ROSENO, Michael Silva
1
*
https://orcid.org/0000-0001-8936-8386
BRICHTA, Laila**
https://orcid.org/0000-0002-1457-3331
RESUMO: Este artigo discute aspectos
estéticos e políticos escolhidos pelo cineasta
Ruy Guerra para representar a região cacaueira
no filme
Os deuses e os mortos
, estreado em
1970. A presente proposta analisa relações
entre história e cinema a partir do método da
análise fílmica esboçada por Golliot-Lété e
Vanoyé (2012), somada à pesquisa bibliográfica
e material do filme e dos sujeitos nele
envolvidos, a exemplo de entrevistas, biografias
e críticas cinematográficas. Pertencente ao
Cinema Novo, o diretor utiliza a alegoria para
realizar uma abordagem crítica da monocultura
do cacau durante os anos vinte do século
passado. Após análise das fontes, podemos
inferir que o cacau é utilizado para fazer alusão
a uma macroestrutura econômica, chamada de
‘império’ no filme, sugerindo a ligação com
circunstâncias globais em seu contexto de
produção, a exemplo dos movimentos de
libertação nas colônias africanas de língua
portuguesa incluindo Moçambique, terra
natal do cineasta Ruy Guerra.
PALAVRAS-CHAVE: Cinema; Política;
Representações; Ruy Guerra;
Os deuses e os
mortos
.
ABSTRACT: This paper discusses aesthetic and
political aspects chosen by the filmmaker Ruy
Guerra to represent the cocoa region in the film
Os Deuses e os Mortos
, released in 1970. The
present proposal analyzes relations between
history and cinema from the method of filmic
analysis outlined by Golliot-Lété and Vanoyé
(2012), added to bibliographic and material
research of the film and the subjects involved in
it, such as interviews, biographies and film
criticism. Belonging to the Cinema Novo
moviment, the director uses allegory to make a
critical approach to the cocoa monoculture
during the twenties of the last century. After
analyzing the sources, we can infer that cocoa
is used to allude to a macro economic structure,
called 'empire' in the film, suggesting a
connection with global circumstances in its
production context, such as the liberation
movements in Portuguese-speaking African
colonies including Mozambique, the
homeland of filmmaker Ruy Guerra.
KEYWORDS: Cinema; Politics;
Representations; Ruy Guerra;
Os deuses e os
mortos
.
Recebido em: 11/02/2022
Aprovado em: 31/05/2022
* Licenciado em História pela Universidade Estadual de Santa Cruz, Ilhéus-BA. Mestrando no Programa de
Pós-Graduação em História (PPGH/UESC) pela Universidade Estadual de Santa Cruz, Ilhéus-BA. Bolsista da
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB). O artigo é resultado parcial da pesquisa “Os
frutos de ouro na terra adubada com sangue: representações da sociedade cacaueira no filme Os deuses e
os mortos (1970), de Ruy Guerra”. O projeto tem sido desenvolvido desde abril de 2020 com previsão de
encerramento em abril de 2022. E-mail: michael.roseno1212@gmail.com
** Doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas, Campinas-SP. Professora Adjunta da
Universidade Estadual de Santa Cruz, Ilhéus-BA. E-mail: lbrichta@uesc.br
Este é um artigo de acesso livre distribuído sob licença dos termos da Creative Commons Attribution License.
Introdução
Tempo e espaço compõem os termos da equação
historiográfica e, assim,
interferem nos rumos que a ciência histórica percorrerá. De certa forma, sugerem as
temáticas a serem problematizadas. Tal premissa pode ser verificada se analisarmos, por
exemplo, as primeiras décadas do século XX. Marcadas por instabilidades econômicas e
sociais em parte considerável do mundo ocidental, as atenções historiográficas se
voltaram às questões econômicas e as análises prescindiam de uma abordagem
interdisciplinar, com destaque para a aproximação com a economia e a sociologia.
Anos mais tarde, durante o longo período da Guerra Fria, mobilizações anticoloniais
ganharam força na Ásia e na África, insurreições políticas emergiram na América Latina e
na Europa, movimentos sociais eclodiam a partir de agremiações estudantis, organizações
feministas e os de contracultura. Os movimentados anos 60 sinalizavam que também seria
tempo de mudanças no fazer historiográfico.
Na França, por exemplo, com a chegada do historiador Jacques Le Goff à direção
da
École Pratique des Hautes Études
, em meados da década de 1960, houve uma guinada
nos estudos da história, cada vez mais interessada em dialogar com outras áreas do saber,
tal qual a antropologia, a etnologia, a linguística etc.
Uma das profícuas consequências
desse movimento dentro da História foi a ampliação da noção que se tinha por documento
histórico, o que permitiu, a partir de reflexões metodológicas, a utilização do cinema
enquanto fonte para a pesquisa histórica. Uma particularidade desta fonte é ser um meio
de captação de imagens cujas lentes das câmeras que produzem o filme poderiam revelar
certos comportamentos, valores, ideologias e identidades de determinada sociedade em
um dado contexto histórico definido (KORNIS, 1992; SCHVARZMAN, 2013).
Pioneiro nos estudos que tratam das relações entre cinema e história, Marc Ferro,
no início da década de 1970, pensava essa relação a partir de dicotomias e com a
preocupação de elucidar se o filme poderia ser considerado “[...]
imagem
ou não da
realidade
,
documento
ou
ficção
, intriga
autêntica
ou pura
invenção
[...]” (FERRO, 1992, p.
86, grifos nossos). Posteriormente, parte da crítica historiográfica brasileira às
formulações elaboradas por Ferro destacaram que a análise dos filmes deveria considerar
os elementos próprios dessa linguagem para decodificar as escolhas de seus realizadores,
tendo em vista que a manipulação da realidade é algo inerente à linguagem do cinema
(MORETTIN, 2003; NAPOLITANO, 2008).
Embora seja imprescindível iniciar uma pesquisa histórica que pretende utilizar o
cinema como fonte pelos próprios filmes, por meio do escrutínio dos códigos de
funcionamento dessa linguagem, os códigos internos”, conforme define Marcos
Napolitano (2008, p. 236), não são apenas os aspectos internos do filme que devem ser
considerados quando utilizamos essa fonte para uma análise historiográfica.
Considerando que o filme, na condição de artefato cultural, possui sua própria história e
está em um contexto social específico (KORNIS, 1992), a análise de determinada obra
cinematográfica deve atentar para aspectos que extrapolam o próprio filme, observando
as especificidades da sociedade no qual a obra foi realizada, bem como as relações entre
o autor e a produção fílmica na sociedade (MORETTIN, 2003).
Partindo do que foi exporto, no centro da análise deste trabalho está o filme
Os
deuses e os mortos
(1970), dirigido por Ruy Guerra.
2
Esse diretor era representante do
Cinema Novo, movimento cinematográfico que almejava ser intérprete da sociedade
brasileira a partir da elaboração de novas técnicas e formas que visavam subverter os
modelos burgueses de representação da vida. Essa busca por
novas
técnicas e formas que
iam de encontro aos padrões burgueses de representação cujo maior exemplo no cinema
nacional foram as chanchadas está de acordo com o
zeitgeist
dos anos precedentes ao
golpe de 1964, marcados por uma busca ao “elemento popular” que caracterizaria diversos
setores da cultura e política brasileiras (GUIMARÃES, 2019).
A referência ao “espírito de uma época” alude à contribuição teórica e conceitual
elaborada por Raymond Williams (1979) que a denominou de
estrutura de sentimento
.
Conforme o autor, o termo “sentimento” não está em contraposição à noção de
“pensamento”, pois se refere a determinada visão de mundo, ou ainda à ideologia.
Contudo, seu alcance era ampliado, pois Williams considerava que os significados e
valores experimentados e vividos em uma época permaneciam de forma ativa em sua
época. A justaposição de “[...] crenças interpretadas e selecionadas e experiências vividas
e justificadas [...]” (WILLIAMS, 1979, p. 134) configura os elementos constituintes das
relações sociais compartilhadas por grupos e indivíduos. Portanto, o “espírito de uma
época”, ou o
zeitgeist
, pode ser entendido como uma estrutura com singulares relações
internas, repletas de tensões e hierarquias específicas.
Quando aplicado ao grupo conhecido como Cinema Novo e a sua atuação entre o
final da década de 1950 até meados da década de 1970, o termo cunhado por Raymond
Williams contribui de forma ímpar, posto que, apesar das diferenças individuais entre seus
integrantes, havia aspectos sociais e culturais comuns que os uniam. Essa união pode ser
detectada no que se refere às variadas matrizes que constituíam a cultura nacional [...]
produzidas por intelectuais e que teve nos intelectuais os mediadores [...] para a
2
Ruy Alexandre Guerra Coelho Pereira (Lourenço Marques, atual Maputo, 22 de agosto de 1931). É diretor
de cinema, poeta, dramaturgo, compositor e professor luso-brasileiro nascido em Moçambique, enquanto
este era território português. Em 1952, ingressou no
Institut des hautes études cinématographiques
(IDHEC)
de Paris. Radicado no Brasil desde 1958, juntou-se ao grupo de cineastas que compuseram o Cinema Novo.
Nos primeiros anos deste movimento dirigiu os premiados
Os cafajestes
(1962) e
Os Fuzis
(1964).
construção da ‘identidade nacional’ [...]” (FERNANDES, 2008, p. 68). Isso possibilitou a
esses cineastas, tal qual outros intelectuais e artistas de sua época, atuarem enquanto
intérpretes do povo, ajudando a construir representações que ilustrassem o aspecto
nacional-popular do país, sempre em compromisso com o que julgavam ser a verdade
brasileira”.
Embora diversas produções fílmicas desse movimento estejam vinculadas a um
conjunto de obras que expressavam posicionamentos contrários ao golpe militar, parte
desses filmes estava concebida antes do fatídico 31 de março de 1964.
Vidas Secas
(1963),
Deus e o Diabo na Terra do Sol
(1964) e
Os Fuzis
(1964) de Nelson Pereira dos Santos,
Glauber Rocha e Ruy Guerra, respectivamente - são considerados marcos do início da
produção
cinemanovista
e estavam concebidas antes do golpe militar. A comunhão entre
esses filmes, com uma crítica política contrária à ordem ditatorial da sociedade brasileira
e à supressão das liberdades ainda às vésperas de uma ditadura militar que viria a ser
deflagrada, pode ser explicada pela estrutura de sentimento na qual eles foram forjados,
estrutura compartilhada por grupos e sujeitos vinculados a divergentes espectros
políticos, vale ressaltar, desde o início da redemocratização em 1946.
Significativo é o fato dessas obras buscarem ambientar suas narrativas no Nordeste
brasileiro, representando-o como um lugar onde viver é uma constante labuta. Não por
acaso, a região é pensada a partir das imagens da seca, de personagens que desejam migrar
para um lugar ao sul, “[...] seja o Sul da Bahia com o seu cacau, ou o do Rio de Janeiro e de
São Paulo com o café e a indústria” (ALBUQUERQUE, 2011, p. 224). É o meio agrário e o
latifúndio que estão no foco dos cineastas, que miram para as condições de miserabilidade
em que se encontram os trabalhadores do campo; críticos de arte e diretores que
reivindicavam um “genuíno cinema nacional” direcionavam seu olhar para a temática do
campo como forma de traçar uma oposição ao urbano, fragmentando o espaço, cujas
frações reunidas conduziriam à ideia de progresso (RAMOS, 2005).
O Cinema Novo pode ser considerado enquanto componente do que Marcelo
Ridenti (2005) denominou como “estrutura de sentimento da brasilidade revolucionária”,
caracterizada pela idealização feita por setores das classes médias urbanas sobre o povo,
geralmente retratado enquanto sujeitos das classes mais pobres dos espaços urbanos e,
principalmente, os habitantes das áreas rurais do Nordeste e os migrantes dessas áreas
para as zonas urbanas por conta da seca. A partir daí, entende-se que pela ótica
cinemanovista
, a “verdade brasileira” deveria ser retratada por meio de temáticas que
destacassem o povo e seus sofrimentos, principalmente no meio rural. Ao mesmo tempo
em que era alvo de crítica dos filmes, esse espaço rural foi mobilizado como lugar da
saudade e das tradições, que lhe conferia certo “tom nacional” (ALBUQUERQUE, 2011;
FERNANDES, 2008).
Os realizadores do Cinema Novo acreditavam que o alcance do público nacional
seria consequência da conquista do externo, que viria através dos festivais europeus de
cinema espaços preferenciais escolhidos para exibição dos filmes e que implicava em
determinadas adaptações dos “[...] conteúdos dos filmes à percepção que os europeus
tinham do que seria o Brasil [...]” (FERNANDES, 2008, p. 263). Isso pode ser entendido
como uma estratégia de engajamento ao corresponderem, em certa medida, aos
estereótipos internacionais de um exotismo brasileiro. Tiveram êxito, pois as produções
foram exibidas e premiadas em diversos festivais da Europa.
Para conferir legitimidade cultural ao cinema e reivindicar o
status
de intelectual
aos cineastas, compreendendo-os enquanto intérpretes da realidade brasileira, os
cinemanovistas adotaram elementos estéticos que pudessem traduzir um “tom nacional”,
elaborando outra imagem do país que divergisse da representação oficial. Para isso,
optaram pela abordagem de temáticas retratando a situação de “colonizado”, passo
essencial no sentido da libertação, da conscientização crítica do povo brasileiro (BORGES,
2017; MALAFAIA, 2012).
Para o movimento do Cinema Novo, que buscava legitimar o cinema nacional, uma
genealogia da arte nacional foi importante. Esse “retorno” não foi exercitado apenas no
tocante à produção cinematográfica nacional, mas também foi mobilizado no que se refere
ao papel do intelectual na sociedade. A premissa de uma função social por parte do
intelectual e a veiculação de suas ideias a partir das obras de arte por ele produzidas é
ponto convergente no diálogo dos integrantes do Cinema Novo com os romancistas da
geração de 30.
Uma relevante motivação para esse diálogo pode ser encontrada numa questão
debatida por cineastas, críticos de cinema e produtores durante o I Congresso Nacional
do Cinema Brasileiro, no qual foi colocado o interesse em retratar nas telas determinados
problemas da nação e do povo brasileiro, apontando para a assertiva de Jean-Claude
Bernardet (2009) de que os cinemanovistas buscaram justificar suas produções através
do povo, como um “denominador comum”, para o alcance da sociedade brasileira como
um todo.
Porém, não bastava colocar o povo na tela, era preciso colocá-lo diante dela: para
além de ser tema, o povo deveria tornar-se público. Considerando a dificuldade que os
cinemanovistas possuíam em alcançar o grande público, podemos entender parcialmente
a ideia de Ruy Guerra em realizar
Os deuses e os mortos
a partir de uma adaptação de
Terras do Sem Fim
(1942), romance de Jorge Amado. Vale notar o sucesso de público obtido
pelo filme
Macunaíma
(1969), lançado alguns meses antes da película de Guerra, obra
dirigida por Joaquim Pedro de Andrade e adaptada do clássico homônimo da literatura
modernista, escrito por Mário de Andrade.
Durval Albuquerque (2011, p. 88) atenta para o fato de que as representações de
Nordeste difundidas pelo Cinema Novo e pelo romance de 30 estariam ligadas às práticas
que definem o espaço regional “nordestino” como marcado pelo combate à seca, pela
presença de surtos messiânicos e violentos cangaceiros, além de ser dominado por elites
políticas locais que buscavam manter os privilégios através dos conchavos. Não por acaso,
esses três elementos apontados pelo autor são imagens recorrentes para significar a
região Nordeste e presentes na narrativa de
Os deuses e os mortos
.
Em se tratando de práticas e representações, compreendemos que essas ideias
devem ser consideradas a partir de análise que percebe os grupos sociais que as
produziram, aludindo a Chartier (2002, p. 16-17), pois são geradas a partir das “[...]
disposições estáveis e partilhadas [...]” pelas classes sociais ou meios intelectuais
envolvidos, ou, de forma mais sucinta, corresponderiam às formas com que essas classes
sociais e esses meios intelectuais veem o mundo. Em se tratando do Cinema Novo, são
obras produzidas por intelectuais que almejaram uma “conscientização” do povo através
da circulação de informações da realidade brasileira.
As disputas são componentes intrínsecos às representações, pois estas fazem
parte de um campo caracterizado por competições e embates de poder. Para compreender
de que forma determinado grupo se impõe, com seus valores e sua visão de mundo, as
disputas de representações são tão importantes quanto as lutas econômicas (CHARTIER,
2002). Destarte, os cinemanovistas procuraram demarcar o que era e o que não era
Cinema Novo, considerando este o mais apto modo para retratar a realidade,
demonstrando a existência de disputas no que se refere às representações. Nesse caso em
específico, havia um embate em relação às produções que retratavam de modo mais
adequado a realidade brasileira, pois esses cineastas buscavam consolidar suas obras
enquanto “[...] representante da nação, dos anseios que ele[s] considera[m] como mais
legítimos e autênticos dessa nação [...]” (BERNARDET, 2009, p. 85).
As obras fílmicas, imersas nessa luta de representações, funcionam na sociedade
que as produziram como testemunhos de seu contexto, atuando para dialogar com sua
época, pois embora lance mão de narrativas que abordem épocas anteriores, é no seu
contexto de produção que “[...] se situa o verdadeiro real histórico desses filmes, e não na
representação do passado [...]” (FERRO, 1980, p. 40
apud
MORETTIN, 2003, p. 31). A
estudiosa Caroline Guimarães (2019, p. 127) atenta para a escolha de Ruy Guerra em
utilizar majoritariamente planos-sequências que ilustraram a instabilidade da região
cacaueira em
Os deuses e os mortos
, em detrimento do “[...] olhar estável e geometrizante
[...]” que caracterizou
Os fuzis
(1964), outro filme do diretor ambientado na região
Nordeste
3
. As mudanças do cenário político ocorridas nos seis anos de intervalo de uma
obra a outra podem ajudar a compreender as escolhas do diretor.
O filme “Os deuses e os mortos”: temática, estética e análise fílmica
Para a realização da análise fílmica
devemos considerar a partir das concepções
elaboradas por Goliot-Lété e Vanoye (2012, p. 51) que um filme é “[...] um produto cultural
inscrito em
um determinado contexto sócio-histórico [...]”, sendo imprescindível atentar aos aspectos
de ordem política e social em cuja época o filme está inserido. Porém, devemos também
ressaltar a especificidade de cada obra neste contexto, pois “[...] todo filme tem uma
história que é História, com sua rede de relações pessoais, seu estatuto dos objetos e dos
homens” (FERRO, 1992, p. 19).
Mediante o recrudescimento da repressão durante a ditadura civil-militar no Brasil
cujo expoente mais significativo foi o Ato Institucional 5, baixado em dezembro de
1968 a perseguição à classe artística identificada com posições políticas à esquerda do
campo político foi intensificada. Entre torturas, prisões, censuras e a fragilidade da
indústria cinematográfica no que se refere às produções nacionais, alguns cineastas
saíram do país.
Foi o caso de Ruy Guerra, que apresentou o experimental
Sweet Hunters
no
Festival de Veneza
4
de 1970. Nesse festival, o diretor encontrou o casal de atores Paulo
José
5
e Dina Sfat
6
que apresentavam o filme
Macunaíma
(1969) em lugar de Joaquim Pedro
de Andrade, diretor do longa-metragem, que não poderia sair do Brasil, pois estava preso
em decorrência de uma participação num protesto contra o regime (BORGES, 2017). Junto
a Paulo José e Flávio Império
7
, o diretor elaborou um roteiro cujas filmagens seriam
3
Mais precisamente na cidade de Milagres lugar onde começa a narrativa de
Os deuses e os mortos
,
localizada no semiárido baiano. É o “[...] mesmo lugar onde termina
O Dragão da Maldade
, fronteira entre
dois mundos visitada por Ruy Guerra desde
Os fuzis
(também filmado nesta cidade em 1963/64). Tudo
remete, de imediato, a um universo intertextual que põe em confronto três filmes que, nesta identidade de
locação, figuram o tratamento da fronteira entre dois mundos [...]” (XAVIER, 1997, p. 135).
4
Realizado na cidade de Veneza, Itália, desde 1932, portanto durante o regime fascista em voga no território
italiano. É o mais antigo festival de cinema no mundo e um dos três festivais de cinema mais prestigiados da
Europa.
5
Paulo José foi um ator, roteirista e diretor brasileiro. Atuou como produtor do filme
Os deuses e os mortos
(1970).
6
Dina Kutner de Souza foi uma atriz brasileira. Interpretou a personagem “Mulher Loucano filme
Os deuses
e os mortos
, tendo recebido por este trabalho o Troféu Candango de melhor atriz.
7
Flávio Império foi um cenógrafo, arquiteto, artista plástico e professor de urbanismo. Trabalhou em
importantes companhias de teatro do Brasil, a saber: o
Teatro de Arena
, junto com Gianfrancesco Guarnieri
e Augusto Boal, além do
Teatro Oficina
, em companhia de José Celso Martinez Correa. Colaborou no roteiro
de
Os deuses e os mortos
e seria também cenógrafo deste filme caso não tivesse sido preso pela ditadura
realizadas no nordeste brasileiro, cenário onde ele tinha realizado
Os Fuzis
e,
anteriormente a este, os inacabados
Orós
, que versava a respeito da seca, e
O Cavalo de
Oxumaré
, que tratava das religiões de matriz africana.
Os deuses e os mortos
foi gravado
no Sul da Bahia, mais precisamente nas matas da região, perto de Itajuípe, Ilhéus e Itabuna,
além dos distritos de Rio do Braço e Aritaguá.
Conforme relato de Paulo José a Vavy Pacheco (2017), Ruy Guerra pretendia
realizar um filme de cunho popular, distante das produções herméticas que haviam
caracterizado sua trajetória cinematográfica. O anseio por realizar uma produção que
fosse de cunho popular correspondia, naquele contexto, à meta dos realizadores
vinculados ao Cinema Novo em consolidar suas produções através do fortalecimento de
um mercado interno, com produções que pudessem obter maior alcance de público
(BORGES, 2017; FERNANDES, 2008; RIDENTI, 2005). Nesse sentido, a sofisticação das
técnicas de produção e distribuição da indústria cultural possibilitaram entender a noção
de “popular” a partir da “[...] definição comercial ou de ‘mercado’ do termo [...]” (HALL,
2003, p. 253), ou seja, quando popular passou a significar o que é consumido de forma
notável pelas massas.
A
priori
, a ideia do diretor era adaptar o romance
Terras do Sem Fim
(1942), de Jorge
Amado, mas os direitos desta obra estavam com uma produtora estadunidense
8
. Vale dizer
que em 1970 o romancista baiano ainda não era o fenômeno de cinema e televisão que se
tornaria poucos anos depois, impulsionado por estratégias dos órgãos de cultura da
ditadura militar que incentivaram adaptações de obras literárias para as telas (MALAFAIA,
2012).
Embora Jorge Amado já fosse um escritor de sucesso à época da elaboração de
Os
deuses e os mortos
, a noção de “popular” marcada por um sentido comercial não dá conta
da influência do literato para a geração cinemanovista, sendo necessário atentar para
outros aspectos que explicavam o fato do autor baiano estar na órbita de Ruy Guerra para
realizar uma obra que conseguisse amplo alcance de público. Em seus romances, Jorge
Amado escrevia histórias cujos protagonistas eram provenientes das camadas populares,
o que deu à sua obra um aspecto de arte comprometida, pois nela “[...] o povo é o
personagem principal” (ROCHA, 2004, p. 345).
A fim de conquistar o blico brasileiro, era relevante colocar o povo e as questões
populares na tela, tratando-os enquanto temas; mas também era preciso colocar esse povo
militar. FLÁVIO IMPÉRIO. In: WIKIPÉDIA: a enciclopédia livre. Wikimedia, 2021. Disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Flávio_Império. Acesso em: 20 nov. 2021.
8
Terras do Sem Fim
foi adaptado sob o nome de
Terra Violenta
(1948). Foi dirigido por Edmond Francis
Bernoudy e produzido pela Atlântida Empresa Cinematográfica do Brasil S.A., empresa pioneira no tocante
às produções nacionais, com destaque para o gênero da chanchada.
diante da tela, torná-lo público das obras, almejadas para serem “descolonizadas” e
“descolonizadoras”. Conforme asseverava Glauber Rocha:
É preciso distinguir entre conquistar o mercado com filmes descolonizados e
descolonizadores e explorar o mercado com filmes colonizados e colonizadores.
Vou trocar em miúdos pela última vez:
filmes descolonizados
são aqueles que se
recusam a imitar os modelos americanos e buscam refazer o cinema nacional a
partir de nossas verdadeiras raízes culturais
(ROCHA, 2004, p. 231, grifos
nossos).
Para os realizadores do Cinema Novo, o compromisso com a busca das
“verdadeiras raízes culturais” era demasiado relevante para o intelectual atuante. Quando
se refere à produção cinematográfica em busca do que chamava de “raízes culturais”, o
cineasta se posicionava em relação ao cinema realizado no Brasil que estava inserido na
dicotomia
nacional
x
estrangeiro
. Os “modelos americanos” citados por Glauber eram
exemplos de narrativas “colonizadoras”, cujas premissas deveriam ser refutadas pelo
cineasta comprometido com a questão nacional.
É fato que o cinema utilizou a literatura como suporte desde o seu surgimento
(ALVES, 2010), mas é a partir das duas primeiras edições do Congresso Nacional de
Cinema Brasileiro que verificamos outros contornos dessa relação. Conforme afirmado no
tópico anterior, foi aventado na primeira edição desse evento, em 1952, o debate que
sugeria um envolvimento do cinema brasileiro no tocante a uma abordagem séria” dos
dilemas enfrentados pela nação e pelo povo (ALBUQUERQUE, 2011). Por sua vez, na
segunda edição do Congresso Nacional de Cinema, em 1953, o crítico de cinema Walter da
Silveira tinha apresentado a tese
Da contribuição dos escritores brasileiros para o
cinema nacional
(FERNANDES, 2008), sugerindo que as relações entre os integrantes do
Cinema Novo e os literatos apresentavam componentes mais específicos do que a simples
utilização dos romances em adaptações cinematográficas.
A obra de Jorge Amado convergia, na visão dos cinemanovistas, na direção de uma
abordagem anticolonial. E sua influência é ressaltada por Glauber Rocha quando da
definição de uma síntese do Cinema Novo, que seria resultado, dentre outras referências,
das “[...] bandeiras nordestinas, modernistas, trintistas [sic], comunistas, [...].
Rio, 40
graus
: carioca, popular, paulista, nordestina, sertaneja, brasileira.
O país do carnaval
,
Cacau
,
Suor
, de Jorjamado [sic]. Burguesia. Camponeses. Negros. [...]” (ROCHA, 2004, p.
309).
Em relação ao filme
Os deuses e os mortos
, a influência de Jorge Amado apresenta
outros contornos, afinal a ideia inicial de Ruy Guerra era realizar uma adaptação de
Terras
do sem fim
, que não ocorreu. A referência do escritor baiano na construção do roteiro do
filme soa, inclusive, natural; pois através de seus romances, o autor desempenhou papel
fundamental no que diz respeito à inserção da região cacaueira (o litoral sul do estado) à
“[...] geografia imaginária da Bahia [...]” (ALBUQUERQUE, 2011, p. 245), cujas imagens e
representações remetiam majoritariamente à região que compreende Salvador e o
Recôncavo.
Embora Jorge Amado trate da atividade cacaueira em vários romances, o que pode
ter contribuído para o interesse inicial de Ruy Guerra em adaptar
Terras do sem fim
foi o
fato deste romance possuir certos componentes cinematográficos, como por exemplo os
“[...] cortes presentes na narrativa e da atmosfera de
far-west
[...]” ressaltados por
Guimarães (2019, p. 129). E, ainda, o próprio transcorrer da narrativa com inícios e fins de
capítulos que parecem ser definidos “[...] no sentido de uma câmera [...]” (CANDIDO, 2004,
p. 53).
Embora tivesse abandonado a ideia de uma adaptação literal do romance amadiano,
o diretor escreveu um faroeste gênero que fazia sucesso na época e fizera clássicos
comerciais que não o impediu de valorizar novamente a
forma
de contar a história,
inspirada na literatura de Jorge Amado. Se sua ideia inicial havia sido demasiadamente
utilizada (BORGES, 2017), a opção por abordar a história que tinha em mente de forma
não-linear foi uma solução encontrada para adicionar algo de específico ao significado da
trama original. A interpretação crítica, obtida mediante o método da análise fílmica, está
atenta ao sentido e à produção do filme, almejando conectar “[...] o que se exprime e ‘como
isso se exprime’, conexões sempre conjeturais, hipóteses que exigem todo o tempo serem
averiguadas pela volta ao texto” (GOLLIOT-LÉTÉ; VANOYÉ, 2012, p. 49).
Desde as cenas de abertura do filme,
Os deuses e os mortos
lança mão de imagens
e sons para indicar ao espectador o teor de tensão e agonia (como se exprime) com que
será abordada a produção e o comércio de cacau no Sul da Bahia (o que se exprime)
durante as primeiras décadas do século XX. Os créditos iniciais são dispostos na tela ao
som da canção
Tema dos Deuses
9
enquanto o espectador imagens do chocolate,
derivado do cacau. Mas não se trata do produto final prestes a ser consumido. São imagens
que retratam a ebulição do produto, a etapa que caracteriza o intermédio entre a fase
primária do cacau e sua transição para a industrialização.
O pressuposto de uma transformação social mediante a remoção do atraso”
presente nos meios rurais dialoga explicitamente com os ideólogos do ISEB (Instituto
Superior de Estudos Brasileiros), que defendiam uma modernização do país através de um
9
Composição de Milton Nascimento e interpretada por este acompanhado pela banda Som Imaginário. Essa
canção fez parte do repertório do disco
Milagre dos Peixes
(1973), cujas letras foram vetadas pela censura
da ditadura militar, obrigando o artista a lançar um álbum em instrumental, contendo apenas as melodias.
Além de assinar a trilha sonora de
Os deuses e os mortos
,
ao lado da banda Som Imaginário, Milton
Nascimento também atuou neste filme, interpretando o jagunço Dim-Dum.
processo de industrialização (RAMOS, 2005). Essa concepção fica evidente desde o início
do filme, quando nos é apresentado um ambiente de vegetação árida, indicando que
estamos no sertão. Um grupo de retirantes ouve um monólogo de tons messiânicos. Ainda
que a narrativa enfoque a região cacaueira e a ilusão da riqueza através do “fruto de ouro”,
o ponto de partida é a seca e o deserto, elementos escolhidos para significar o Nordeste,
enfocando “[...] o êxodo que ela provoca [...] até se chegar ao litoral ou à terra prometida
do Sul” (ALBUQUERQUE, 2011, p. 138).
A cena seguinte oferece indícios da temporalidade em que se passa o enredo. Na
cidade de Milagres, caminhões e um posto de gasolina com a logomarca da
Shell
sugerem
que estamos em anos posteriores à época em que se passa boa parte da história. Nesse
ponto, uma espécie de justaposição das épocas é apontada na “[...] confluência de
retirantes, caminhões, agentes da repressão e sinais variados da experiência religiosa que
o sertão traz consigo” (XAVIER, 1997, p. 135), elementos contemporâneos aos anos
compreendidos entre 1960-1970. A presença de caminhões e o posto da
Shell
contrastam
com o andar fantasmagórico da multidão de espectros empoeirados, que virá a ser a mão-
de-obra nas fazendas de cacau do sul da Bahia.
Na próxima cena, nosso olhar é conduzido para um ambiente interno (a primeira do
filme). No banheiro do posto de gasolina, dois motoristas de caminhão conversam sobre o
destino dos seus passageiros. Um deles afirma que o seu ponto de chegada é São Paulo. O
outro é taxativo: “cacau”. A realização desse diálogo num ambiente interno pode fazer
alusão ao caráter fechado no que diz respeito às resoluções dos destinos dos
trabalhadores, que tem suas vidas decididas sem que saibam qual será ou que possam
participar da decisão. Essa cena marca o fim das imagens referentes ao mundo do trabalho
no filme, prenunciando o deslocamento que marca o desenrolar da trama.
No seguimento da narrativa, Ruy Guerra abordará as “[...] relações mágicas internas
à cultura do cacau, o mundo da tradição local onde a família é princípio maior de
organização política, econômica, religiosa [...]” (XAVIER, 1997, p. 133), embora o inscreva
no interior da economia capitalista ocidental. Ainda que o filme aborde a economia
cacaueira e exponha as matas de cacau,
[...] as imagens do trabalho são muito raras; a representação dos pobres é
bastante oblíqua, projetando-se em figuras alegóricas que parecem se associar
aos “mortos” do título do filme. As figuras dos trabalhadores e da pobreza
representada de forma mais objetiva, tão cara ao Cinema Novo, são empurradas
para as margens do filme, que joga luz sobre imagens de agonia, assassinatos e
sofrimento, inclusive dos chefes de família tradicionais (GUIMARÃES, 2019, p.
131).
A opção por mesclar imagens do mundo material com imagens referentes a uma
instância metafísica marca também parte das produções de Glauber Rocha com quem
Ruy Guerra dialoga através de seus filmes. Mas, em lugar de representar figuras como
santos católicos ou orixás africanos tal qual Glauber fez em
O Dragão da Maldade
as
imagens do mundo metafísico escolhidas para representar a região cacaueira são os
espectros que estavam vagando desde o início do filme.
Quando o diretor apresenta as terras do cacau, as primeiras imagens que vemos
acerca desse espaço são estes “[...] espectros, estas figuras que atravessam o tempo, [...]
formando um círculo [...] e empoeirados como mendigos, escravos ou penitentes [...]”
(XAVIER, 1997, p. 136). O significado dessas figuras no conjunto da narrativa vai
gradativamente sendo desvelado, mas aponta uma ligação entre estas e a multidão
representada no início do filme, sugerindo condições precárias de trabalho por parte da
mão de obra atuante nas lavouras de cacau, representada por migrantes de regiões do
sertão.
Na cena posterior, vemos dois jagunços na mata junto a um cadáver de um padre.
Um deles um homem caminhando pela estrada de ferro, ao passo que o outro destaca
o aspecto estrangeiro do andarilho, reforçando que este não era daquele lugar. O
forasteiro é alvejado, mas veremos a continuação dessa cena em uma sequência
posterior.
Conforme destaca o cineasta Vsevolod Pudovin (1926
apud
XAVIER, 1983, p. 63), a
montagem é “[...] um método que controla a ‘direção psicológica’ do espectador [...]”. Ou,
ainda, é a montagem quem cria o filme (KORNIS, 1992), aspecto que convoca o analista a
considerar a forma como o filme foi montado, ou como a história foi contada, em
detrimento de encará-lo com reprodutor fiel da realidade.
O corte brusco da cena que retrata o andarilho sendo alvejado nos trilhos do trem
nos impede de ver o rosto do baleado, mas nos apresenta a personagem Sereno, esposa
de um trabalhador das roças de cacau. Vemos a casa incendiada da personagem, seu
esforço para fugir daquele lugar com uma criança e o corpo morto de seu marido. As
sequências realizadas nas terras do cacau convergem para retratar a violência que parece
inerente àquele lugar. Sendo assim, nosso olhar é novamente conduzido para os trilhos do
trem, onde podemos ver em destaque o rosto da personagem. Agora ela está caída,
declamando um monólogo cheio de simbolismos, onde afirma querer “[...] o rei, a rainha, o
palácio, o engenho, a cana, o bagaço, o pai, a mãe, o filho, o tampo da cumbuca do balaio
[...]” (OS DEUSES e os mortos, 1970).
O estilo literário dos diálogos faz referência à Shakespeare, influência que também
é perceptível no tom teatral do conjunto da obra e na direção de atores, marcada por
interpretações mais viscerais e exageradas, mais próximas do estilo teatral. Mas é na
temática que Ruy Guerra alude mais explicitamente ao dramaturgo inglês, tendo em vista
que Sete Vezes agente da vingança “[...] está no centro de uma alegoria que ressalta,
à Shakespeare: o Grande Mecanismo do Poder” (XAVIER, 1997, p. 154). Se a princípio Sete
Vezes é descrito como o “estrangeiro”, logo vai revelando sua cumplicidade com aquela
terra; podemos notar sua familiaridade com aquele lugar, pois ele remete aos espectros
retratados no início do filme. Sete Vezes está com as mãos amarradas, tem o mesmo
aspecto de empoeirado e veste trapos tão maltrapilhos quanto os fantasmas vagantes. A
respeito dessa personagem, Ismail Xavier destaca que
Sete Vezes é o desconhecido ‘sem nome’ cuja identidade se empalidece diante da
contundência desta sobrevida de quem sofreu toda a violência possível e no
mundo dos homens algo sem segredos. Ele é eficaz em suas ingerências na
ordem dos acontecimentos lembra, por exemplo, um Antonio das Mortes
10
e
deixa claro que sua força misteriosa está contra os D’Água Limpa. (...) Se há uma
tradição de violência, seu papel é acirrá-la, participar do circuito da vingança
como uma emanação natural da terra, embora ninguém o conheça. (...) Sempre
oracular na fala, é no cenário de um ritual de sangue que desenha para nós sua
perspectiva” (XAVIER, 1997, p. 146).
A chegada de Sete Vezes marca um acirramento da vingança, ele é a própria
encarnação desta, cuja origem emana naturalmente da terra adubada com sangue, uma
rotina composta por guerra e violência. Sereno parece contagiada pelo espírito de
vingança quando vai à casa do Coronel Santana da Terra exigir uma retaliação pela morte
do seu marido, empregado do coronel. Na varanda da fazenda está um banqueiro que alerta
à Santana que “Sereno não vale uma guerra”. A guerra em questão teria como rival o clã
D’Água Limpa, inimigos políticos do coronel e responsáveis pela morte do cônjuge de
Sereno; mas aos olhos do banqueiro interessado nas cifras referentes à exportação de
cacau a morte do camponês é desimportante. Se Santana colocasse panos quentes,
manteria a engrenagem econômica em perfeita normalidade. Caso aderisse ao desejo de
vingança da viúva, provocaria uma guerra nas terras do cacau, levando a região para
tempos de instabilidade.
A família d’Água Limpa é apresentada com seus integrantes dentro do armazém de
cacau pertencente ao clã. Venâncio, o político da família, retornando de uma viagem à
Ilhéus, avisa a Urbano (chefe do clã) que [...] o crédito está fechado, [...] o cacau não vai
subir, só esse ano a Costa do Ouro triplicou a produção” (OS DEUSES e os mortos, 1970).
Apesar do volume considerável da produção cacaueira no Sul da Bahia,
[...] esta não era a única a ser oferecida no mercado. A também crescente
produção de origem africana, indicava a urgência de medidas que adequassem a
10
Personagem interpretada pelo ator Maurício do Valle (1928-1994) e protagonista de dois filmes do diretor
Glauber Rocha (1939-1981), a saber:
Deus e o Diabo na terra do sol
(1964) e
O Dragão da Maldade contra o
Santo Guerreiro
(1969). Neste último filme, a personagem Antonio das Mortes termina caminhando por uma
rodovia nos arredores de Milagres “a fronteira entre dois mundos”, demarcando aqui a fronteira entre o
mundo rural dominado pelo patriarcalismo e o incipiente mundo urbano brasileiro.
oferta do cacau baiano à demanda, o que de fato não veio a ocorrer até 1930
(FREITAS, 1979, p. 50).
A estratégia do diretor em realçar contrastes através dos diversos recursos fílmicos
agora se nos diálogos. Enquanto Venâncio profere um discurso de preocupações
econômicas cujos termos aludem a esse universo, Urbano responde que “o monstro está
escancarando a goela”. Na sequência dessa metáfora, ele acredita que a melhor estratégia
para seus negócios é o domínio político da família D’Água Limpa na região. Venâncio “[...]
vencerá as eleições no município de qualquer jeito”, mesmo que seja preciso “[...] vender
arroba [de cacau] a preço de banana” para injetar dinheiro na campanha e assim derrotar
Santana da Terra que está “[...] botando essa região toda a chumbo e fogo, se apoderando
da mata, do cacau dos outros e da lei” (OS DEUSES e os mortos, 1970).
A fala de Urbano é apropriada para nos situarmos perante a alegoria do sistema
capitalista retratada pelo diretor, pois fica clara a dependência em relação ao preço ditado
pelo capital estrangeiro, a existência da concorrência de outras regiões produtoras (a
Costa do Ouro) e a solução equivocada de “vender cacau a preço de banana” para financiar
uma disputa política interna, o que levou ao aniquilamento da região cacaueira.
Para sugerir o equívoco do raciocínio de Urbano, o diretor apresenta em seguida
uma figura que representa quem de fato está se apoderando “do cacau, dos outros e da
lei”. A cena, num formato de retrato, mostra um aristocrata mencionando dados do
comércio de exportação sentado numa poltrona com uma mulher a seus pés e uma
melancia na mão. Essa cena explicita o estilo alegórico com o qual Ruy Guerra quer contar
a sua história, e o recurso serve ao diretor para melhor retratar a justaposição almejada.
11
A rápida aparição da personagem “de números” anuncia a chegada de um
exportador. Sempre acompanhado por um jagunço, ele surge na história após a lógica de
guerra estar instaurada. A interpretação que caracteriza essa personagem difere dos
exageros visíveis na construção das outras personagens apresentadas.
Daí em diante a guerra se instaura. Sereno assassina um membro da família D’Água
Limpa e é recebida no mesmo prostíbulo onde Sete Vezes foi curar os ferimentos. Parte
do clã vai até o lugar buscar o assassino e a cena é exibida num plano-sequência que simula
a vertigem que rege aquele universo. Conforme assertiva de Golliot-Lété e Vanoyé (2012,
p. 98) esse recurso provoca “[...] uma tensão entre: o movimento e a imobilidade (da
câmera, dos personagens); entre a reunião e a dispersão (personagens no campo,
personagens entre si) [...]”.
11
Segundo Napolitano (2008, p. 276), “[...] quando a narrativa é alegórica, a representação nem sempre
remete a uma ação diegética (ou seja, aquela que se passa no universo ficcional do filme), sendo importante
a justaposição de elementos no plano e na sequência fílmicos que nem sempre remetem a uma causa e efeito
de natureza ‘realista’.”
A tensão permanece quando somos apresentados à Mulher Louca, personagem
interessante, pois é a única que se relaciona com os espectros do filme. Em sua primeira
cena, ela encontra Jura, filha do Coronel Santana, num piquenique rodeada pelos mortos
do título do filme. A jovem parece não os ver, enquanto a enigmática mulher que está
grávida sinais de que os conhece, inclusive se comunicando com eles. Em
monólogo, na cena seguinte, a mulher explicita melhor essa relação ao afirmar que
Tudo aqui dentro, não tem mais nada fora.
O céu, o mato, os mortos
e mais alguma
gente que eu vi. tudo aqui dentro girando, andando, gritando. Uma hora eu vou
parir todo esse redondo. Uma hora dessa vai pular toda a
berraria
. Eu vou
botar
pra fora o pus, a gosma, a baba
. Eu vou
parir todas as cheirezas
[sic]
desse mundo
.
tudo aqui dentro; os braços, as caras,
as tripas
... Tudo vivo! Se mexendo e
caminhando como coisa e como gente. Eu vou
parir os venenos e as lepras
,
as
falas que roem as ferrugens
,
o osso e a madeira
. Eu vou
parir facões, chumbo
quente e de pólvora
. Eu vou parir uma muçurana comprida como eu e
botar
pra fora sangue e mais sangue e ainda sangue e sempre sangue e sangue sem
acabar de ser sangue até tudo ser sangue e sangue ser tudo
. Até o dormir do sol,
até o dormir da lua, até o dormir do verde, até o dormir dos homens, até o dormir
no tempo.
Vou parir, vou parir até tudo ser um podre só, até tudo ser um veneno
só, até tudo matar tudo, até o podre empodrar no próprio cheiro
. [...] e esse
mundo não ter lugar nem tempo até pra morte [...] (OS DEUSES e os mortos,
1970).
A personagem grávida encerra a cena rolando no chão com os espectros, com os
mortos. Como se tudo que fosse parido naquela terra já nascesse natimorto. O clima de
morte permanece na cena posterior, quando Sereno e Sete Vezes assassinam juntos outro
membro do clã D’Água Limpa sob o olhar do Coronel Santana. As ações da personagem
Sete Vezes parecem encarnar o desejo esboçado pela mulher grávida. Sua aliança com a
paranormal e com Sereno “[...] tem a benção dos ‘deuses e dos mortos’ que parecem ter
algo a cobrar dos patriarcas [...]” (XAVIER, 1997, p. 148). Durval Muniz ressalta que a figura
do coronel é quase sempre representada como [...] truculenta e discricionária, [...] sempre
acompanhado do jagunço, tendo o cangaceiro como seu grande inimigo, ao lado dos
coronéis rivais” (ALBURQUERQUE, 2011, p. 226).
Em agradecimento a Sete Vezes pelo assassinato de membros da família D’Água
Limpa, o coronel Santana leva o estrangeiro para sentar-se à mesa com sua família. Na
mesa também estão sentados os mortos, além de Soledad e Jura, respectivamente esposa
e filha de Santana. A trilha sonora marcada por tambores do universo musical afro-
brasileiro embala o transe de Jura, aparentemente provocado pelos deuses e os mortos. O
fazendeiro sugere ao forasteiro que reconhece em sua figura uma espécie de castigo dos
deuses:
O destino do homem é tentar escrever a grandeza dentro do círculo traçado pelos
deuses [...]. Escutem: os deuses estão raivosos, de sua lei nós sabemos apenas o
castigo. [...]. Você me ajudou Homem, mas de cada navalhada no corpo de
Valeriano D’Água Limpa brotava mais sangue dentro de mim e do seu próprio
corpo. Você me ajudou Homem, isso me basta. Não lhe pergunto quem és, de onde
vens, o que buscas, porque és meu hóspede. Talvez porque eu conheça as
respostas. O que foi escrito, a mão do homem não muda. Porque ele pertence aos
demônios [...]. Urbano vai atacar, os D’Água Limpa querem erguer outro império
dentro do meu império. Mas a condição de um império é ter suas raízes
mergulhadas nas nódoas do tempo e do sangue (OS DEUSES e os mortos, 1970).
Esta fala revela que a engrenagem econômica referente ao cacau já traz a violência
desde o processo de ocupação dessas terras, gerando disputas recorrentes e insegurança
constante, sendo fator importante para o atraso da dinâmica da sociedade local (FREITAS,
1979). Ismail Xavier (1997) prossegue nessa mesma linha de raciocínio quando afirma que
é a crise interna da sociedade cacaueira que desvela o caráter violento de sua experiência
histórica. O mito dos frutos de ouro escondia uma dinâmica de relação predatória com as
terras, a natureza e os trabalhadores.
Mas essa fala, no contexto de uma narrativa alegórica que visa estabelecer uma
justaposição de temporalidades, também aponta ao próprio contexto do filme. O império
que tem raízes “nas nódoas do tempo e do sangue” evoca a discussão anticolonial presente
no contexto das filmagens, realidade presente e próxima de Ruy Guerra, tendo em vista
que os movimentos da luta anticolonial reverberavam em Moçambique terra natal do
escritor e sob domínio português quando da edição/feitura/lançamento do filme.
Na crítica ao colonialismo e ao capitalismo, Sete Vezes vai explicitando sua
intimidade com a terra cuja lei é o sangue, cujo jogo é o ouro. Ele é produto desse jogo e
dessa lei, é o excesso que escapou ao controle dos poderosos numa região cujo poder
militar era formado por jagunços; não por acaso, esse é ofício mais presente na narrativa
de
Os deuses e os mortos
. O uso dessas milícias particulares foi prática constante
mediante as batalhas decorrentes da posse pela terra (FREITAS, 1979). Essa constância é
representada no filme numa cena realizada na praça central da cidade de Itajuípe. O espaço
redondo desse lugar é ocupado com moradores locais atuando como figurantes,
representando jagunços.
O cenário dessa praça é de suma relevância para o sentido que o filme quer
construir, pois, quando ela foi escolhida para a gravação da cena, estava coberta de areia.
No dia da filmagem, a praça havia sido asfaltada, atendendo a um pedido antigo da
população local. Porém, “[...] Ruy exigiu que cobrissem tudo de areia novamente [...]”
(BORGES, 2017, p. 247), indicando que a praça deveria corresponder àquela imagem de
atraso inerente aos espaços rurais, concebida pelo diretor e confirmando um “princípio
orientador” nas escolhas realizadas, inclusive remetendo à imagem de um Brasil exótico,
palatável aos olhos da crítica cinematográfica europeia (MORETTIN, 2003; RAMOS,
2005).
O plano-sequência faz com que a câmera passe “[...] em revista os jagunços imóveis,
fazendo desfilar os rostos desse exército de pobres à espera da morte” (XAVIER, 1997, p.
150). Acerca desse recurso nas produções do Cinema Novo, é sabido que a câmera na mão,
somada aos movimentos circulares em torno das personagens, é mais adequado para
melhor simular uma espécie de vertigem em que elas estão envolvidas (ALBUQUERQUE,
2011).
Enquanto Urbano D’Água Limpa instrui os jagunços como um comandante de
guerra antes da última batalha, o exportador aquele de jeito contido e diferente das
outras personagens conversa com Venâncio no armazém da família D’Água Limpa. Os
olhos do espectador podem ver várias sacas de cacau, enquanto os ouvidos percebem o
barulho dos tiros do massacre que ocorre lá fora.
Após vermos os corpos agonizando na praça, a cobrança dos deuses faz de Santana
da Terra o próximo cadáver executado pelas mãos de Sereno e Sete Vezes nas roças de
cacau e sob os olhares dos fantasmas. Noutro monólogo cheio de simbolismos, o coronel
oferece imagens para que o espectador decifre a alegoria da ordem neocolonial concebida
por Ruy Guerra: “[...] as raízes do império são longas demais para serem cortadas num só
golpe. [...] Porque o império é mais forte que o homem e fará dele o seu homem” (OS
DEUSES e os mortos, 1970). Cumprindo seu papel, Sete Vezes também mata Urbano
D’Água Limpa.
O forasteiro se apodera do lugar de Santana da Terra em cena embalada por forte
ventania. Na tradição cinematográfica, vemos “[...] na tempestade e no vento exteriores
[...] o mbolo de uma tempestade mais interior, a que habita os personagens [...]”
(GOLLIOT-LÉTÉ; VANOYÉ, 2012, p. 71). A perturbação ocorre na mente de Soledad, viúva
do coronel, que não compreende a rapidez com que entrega o lugar deste ao enigmático
forasteiro.
Mas Sete Vezes não é dono de nada. Ali, o comerciante exportador informa que a
safra foi vendida antecipadamente para cobrir os custos da guerra desencadeada na região
e apresenta notas promissórias que garantem os direitos de compradores londrinos sobre
as terras. Prestes a ser atacado pelo punhal de Sete Vezes, o exportador mostra sua alma
e rechaça qualquer efetividade do ataque da violenta personagem:
Mesmo que você me matasse, homem, vonão destruiria a cabeça, que está fora
do meu corpo. O cacau é o ouro e o ouro é a lei. As lutas deixaram o império de
Santana vazio. Você, homem, é dono de um império. De um império oco dentro
de outro império maior (OS DEUSES e os mortos, 1970).
Para Sete Vezes, a lei é o sangue e o jogo é ouro; para o exportador, o ouro é a lei.
Não há sangue devido ao seu afastamento da realidade local, ao seu “não–envolvimento”
com a política. Não há jogo, pois seu interesse é o cacau. E se não for possível explorar o
ouro na terra do cacau, outro ouro em outro lugar haverá. Esta sequência evidencia a
abordagem proposta pelo diretor: o império do cacau, por mais opulento que parecesse
aos produtores, era apenas um fragmento dentro de outro império ainda maior o sistema
capitalista neocolonial. Anos depois, Ruy confessou que a saga do cacau nos anos 1920
“[...] o atraiu por seu lado um pouco cíclico da colonização capitalista [...]” (BORGES, 2017,
p. 247).
A última cena do filme mostra os espectros envolvendo um corpo amarrado e
ajoelhado com o rosto no chão tal qual Sete Vezes nos trilhos do trem, no início do filme.
O som das moscas indica a matéria podre presente naquele lugar. Por sugestão de Ruy
Guerra (BORGES, 2017), a palavra “Fim” não entrou ao final do filme em sua exibição
original, o que sugere um filme histórico com uma narrativa cíclica; mais que a “maldição
dos deuses” (XAVIER, 1997), o filme
Os deuses os mortos
evidencia uma “maldição da
História”.
Considerações finais
Se é possível “[...] usar um filme [...] para esboçar o quadro de uma sociedade, ou
ainda para descrever os contornos de um movimento estético [...]” (GOLLIOT-LÉTÉ;
VANOYÉ, 2012, p. 49), a análise de
Os deuses e os mortos
nos permite enxergar a narrativa
alegórica como forma de driblar os órgãos da censura; mas também possibilita que
olhemos esse recurso enquanto saída para determinadas abordagens naquele período
marcado pela repressão.
A partir da consideração de que o conteúdo fílmico está associado ao seu
respectivo contexto, vale ressaltar que o cenário político brasileiro em 1969 ano de início
das produções de
Os deuses e os mortos
demarcava uma impossibilidade de
manutenção dos paradigmas que marcaram as produções do Cinema Novo nos momentos
iniciais do movimento, entre a segunda metade da década de 1950 e os anos iniciais da
década de 1960 (GUIMARÃES, 2019). Portanto, o filme de Ruy Guerra aponta para um
“colapso da modernidade” e está inserido num período, conforme Ismail Xavier (1997, p.
132), marcado por uma “[...] ‘revisão da história’, [...] quando entrou em crise a teleologia
de salvação que alimentava [...]”
12
o ideário das primeiras produções cinemanovistas.
Neste filme podemos ver o diálogo de Ruy Guerra com o
Cinema Marginal
chamado
de forma pejorativa de
udigrudi
por Glauber Rocha, ilustrando as disputas de
representação mencionadas. Caracterizado por uma ruptura com as tendências
cinematográficas de então incluindo o Cinema Novo possuía estética agressiva e
12
Outros exemplos de produções que retratavam o tema da decadência neste período são:
Os herdeiros
(1969), dirigido por Cacá Diegues;
O Dragão da Maldade
(1969), dirigido por Glauber Rocha e
A casa
assassinada
(1971), dirigido por Paulo César Saraceni.
temáticas que privilegiavam a desagregação social, a miséria e a violência em espaços
urbanos, pondo em destaque personagens que são “[...] sujeitos sem direcionamento,
amorais ou em constante processo de autodestruição [...]” (MALAFAIA, 2012, p. 62),
coerentes com o objetivo de retratar a sociedade brasileira e sua inerente violência. O
diálogo de Guerra com o
Cinema
Marginal, portanto,
motivou críticas de Glauber Rocha
ao diretor e um momento foi quando o baiano afirmou que as personagens de Ruy não
eram brasileiras, pois “[...] são
ruyguerreanos
[sic] aqui ou acolá [...]” (BORGES, 2017, p.
143).
O tom pessimista do filme
Os Deuses e os mortos
é indício do contexto denso de
sua produção e lançamento, marcado pelo recrudescimento da repressão do regime civil-
militar e as divergências nos grupos de esquerda sobre a melhor estratégia de combate ao
regime. Destarte, Ruy Guerra mobiliza as disputas econômicas que constituem a temática
do romance
Terras do Sem Fim
(1942) para a sua contemporaneidade.
Assim, a exploração da terra para a plantação de cacau é associada, no livro e no
filme, à instância do mercado internacional, pois é no exterior que o preço do cacau é
estabelecido, bem como acontece o consumo desse produto. O vínculo do cacau à
demanda externa é característica estrutural da economia baseada na monocultura de
exportação, dado que resulta em constantes flutuações de preços e ocasiona várias crises
para a região, o que atraiu o interesse do cineasta, conforme ele elucidaria anos depois
(BORGES, 2017; FREITAS: 1979; GUIMARÃES: 2019).
Mas a película de Ruy Guerra expõe elementos que possibilitam articular o filme
numa perspectiva de discussão política global. Para tal, consideramos a própria trajetória
tri-continental do cineasta, bem como determinadas imagens mediadas em
Os deuses e os
mortos.
Em forma alegórica, a crítica à engrenagem do sistema capitalista é realizada a
partir de elementos como sangue, ouro, reino, império, que são termos condizentes com
o debate das independências das colônias africanas de língua oficial portuguesa dentre
as quais, Moçambique, terra natal do diretor e que ainda estavam sob o domínio colonial
de Portugal.
A obra de Jorge Amado possuía considerável relevância nos países africanos de
língua portuguesa, sendo objeto de referência estética e política, nacionalista, com teor
ideológico de esquerda e que demonstrava a condição de exploração na qual viviam os
trabalhadores do campo e da cidade, oprimidos pelo “[...] capitalismo monopolista de ranço
colonial”. (BERGAMO, 2020, p. 119).
Assim, Caroline Guimarães (2019, p. 129) percebe que o ponto central da
aproximação narrativa de
Os deuses e os mortos
em relação ao romance de Jorge Amado
é a “[...] relação entre capital internacional o universo aparentemente racional da
mercadoria e a aniquilação de contornos arcaicos entre duas famílias pela disputa de
terras [...]”. Mas uma diferença crucial na mobilização destes elementos, pois o escritor
atribui como causa da decadência da economia cacaueira principalmente no contexto de
1930, posterior à crise econômica mundial de 1929 o fator imperialismo (DANTAS, 2010;
FREITAS, 1979); ao passo que o filme evidencia uma região com caracteres predatórios em
sua conjuntura interna.
Sete Vezes personagem principal da película de Ruy Guerra demarca essa
diferença do filme em relação ao livro, pois ele não existe na narrativa de Jorge Amado.
Esta personagem nos permite lançar mão da hipótese de que ela pode significar uma
síntese entre sujeitos do mundo material os trabalhadores e do mundo mítico os
mortos.
Considerando que essa síntese é característica de determinadas produções
cinemanovistas
, vale ressaltar a abordagem singular realizada pelo cineasta nesse sentido.
No lugar de elementos que se referiam diretamente a aspectos da cultura popular, a
instância mítica de
Os deuses e os mortos
destaca figuras que aparecem nas primeiras
cenas (cuja temporalidade é a década de 1970), caminhando rumo a um futuro melhor nas
terras do cacau, porém a caracterização física é a mesma dos mortos que habitam as terras
“do fruto de ouro” quando a narrativa é ambientada na década de 30, em sintonia com o
colapso da modernidade abordado pelo autor com a crise da linguagem
cinemanovista
,
própria do início da década de 1960.
Diferente da paleta de cores da Bahia do cacau narrada por Jorge Amado, marcada
“[...] pelo dourado e pelo amarelo [...](ALBUQUERQUE, 2011, p. 245), as cenas elaboradas
por Ruy Guerra destacam tons marrons e vermelhos, pois aqui cacau é sangue, e o sangue
se confunde com a lama. O amarelo é utilizado pelo diretor, mas com o objetivo de fazer
esta cor significar a doença e a morte; e, para marcar mais essa impressão, ele a usa para
colorir córregos e riachos, evidenciando que o filme propõe interpretações próprias e
reconstruções autônomas a partir do texto literário (ALVES, 2010). Nos momentos finais
do filme, Jura a herdeira de Santana da Terra termina cantando “A Canhoneira” (música
feita para o filme) e andando pelo riacho amarelo, simbolizando as próximas gerações
provenientes de águas doentes, inférteis.
No filme de Ruy Guerra, ao contrário da máxima cinemanovista, não há beleza a ser
extraída da feiura: seu intuito é destacar a acumulação predatória que assola, de forma
recorrente, a história brasileira. Quando mediado em tempos imediatamente posteriores
ao golpe dentro do golpe”, marcado pelo aumento da repressão por parte da ditadura
militar brasileira, escancara o encontro entre o “atraso” e o “moderno” que caracteriza
parte dos processos sociais e econômicos nacionais.
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Acesso em: 15/10/2021.