mesmo
status
, carregando
os mesmos valores, sendo o espaço explorado por um dos gêneros de maior longevidade
do cinema estadunidense, o
western
. Definido por André Bazin (1991) como o “cinema por
excelência” por ser o encontro entre uma forma de expressão, o cinema, e um mito
fundador, a expansão da fronteira e conquista do oeste, o
western
tem como um de seus
principais expoentes justamente John Wayne, muito lembrado por seus papéis em filmes
como
No Tempo das Diligências
(
Stagecoach
, 1939) e
Rastros de Ódio
(
The Searchers
,
1954). A história do Álamo é a história da expansão da fronteira americana e
O Álamo
possui todos os elementos do cinema
western
, a luta do bem contra o mal, a donzela que
necessita ser salva pelo herói
cowboy
, além de ser ambientado justamente em um espaço
fronteiriço.
Tucker (2010, p. 17) demonstra que milhares de anglo-americanos se dirigiram para
o Texas não para entregar suas vidas pela liberdade da terra prometida, mas sim pelo
contrário, esses jovens colonos se dirigiam para o México em busca de terras baratas para
especulação e estabelecer suas monoculturas escravagistas. Muitas eram as propagandas
em jornais estadunidenses convocando voluntários a lutarem pelo Texas em troca de
recompensas: “O povo do Texas, um pequeno número de homens [agora] precisa da sua
assistência. Nós apresentamos a vocês uma das mais encantadoras regiões do planeta; nós
oferecemos a vocês robustas remunerações em terra”. Muito além da defesa da liberdade
ou pela vingança em nome de seus irmãos massacrados no Álamo, o que atraiu voluntários
para a causa texana foi a promessa de robustos pagamentos em forma de terra para quem
ingressasse no exército revoltoso e estivesse disposto a lutar contra o governo mexicano.
Apresentado ao espectador como uma região que “já esteve sob várias bandeiras”
no letreiro introdutório do filme, o Texas é posto como um território em disputa, em que
fazer parte do estado mexicano seria apenas condicional. Dessa forma, o Texas seria uma
região livre e habitada apenas por colonos (principalmente provenientes dos Estados
Unidos da América) que se inseria na lógica da expansão da fronteira de colonização oeste
estadunidense. É para que se dirigem os colonos, como o próprio texto de introdução
do filme afirma, das mais diversas origens, a fim de conquistar seu pedaço de terra,
especular e continuar o movimento de expansão da fronteira. Apesar de serem
considerados mexicanos, como um dos líderes do Álamo, Jim Bowie, que se casou com
uma mexicana, estes colonos têm dentro de si o espírito colonizador e aventureiro dos
estadunidenses, falam inglês e lutam por uma instituição americana, a República. Assim, a
fronteira cumpre seu papel americanizador em transformar, quase de maneira natural,
estes colonos em cidadãos, não do México, mas dos Estados Unidos.
A segunda invariável presente nos filmes históricos estadunidenses, segundo Nigra
(2015), é o caráter
excepcionalista
com que os personagens e eventos são apresentados,
ou seja, algo como se os Estados Unidos, seu povo e suas instituições fossem diferentes
dentre as demais, muito pela formação de seu caráter na fronteira. Essa ideia se liga com
a noção de que estes colonos estariam cumprindo um
destino
manifesto
pela providência
divina a realizar tais atos e tivessem o dever de levar seu modelo de sociedade para os
demais povos. A própria doutrina do
Destino Manifesto
tem conexão direta com a história
do Álamo e do Texas. Este termo foi cunhado em 1845 no contexto da Guerra México-
Estados Unidos pelo jornalista John Lois O’Sullivan em seu artigo na revista
Democratic
Review
, onde defende a anexação do Texas pelos Estados Unidos. O’Sullivan acusava o
México de se interpor contra o destino de seu país:
[...] em um espírito de interferência hostil contra nós, com o objetivo declarado
de frustrar nossa política e prejudicar nosso poder, limitando nossa grandeza e
impedindo o cumprimento de nosso
destino manifesto
de espalhar pelo
continente designado pela Providência para o livre desenvolvimento de nossos
milhões que se multiplicam através dos anos.
9
(JOHANNSEN, 1997, p. 8, tradução
nossa).
O filme de Wayne destaca esse excepcionalismo dos colonos anglo-americanos e o
destino do Texas de se juntar ao Estados Unidos. Quando da chegada dos tennessianos
liderados por Davy Crockett, a cidade de San Antonio de Béjar que fica próxima missão do
Álamo, o pastor Parson e o jovem Smitty, interpretado por Frankie Avalon, vão a frente
para avisar o grupo quando encontrassem o vilarejo. Ao avistá-lo, Parson tira uma bíblia
do bolso e é questionado por Smitty:
Smitty: São tantas as vezes que o senhor para e agradece. Eu não entendo pelo
quê agradece ao Senhor. Não tem nada especial.
Parson: Agradeço pela hora e pelo lugar.
Smitty: A hora e o lugar?
Parson: A hora de viver e o lugar de morrer, é tudo que temos. Nada mais (THE
ALAMO, 1960, 20 min).
Parson, um religioso, agradece à providência por guiar seu grupo ao lugar onde
deveriam estar, como se fosse o destino inescapável deles estar no Álamo e se sacrificar
pela independência do Texas. Essa ideia é reforçada em outro trecho, percebendo que a
batalha final se avizinha, Crockett sai para caminhar com Flaca, uma jovem viúva mexicana
9
“[...] in a spirit of hostile interference against us, for the avowed object of thwarting our policy and
hampering our power, limiting our greatness and checking the fulfilment of our manifest destiny to
overspread the continent allotted by Providence for the free development of our yearly multiplying
millions.
que acaba se envolvendo no conflito em favor dos anglo-americanos, e revela a ela como
ir para o Texas foi uma forma de encontrar seu destino.
Quando vim aqui para o Texas, vim procurando por algo. Não sabia o quê. [...] É
como se estivesse vazio. Mas agora não me sinto mais vazio. É isto que importa:
se sentir útil nesse velho mundo. Lutar contra a injustiça ou dizer o que é justo
mesmo que seja crucificado por dizê-lo [...]. Tem o certo e o errado. Tem que fazer
um ou outro. Você faz um e vive. Você faz o outro e pode continuar caminhando,
mas você está morto por dentro (THE ALAMO, 1960, 68 min).
Nestas duas cenas, os defensores do Álamo são apresentados como portadores de
um propósito, algo que nem eles compreendiam, mas ir para o Texas era ir de encontro ao
seu destino, da mesma forma que o destino da província texana era se unir aos Estados
Unidos.
A doutrina foi uma forma encontrada pelos estadunidenses de justificar expansão
e dominação a outros povos e regiões. Ela é calcada em dois elementos: a visão de que os
anglo-americanos são superiores aos demais povos e de que seu modelo político seria o
mais bem-sucedido que havia existido. Meses depois de seu primeiro artigo, O’Sullivan
voltou a utilizar o termo para justificar a expansão territorial estadunidense, dessa vez em
relação ao Oregon: "[...] E essa afirmação é pelo direito de nosso destino manifesto de se
espalhar e possuir todo o continente que a Providência nos deu para o desenvolvimento
do grande experimento de liberdade e autogoverno federado que nos foi confiado"
(HAYNES; MORRIS, 1997, p. 9). Para os estadunidenses, o modelo democrático republicano
era o sistema político por excelência e deveria ser levado a outras regiões. Encontramos
este eco no filme de Wayne. Em um diálogo com William Travis, um dos líderes das tropas
do Álamo, Davy Crockett faz um monólogo sobre as qualidades do regime republicano.
República. Gosto dessa palavra. Significa que as pessoas podem viver livremente,
falar livremente. Ir e vir, comprar e vender, ficarem badas ou sóbrias, assim
como elas quiserem. Algumas palavras lhe tocam. República é uma dessas
palavras que dá um na garganta. O mesmo nó quando um homem vê o seu filho
dar os primeiros passos ou... suas primeiras palavras como um homem. Algumas
palavras deixam seu coração quente. República é uma dessas palavras (THE
ALAMO, 1960, 30 min).
A ideia transmitida neste trecho é de que apenas a república, instituição
estadunidense levada ao Texas pelos colonos, poderia salvar aquela região da tirania e
opressão do regime de Santa Anna. As posições políticas de John Wayne são bem
conhecidas. Ele foi presidentes da
Motion Pictures Alliance for the Preservation of
American Ideals
(MPA), organização criada em 1949 para defender os valores
estadunidenses e o anticomunismo na indústria do cinema americano, e apoiou as
campanhas presidenciais dos republicanos Dwight Eisenhower e Richard Nixon. Wayne
acreditava que seus filmes poderiam ser um forte instrumento de difusão dos valores da
nação americana e encontramos em
O Álamo
uma mensagem de cunho claramente
anticomunista, onde a luta entre os voluntários texanos e as tropas de Santa Anna funciona
como uma metáfora para a Guerra Fria. A dicotomia entre república x tirania, liberdade x
opressão, evidencia isso. O monólogo de Davy Crockett sintetiza muito dos elementos
expostos por Nigra, a questão da fronteira como geradora de instituições genuinamente
“americanas”, o dever de levar estas para outros povos e encarna uma postura
maniqueísta entre o modelo republicano, sistema que garante as liberdades individuais, e
a tirania do governo de Santa Anna, um governo personalista que se dirige ao norte para
massacrar os revoltosos.
Esse embate entre liberdade e tirania vai além do aspecto político e ganha
contornos religiosos expressando uma visão maniqueísta entre
bem e mal
. Baseados na
visão de mundo e valores cristãos, as películas históricas de Hollywood associam os
interesses pontuais estadunidenses com o bem e todos os valores positivos, enquanto tudo
que se oponha a estes interesses é associado ao mal e valores corruptíveis. No caso de
O
Álamo
, esse discurso de conteúdo religioso é manifesto na fala de um dos voluntários
anglo-americanos, Jocko, que, na noite anterior à batalha final, em uma conversa com
outros homens sobre a existência ou não de um além vida que poderia recompensar os
esforços deles, diz: “Eu te digo. Eu acredito. Não sei como convencer quem não acredita,
mas eu acredito no Senhor Todo Poderoso onipresente e indulgente. Eu acredito que o
bem prevalece sobre o mal no final e que o mal será aniquilado. Eu acredito na vida após
a morte” (THE ALAMO, 1960, 142 min).
Os voluntários na velha missão sabem que dificilmente vencerão a batalha ou
mesmo sairão vivos do próximo ataque do exército mexicano, muito superior em armas e
soldados. Exército este que é liderado pelo General Santa Anna, que no filme é um déspota
que representa a brutalidade e opressão de um regime que não entende as verdadeiras
demandas dos texanos, o que leva ao conflito. É bem verdade que o filme de Wayne tentou
construir uma visão positiva do México e seu povo, elogiando sua forma de vida alegre e
despojada, tecendo elogios aos mexicanos e mesmo a Santa Anna, que aparece uma única
vez no filme, mas de maneira que demonstra sua força e imponência (GIROTTO, 2019, p.
46).
No entanto, o filme passa uma visão de que a incursão de Santa Anna ao norte é
apenas para levar terror a região, que ao avanço de suas tropas obriga a população local
a se deslocar fugindo aterrorizada do “massacre que se impunha a todos que fossem
contra o reinado tirânico”, como a introdução do filme faz questão de pontuar.
A última
invariável
apontada por Nigra (2015) é a presença de elementos que
reforçam o
patriotismo
. Neste aspecto, a fronteira, o excepcionalismo e a visão religiosa
convergem para a construção de um senso patriótico estadunidense que se complementa
com a ideia de liberdade sempre muito cara para este grupo e que serve de motor não
apenas para o filme de Wayne, mas para todo o mito do Álamo. Os voluntários texanos,
diferentemente dos mexicanos, não aceitam ordens e não se submetem ao autoritarismo
do General Santa Anna. Em certa passagem do filme, Davy Crockett, personagem sempre
lembrado pela sua sagacidade e inteligência, utiliza de uma mentira para convencer seus
companheiros tennessianos a se juntarem aos texanos na luta contra o México. Com ajuda
de Flaca, o personagem de Wayne diz que Santa Anna enviou uma carta exigindo que ele
e seu grupo deixassem o Texas imediatamente, do contrário eles não seriam poupados do
massacre. Seus companheiros respondem que nunca deixariam nenhum homem dizer
onde eles deveriam ou não ir. E mesmo Crockett revelando que este tinha sido um artifício
encontrado para conven-los a ficar, os tennessianos acreditam que estas seriam as
palavras do presidente mexicano se tivesse a oportunidade de falar com eles. Aqui a
própria ideia de liberdade individual de ir e vir é um símbolo do povo estadunidense que
não aceita nenhum tipo de ordem (GIROTTO, 2019, p. 38).
Símbolos patrióticos do Estados Unidos também podem ser percebidos sutilmente
no filme. Após o final da batalha derradeira com o massacre concluído, as únicas
sobreviventes são Susannah Dickenson e a pequena Lisa, respectivamente mulher e filha
do Capitão Dickenson, um dos combatentes da missão. Ao sair em meio aos escombros da
batalha, é preparado para elas uma montaria para seguirem seus caminhos, onde pode ser
percebido sutilmente um tecido estendido com listras brancas e vermelhas aludindo a
bandeira do Estados Unidos. Neste mesmo enquadramento é possível observar um sino,
uma provável referência ao
Liberty Bell
, símbolo icônico que remonta à guerra de
Independência americana. A cena continua e o General Santa Anna, em sua única aparição
no filme, ordena a seus soldados que saúdem a passagem das sobreviventes, que se
encaminham em direção ao norte, em direção aos Estados Unidos.
Esta cena funciona como uma metáfora da anexação do Texas aos Estados Unidos
e fica mais evidente quando é analisada a versão estendida do filme. Uma das cenas
cortadas da película é um diálogo entre Susannah e sua filha que, ao perguntar sobre seu
pai que acabara de ser morto, ouve a resposta de sua mãe: "Oh Lisa, doce Lisa. Olhe para
a forma como você cresceu... Oh Lisa, minha querida. E pensar que você tem apenas três
anos. Você será uma grande mulher um dia". Lisa representa o próprio Texas, uma terra
jovem, mas que passou por grandes dificuldades e se tornará um grande Estado um dia.
Imagem 1: Sue e Lisa Dickinson partindo do Álamo após a batalha final
Fonte: The Alamo, 1960, cap 32, 159 min.
Conclusão
A derrota no Álamo em 1836 foi incompreensível para um povo que se entendia
como eleito pela Providência divina a conquistar todos os territórios “livres” e levar sua
cultura para as “raças inferiores”. E ser derrotado justamente por um desses povos tidos
como inferiores era algo que não deveria ter acontecido, curso corrigido na Batalha de San
Jacinto em abril de 1836, quando o exército mexicano é subjugado e Santa Anna capturado.
A partir de então, a memória sobre o Álamo é retomada não mais como um massacre
vergonhoso, mas como um sacrifício heroico de homens que devotaram sua vida por um
dos valores fundamentais de seu povo, a liberdade, omitindo questões importantes que
foram motores para o conflito, como a escravidão e a especulação de terras. A expressão
remember the Alamo
(lembrem-se do Álamo), criada após o massacre dos combatentes da
missão, é recuperada por estes homens que não participaram do conflito de 6 de março
de 1836 e por isso se lembram apenas do que convém ser rememorado.
Definitivamente o Álamo é um mito de alcance nacional. Para além de San Antonio,
cidade texana próxima à missão onde o conflito foi travado, o Álamo é
lembrado
e, além
disso, é consumido como produto cultural por todo os Estados Unidos. Isso pode ser
percebido a partir dos discursos e falas presidenciais, como a de Lyndon Johnson ao
associar o conflito do Vietnã à batalha do Álamo
10
. Apesar de sutil, este tipo de apropriação
10
Lyndon Johnson, 36º presidente dos Estados Unidos, recorreu à batalha do Álamo ao se referir ao Vietnã.
Em suas palavras, os soldados americanos deveriam "levar seu chapéu de pele", uma referência à vestimenta
Imagem 1: Sue e Lisa Dickinson partindo do Álamo após a batalha final
(THE ALAMO, 1960, cap 32, 159 min)
do mito revela o seu lugar no imaginário estadunidense. Um mito associado à doutrina do
Destino Manifesto que ressoa com a conjuntura geopolítica global da Guerra Fria.
O Álamo
(1960) é a representação lmica desse contexto. Mais do que uma metáfora para o conflito
velado entre Estados Unidos e União Soviética, a versão de Wayne mostra os valores que
conduzem e definem seu país e qual posição ele deve possuir no mundo. Isso envolve tanto
o fardo que a nação norte-americana deve carregar ao salvar da selvageria os demais
povos, se apresentando como uma espécie de difusora dos valores ocidentais, mas
também como uma vigia e guardiã do mundo civilizado constantemente ameaçado seja por
comunistas, seja por mexicanos.
Isso explica o grande interesse de Hollywood por este mito, tendo sido adaptado
por quase um século em diversas versões. O mito do Álamo reúne todos os predicados que
constituem a identidade do Estados Unidos e suas
situações invariáveis
, como
apresentados por Nigra (2015) Era isso que chamava a atenção de Wayne, que entendia
que esta era a metáfora perfeita para seu país. O filme histórico, dessa forma, cumpre um
papel didático em estabelecer o que deve ser representado em tela e o que não deve,
funcionando como um meio para estabelecer o que deve ser lembrado e o que deve ser
esquecido, algo essencial na constituição da nacionalidade. Os elementos como a fronteira
e os símbolos da nação aparecem para lembrar que os Estados Unidos são diferentes dos
demais povos.
O Álamo
, de John Wayne, é uma dessas obras. O diretor sabia do papel ideológico
que seu filme desempenhava e era justamente este seu objetivo ao filmá-lo. Assim como
as demais produções sobre o conflito, ela retrata um mito que constitui a nacionalidade
estadunidense por tratar de temas como a fronteira, o Destino Manifesto e patriotismo,
mas ganha contornos particulares em cada período. Isso o torna uma obra valiosa para
entender os Estados Unidos no imbricado dos anos 1950 e 1960, uma época de
contradições e tensões internas e externas que, para seu diretor, necessitava que seus
cidadãos
relembrassem
quais eram os valores da América.
Filmografia
THE Alamo. Direção de John Wayne. EUA: Metro-Goldwyn-Mayer Studios Inc., 1960. 1
DVD (162 min).
Referências:
característica de Davy Crockett. Em uma entrevista para Hugh Sidey, correspondente da revista Time no
Vietnã, ele disse que os Estados Unidos estavam no sudeste asiático porque "como no Álamo, alguém tinha
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